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Gramsci nas interpretações do Brasil: uma agenda de pesquisa

Conference Paper · July 2018

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Daniela Mussi
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IX Colóquio Internacional Marx Engels
17 a 20 de julho de 2018
Campinas-SP

Antonio Gramsci nas interpretações do Brasil: uma agenda de pesquisa

Daniela Mussi1

Apresentação

Este paper tem por objetivo lançar as bases para uma agenda de pesquisa dos “usos”
(Portantiero, 1981) do pensamento de Antonio Gramsci para interpretação da realidade
brasileira ao longo do tempo. Não trata, portanto, dos estudos monográficos sobre as ideias
Gramsci realizados por aqui, mas trata-se da proposição de uma agenda investigativa voltada
para processo particular de utilização de expressões, noções e conceitos gramscianos (ou
atribuídos a Gramsci) por intelectuais brasileiras/os ao longo de meio século nas tentativas de
explicar a formação e desenvolvimento nacional, suas relações sociais, políticas e culturais por
aqui estabelecidas, bem como seus impasses e crises.
O ponto de partida está na escavação filológica dos primeiros momentos do que
chamamos por “tradução” do pensamento de Antonio Gramsci no Brasil, no início dos anos
1960, e conformação - ainda incipiente - de um “terreno comum” para as interpretações
gramscianas do Brasil - que não coincide (na verdade, sucede em quase três décadas) a
presença de Gramsci no Brasil. Os anos 1960, neste sentido, seriam o período de
estabelecimento de uma primeira base convencional (cf. Pocock_ - um primeiro momento
gramsciano no Brasil - mobilizada para análise de particularidades brasileiras, expressa no
conceito de hegemonia.
Na década seguinte (1970), por sua vez, o léxico da hegemonia passa por um período
de complexificação, um segundo momento de tradução do pensamento gramsciano nas
interpretações da realidade brasileira. A ele se sobrepõe a disputa do uso da autoridade
político-intelectual de Gramsci por duas principais tendências: a) a que propõe Gramsci como
intérprete/teórico “comunista”; b) e a que propõe Gramsci como representante de uma “nova
esquerda”. Tendências ligadas, aliás, a movimentos semelhantes de “usos” de Gramsci em
contexto internacional.

1
Pós-doutoranda do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (CAPES-PNPD).
No Brasil dos anos 1980, os “usos” das ideias gramscianas para interpretação da
realidade brasileira são fortemente canalizados para a disputa política da transição
democrática: por um lado, pela interpretação “democrático-liberal” do papel da hegemonia na
redemocratização brasileira (cf. Frosini, 2015); por outro, pelas leituras a respeito da
centralidade da experiência das classes subalternas no processo político brasileiro.
É na década de 1990 que se forma, pela primeira vez, uma comunidade de
especialistas brasileiros no pensamento de Antonio Gramsci, com a ampliação disciplinar e
temática dos estudos e pesquisas a seu respeito (cf. Simionatto, 2017). Do ponto de vista dos
“usos” de Gramsci nas “interpretações do Brasil”, trata-se de um contexto marcado: a) por uma
importante “renovação” lexical - podemos chamar de um segundo momento gramsciano - em
que a “hegemonia” cede paulatinamente espaço para o conceito de “revolução passiva”, usado
em “chave” positiva (ou programática) ou “pós-comunista” nas análises da consolidação da
democracia brasileira; b) pelo processo de marginalização da tendência interpretativa “novo-
esquerdista” da realidade brasileira a partir das ideias de Gramsci.
Esta década marca, portanto, uma inflexão profunda nas análises gramscianas do
Brasil. As questões do americanismo e iberismo, tais como discutidas em Vianna (1997); ou,
antes ainda, por Francisco de Oliveira e a ideia de “hegemonia inacabada” (1993); evidenciam
a crescente importância adquirida pelo conceito de revolução passiva entre os intérpretes
(Vianna, 1998). Na década seguinte, este centro dos “usos” de Gramsci para interpretação do
presente e do passado brasileiro já se encontra plenamente consolidado (cf. Oliveira, 2010;
Coutinho, 2010; Dias, 2010; Singer, 2012; Braga, 2012).
A história dos “usos” de Gramsci no Brasil, portanto, é parte da história contemporânea
dos grupos intelectuais brasileiros. Como notado por Portantiero, estes usos possuem natureza
político-analítica, ou seja, não são mera incursão acadêmica ou especializada. Também esta
dimensão se conforma no Brasil, especialmente a partir dos anos 1990 sem, contudo,
representar até aqui grande impacto nas dinâmicas interpretativas estudadas.
O léxico gramsciano - no presente texto discutiremos os conceitos de hegemonia e
revolução passiva - foi base para o desenvolvimento de um longo e diversificado processo de
“tradução” do marxismo no Brasil a partir da segunda metade anos 1960. Processo marcado
pela “tradução” inicial do conceito de hegemonia de Gramsci tanto no ambiente cultural do
partido comunista como de seus críticos; em seguida, pela identificação de Gramsci como fonte
para o problema da vida popular e a transição democrática; e, finalmente, pela “tradução” do
conceito de revolução passiva como chave para análise da conformação do estado e da vida
política no Brasil.

