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O MITO DA RECICLAGEM

José Henrique Penido Monteiro


Artigo publicado no livro de fotografias “O aterro de Gramacho”, de Marcos Prado -
Fevereiro de 2005

Afinal, reciclar para que?


Vale a pena?
É uma atitude politicamente correta?
Será que também é ambientalmente correta?
Reciclar o que, quando, como, porque?

De um modo geral as pessoas nem se fazem estas perguntas, obedecem a um instinto


superior, a um mantra da sociedade de consumo moderna, que repete sem cessar: reciclar
é bom, reciclar é preciso, vamos todos reciclar, vamos salvar o planeta reciclando....

Mas as coisas não são tão simples assim. Vale a pena refletir um pouco sobre este tema,
começando do princípio, e abordando os aspectos ambientais, econômicos e sociais desta
atitude, hoje tão debatida e comentada por todos.

Neste texto abordarei a reciclagem ou a recuperação dos materiais contidos apenas no lixo
domiciliar urbano, ou seja, aquele lixo que é gerado em nossas casas e no comércio em
geral. É um lixo que não traz maiores problemas de contaminação, afinal saiu de nossas
casas poucas horas antes de ser manipulado por alguém que vai reaproveitá-lo de alguma
forma. É aquele lixo que muitos apregoam ser muito valioso, que vale bilhões de dólares.
Quando ouço alguém dizer isto, pergunto onde posso deixar os milhares de toneladas
coletados na minha cidade, Rio de Janeiro, para que suas riquezas possam ser
aproveitadas. Se nosso lixo de cada dia valesse alguma coisa, ele não seria um problema
para as prefeituras, mas antes, uma matéria-prima disputada por todos, o que não
acontece.

Na realidade, a gestão dos resíduos sólidos é um problema sério, no âmbito do saneamento


básico, e que afeta a saúde da população e o meio ambiente se não for bem equacionado.
No Brasil, assim como na maioria dos países em todo o mundo, a limpeza urbana é de
responsabilidade dos municípios, e deve ser gerida a partir de uma decisão política do
Prefeito. Mas se é realmente um problema, o que há afinal neste lixo que pode interessar a
algumas pessoas e levá-las a buscar nele recursos que possam trazer alguma renda ou
benefício?

Vamos primeiro ver que resíduos são esses. Nosso lixo domiciliar contém, em peso, cerca
de 50 a 60 % de matéria orgânica de rápida decomposição, 30 a 40 % de materiais
potencialmente aproveitáveis ou recicláveis e 10 a 20 % de terra, papéis ou plásticos sujos,
sem possibilidades de reaproveitamento econômico ou reutilização, tais como papel
higiênico, fraldas descartáveis, absorventes, lâmpadas, pilhas, papel celofane, vidros planos
e outros. Conhecida a sua composição, vamos observar melhor os dois grandes grupos que
nos interessam mais: matéria orgânica de rápida decomposição e materiais potencialmente
recuperáveis ou reutilizáveis.

Na primeira categoria estão os restos de cozinha, de comida, flores, pó de café, frutas e


legumes estragados ou suas cascas, tudo aquilo que se não for bem embalado ou retirado
logo de nossas casas, começa a se decompor, exala maus odores e atrai insetos e ratos. É
um tipo de resíduo que ninguém gosta muito de manusear, queremos que alguém os tire de
perto de nós o mais rapidamente possível. Mas será que não há como fazer alguma coisa
de útil com este “lixo”, que aparentemente não interessa a ninguém? Veremos isso adiante.

É mais agradável falarmos sobre o que todo mundo sabe, todo mundo vê, todo mundo
gosta: os materiais recicláveis, mais limpos e mais fáceis de manipular. Papéis, papelão de
embalagens, latas de conservas, latinhas de cerveja ou refrigerantes, garrafas e
embalagens de PET, plásticos em geral, jornais e revistas, potes e garrafas diversas de
vidro, todos fáceis de se guardar em um saco plástico, depois de uma lavagem rápida. Em
seguida colocamos os sacos na calçada para serem recolhidos pela coleta seletiva ou pelos
catadores. Pronto: fizemos a nossa parte, a mãe Terra agradece, estamos em paz com a
nossa consciência ambiental. Mas será que é isto mesmo?

