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Mas este é apenas um dos problemas. O ensino jurídico não vai mal porque os
alunos ficam grudados no feicibuqui. Também por isso. Mas vai mal porque não há
pedagogia sem dor. Não há intelectual bronzeado (é uma metáfora). Nem
intelectuais-periguetes (os e as). No Direito, “pireguetear” não é preciso (apesar da
paráfrase, permaneço aqui no nível apofântico — e a palavra “preciso” deve ser
entendida em sua ambiguidade). E, fundamentalmente, não há a mínima
possibilidade de avançarmos na melhoria do ensino jurídico enquanto a literatura
utilizada for composta por um produto pret-à-porter, pret-à-parler e pret-à-penser.
Rafael Tomaz de Oliveira escreveu recentemente coluna (ler aqui) falando sobre o
dilema dos livros mínimos que o aluno deve ler ou que o professor deve cobrar na
faculdade de Direito. Não vou, aqui, delinear os livros que deveriam ser utilizados.
Mas, por favor: hoje há professores de direito civil que não conhecem a história do
direito civil alemão ou o brasileiro... Já fiz testes sobre isso, perguntando aquando
surgiu — stricto sensu — o direito de propriedade em terrae brasilis. Aliás: o leitor
sabe? E qual a diferença entre o tratamento da posse e da propriedade no século XIX
em relação ao Código de 1916? No que isso influenciou a questão da terra?
Se o seu professor de processo penal acha que a livre apreciação da prova é “assim
mesmo” por ser uma fatalidade ou que o tal princípio (sic) da verdade real existe
mesmo ou o seu professor de processo civil não sabe quem foi Büllow... (e sua
relação com as escolas instrumentalistas) é porque você deve estar cursando outra
coisa que não o “direito”. Talvez administração de empresas ou outra coisa.
Isto só para começar a dizer para o aluno Edilson o que de mínimo um curso de
Direito precisa propiciar ao aluno. O que falei é menos de um por cento. Assim como
para estudar física, engenharia ou filosofia há um “kit” mínimo para começar,
também no direito deveríamos fazer uma “cesta jurídico-epistêmico-básica”, algo
como a garantia do mínimo existencial na cultura jurídica (MECJ). Em colunas
próximas procurarei elaborar essa cesta básica.
De todo modo, o estudante ideal não deveria cursar tantas disciplinas. Muitas delas
são absolutamente inúteis. Não é necessário oito ou dez semestres de direito civil.
Estudar o(s) Código(s) — do modo como fazem — é mera técnica. O que o aluno deve
saber é a matriz que sustenta o(s) Código(s) e a necessária matriz de interpretação
da legislação. E assim por diante. Duvide desse negócio de “especialista em....”. Um
jurista bem preparado — com estofo teórico — pega uma lei e faz um estudo sobre
ela e dá um nó no neoespecialista.
Por que frequentar uma disciplina onde o professor pega um resumo ou livro de
facilitação para “descobrir” que agressão atual é a que está acontecendo? Ou que
escalada é subir em alguma coisa? Ou discutir o assalto de Caio? Ou a solução para o
problema dos gêmeos xipófagos? Ou ficar decorando verbetes (enunciados)
provenientes de julgados extraídos ad hoc? Não há como aprender direito sem que
os alunos leiam... livros. Sim, livros e não resumos de livros ou livros orelhados. O
que se está fazendo hoje é um processo de violência simbólica, para recordar um
famoso livro dos anos 80 chamado A Reprodução, de Bourdieu e Passeron. Direito
não se aprende por jogral. E nem por decoreba.
“É claro que este operário anônimo do Direito é necessário, mas por que deve ser
inconsciente? [...] Sua atividade passa a ser meramente formal, sem influência no
processo de tomada de decisão e no planejamento.”
