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27-44, 1999
e se esta própria, que deveria servir de critério decisório, não parece arrefecer
a dúvida, a posição ideal, muitas vezes, é deixar a questão de lado, sob pena
de enveredar por aporias incontornáveis. Em face, contudo, da importância do
tema, sobretudo tendo-se em vista a relação entre os âmbitos teórico e prático,
não parece poder ser este o presente caso.
É comum vermos sustentada, principalmente entre seus críticos, a tese de
que Kant teria adotado mais firmemente a posição idealista na primeira edição
da Crítica da razão pura, para depois ‘voltar atrás’ e, na segunda edição, in-
troduzir trechos de cunho realista1 (como de resto é comum ouvir-se que Kant
‘voltou atrás’ em relação a suas posições epistemológicas mais ‘duras’ para
permitir flexibilizações conceituais como a própria admissão de um conheci
mento prático). Ainda que, de fato, os trechos que ensejam interpretação realista
sejam mais escassos na primeira edição que na segunda, e que se tenha dado
apenas nesta última a introdução da célebre passagem ‘Refutação ao Idealis-
mo’ (Kant 4, B 274-279), isto não parece alterar o panorama geral de aparente
ambigüidade criado pelas diversas passagens que, em ambas as edições, e
também nos Prolegômenos, ora ensejam uma interpretação, ora outra, e ora
as duas ao mesmo tempo (conforme o ângulo que se adote). Por outro lado,
não é de todo desarrazoado levar em conta a declaração de intenções feita pelo
próprio Kant no prefácio à segunda edição, em que afirma não ter introduzido
quaisquer mudanças com relação ao conteúdo da obra (Kant 4, B XXXVII)2
e, aceitando-a, tentar examinar a questão, sem a pressa de assumir rótulos, em
vista do espírito geral da obra.
Tendo-se em vista a inserção de Kant no panorama histórico da filosofia
moderna, é de se reconhecer, a despeito do cunho revolucionário que sua obra
pretende ter, que ele se mantém em consonância com algumas das principais
tendências de seus antecessores, notadamente a do subjetivismo idealista, con-
figurada na distinção entre fenômenos e coisas em si mesmas e na afirmação de
que nosso conhecimento só diz respeito àqueles. Se, porém, tentamos examinar
mais detidamente uma tal distinção, tomando-a como uma idéia a considerar,
independentemente da filosofia em que esteja figurando, é de se notar que traz
em si uma dificuldade bastante peculiar: se todo o nosso conhecimento é um
conhecimento dos objetos tal como nos aparecem, como podemos sequer ter
imaginado a possibilidade de serem eles de outro modo? Em princípio, trata-se
de algo que não poderia ser-nos indicado pelos próprios objetos, pois neste caso
eles mesmos é que já estariam incluindo em sua aparição fenomênica este algo
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mais, e este algo mais deixaria com isto de ser algo mais. Neste sentido, toda
a questão, desde seu nascimento, parece não poder ser mais que uma distinção
cogitada pelo intelecto humano, sem qualquer contato ‘efetivo’ com a realidade
empírica, na qual ‘dualidades’ desse tipo não costumam ser encontradas.
Ora, no registro da solução kantiana essa dificuldade se traduz na im-
possibilidade de aplicar as categorias do entendimento aos objetos cogitados
como coisas em si mesmas, pois, mesmo que não se trate de conhecer suas
‘propriedades numênicas’ (como são em si mesmos), estar-se-ia afirmando
sua ‘existência numênica’ (que são em si mesmos, independentemente do
sujeito), algo que só poderia ser feito por meio do emprego da categoria de
modalidade ‘existência’.3 Tal emprego, porém, consistiria em aplicá-la não mais
ao domínio fenomênico, em que os objetos só podem ser ditos existentes em
sentido relativo (relativamente ao sujeito), mas a um domínio outro em que os
objetos pudessem ser ditos existentes em sentido absoluto, isto é, ao domínio
de uma realidade considerada existente em sentido absoluto – uma realidade
em que o sujeito não mais teria o estatuto de condição necessária, e em que
nosso conhecimento perderia novamente sua objetividade, pois perderíamos
a capacidade de fazer afirmações dotadas de necessidade e universalidade. Se,
com efeito, a solução transcendental se baseia fundamentalmente neste ponto (o
sujeito ser condição de possibilidade da realidade), a extensão do uso de uma
categoria ao ‘em si’ dos objetos parece pôr tudo a perder, e deve ser rejeitada.