Não, não é tão simples assim. Quando separamos nossos recicláveis, não temos nenhuma
idéia do que vai acontecer com eles depois de serem coletados por catadores ou por algum
sistema formal de coleta seletiva. Achamos que, de alguma forma mágica, eles serão
transformados em novos produtos e que, nesta operação, haverá economia de energia, de
água e de matérias primas não renováveis, fato que muito contribui para um futuro melhor
para as gerações que nos sucederão. Mas será que é assim mesmo? Vamos examinar o
que acontece com alguns materiais separados como recicláveis em nossas casas, até que
voltem a ser um produto de consumo, depois de submetidos a determinados processos
industriais.

Tomemos inicialmente o papel e o papelão, produtos que há mais tempo são reciclados no
Brasil, pelo menos desde os anos 50, pelos conhecidos “garrafeiros”, ou “burros sem rabo”,
aqueles que passavam pelas ruas do Rio, de casa em casa, gritando “garrafeeeero!”, à cata
de garrafas de vidro e jornais, revistas ou livros velhos, que compravam a preços muito
baixos e os revendiam a intermediários, com um pequeno lucro. Os papéis iam para
pequenas fábricas de papel, que os aproveitavam como sucatas, da mesma forma que as
atuais indústrias operam: o processo começa nos hidrapulpers - do inglês, hydro pulpers -,
ou grandes liquidificadores, que batem o material com água e soda cáustica até formar uma
pasta homogênea, com as fibras do papel dissolvidas e limpas e passíveis de serem
reorganizadas e ligadas umas às outras através de sucessivos caminhos e processos
industriais, até que sejam transformadas em papel novo, pronto para ser novamente
reutilizado. Para o branqueamento do papel utilizam-se compostos de cloro ou peróxido de
hidrogênio. Para que toda esta explicação? Para sabermos que o insumo que mais se
consome na reciclagem de papel/papelão é a água limpa, e que ela, depois do processo
industrial de reciclagem, se não for muito bem tratada, o que custa muito caro, contaminará
fortemente os recursos hídricos onde é despejada. Isto sem falar dos compostos de cloro
que são adicionados durante o processo, e que também podem trazer malefícios à saúde de
quem eventualmente tiver contacto com os efluentes líquidos da indústria. Gasta-se,
também, muita energia neste processo, e tudo isto nos faz pensar se realmente vale a pena
reciclar o papel. Deve valer, pelo que se ouve por aí, porque a reciclagem de papel salva
árvores, o que é desejável, do ponto de vista ambiental. Acontece que as árvores que se
abatem para a fabricação do papel são provenientes de empreendimentos florestais -
árvores plantadas - e não de florestas nativas, como a Amazônia ou a Mata Atlântica.
Árvores que, para se desenvolverem, utilizam as forças da natureza, como a água de chuva,
os nutrientes do solo e a luz solar. Assim, se examinarmos o ciclo industrial da reciclagem
do papel e o compararmos com o de sua fabricação a partir de árvores plantadas,
considerando-se rigorosamente os aspectos ambientais e energéticos envolvidos, veremos
que a segunda opção provavelmente será mais sustentável do que a primeira.

E com os plásticos, é a mesma coisa? De certa forma sim, pois os processos industriais de
reciclagem deste material são extremamente poluentes e, para reduzir ou eliminar a
agressão ao meio ambiente que eles causam é necessário fazer grandes investimentos, que
nem sempre são realizados pelos pequenos e médios recicladores, porque o preço da
matéria prima reciclada é relativamente baixo, e mal consegue cobrir os custos de aquisição
dos materiais usados e do processo industrial. O resultado é que a maior parte destas
indústrias não tem qualquer sistema de tratamento de efluentes líquidos e oferece péssimas
condições de trabalho aos seus empregados, como ruídos excessivos, condições insalubres
e alto risco de acidentes.

A reciclagem do alumínio, matéria-prima das latinhas de refrigerantes e cerveja, pelo menos


vale a pena, não? Vamos ver: o material recuperado tem alto valor no mercado, e o Brasil é
o campeão mundial neste tipo de reciclagem. No meu ponto de vista, não devemos ficar
orgulhosos deste recorde. Este é um troféu vergonhoso, pois não foi conquistado graças à
consciência ambiental dos brasileiros, mas antes, por causa da miséria de grande parte da
população, que disputa as latinhas vazias para vendê-las a intermediários, que as
comercializarão junto às grandes indústrias de embalagens de alumínio.

