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Mas as coisas não são tão simples assim. Vale a pena refletir um pouco sobre este tema,
começando do princípio, e abordando os aspectos ambientais, econômicos e sociais desta
atitude, hoje tão debatida e comentada por todos.
Neste texto abordarei a reciclagem ou a recuperação dos materiais contidos apenas no lixo
domiciliar urbano, ou seja, aquele lixo que é gerado em nossas casas e no comércio em
geral. É um lixo que não traz maiores problemas de contaminação, afinal saiu de nossas
casas poucas horas antes de ser manipulado por alguém que vai reaproveitá-lo de alguma
forma. É aquele lixo que muitos apregoam ser muito valioso, que vale bilhões de dólares.
Quando ouço alguém dizer isto, pergunto onde posso deixar os milhares de toneladas
coletados na minha cidade, Rio de Janeiro, para que suas riquezas possam ser
aproveitadas. Se nosso lixo de cada dia valesse alguma coisa, ele não seria um problema
para as prefeituras, mas antes, uma matéria-prima disputada por todos, o que não
acontece.
Vamos primeiro ver que resíduos são esses. Nosso lixo domiciliar contém, em peso, cerca
de 50 a 60 % de matéria orgânica de rápida decomposição, 30 a 40 % de materiais
potencialmente aproveitáveis ou recicláveis e 10 a 20 % de terra, papéis ou plásticos sujos,
sem possibilidades de reaproveitamento econômico ou reutilização, tais como papel
higiênico, fraldas descartáveis, absorventes, lâmpadas, pilhas, papel celofane, vidros planos
e outros. Conhecida a sua composição, vamos observar melhor os dois grandes grupos que
nos interessam mais: matéria orgânica de rápida decomposição e materiais potencialmente
recuperáveis ou reutilizáveis.
É mais agradável falarmos sobre o que todo mundo sabe, todo mundo vê, todo mundo
gosta: os materiais recicláveis, mais limpos e mais fáceis de manipular. Papéis, papelão de
embalagens, latas de conservas, latinhas de cerveja ou refrigerantes, garrafas e
embalagens de PET, plásticos em geral, jornais e revistas, potes e garrafas diversas de
vidro, todos fáceis de se guardar em um saco plástico, depois de uma lavagem rápida. Em
seguida colocamos os sacos na calçada para serem recolhidos pela coleta seletiva ou pelos
catadores. Pronto: fizemos a nossa parte, a mãe Terra agradece, estamos em paz com a
nossa consciência ambiental. Mas será que é isto mesmo?
Não, não é tão simples assim. Quando separamos nossos recicláveis, não temos nenhuma
idéia do que vai acontecer com eles depois de serem coletados por catadores ou por algum
sistema formal de coleta seletiva. Achamos que, de alguma forma mágica, eles serão
transformados em novos produtos e que, nesta operação, haverá economia de energia, de
água e de matérias primas não renováveis, fato que muito contribui para um futuro melhor
para as gerações que nos sucederão. Mas será que é assim mesmo? Vamos examinar o
que acontece com alguns materiais separados como recicláveis em nossas casas, até que
voltem a ser um produto de consumo, depois de submetidos a determinados processos
industriais.
Tomemos inicialmente o papel e o papelão, produtos que há mais tempo são reciclados no
Brasil, pelo menos desde os anos 50, pelos conhecidos “garrafeiros”, ou “burros sem rabo”,
aqueles que passavam pelas ruas do Rio, de casa em casa, gritando “garrafeeeero!”, à cata
de garrafas de vidro e jornais, revistas ou livros velhos, que compravam a preços muito
baixos e os revendiam a intermediários, com um pequeno lucro. Os papéis iam para
pequenas fábricas de papel, que os aproveitavam como sucatas, da mesma forma que as
atuais indústrias operam: o processo começa nos hidrapulpers - do inglês, hydro pulpers -,
ou grandes liquidificadores, que batem o material com água e soda cáustica até formar uma
pasta homogênea, com as fibras do papel dissolvidas e limpas e passíveis de serem
reorganizadas e ligadas umas às outras através de sucessivos caminhos e processos
industriais, até que sejam transformadas em papel novo, pronto para ser novamente
reutilizado. Para o branqueamento do papel utilizam-se compostos de cloro ou peróxido de
hidrogênio. Para que toda esta explicação? Para sabermos que o insumo que mais se
consome na reciclagem de papel/papelão é a água limpa, e que ela, depois do processo
industrial de reciclagem, se não for muito bem tratada, o que custa muito caro, contaminará
fortemente os recursos hídricos onde é despejada. Isto sem falar dos compostos de cloro
que são adicionados durante o processo, e que também podem trazer malefícios à saúde de
quem eventualmente tiver contacto com os efluentes líquidos da indústria. Gasta-se,
também, muita energia neste processo, e tudo isto nos faz pensar se realmente vale a pena
reciclar o papel. Deve valer, pelo que se ouve por aí, porque a reciclagem de papel salva
árvores, o que é desejável, do ponto de vista ambiental. Acontece que as árvores que se
abatem para a fabricação do papel são provenientes de empreendimentos florestais -
árvores plantadas - e não de florestas nativas, como a Amazônia ou a Mata Atlântica.
