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O familismo na política de
Assistência Social:
um reforço à desigualdade de gênero?
Resumo
Pretende-se discutir a centralidade na família na política de assistência social
no Brasil, na perspectiva de gênero. A partir das análises de Sunkel,
Saraceno,Potyara e Mioto. O modelo de proteção social previsto na política
de assistência social, ancorado nas legislações vigentes e normatizado pela
NOB/SUAS/2005, a família é o pilar central na tríade composta também
pelo Estado e o mercado. Cabe ao Estado intervir apenas quando a família
falha é o modelo de proteção familista. Apesar das mudanças nas estruturas
familiares, a definição de papéis encontra-se “quase” que intocada. Neste
sentido o modelo familista reforça a desigualdade de gênero, á medida que
aumenta a responsabilidade da mulher na proteção da sua família, sem o
devido amparo do Estado.
Palavras-chave: Família, proteção social, política social.
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1 Introdução
Os modelos protetivos constitutivos das políticas sociais no Brasil,
pós Constituição Federal de 1988, trazem em seus desenhos a centralidade
na família. Apresentam a família como “foco” principal de ação, tomando-a
como espaço privilegiado de proteção dos seus membros, independente de
seu modelo.
Na contemporaneidade, além dos diferentes arranjos e rearranjos
familiares, há que se considerar ainda, as novas demandas sociais como o
envelhecimento, a gravidez precoce, a redução do número de filhos e outras
situações, que impactam nas estruturas familiares e que requerem novas
estratégias para proteção de seus membros, Sunkel (2006).
Nesse sentido, política social com centralidade na família, exige dos
formuladores, gestores e operacionalizadores, a apreensão destas e de outras
“complexidades”, as quais devem ser consideradas, para que a família possa
ser devidamente amparada pelo Estado. Ao qual cabe garantir programas,
projetos, serviços e benefícios de proteção aos indivíduos e famílias. Para
que a família, especialmente a mulher enquanto “principal responsável”
pelos cuidados do grupo familiar, não seja responsabilizada pelas mazelas
sofridas, tendo que buscar estratégias de superação por meio da sua rede de
sociabilidade e de solidariedade, reforçando a desigualdade de gênero, à
medida que aumenta a sobrecarga feminina e reforça os papéis
“historicamente” construídos de “cuidadora”.
O objetivo deste artigo é o de contribuir na discussão contemporânea
sobre a centralidade da família na política de assistência social no Brasil, pós
Constituição Federal de 1988, numa perspectiva de gênero.
Tomou-se como categoria de análise: proteção social e como eixo
analítico a tríade: Estado, mercado e família no modelo protetivo da política
de assistência social.
O referido artigo será dividido em três momentos, o primeiro
momento trata de conceituar proteção social, política social e família. Na
sequência apresenta sucintamente a política de assistência social e o papel da
família, do Estado e do mercado no seu modelo protetivo e para finalizar
uma reflexão sobre a centralidade na família e o reforço a desigualdade de
gênero.
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1.1. Proteção Social, Política Social e Família
No Brasil, segundo Pereira (2006) “a instituição familiar sempre fez
parte integral dos arranjos de proteção social”. Para ela “os governos
brasileiros sempre se beneficiaram da participação autonomizada e
voluntarista da família na provisão do bem-estar de seus membros”. (p.29).
Entende-se como proteção social segundo Di Giovanni (1998, p.10)
apud (PNAS/20041, p.31)
As formas institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger
parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas
vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o
infortúnio, as privações. (...) Neste conceito, também, tanto as formas
seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida
e o dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes), que permitirão a
sobrevivência e a integração, sob várias formas da vida social. Ainda, os
princípios reguladores e as normas que, com intuito de proteção, fazem
parte da vida das coletividades.
Se proteção social em síntese são formas de proteção
institucionalizada em uma dada sociedade, que envolve bens materiais,
culturais, cuidados aos membros mais fragilizados e as normativas de
proteção. E como já apresentado, a família é parte integrante na garantia
desta proteção social aos seus membros, dentro dos desenhos das políticas
sociais e seus modelos protetivos no Brasil. Faz- se relevante a apreensão
dos conceitos de família preconizados na Constituição Federal e nas
legislações sociais especificamente no que se refere á assistência social.
O conceito de família na constituição vigente, em seu artigo 226, §§
3º e 4º, abrange diversos arranjos: como a união formada por casamento; a
união estável entre homem e mulher e a comunidade formada por qualquer
um dos genitores. Na (PNAS/2004, p.41) a família é entendida como “um
conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consangüíneos, afetivos
e, ou, de solidariedade”.
A NOB/SUAS/20052 enquanto normativa para operacionalização da
matricialidade sociofamiliar, uma das diretrizes do modelo protetivo da
política de assistência social, compreende o conceito de família para além de
uma unidade econômica, entendendo-a “como núcleo afetivo, vinculado por
laços consangüíneos, de aliança ou afinidade, que circunscrevem obrigações
recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e gênero”.
(p.90).