Se, porém, a solução transcendental depende ao mesmo tempo da distinção
entre fenômenos e coisa em si, pois que somente assim pode o mundo ser
considerado, enquanto fenômeno, como regulado pelo sujeito, recoloca-se o
problema da origem da idéia desta distinção (‘de onde’ a tiramos?), e parecemos
cair num círculo vicioso de difícil saída: se só conhecemos os objetos como nos
aparecem (condicionados a nós), como podemos saber que existem, ou mes-
mo que podem existir, independentemente de tal aparição (incondicionados)?
Mas se não sabemos que existem ou podem existir independentemente de tal
aparição, como podemos afirmar que os conhecemos apenas como aparecem
para nós (estando aqui pressuposto que possam existir de outro modo)? Ainda
que o tratamento desse ‘outro lado’ na base de uma possibilidade indique uma
terceira ‘saída’, talvez intermediária, para o tratamento da questão (tratando-se
a coisa em si de uma mera possibilidade cogitável), ela não chega a dissipar
a dificuldade, pois significaria tão somente trocar a categoria ‘existência’ pela
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De fato, se enxergamos, com tanto mais razão, os objetos dos sentidos como
meros fenômenos (als bloße Erscheinungen), admitimos porém ao mesmo tempo
que eles repousam sobre uma coisa em si mesma como seu fundamento, ainda
que não saibamos como ela é constituída, e só tomemos conhecimento de seu
fenômeno, isto é, do modo pelo qual nossos sentidos são afetados por esse algo
desconhecido. O entendimento, portanto, ao mesmo tempo em que admite fe-
nômenos, aceita também a existência de coisas em si mesmas, e podemos então
dizer que a representação desses seres que subjazem aos fenômenos (portanto
meros seres inteligíveis) é não apenas permitida, como ainda inevitável. (Prol.,
Ak. IV, 314/5)
Essa é, como se pode facilmente notar, uma das passagens em que Kant
parece autorizar a interpretação realista, visto que, embora fazendo a ressal-
va de que não sabemos como o objeto, considerado enquanto coisa em si, é
constituído (wie es an sich beschaffen sei), ele ao mesmo tempo afirma que
é a aparência (fenômeno, Erscheinung) do objeto em si que conhecemos, na
medida em que nossos sentidos são afetados por ele, ou por ‘esse algo desco-
nhecido’ (von diesen unbekannten Etwas). Isto quer dizer que o objeto é um
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(Rousset 9), caminha numa tal direção, e, reforçando a corrente dos leitores
realistas de Kant, é vista como original justamente por enfatizar a ligação
necessária entre a objetividade teórica e a afirmação da realidade da coisa em
si, sendo esta elemento constitutivo daquela.4 Tendo em vista passagens como
a que citamos, bem como a ‘Refutação do Idealismo’, que, como dissemos,
foi introduzida na segunda edição da Crítica da razão pura, e em que Kant
procura marcar claramente as diferenças entre o seu idealismo transcendental
e os idealismos de Descartes e Berkeley, por ele definidos respectivamente
como problemático e dogmático, Rousset procura mostrar em que medida a
afirmação da realidade dos objetos (dos quais o fenômeno e a coisa em si são
os ‘dois lados da moeda’) é crucial para todo o sistema da doutrina kantiana
com respeito ao conhecimento teórico:
(...) todos os objetos de uma experiência para nós possível não passam de fenô-
menos, isto é, meras representações – as quais, além de como as representamos,
como corpos extensos ou séries de mudanças, não possuem nenhuma existência
auto-suficiente (an sich gegründete Existenz) fora do intelecto humano. (...) O
espaço e o tempo, e com eles todos os fenômenos, não são em si mesmos coisas,
mas apenas representações, e não podem existir fora de nosso intelecto. (...)
trata-se aqui apenas de um fenômeno no espaço e no tempo, ambos os quais
não são determinações das coisas em si mesmas, mas sim da sensibilidade;
portanto tudo o que seja dado no espaço e no tempo (fenômenos) não é em si
algo (an sich Etwas), mas meras representações que, se não dadas em nós (na
percepção), não podem ser encontradas em parte alguma. (Kant 4, B 518-22).