Árvores que, para se desenvolverem, utilizam as forças da natureza, como a água de chuva,
os nutrientes do solo e a luz solar. Assim, se examinarmos o ciclo industrial da reciclagem
do papel e o compararmos com o de sua fabricação a partir de árvores plantadas,
considerando-se rigorosamente os aspectos ambientais e energéticos envolvidos, veremos
que a segunda opção provavelmente será mais sustentável do que a primeira.
E com os plásticos, é a mesma coisa? De certa forma sim, pois os processos industriais de
reciclagem deste material são extremamente poluentes e, para reduzir ou eliminar a
agressão ao meio ambiente que eles causam é necessário fazer grandes investimentos, que
nem sempre são realizados pelos pequenos e médios recicladores, porque o preço da
matéria prima reciclada é relativamente baixo, e mal consegue cobrir os custos de aquisição
dos materiais usados e do processo industrial. O resultado é que a maior parte destas
indústrias não tem qualquer sistema de tratamento de efluentes líquidos e oferece péssimas
condições de trabalho aos seus empregados, como ruídos excessivos, condições insalubres
e alto risco de acidentes.
O uso do alumínio para embalagens também deve ser discutido. Quando se fala que o
alumínio pode ser reciclado infinitas vezes e que se gasta neste processo apenas 5% da
energia despendida na fabricação a partir do minério, não se menciona que o alumínio para
ser fabricado a partir do minério de bauxita, consome uma enorme quantidade de energia e
gera grande volume de rejeitos. Exatamente por isto, as indústrias que o produzem são
consideradas "sujas", e têm sido exportadas para os países em desenvolvimento. O uso do
alumínio como embalagem e sua posterior reciclagem são, portanto, muito convenientes
para os países que não tenham que fabricá-la a partir da extração da bauxita. Este não é o
caso do Brasil, que tem grandes jazidas deste minério e fabrica o alumínio em grandes
indústrias eletro-intensivas, algumas delas utilizando energia elétrica subsidiada pelo poder
público.
Todas estas considerações nos levam a uma constatação: não se pode, a priori, estabelecer
se a reciclagem é boa ou má para o meio ambiente ou para as pessoas, sem se estudar
cuidadosamente o ciclo de vida do material a ser reciclado. Isto permite que se avalie o
consumo de energia e os eventuais impactos ao meio ambiente que ocorrem durante este
processo. Vamos exemplificar como estes aspectos podem ser variáveis dependendo das
circunstâncias em que ocorrem: a produção de uma lata de alumínio de 33 cl na Inglaterra,
usando alumínio fundido na Noruega, a partir da energia hidroelétrica, e posteriormente
laminado na Alemanha, liberará 110 gramas de CO2 - equivalente a 6,5 toneladas de CO2
por tonelada de alumínio. Se a mesma lata, entretanto, for produzida na Alemanha, usando-
se carvão como fonte primária de energia, haverá uma liberação de 280 gramas de CO2,
valor este que será ainda maior se o alumínio for produzido na Tchecoslováquia, usando-se
carvão de pior qualidade.
Vemos, assim, que também devemos ter, em nossas iniciativas individuais, a preocupação e
a consciência do "balanço ambiental", para que não tomemos atitudes que acreditamos
serem “ambientalmente corretas” mas que podem trazer grandes prejuízos ao meio
ambiente.
Aqui está um exemplo interessante para ilustrar este conceito: no incentivo à prática da
reciclagem, em várias cidades dos Estados Unidos e da Europa, a população é estimulada a
levar os materiais recicláveis, como vidros, plásticos, papeis e papelão ou metais aos PEV’s
- Pontos de Entrega Voluntária, depósitos especiais instalados em locais públicos
destinados a armazenar temporariamente estes materiais. De lá, eles são levados para
outros centros de triagem ou indústrias, que irão aproveitá-los na fabricação de novos
produtos. Vamos imaginar que uma determinada residência esteja a 10 quilômetros de um
destes PEV’s. Se algum morador usar o seu carro exclusivamente para levar os recicláveis
até lá, poderá estar cometendo, com a melhor das intenções, um ato antiecológico, pois o
combustível derivado do petróleo que estará consumindo neste deslocamento
provavelmente contem mais energia do que a que se irá economizar com a reciclagem
daqueles materiais que separou em sua casa. Além disso, devemos considerar a poluição
que a descarga do motor do automóvel causará à atmosfera e o consumo de matérias-
primas não-renováveis, como a gasolina, a borracha dos pneus e o asfalto das estradas.