1
Hegemonia

Em junho de 1948, um certo “J. G.”2 escreveu no primeiro número da revista


filocomunista Fundamentos: revista de cultura moderna:3
“Como dizia Lenin, na época do imperialismo não existe uma ‘muralha’
[entre a revolução democrático-burguesa e a revolução socialista]. A
transição de uma a outra, com maior ou menor rapidez, depende de uma
série de fatores, dentre os quais não é o menos importante a capacidade
efetiva de liderança da classe operária. Na época em que o capitalismo
atingiu a etapa imperialista, não é possível pensar em revolução
democrático-burguesa sem que o proletariado exerça a hegemonia do
movimento” (J.G, 1948, p. 70. Grifo adicionado).

O uso do conceito de hegemonia aparecia, ao mesmo tempo, associado às elaborações


de Lenin sobre o imperialismo e ao papel de liderança da classe operária no desenvolvimento
da revolução nesta nova “época”. No ambiente comunista brasileiro, a interpretação da análise
leniniana da hegemonia era parte do corpus argumentativo de defesa da orientação política da
URSS. Em 1948, aliás, orientação que era polarizada pelo conflito polarizante que se abria com
a Guerra Fria o que, no Brasil, significava o afastamento da política varguista. A “hegemonia”
de Lenin, apreendida das leituras comunistas em tempos de Guerra Fria, foi o ponto de
conexão para a recepção de seu pensamento entre os intelectuais brasileiros. Foi neste
ambiente e por meio deste corpus que o pensamento de Antonio Gramsci penetrou, pela
primeira vez, nas interpretações da realidade brasileira, em meados dos anos 1960.
Contudo, na segunda metade da década de 1960, contexto em que passou a ser
referenciado diretamente a Gramsci, o conceito de hegemonia aparece com sentido modificado
em análises da situação do país imediatamente posteriores ao golpe civil-militar de 1964. Muito
embora a hegemonia já existisse como parte do léxico dos grupos intelectuais, o primeiro uso
“gramsciano” deste é mobilizado por intelectuais que que tomam parte de uma “revolta cultural”

2
Possivelmente Jacó Gorender.
3
Fundada em junho de 1948 por Monteiro Lobato (que morre em seguida, no mesmo ano), a revista
Fundamentos foi editada até 1955. De inspiração filocomunista, stalinista e togliattiana, contou com a
participação e colaboração de intelectuais brasileiros progressistas e marxistas, tais como Caio Prado
Jr., Afonso Schmidt, Rui Barbosa Cardoso, Graciliano Ramos, Jacó Gorender, Vilanova Artigas,
Astrojildo Pereira, Fernando Henrique Cardoso. Em 1952, na edição n. 14, publicou a tradução do relato
“A vida de Gramsci”, por Umberto Terracini, possivelmente o segundo artigo publicado sobre Gramsci no
Brasil depois da divulgação, na imprensa anarco-trotskista em 1932, da campanha internacional de
libertação do prisioneiro do fascismo italiano organizada or Romain Rolland (cf. Terracini, 1950, p. 24-
27).