(...) a admissão de sua existência (das coisas em si), como por detrás de uma
cortina, introduziria em nosso conhecimento a priori uma insuportável fragili-
dade. Haveria alhures conteúdos que mereceriam o nome de objetos, embora
permanecendo subtraídos à jurisdição estabelecida na Analítica. É verdade que
nosso conhecimento a priori permaneceria garantido pela equação ‘objeto=-
fenômeno’, mas essa equação, ela mesma, seria apenas o efeito de um acaso
feliz. Toda interpretação que represente o objeto-fenômeno como a parcela
cognoscível da coisa em si deve desembocar, se for conseqüente, nesta con-
clusão. (Lebrun 6, p. 67).
flito com sua posição, não pode por ela ser abarcada consistentemente, já que
afirmações como as que apresentamos acima não podem ser compatibilizadas
com a afirmação de que a coisa em si é elemento constitutivo da objetividade
teórica.7 Já a outra leitura teria um potencial notadamente maior de harmoni
zação das diferentes passagens, sob a idéia de que qualquer referência ao em si
(‘imanente’ ou ‘transcendente’) é necessariamente problemática: as passagens
que parecem sugerir um posicionamento realista na verdade são passagens em
que Kant está adotando o ‘ponto de vista’ problemático para poder, a partir de
idéias que, estas sim, estão unicamente em nós (no sentido mais forte deste
‘in uns’), considerar o âmbito teórico em sua necessária limitação que é ao
mesmo tempo toda a sua universalidade (a conformação necessária dos objetos
de experiência às formas subjetivas a priori).
Embora seja certo que, se nos deparássemos com a afirmação pura e
simples de que a realidade está submetida às condições subjetivas de nossas
faculdades de conhecimento, concluiríamos a princípio pelo absurdo da mesma,
Kant tenta justamente mostrar que nosso conhecimento só pode ser dito obje-
tivo, em sentido forte (isto é, necessário e universal), se ela for válida. Assim,
se é para falar num conhecimento dotado de validade objetiva, precisamos,
no mínimo, supô-la válida, e, para que isto se torne logicamente razoável, é
necessário delimitar a realidade que está submetida às nossas condições subje-
tivas como a realidade que conhecemos, acompanhando-se-lhe imediatamente
a idéia de que é perfeitamente possível (e até provável, diríamos) não ser esta
realidade a única (ou a realidade em sentido absoluto). Isto nunca quis dizer,
contudo, que esta realidade não seja nosso único ponto de partida (pois “todo
nosso conhecimento começa na experiência” [Kant 4, B 1]) e nosso único
ponto de chegada (pois o único uso legítimo das categorias é sua aplicação à
experiência) – em outras palavras, nossa única realidade. Isto quis dizer ape-
nas que, na medida em que precisávamos compreender de que maneira toda
a realidade podia estar submetida a nossas faculdades, precisamos considerar
a idéia de uma realidade não submetida a nossas faculdades, isto é, de uma
realidade em si, por oposição àquela outra realidade, dita então fenomênica.