Portanto, antes de decidirmos o que separar em nossas casas como materiais recicláveis,
que seriam normalmente descartados em aterros, é necessário estarmos seguros de que
eles podem ser reciclados, que alguém vai querer comprá-los depois de reciclados e
beneficiados, e que, finalmente, este processo não envolverá o uso de mais recursos
naturais do que os que supomos que irá economizar.
Há muitas cidades no Brasil nas quais o poder público e a sociedade têm o desejo de
implantar sistemas de reciclagem, mas se estão a grandes distâncias dos centros industriais
que podem processar os materiais recicláveis, esta iniciativa estará inviabilizada, pois o
custo de transporte acaba sendo maior do que o valor do próprio produto transportado. Se,
no entanto, a vontade política voltada para o meio ambiente é grande, por que não reciclar a
matéria orgânica, a partir da qual se pode produzir um composto orgânico de boa qualidade,
que sempre terá uma aplicação útil, se não na agricultura, certamente nos parques e jardins
da cidade?
A reciclagem tem um efeito mais amplo do que se possa imaginar, tanto no uso de recursos
naturais como nos impactos ambientais que eventualmente pode causar. Só a partir do
conhecimento de todas as variáveis que envolvem o seu ciclo completo é que se pode
decidir se se deve ou não reciclar um determinado material.
Diante de toda esta argumentação, podemos concluir que a reciclagem não vale a pena? Ao
contrário, creio que vale, desde que se escolha a forma certa de realizá-la, buscando
concertar num mesmo programa os seguintes aspectos: benefícios sociais, melhoria da
limpeza urbana e do meio ambiente e sustentabilidade econômica/financeira do sistema.
Como conseguir esta proeza? Não há um modelo que se possa recomendar de forma
genérica; cada cidade, cada comunidade, tem suas características próprias, e o sistema de
limpeza urbana, onde se inclui a reciclagem, deve se adaptar a elas, tanto nos aspectos
econômicos como sociais e culturais.
Mas uma coisa é certa: reciclar a simples separação dos recicláveis que fazemos hoje em
casa, deixando a matéria orgânica de rápida decomposição ir para os aterros, contribui
muito pouco para o meio ambiente. A reciclagem, em seu conceito integrado, deve incluir
esta fração e outras, como entulhos de obras e restos de poda. A rigor, só deveriam ser
destinados aos aterros os resíduos sem qualquer possibilidade de recuperação ou
aproveitamento, norma adotada hoje na Comunidade Européia, onde a escassez de áreas
para aterros justifica o dispêndio de rios de dinheiro nos programas de reciclagem. É bom
lembrar que a matéria orgânica é o que realmente traz problemas para os aterros: é ela que
gera o chorume - um líquido que se não tratado corretamente pode contaminar os corpos
d’água -, e o biogás, que possui em sua composição cerca de 50% de metano, um gás
altamente prejudicial ao efeito estufa, que provoca o aquecimento global da terra. E esta
matéria orgânica pode ser transformada em composto orgânico, um excelente insumo
agrícola, aplicável em quase todas as culturas, que promove o recondicionamento do solo e
possui todos os nutrientes, ainda que em pequenas proporções, necessários ao
desenvolvimento das plantas.
De qualquer forma, uma coisa é certa: não será o órgão ou empresa de limpeza urbana,
nem mesmo a Prefeitura, sozinha, que resolverá a questão social do país, dando a todos
aqueles que hoje sobrevivem da catação, melhores e mais seguras oportunidades de
trabalho e renda. A meu ver, as discussões sobre este tema têm tomado um tal fervor e
paixão que acabam gerando, dentro da própria instituição responsável pela limpeza urbana,
focos de tensão que terminam por prejudicar o seu objetivo maior, que é a gestão integrada
dos resíduos sólidos da cidade.
A participação da limpeza urbana no ordenamento da atividade dos catadores, na sua
capacitação e na valorização do seu trabalho, é fundamental, pois aumenta a sua renda e
evita a catação predatória nas ruas, o que melhora as condições sanitárias da cidade.
Neste amplo espectro da atividade de reciclagem dos resíduos sólidos, não há como deixar
de comentar a catação nos aterros de lixo, que ocorre ainda em muitas instalações em todo
o Brasil, independente do tamanho das cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, no aterro
de Gramacho, um dos maiores da América do Sul, cerca de 1.000 catadores atuam na
frente de vazamento do lixo, de onde retiram perto de 200 toneladas por dia de materiais
recicláveis. A COMLURB - Cia. Municipal de Limpeza Urbana, empresa pertencente ao
município e que tem a responsabilidade pela gestão de resíduos na cidade do Rio de
Janeiro, nunca proibiu a catação em seus aterros, e sempre foi muito criticada por isso.
Quando alguns visitantes se surpreendem com os catadores em Gramacho, um aterro que
hoje opera dentro dos requisitos da engenharia sanitária, e comentam as condições
insalubres a que estão expostos, retrucamos que pior do que a insalubridade é a fome, e
que ninguém está ali por prazer, e sim, por falta de melhores alternativas de trabalho.