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Internet: chegou a hora das redes comunitárias?

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Rafael A. F. Zanatta

Casa dos Meninos realiza a implantação de uma rede comunitária no Jardim São Luis, Zona Sul de
SP

Ao invés do Uber e do AirBnB, plataformas autogeridas. Para preservar privacidade, um


provedor compartilhado. Quem sabe no futuro, uma opção ao Facebook. Veja como tudo
isso está sendo feito no Brasil

Por Rafael Zanatta

Em 2016, mesmo com os ininterruptos choques políticos em nível nacional e internacional,


explorei nesta coluna algumas possibilidades progressistas para nossa sociedade
digitalizada. A partir de experiências capitaneadas pela Peer-to-Peer Foundation
(Holanda), a OuiShare (França) e o Platform Cooperativism (EUA), discuti a possibilidade
de “subversão do capitalismo de dados” por meio de plataformas geridas
democraticamente pelos seus próprios usuários.

Imagine um aplicativo de corridas moderno para smartphones controlado pelos


motoristas? Ou uma plataforma online de aluguel de quartos de propriedade de moradores
de um bairro? São modelos radicalmente opostos à ideologia do Vale do Silício, que
advoga um modelo único para as economias digitais: grandes empresas financiadas pela
indústria do capital de risco que extraem valor das ações econômicas das “pontas”, por
meio da Internet. Porém, como lembra a socióloga Juliet Schor, esse modelo não é único.
Ele pode e deve ser contestado a partir dos ideais de democracia econômica,
solidariedade e justiça social. É possível que existam vários mercados (peer-to-peer).

Esse debate inicial trouxe resultados positivos em 2016. Aos poucos, ganhou força no
Brasil o debate sobre “cooperativismo de plataforma”. Tive a oportunidade de discutir as
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ideias centrais deste projeto em diferentes locais, para diferentes públicos, incluindo
organizações de cooperativas do Rio Grande do Sul; o Comitê Gestor da Internet, em São
Paulo; e a reunião do fórum da sociedade civil da OCDE, que ocorreu no México.

Ao lado do projeto de “cooperativismo de plataforma” – a possibilidade de


empreendimentos cooperativos de tecnologia onda há participação democrática nas
decisões e distribuição justa do valor gerado por intermediações e serviços –, outra
agenda promissora é o das “redes comunitárias”. Trata-se da possibilidade de gestão
coletiva, feita por uma comunidade, de infraestrutura de conexão à Internet.

No último Internet Governance Forum (IGF), realizado em dezembro no México, o tema


ganhou extrema importância. O diagnóstico feito por ativistas e acadêmicos de diferentes
partes do mundo – Estados Unidos, Espanha, Argentina, Brasil, México, Itália, etc. – foi de
emergência de diferentes experiências comunitárias e identificação de “princípios comuns”
para governança de redes comunitárias. Tal como discutido em João Pessoa em 2015,
participantes do IGF apontaram para a necessidade de modelos financeiros de apoio a tais
comunidades e políticas públicas direcionadas à inclusão dos desconectados.

A partir de experiências concretas de pequenas comunidades, ativistas identificaram seis


princípios para as redes comunitárias. Primeiro, a propriedade coletiva da infraestrutura
(não há um “único dono” ou “investidor”). Segundo, a gestão social da infraestrutura de
rede (todos que se conectam possuem deveres para auxiliar na operação). Terceiro,
design aberto (a implementação da rede deve ser documentada de forma pública e
acessível). Quarto, a participação aberta (qualquer pessoa pode estender a rede, desde
que siga os mesmos princípios e design). Quinto, o livre trânsito e peering (redes
comunitárias podem fazer acordos com outras redes para reciprocidade e tráfego de
dados). Sexto, a segurança e privacidade (o design sempre buscar proteger os membros).

As “redes comunitárias” seguem princípios muito próximos das “cooperativas de


plataforma”. A diferença central é de finalidade da ação coletiva: enquanto a governança
das redes dedica-se à conexão à Internet, a governança das plataformas dedica-se aos
serviços e ao trabalho nas economias digitais. Os princípios de abertura, participação
econômica e gestão coletiva são os mesmos.

Engana-se quem pensa que tais experiências são “coisas de gringos”. Elas estão mais
próximas de nós do que imaginamos.

Nesta semana, a Artigo 19, em parceria com o Instituto Bem-Estar Brasil e a Associação
Nacional de Inclusão Digital, publicou um guia sobre “como montar e regularizar um
provedor comunitário”. O material baseia-se em anos de trabalho comunitário
desenvolvido no interior do Rio de Janeiro e explora três possibilidades de conexão: via
rádio, via fibra óptica ou “redes mesh”.

Um outro projeto promissor – e que é semifinalista de uma competição promovida pela


Fundação Mozilla – é o “Cooperativa P2P Redes Livres”, uma espécie de
“metacooperativa” de redes comunitárias. Seu objetivo é fomentar a criação de novas
cooperativas, estimulando a autogovernança de comunidades no interior do Brasil e
conexão à Internet por conta própria.

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Em um cenário de concentração do mercado de telecomunicações no Brasil,
comportamento predatório de multinacionais e desconstrução das políticas de inclusão
digital pelo governo federal, as redes comunitárias são uma resposta “de baixo para cima”
para o problema da desconexão à Internet banda larga fixa, que atinge mais de 100
milhões de brasileiros. De brinde, promove uma cultura cívica de participação, democracia
e responsabilidades compartilhadas.

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