Mais:
“O jurista formado por escolas, convém lembrar, não será apenas advogado: será
também o juiz que fará parte, afinal de contas, de um dos poderes políticos do
Estado. A alienação do jurista, deste modo, colabora também na supressão das
garantias de direitos. É que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é
colocado na eficiência, não no bem do homem. Começa-se a falar em um bem
comum que só existe nas estatísticas dos planejadores, mas que a pobreza dos
centros urbanos desmente. E, em nome desse bem comum, alcançável pela
eficiência, sacrificam-se alguns valores que talvez não fosse inútil preservar”.[1]
De todo modo, eis algumas observações sobre o que é e como pode(ria) ser o ensino
jurídico. Por exemplo:
f.2.) é preciso livrar-se das “muletas” utilizadas para apoiar algum tipo de
deficiência na própria formação em algum elemento institucional. De se registrar: é
claro que as demandas dos discentes por melhoras na infraestrutura do curso são
salutares. Todavia, deficiências ou falhas institucionais não são motivos para, a
priori, justificar gaps formativos. Exemplos: se na sua faculdade não existe pesquisa
institucionalizada, procure um professor doutor que possa lhe orientar e busque
financiamento de sua pesquisa em algum órgão de fomento à pesquisa; se sua
faculdade não produz eventos científicos interessantes, tente viabilizá-los juntos aos
órgãos de representação acadêmica (DA’s; CA’s, etc..). Não incentive showmícios
pequeno-epistêmicos feitos por professores mais preocupados em vender seu
“peixe” de cursinho. E incentive os alunos a, antes de frequentarem congressos,
pesquisarem acerca do curriculum dos palestrantes.
f.3.) aprenda a usar a biblioteca; faça o uso devido de sua autonomia intelectual. Ali
você vai descobrir um universo muito além da sala de aula e de seu professor. Faça
um exercício consigo mesmo e se pergunte: quantas vezes você, desde que começou
a frequentar o curso de direito, foi até a biblioteca despido de alguma obrigação
institucional? Quantos livros você tomou emprestado que não foram indicados pelo
professor? É importante ir a uma biblioteca e não simplesmente requerer ao
bibliotecário ou a quem responda por ele o exemplar que você procura. É
importante vagar pelas prateleiras à esmo e deixar que um livro caia nas suas mãos
e desperte o seu interesse pelo mero acaso. Pode-se descobrir excelentes livros
assim.
f.4) e por fim, mas não menos importante, leia livros de literatura. Leia aos montes...
leia-os o máximo que você puder. Especialmente os romances. Neles você terá, além
de um contato com a língua na sua forma mais emblemática, a possibilidade de se
deparar com personagens fictícios que enfrentam dramas da vida próximos
daqueles que os cientistas sociais enfrentam; próximo daqueles que os juristas
enfrentam. Frustrações, paixões, um desfile de dilemas morais tudo que nos leva a
sentirmos mais humanos, menos bestializados (ver aqui vídeo em que trato desse
assunto). Não é a toa que as grandes utopias humanistas queriam formar uma
espécie de comunidade universal de leitores. Na literatura temos a representação
maior do modo com as relações humanas se desdobram e produzem sentido no
mundo prático. Basta relembrar a operacionalidade geométrica do Direito [2]para
percebermos que a realidade não sensibiliza os juristas; as ficções, sim. Com isso,
seguimos confundindo as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos
endurecidos.
Desse modo, podemos dizer, como uma palavra final, que o acadêmico ideal
representa um arquétipo que só pode ser reproduzido em termos práticos se for
possível observarmos duas transformações:
Por fim, quanto à questão relacionada a Scott Turow, a resposta é não. Em um país
de modernidade tardia, os alunos não possuem tempo integral como em Harvard, a
não ser os que tem paitrocínio ou que podem frequentar faculdades públicas sem
trabalhar. A maioria dos acadêmicos se esfalfela trabalhando oito horas por dia e, à
noite, vai à faculdade. Por isso, temos que ser darwinianos. Adaptarmo-nos às
adversidades. E nos esforçarmos. Um estudante de filosofia, se tem uma prova sobre
o sujeito da modernidade em Kant, não faz festa até as quatro da manhã (é uma
metáfora). Em regra, os cursos de filosofia exigem olheiras dos alunos, se me
entendem a alegoria (ou a brincadeira). O aluno de direito, regra geral, consegue
fazer festa até as quatro e responder, no dia seguinte, a prova de direito civil
objetiva e tirar sete. Até porque só chumba na faculdade de direito quem tem
pistolão (é uma ironia).
Sugiro, pois, o “fator olheiras”. Como disse, não existe intelectual bronzeado. Ou,
para ser mais leve, ninguém se torna um bom estudante de direito se ficar lendo
resuminhos ou fazendo festa até a madrugada. A vida é bela. Mas é dura. O resto é
churumela e autoajuda. Que não resolve nada. Não se pode fazer como o Barão de
Münchausen: afogado no pântano com seu cavalo, puxou-se a si mesmo pelos
cabelos...
[1] FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre, Fabris, 1987.
[2] CALVO GONZÁLEZ, José. Direito curvo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013