2
contra as narrativas anteriores da “hegemonia”, sustentadas no pressuposto da sincronia entre
desenvolvimento econômico e democracia nos países latino-americanos.
Tratava-se de uma “revolta” em defesa da centralidade política contra o mecanicismo
das interpretações nacionalistas e economicistas do desenvolvimento brasileiro. Insurgência,
aliás, em alguma medida preparada pelos círculos intelectuais filocomunistas que, ao menos
desde o fim dos anos 1940, propagavam a necessidade de engajamento político e nacional dos
intelectuais.
Contudo, no momento em que Gramsci passa a ser fonte das análises da realidade
brasileira, os intelectuais brasileiros se veem diante da necessidade de entender e explicar o
golpe militar de 1964. Por este motivo, a hegemonia aparece agora pensada não como
“necessidade”, mas como ausência: na reflexão sobre as origens da debilidade da “hegemonia
burguesa” nacional e sua relação dependente do capitalismo internacional (Cardoso, 1967); na
discussão sobre o aspecto político-ideológico da política, populista, que se desprendia desta
relação dependente (Weffort, 1967); bem como na percepção da incapacidade da “hegemonia
de esquerda” em se expandir para além dos restritos grupos intelectuais (Schwarz, 1978
[1964/1969]).
Como em 1948, nos primeiros usos do pensamento de Gramsci para pensar a realidade
brasileira, a hegemonia aparece como sinônimo de função dirigente, da capacidade de
determinada classe ou grupo social predominar politicamente e/ou culturalmente sobre os
demais. Apesar da mudança de ênfase, o uso do conceito estabelece uma relação de
continuidade entre a intelectualidade engajada e otimista do período 1945-1964 e a experiência
intelectual pessimista do pós-1964.
É inegável o esforço de renovação analítica (marxista, mas não apenas) dentre os
intelectuais no pós-1964, críticos da análise e da política comunista oficiais. Em particular, ao
apontar a hegemonia as classes dirigentes e dominantes brasileiras como processo de
atrelamento irremediável aos centros de poder globais dominantes, representantes da
combinação entre a modernização americanista e o arcaísmo do passado colonial nunca
plenamente superado (cf. Schwarz, 1978 [1964/1969]). Da mesma maneira, ao demonstrar as
debilidades intrínsecas da hegemonia das esquerdas, incapazes de fazer com que seu
programa e aspirações pudessem transcender decisivamente os restritos círculos intelectuais e
universitários.
A presença de Gramsci nas interpretações da realidade nacional é, portanto, em sua
primeira hora, uma ferramenta para constatação da inviabilidade da hegemonia - burguesa ou
revolucionária - no Brasil e explicação do regime militar como efeito prático deste impasse. As

3
classes dominantes economicamente não possuem hegemonia política. Já os grupos
culturalmente dominantes são incapazes de conquistar a hegemonia social. A interpretação do
golpe e ditadura militar brasileira aparece, então, como produto e realização destas ausências.
A hegemonia é uma “ideia fora do lugar”.
Um pouco mais adiante, no início dos anos 1970, Gramsci já aparece assimilado à
cultura dos intelectuais brasileiros (que agora contam com boa parte dos volumes da edição
temática dos Cadernos do Cárcere já traduzida para o português pela editora Civilização
Brasileira). A oposição entre centralidade da estrutura e centralidade da política é importante
para compreensão dos usos de suas ideias na compreensão da realidade brasileira neste
momento. Gramsci é tomado, agora, como um impulsionador da distinção entre “organização
política” e “organização corporativa” em detrimento desta última (Weffort, 1972a, p. 22n). Por
um lado - este é o caso de Francisco Weffort - se discute como as “organizações políticas”,
diferentemente da representação e articulação de interesses sociais e econômicos, “se
propõem ‘funções de Estado’, (...) as de direção do Estado (...) que não se separa da
dominação sobre a sociedade” (Ibid., 1972a, p. 22n).
Aqui, a preponderância dada ao elemento “estatal” e de “domínio” diante do aspecto
“representativo” e “corporativo” seria a chave gramsciana para entender como o problema da
hegemonia se coloca no início dos anos 1970 no Brasil, os deslocamentos político-intelectuais
deste período e o lugar das ideias gramscianas em seu interior. Outras interpretações do
pensamento de Gramsci, neste período, polarizam com esta noção para ressaltar o predomínio
da estrutura sobre a política (Martins e Almeida, 1974, p. 15).
Trata-se de um dualismo que, investigado ao longo do tempo, parece revelador de
semelhanças, mais do que de diferenças, na maneira com que os intelectuais brasileiros usam
as ideias de Gramsci para interpretar o Brasil. Isto fica claro na mudança de ênfase do próprio
Weffort ao final dos anos 1970 quando, com base em Gramsci, passa a destacar criticamente a
política das esquerdas brasileiras entre 1930-1964 - especialmente o PCB - como orientadas
por “funções de Estado” mais do que por “funções de (representação) de classe” (Weffort,
1979, p. 17). Ou seja, aqui, a função política reaparece em chave negativa em relação à
mesma leitura inspirada em Gramsci do problema sindical-corporativo brasileiro.
Aliás, neste contexto de virada de década, o léxico gramsciano se amplia diversifica nas
análises do Brasil, aliado agora ao problema absorvente da democracia e da transição
democrática. Crise de hegemonia, crise orgânica, intelectuais orgânicos, “solução
transformista” são alguns termos que despontam. Trata-se de um léxico que favorece um olhar
desconfiado para a transição democrática brasileira, atento às debilidades e caráter