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Além de conhecer os conceitos de famílias presentes nas legislações
vigentes, em especial o da NOB/SUAS/2005, é interessante a
conceitualização de política social aqui assumida enquanto:
Política de ação que visa, mediante esforço organizado e pactuado, atender
necessidades sociais cuja resolução ultrapassa a iniciativa privada,
individual e espontânea, e requer deliberada decisão coletiva regida por
princípios de justiça social que, por sua vez, devem ser amparados por leis
impessoais e objetivas, garantidoras de direitos. (PEREIRA, 2006, p.172)
A mesma autora nos alerta que “não se deve esquecer que, mediante
a política social, é que direitos sociais se concretizam e necessidades
humanas (leia-se sociais) são atendidas na perspectiva da cidadania
ampliada”. (PEREIRA,2008,p. 165). Também Sunkel (2006,p.29) recorre a
Kaztman et.al (1999,p.4) e apresenta como função da política social,
quebrar o ciclo vicioso da pobreza e sua reprodução intergeracional.
As análises a respeito do objetivo e das funções das políticas sociais
de Pereira (2008) e de Sunkel (2006) direcionam nossa reflexão da proteção
social prevista na assistência social que elege a família como “foco” de
atenção e apoio na concretização de direitos.
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Somente a partir da Constituição Federal de 1988, da LOAS3, da
PNAS/2004 e da NOB/SUAS/2005 que a assistência social “legalmente”
passa a figurar no campo do direito enquanto política social. E enquanto
política social, a assistência social no seu modelo protetivo elege a família
para a centralidade das suas ações, objetivando a potencialização da mesma
para a sua sustentabilidade e concretização dos direitos dos seus membros.
Conforme preconizado na NOB/SUAS/2005(p.90):
A família deve ser apoiada e ter acesso a condições para responder ao seu
papel no sustento, na guarda e na educação de suas crianças e adolescentes,
bem como na proteção de seus idosos e portadores de deficiência.
Esta concepção explicitada na função protetiva da assistência social e
ainda dentro da proposta operativa do Sistema Único de Assistência social,
apresentando como uma das suas diretrizes a matricialidade sociofamiliar.
Leva-nos a partir da análise de Pereira (2008) a situar o modelo protetivo da
política de assistência social como um modelo pluralista de bem-estar social,
ao situar a família “como responsável nata” e, portanto, inconteste da
proteção de seus membros via mercado em primeira instância e somente em
situações de vulnerabilidades e riscos é que a mesma “deve” ser amparada
pelo Estado.
Segundo Pereira (2008, p.201-202) o modelo protetivo pluralista
pauta-se na redução protetiva do Estado, à medida que a gestão do bem-
estar passa a ser subsidiada pelo Estado. No caso especifico da assistência
social a gestão dos serviços socioassistenciais está acontecendo de forma
compartilhada (co-financiadas pelo Estado) com as entidades
socioassistenciais “na sua maioria” de cunho confessional, as quais
historicamente prestam assistência às famílias e indivíduos e ainda com as
“novas” instituições/fundações/OSCIPs4 (muitas a partir das empresas-
mercado), ocorre uma divisão de responsabilidades entre o mercado, o
Estado e a família. Mas, evidentemente a principal responsável nesta tríade
protetiva é a família.
O papel da família neste modelo protetivo, como exemplificação da
corporificação desta responsabilidade considerada “nata” da família na
proteção dos seus membros mais fragilizados é o BPC (Beneficio de
Prestação Continuada) que antes de ser um direito do individuo (idoso sem
renda ou à pessoa com deficiência), recorre-se ao papel protetor da família.
Somente se esta família enquanto “grupo” possuir uma percapta inferior à
¼ do salário mínimo (considerada incapaz de garantir o sustento deste
membro fragilizado) é que o Estado “socorre” via recurso monetário esta
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família, por meio de um beneficio socioassistencial de (1 salário mínimo) ao
seu membro “fragilizado”.
Pereira (2008, p.201) nos relata que “o propósito que está por trás do
Welfare pluralism é o de desmantelar direitos conquistados pela sociedade
nas arenas políticas, em nome de uma divisão de responsabilidades, que
pode ressuscitar desigualdades já abominadas pelo avanço civilizatório”.
Apontando ainda, que este modelo de bem-estar pluralista, devolve à família
e consequentemente á mulher, encargos situados na esfera dos cuidados,
antes assumidos pelo Estado. Esta devolução de encargos exige um maior
tempo da mulher em casa, ”restaurando, por esse meio, a desigualdade de
gênero” Pereira (2008, p.201).
Este modelo protetivo denominado ‘neo-liberalismo familiarista’ por
De Martino (2001) apud Mioto (2008,p.139), compreende que a proteção
social cabe preferencialmente á família e que o Estado pode reduzir os
serviços públicos enquanto proteção. Tal modelo ancora-se no discurso
(ideológico) recorrente de apelo ao solidarismo e ao voluntarismo do
mercado, da família e da sua rede de sociabilidade, que enquanto parceiros
contribuem para a “redução” do papel protetivo do Estado na garantia dos
direitos sociais. E à medida que delega á família em primeira instância a
proteção de todos os seus membros. Leva-nos a recorrer ás análises de
Sunkel(2006) , Mioto(2008) e Saraceno (1997) a respeito do papel da família
no modelo protetivo, que quando ela é o pilar central da proteção social,
nomina-se modelo familista5.