O uso do alumínio para embalagens também deve ser discutido. Quando se fala que o
alumínio pode ser reciclado infinitas vezes e que se gasta neste processo apenas 5% da
energia despendida na fabricação a partir do minério, não se menciona que o alumínio para
ser fabricado a partir do minério de bauxita, consome uma enorme quantidade de energia e
gera grande volume de rejeitos. Exatamente por isto, as indústrias que o produzem são
consideradas "sujas", e têm sido exportadas para os países em desenvolvimento. O uso do
alumínio como embalagem e sua posterior reciclagem são, portanto, muito convenientes
para os países que não tenham que fabricá-la a partir da extração da bauxita. Este não é o
caso do Brasil, que tem grandes jazidas deste minério e fabrica o alumínio em grandes
indústrias eletro-intensivas, algumas delas utilizando energia elétrica subsidiada pelo poder
público.

Todas estas considerações nos levam a uma constatação: não se pode, a priori, estabelecer
se a reciclagem é boa ou má para o meio ambiente ou para as pessoas, sem se estudar
cuidadosamente o ciclo de vida do material a ser reciclado. Isto permite que se avalie o
consumo de energia e os eventuais impactos ao meio ambiente que ocorrem durante este
processo. Vamos exemplificar como estes aspectos podem ser variáveis dependendo das
circunstâncias em que ocorrem: a produção de uma lata de alumínio de 33 cl na Inglaterra,
usando alumínio fundido na Noruega, a partir da energia hidroelétrica, e posteriormente
laminado na Alemanha, liberará 110 gramas de CO2 - equivalente a 6,5 toneladas de CO2
por tonelada de alumínio. Se a mesma lata, entretanto, for produzida na Alemanha, usando-
se carvão como fonte primária de energia, haverá uma liberação de 280 gramas de CO2,
valor este que será ainda maior se o alumínio for produzido na Tchecoslováquia, usando-se
carvão de pior qualidade.

Vemos, assim, que também devemos ter, em nossas iniciativas individuais, a preocupação e
a consciência do "balanço ambiental", para que não tomemos atitudes que acreditamos
serem “ambientalmente corretas” mas que podem trazer grandes prejuízos ao meio
ambiente.
Aqui está um exemplo interessante para ilustrar este conceito: no incentivo à prática da
reciclagem, em várias cidades dos Estados Unidos e da Europa, a população é estimulada a
levar os materiais recicláveis, como vidros, plásticos, papeis e papelão ou metais aos PEV’s
- Pontos de Entrega Voluntária, depósitos especiais instalados em locais públicos
destinados a armazenar temporariamente estes materiais. De lá, eles são levados para
outros centros de triagem ou indústrias, que irão aproveitá-los na fabricação de novos
produtos. Vamos imaginar que uma determinada residência esteja a 10 quilômetros de um
destes PEV’s. Se algum morador usar o seu carro exclusivamente para levar os recicláveis
até lá, poderá estar cometendo, com a melhor das intenções, um ato antiecológico, pois o
combustível derivado do petróleo que estará consumindo neste deslocamento
provavelmente contem mais energia do que a que se irá economizar com a reciclagem
daqueles materiais que separou em sua casa. Além disso, devemos considerar a poluição
que a descarga do motor do automóvel causará à atmosfera e o consumo de matérias-
primas não-renováveis, como a gasolina, a borracha dos pneus e o asfalto das estradas.
Portanto, antes de decidirmos o que separar em nossas casas como materiais recicláveis,
que seriam normalmente descartados em aterros, é necessário estarmos seguros de que
eles podem ser reciclados, que alguém vai querer comprá-los depois de reciclados e
beneficiados, e que, finalmente, este processo não envolverá o uso de mais recursos
naturais do que os que supomos que irá economizar.

Há muitas cidades no Brasil nas quais o poder público e a sociedade têm o desejo de
implantar sistemas de reciclagem, mas se estão a grandes distâncias dos centros industriais
que podem processar os materiais recicláveis, esta iniciativa estará inviabilizada, pois o
custo de transporte acaba sendo maior do que o valor do próprio produto transportado. Se,
no entanto, a vontade política voltada para o meio ambiente é grande, por que não reciclar a
matéria orgânica, a partir da qual se pode produzir um composto orgânico de boa qualidade,
que sempre terá uma aplicação útil, se não na agricultura, certamente nos parques e jardins
da cidade?