A idéia de coisa em si, portanto, embora sem dúvida elemento essencial de
toda a filosofia crítica (já que possibilitadora da ‘Revolução Copernicana’),
não poderia jamais ser ‘transferida’ para o interior do sistema de nosso conhe-
cimento teórico, visto resultar de uma reflexão a ele exterior: como idéia, ou
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tal atividade, e sim de uma reflexão a partir da mesma. A restrição que se faz
ao emprego das categorias, no sentido de que a elas deve sempre poder corres-
ponder uma intuição sensível, diz respeito tão somente ao estabelecimento de
um critério preciso de verificação da realidade dos objetos que construímos por
meio de nossos conceitos: só podem ser ditos conhecidos objetos (e portanto
conceitos) que sejam garantidamente reais. Mas isto não significa, nem nunca
pretendeu significar, que nossa atividade especulativa se esgote aí, posto que
o pensar autônomo (independente da experiência) é uma nossa atividade tão
natural quanto o conhecer empírico; apenas não se lhe poderá atribuir o estatuto
de conhecimento, na medida em que seus conceitos não sejam reais (isto é, que
a eles não possa corresponder uma intuição sensível). E é este, precisamente,
o caso do conceito de ‘em si’: fruto natural de nossa reflexão sobre o conhe-
cimento empírico e o todo da experiência, não pode, contudo, jamais ser dito
real, visto não poder ser dado nesta mesma experiência.
A ausência de uma tal reflexão, e de um tal conceito, implicaria o risco
de uma hipostatização da realidade a que nossos sentidos nos dão acesso, no
sentido de que tenderíamos a tomá-la como absoluta. Evitar esta hipostatiza-
ção é talvez, para Kant, uma preocupação ainda maior do que a de evitar a
pretensão de acessar cognitivamente o supra-sensível, pois, ao contrário desta
última, já bastante enfraquecida pelo argumento cético, aquela é bem menos
perceptível, e suas conseqüências podem ser ainda mais nefastas (já que o ho-
mem teria de se enxergar, em todos os sentidos, como inteiramente submetido
à necessidade natural).8 Ao incrível fortalecimento do conhecimento teórico,
garantido como necessário e universal pela Analítica (ele vale necessariamente
para toda experiência possível), deve então suceder-se o seu ‘enfraquecimento’
por meio do mesmo movimento reflexivo e do mesmo conceito que o haviam
fortalecido: a noção de em si, que havia garantido seu reinado sobre a totalidade
do domínio da experiência, deve agora impedir a extensão desse reinado ao
domínio de uma totalidade absoluta da realidade. A imagem ideal, para ilustrar
o domínio do conhecimento teórico (compreendendo tanto os dados sensíveis
como nossas formas a priori da sensibilidade e do entendimento), a partir dos
resultados da primeira parte da Crítica, é a imagem de uma ilha – uma ilha, é
verdade, em que tudo está organizado, mas uma ilha que é ao mesmo tempo
incomodamente circundada por um oceano de interrogações, de inevitáveis e
perigosas interrogações:
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Abstract: The text discusses the problem of Kant’s thing-in-itself, presenting two possible views
about it: the polemical position of Bernard Rousset (in La doctrine kantienne de l’objectivité),
and that of Gérard Lebrun (in Kant et la fin de la métaphysique). The latter is considered to be
more plausible regarding Kant’s general project.
Key-words: thing-in-itself – idealism – realism – rational
Notas
1. Schopenhauer foi talvez o primeiro a dar atenção a essa questão. Tendo interesse em
fazer uma leitura idealista da filosofia kantiana, pretendeu mostrar a diferença entre as
duas edições preferindo a primeira à segunda, e alegando uma ‘volta atrás’ de Kant. “Que
ninguém pretenda conhecer a Crítica da razão pura, nem ter uma idéia clara da doutrina
de Kant, se só leu a Crítica na segunda edição ou em uma das seguintes; isto é absoluta-
mente impossível, pois se terá lido um texto truncado, corrompido e, numa certa medida,
apócrifo” (Schopenhauer 10, p. 26).
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Referências Bibliográficas
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44 Mattos, F.C. Cadernos de Filosofia Alemã 5, p. 27-44, 1999
(Akademie-Ausgabe).
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9. Rousset, B. La doctrine kantienne de l’objectivité. Paris, Vrin, 1967.
10. Schopenhauer, A. Critique de la philosophie kantienne. Paris, Felix
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