As reflexões quanto ao familismo presente nas políticas sociais,
trazidas por Sunkel(2006), Saraceno (1997) , o primeiro na América Latina e
a segunda nos países europeus, corroboram com as análises de
Mioto(2008,p.136) sobre as políticas sociais, mais especificamente á política
de assistência social no Brasil, quando ela aponta que “tanto as definições
legais quanto operacionais das políticas sociais brasileiras” explicitam este
caráter familista.
O conceito de família apresentado na NOB/SUAS/2005 ao
“considerar” a solidariedade relacional entre seus membros; a rede de
parentesco e a relação de gênero, sem dúvida, reitera a reflexão de
Mioto(2008,p.136-144) sobre o familismo e as consequências para a família
e para a mulher.
A discussão de Pereira (2006) trata da complexidade da centralidade
da família na política social, nos aponta que:
5 As análises de Sunkel referem-se às políticas sociais da América Latina, enquanto Mioto (2008), traz-
nos a partir de análise conjunta com Campos(2003) e com Campos e Lima (2006) uma análise do Brasil.
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Tal diversidade, associada às significativas mudanças demográficas _ que
requerem maior volume de assistência a grupos específicos, especialmente
o de idosos __, cria sérios problemas para uma definição clara do papel da
família do século XXI nos arranjos plurais de bem-estar em voga. Cria
também dificuldades para a formulação coerente e consistente de uma
política social voltada para instituição, pois, mais do que a política, é a
família que vem se caracterizando como fenômeno plural”
(PEREIRA,2006,p.41).
A análise da autora, nos alerta sobre as dificuldades na formulação e
na operacionalização de uma política social com centralidade na família na
contemporaneidade. Pois, a instituição família se apresenta como “
fenômeno plural”.
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família e especialmente para a mulher. Pois, a PNAS/2004 apresenta dentre
as suas funções à proteção social6 e enquanto estratégias de
operacionalidade, uma das suas diretrizes é a matricialidade sociofamiliar no
SUAS. Ou seja, a centralidade das ações protetivas direcionadas para a
família.
Apesar da NOB/SUAS preconizar que a proteção no âmbito
familiar, não restringe as responsabilidades públicas para com os indivíduos
e a sociedade. Conforme já exemplificado a responsabilização da família se
corporifica nos benefícios socioassistenciais. E a responsabilização da
família na proteção social, especialmente a demandatária da assistência
social, sobrecarrega a mulher, à medida que a mesma além da necessária
inserção no mercado de trabalho, deve dar conta das tarefas domésticas e
dos cuidados dos membros mais fragilizados, sem o devido suporte público.
Retomando o conceito de família preconizado na NOB/SUAS ao
considerar as obrigações familiares a partir das relações de parentesco e de
gênero, reforçam o papel historicamente construído das mulheres nas
famílias. Que é o estabelecimento de trocas na esfera dos cuidados
essencialmente reservado á mulher. E estas trocas são importantes no
sentido de garantir a proteção dos membros da família, sem ônus para o
Estado e para o mercado. (Saraceno,1997,p.78).
Para finalizar, dentro da perspectiva universalista para que a política
de assistência social, enquanto política pública cumpra o seu papel de
garantidora de direitos. Exige-se dos formuladores, gestores e
operacionalizadores, não só a mudança de paradigma, mas a apreensão das
transformações dos grupos familiares nas últimas décadas, e das novas
demandas que se colocam, as quais exigem novas estratégias de
enfrentamento, para que se possa romper com a responsabilização das
famílias pelas mazelas sofridas.
Bibliografia
BRASIL. Constituição Federal do Brasil. Atualizado em 2008.
MIOTO, Regina Célia Tamaso. Família e políticas sociais. In:
BOSCHETTI, Ivanete et.al (Orgs.). Política social no capitalism: tendências
contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008.
6 “A proteção social de Assistência social consiste no conjunto de ações, cuidados, atenções, benefícios
e auxílios ofertados pelo SUAS para redução e prevenção do impacto das vicissitudes sociais e naturais
ao ciclo da vida, à dignidade humana e à família como núcleo básico de sustentação afetiva, biológica e
relacional”(NOB/SUAS/2005,p.90).
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NORMA OPERACIONAL BÁSICA- NOB/SUAS/2005, aprovada pelo
Conselho Nacional de Assistência Social por intermédio da Resolução
nº27, de 24 de fevereiro de 2005.
POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – PNAS, aprovada
pelo Conselho Nacional de Assistência Social por intermédio da
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PEREIRA, Potyara. A.P.. Mudanças estruturais, política social e papel da
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MATOS, Maurilio Castro de Leal, Maria Cristina (Orgs). Política social,
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_____. Política social: temas & questões. São Paulo: Cortez, 2008.
SARACENO, Chiara. Sociologia da família. Rio de Janeiro: Artes
Gráficas,1997.
SUNKEL, Guilhermo. El papel de La família em La protección social em América
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