Mas voltando à reciclagem de materiais potencialmente reaproveitáveis em processos


industriais: se verificarmos que um determinado sistema de reciclagem não traz um balanço
positivo ao meio ambiente e consome mais energia do que rende, o que fazer com todos
estes materiais que levam centenas de anos para se decompor? Mandar, com todo o resto
do lixo, para um aterro? Isto não é um absurdo, do ponto de vista ambiental? Bem, primeiro
devemos ver o que acontece durante o processo de decomposição destes materiais quando
depositados no solo: plásticos, vidros, metais, se decompõem lentamente, e causam um
impacto mínimo ao meio ambiente durante este processo, apenas ocupam espaço na
natureza. Então todos estes materiais que vão para os aterros sanitários, misturados com as
coisas inaproveitáveis, ficarão lá pelo resto da vida, até virar pó? Sim, e isto não traz
nenhum problema ao meio ambiente, desde que o aterro sanitário para onde eles são
destinados seja construído com todos os requisitos ambientais que as normas e a legislação
exigem. Estes locais, depois de encerradas as operações de vazamento de lixo, podem ser
reflorestados e transformados em parques seguros, para usufruto da população local, com a
vantagem de ainda produzirem energia durantes muitos anos, através da utilização do
biogás. Um aterro construído acima do solo, depois de encerrado, pode transformar-se em
uma elevação florestada, com equipamentos esportivos, trilhas, instalações para
piqueniques, enfim, um local de fruição para a população, assim como qualquer morro da
cidade, preservado como um lugar de lazer.
E se esta for a solução adotada por todos, faltará espaço na Terra para se enterrar todo o
lixo produzido pela humanidade? Vai levar muito tempo até chegarmos a este ponto. Para
se ter uma idéia do espaço que ocupam os aterros, vou transcrever aqui, livremente, um
texto que li no livro “O ambientalista cético”, de Bjorn Lomborg (Editora Campus, 2002): se
todo o lixo urbano gerado nos Estados Unidos, durante todo este século que está
começando, fosse colocado em um só aterro sanitário, com 30 metros de altura (Gramacho,
no Rio de Janeiro, está hoje com 36 metros), seria ocupada apenas uma área
correspondente a um quadrado de 28 quilômetros de lado, o que corresponde a menos do
que 1 % da superfície do país.

A reciclagem tem um efeito mais amplo do que se possa imaginar, tanto no uso de recursos
naturais como nos impactos ambientais que eventualmente pode causar. Só a partir do
conhecimento de todas as variáveis que envolvem o seu ciclo completo é que se pode
decidir se se deve ou não reciclar um determinado material.

Os conceitos de energia, meio ambiente e economia estão interligados, quando se fala de


reciclagem. Portanto devemos avaliar quem vai operar todo este complexo sistema, e de
que forma, para que os custos não sejam altos, para que haja eficiência e para que os
ganhos sejam bem aplicados e corretamente distribuídos.

Quando o poder público resolve operar diretamente o sistema, geralmente realizando a


coleta seletiva, quase sempre a operação passa a custar muito para o bolso do cidadão. As
prefeituras devem ficar longe da operação e usar sua competência para planejar, coordenar
e fiscalizar os serviços sob sua responsabilidade.

A coleta seletiva de recicláveis custa em torno de 5 a 10 vezes mais do que a coleta


convencional, e o valor do produto coletado é de 10 a 5 vezes menor do que este custo.
Quem paga esta diferença? Se a coleta seletiva é feita pela Prefeitura, quem paga é o
cidadão, através dos impostos municipais. Isto significa que a Prefeitura está gastando com
a reciclagem um valor que poderia estar sendo aplicado em educação ou saúde, por
exemplo. Tudo bem se a população for chamada a decidir sobre isto, como ocorreu na
Alemanha, que gasta, por ano, cerca de 5 bilhões de dólares com seu sistema de
reciclagem, conhecido como Ponto Verde. Em pesquisas realizadas em 2004, a população
alemã foi amplamente favorável à manutenção do sistema de reciclagem, ainda que isto
possa representar um aumento dos impostos. Será que o mesmo ocorreria nas cidades
brasileiras, onde há carência de todos os serviços urbanos, a começar pelo saneamento
básico?

Diante de toda esta argumentação, podemos concluir que a reciclagem não vale a pena? Ao
contrário, creio que vale, desde que se escolha a forma certa de realizá-la, buscando
concertar num mesmo programa os seguintes aspectos: benefícios sociais, melhoria da
limpeza urbana e do meio ambiente e sustentabilidade econômica/financeira do sistema.
Como conseguir esta proeza? Não há um modelo que se possa recomendar de forma
genérica; cada cidade, cada comunidade, tem suas características próprias, e o sistema de
limpeza urbana, onde se inclui a reciclagem, deve se adaptar a elas, tanto nos aspectos
econômicos como sociais e culturais.

