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Uma âncora em meio ao mundo líquido, por João Marcelo Schlickman

Quando eu era criança eu tinha um pouco de medo de pessoas tatuadas, a minha família e as professoras
da escola me ensinaram que tatuagem era coisa de bandido, de malandro, de gente com quem era melhor não se
envolver. Esses preconceitos foram se dissipando com o tempo enquanto eu ia percebendo que algumas das
pessoas mais confiáveis usavam tatuagem e enquanto as mais questionáveis usavam terno e gravata. Mas, esse
preconceito não era, e em certo nível até hoje não é, algo que se limitasse a minha família, minha escola ou minha
cidade, ainda hoje existem muitos estudos que apontam como pessoas com tatuagens sofrem preconceitos em
diversos espaços, que vão desde uma pequena antipatia em um ambiente de trabalho, até a proibição religiosa, ou
em lugares como a Coréia do Sul onde a mesma é ilegal.

Isso não impede que as tatuagens tenham ganho muita popularidade nas últimas décadas no mundo
ocidental, ao mesmo tempo que vão crescendo como forma de arte, um pouco por desenvolvimento técnico dos
tatuadores, mas em parte, também por conta dos papéis sociais que a tatuagem tem. Para falar sobre isso, primeiro
preciso falar sobre um homem que não tem muito a ver com tatuagem Zigmunt Bauman, Bauman foi um filósofo
e sociólogo polonês, cuja a criação mais conhecida foi a noção da modernidade liquida. Segundo essa teoria, até o
século 19 as pessoas viviam em comunidades de produtores, mas a partir do século 20, começamos a viver em
sociedades de consumidores, isso mudou a maneira com que as pessoas veem, bom, quase tudo, aos olhos do
indivíduo que vive no mundo liquido, as pessoas ideias e instituições são cambiáveis, se transformam de acordo
com o momento, assim os consumidores que não estão mais felizes com os produtos, simplesmente trocam por
algo mais novo. Tudo na modernidade liquida vai sendo trocado, os relacionamentos, a lealdade, as ideias, não são
feitos para durar, são como produtos que tem a obsolescência programada, o consumidor quer gratificação
instantânea e encontra o que quer, e enquanto consome não tem a necessidade de se preocupar com o processo no
qual os produtos são feitos, uma sociedade consumidora vê o produto sem a necessidade de ver o processo
necessário para fazer o mesmo.

A tatuagem por sua vez não é instantânea, não é temporária e não se pode pular o processo de faze-la,
tatuagens são feitas para durar, e a pessoa que vai viver com essa tatuagem pelo resto da vida, geralmente cria uma
simbologia que representa algo que lhe é importante. Esse processo de refletir sobre o que uma obra significa,
quais são as coisas que você valoriza tanto e quer carregar consigo pelo resto da vida, não tem as mesmas
limitações das obras de arte que são feitas para consumo imediato. Fazer uma tatuagem, normalmente custa
tempo dinheiro e dor, não se paga por um produto, se paga por um processo, e esse processo precisa ser vivido.
Em uma época de tantos produtos e processos feitos para gratificação instantânea, a tatuagem é um dos poucos
espaços em que se exercita o processo como um todo, com toda a dor, tempo e responsabilidade de carregar ela
consigo pelo resto da vida.

Uma grande metáfora disso é a figura do marinheiro, antigamente os marinheiros eram as pessoas com
maior número de tatuagens e a simbologia das tatuagens mais populares entre eles eram muito fortes, a âncora e a
sereia. Essas pessoas viviam sua vida em constante transito, sem a capacidade de parar em algum lugar para criar
relações sólidas, a âncora representa a ideia de solidez, aquilo que dá segurança enquanto flutuamos e as ondas
passam sem nos levar. Já a sereia, com seu canto na mitologia, seduz os marinheiros para o mar e os devora, sua
imagem é um lembrete de que a tentação da satisfação imediata pode ter um preço muito alto.

Não tem nada de errado em existirem coisas que não são feitas para durar, não tem nada de errado em
uma música ser um hit do verão e ninguém lembrar dela em 10 anos, não tem nada de errado em um vídeo no
Youtube ser apenas engraçado, ou então em conhecer uma pessoa no Tinder e viver uma pequena aventura. Por
outro lado, ter somente essas ideias, valores e experiências não é suficiente para se construir uma sociedade ou
uma vida equilibrada. Não convém viver ancorado, mas não ter âncora também tem um preço muito grande, nem
só de canto da sereia se vive, e nem todas as relações são descartáveis, “A vida é muito curta, para ser pequena”, eu
vou tatuar isso na minha memória.

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