Mas uma coisa é certa: reciclar a simples separação dos recicláveis que fazemos hoje em
casa, deixando a matéria orgânica de rápida decomposição ir para os aterros, contribui
muito pouco para o meio ambiente. A reciclagem, em seu conceito integrado, deve incluir
esta fração e outras, como entulhos de obras e restos de poda. A rigor, só deveriam ser
destinados aos aterros os resíduos sem qualquer possibilidade de recuperação ou
aproveitamento, norma adotada hoje na Comunidade Européia, onde a escassez de áreas
para aterros justifica o dispêndio de rios de dinheiro nos programas de reciclagem. É bom
lembrar que a matéria orgânica é o que realmente traz problemas para os aterros: é ela que
gera o chorume - um líquido que se não tratado corretamente pode contaminar os corpos
d’água -, e o biogás, que possui em sua composição cerca de 50% de metano, um gás
altamente prejudicial ao efeito estufa, que provoca o aquecimento global da terra. E esta
matéria orgânica pode ser transformada em composto orgânico, um excelente insumo
agrícola, aplicável em quase todas as culturas, que promove o recondicionamento do solo e
possui todos os nutrientes, ainda que em pequenas proporções, necessários ao
desenvolvimento das plantas.

Se fizéssemos um estudo econômico para decidir sobre a implantação de um sistema de


reciclagem da matéria orgânica, avaliando-se a redução que seria obtida nos custos de
coleta, de transferência e de implantação e operação de aterros, talvez chegássemos à
conclusão que esta é a forma mais viável de reciclagem do lixo urbano. Os custos com a
coleta, transferência e disposição nos aterros seriam reduzidos à metade, pois a fração de
matéria orgânica corresponde a 50 % do peso do lixo urbano. Além disso, os aterros
durariam duas vezes mais e não teriam que ter as estações de tratamento de chorume nem
os sistemas de extração e queima de biogás, o que também contribuiria para a redução
drástica dos seus custos de implantação e operação. O difícil, entretanto, como já foi dito, é
conseguir-se uma boa adesão da população para a coleta seletiva de orgânicos, mas se
houver decisão política do poder público, com a divulgação de campanhas permanentes de
sensibilização, creio que se conseguiria um certo êxito nesta empreitada, o que traria
grandes benefícios ao meio ambiente.

Na maioria das cidades brasileiras e sul-americanas observa-se um aumento extraordinário


da catação de produtos recicláveis nas ruas e nos aterros, fruto da crise econômica que se
agravou na virada do século. Este fato é causado pelo enorme contingente de
desempregados que vaga pela cidade, buscando sobreviver com a recuperação de
recicláveis do lixo, que tem se mostrado, aí sim, uma fonte de recurso econômico
importantíssima. Os catadores tradicionais passaram então a enfrentar uma concorrência
inesperada, e, por causa dela, já vêm ocorrendo conflitos de grupos que disputam o controle
de determinadas zonas ou bairros das cidades onde esta catação ocorre. Por outro lado,
algumas prefeituras, por pressão da sociedade e dos movimentos ambientalistas, passaram
a implantar sistemas oficiais de coleta seletiva de recicláveis, geralmente com a parceria de
cooperativas de catadores, fato que vem aumentando, ainda mais, a freqüência dos conflitos
nas ruas. Estes programas oficiais, embora bem-intencionados, não conseguem, nem de
longe, absorver todo o contingente de catadores em atividade nas ruas, o que gera novos
problemas, desta vez entre as pessoas não absorvidas pelo sistema oficial e a própria
Prefeitura.

De qualquer forma, uma coisa é certa: não será o órgão ou empresa de limpeza urbana,
nem mesmo a Prefeitura, sozinha, que resolverá a questão social do país, dando a todos
aqueles que hoje sobrevivem da catação, melhores e mais seguras oportunidades de
trabalho e renda. A meu ver, as discussões sobre este tema têm tomado um tal fervor e
paixão que acabam gerando, dentro da própria instituição responsável pela limpeza urbana,
focos de tensão que terminam por prejudicar o seu objetivo maior, que é a gestão integrada
dos resíduos sólidos da cidade.
A participação da limpeza urbana no ordenamento da atividade dos catadores, na sua
capacitação e na valorização do seu trabalho, é fundamental, pois aumenta a sua renda e
evita a catação predatória nas ruas, o que melhora as condições sanitárias da cidade.

Ainda não se encontrou a fórmula ideal de reciclagem, mas a permanente discussão do


tema pode trazer à baila soluções criativas que devem ser experimentadas, respeitando-se
sempre as características de cada cidade. Uma destas formas, que talvez funcione, e que já
está sendo experimentada em algumas cidades, é a contratação, pela Prefeitura, de
cooperativas para realizar a coleta seletiva, através dos catadores e seus carrinhos ou
mesmo com caminhões do tipo baú. Este serviço é pago pela Prefeitura, num valor
equivalente ao custo da coleta convencional por ela realizada, o que é perfeitamente
razoável, uma vez que este material é retirado do fluxo da limpeza urbana, reduzindo,
portanto, os custos com a coleta, transferência e destinação dos resíduos. A cooperativa de
catadores passa assim a ter com o poder público uma relação profissional, com direitos e
deveres definidos em contrato, o que permite estabelecer formas de trabalho mais
adequadas para a cidade. Com os recursos provenientes da prestação dos serviços de
coleta e da venda dos recicláveis, a cooperativa passa a ter capacidade econômica para
adquirir os equipamentos básicos para seu trabalho, como prensas, elevadores de fardos e
balanças, e para alugar um galpão para armazenamento do material separado e
beneficiado, caso a Prefeitura não tenha nenhum disponível, podendo assim transferir mais
e melhores benefícios aos seus cooperativados.

Neste amplo espectro da atividade de reciclagem dos resíduos sólidos, não há como deixar
de comentar a catação nos aterros de lixo, que ocorre ainda em muitas instalações em todo
o Brasil, independente do tamanho das cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, no aterro
de Gramacho, um dos maiores da América do Sul, cerca de 1.000 catadores atuam na
frente de vazamento do lixo, de onde retiram perto de 200 toneladas por dia de materiais
recicláveis. A COMLURB - Cia. Municipal de Limpeza Urbana, empresa pertencente ao
município e que tem a responsabilidade pela gestão de resíduos na cidade do Rio de
Janeiro, nunca proibiu a catação em seus aterros, e sempre foi muito criticada por isso.
Quando alguns visitantes se surpreendem com os catadores em Gramacho, um aterro que
hoje opera dentro dos requisitos da engenharia sanitária, e comentam as condições
insalubres a que estão expostos, retrucamos que pior do que a insalubridade é a fome, e
que ninguém está ali por prazer, e sim, por falta de melhores alternativas de trabalho.

Se a crise econômica e a miséria tornam inevitável a catação em aterros, o que se deve


fazer é manter um cadastro atualizado dos catadores, para que possam ser acompanhados
permanentemente por assistentes sociais. Deve-se também, na medida do possível, manter
um certo ordenamento na frente de trabalho, de modo a reduzir os riscos de acidentes e não
prejudicar as operações de vazamento e compactação do lixo e permitir a entrada
controlada de caminhões para a retirada de recicláveis. É recomendável a prestação de
atendimento aos catadores quando há algum acidente durante seu trabalho no aterro.

Em decorrência do desemprego generalizado, a demanda para a catação nos aterros tem


sido muito grande, e, no caso do Rio de Janeiro, a COMLURB, por questões de segurança e
operacionais, foi forçada a limitar a quantidade de catadores em Gramacho. Isto não tem
sido uma tarefa fácil, pois é enorme a quantidade de gente desempregada que, diariamente,
chega ao portão de Gramacho tentando entrar no aterro para sobreviver do lixo.
Como se vê, reciclagem, coleta seletiva, catação, compostagem, aterros sanitários, são
problemas complexos e que não devem ser tratados isoladamente, e sim de forma
integrada, pois são interligados operacional, social, econômica e ambientalmente. Além
disso, podem causar impactos importantes à saúde da população, ao meio ambiente e ao
orçamento municipal.

Quando pretendemos, cidadãos, organizações não-governamentais ou poder público,


implementar ações de reciclagem, através da coleta e reaproveitamento de materiais
recicláveis e/ou da matéria orgânica de rápida decomposição, devemos levar sempre em
consideração as características culturais, sociais e econômicas da nossa cidade e de nosso
povo, como também as práticas do sistema de limpeza urbana já existentes. Assim, serão
alcançados os maiores benefícios para o meio ambiente, com os menores custos para a
população.

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