4
dependente das forças progressistas em relação ao Estado, bem como à natureza oligárquica
dos regimes democráticos na história do país (cf. Weffort, 1978a; 1978b; 1979).

Revolução passiva

Em discurso endereçado aos estudantes da USP em março de 1965, Florestan


Fernandes (1965, p. 329) falou das “forças sociais ligadas ao antigo regime [que] encontraram
condições de hegemonia” para se perpetuar no processo de transição do trabalho escravo para
o trabalho livre no Brasil. Hegemonia, neste caso, significava “força para garantir-se
continuidade e, em particular, para manter seus privilégios sociais, econômicos e políticos”
(Ibid., 1965, 329). Não se tratava de “capacidade” dirigente, mas de capacidade política e
econômica para sobreviver como força social. Em 1965, Fernandes se interessava por explorar
trajetória da “revolução burguesa” no Brasil de uma maneira a tornar inteligível o golpe de
1964. Aqui, hegemonia queria dizer capacidade de sobrevivência do antigo regime no interior
do “processo dinâmico e irreversível” da revolução burguesa. Contudo, afirmava, sendo esta
uma “alternativa historicamente possível” para o Brasil, seria possível alimentar a esperança de
conduzi-la a efeito democraticamente, processo no qual os intelectuais teriam centralidade
(Ibid., p. 331). Em outras palavras, o avanço das forças democráticas seria o antídoto para
desarmar as “condições de hegemonia” que perpetuavam a existência do “antigo regime”.
Alguns anos mais tarde, em 1973, Fernandes retomou o problema da revolução
burguesa brasileira em um longo e conhecido ensaio, A revolução burguesa no Brasil, em
chave mais pessimista. As expectativas de “disputa” de uma revolução burguesa democrática
cederam lugar à caracterização do capitalismo brasileiro como dependente e da política
burguesa como “força selvagem” e irremediavelmente “débil” (Ibid., 2005 [1973], p. 237). A
revolução burguesa passava, agora, a ser apresentada como um “drama crônico”, como
processo de “impossibilidades históricas que formam uma cadeia” (Ibid, 2005 [1973], p. 238). A
dominação burguesa no Brasil não poderia seguir um curso nem nacional, muito menos
democrático, precisaria se afirmar em formas autocráticas de poder, pressionada pelas
dinâmicas internacionais de monopolização do capitalismo e pela pressão das alianças
oligárquicas que sustentam sua hegemonia.
O pensamento de Gramsci apareceu aqui, curiosamente, associado ao conceito de
“revolução frustrada” e à noção de “burguesias conquistadoras” que Fernandes buscou rejeitar

5
(Ibid., 2005 [1973], p. 343).4 Pode-se supor que Fernandes estivesse rejeitando justamente o
pressuposto da hegemonia como “necessidade dirigente” (de uma burguesia conquistadora) ou
como “ausência dirigente” (de uma esquerda revolucionária frustrante). Ou seja, rejeitando
Gramsci para rejeitar por completo as interpretações que se apoiaram em suas ideias para
explicar o golpe de 1964.5
Em todo caso, é interessante notar que, para Fernandes, a revolução burguesa na
periferia do capitalismo se caracterizaria pela necessidade “de manter a ordem, salvar e
fortalecer o capitalismo, impedir que a dominação burguesa e o controle burguês sobre o
Estado nacional se deteriorem” (Ibid., 2005 [1973], p. 343). Sua natureza seria a da
“coexistência de revoluções antagônicas”, “uma que vem do passado e chega a termo sem
maiores perspectivas” e outra que se estabelece como “construção do futuro no presente”
(Ibid., 2005 [1973], p. 343). Para sobreviver e fazer sobreviver o capitalismo brasileiro, conclui,
a burguesia brasileira precisa “retardar” de maneira particular sua própria revolução, abdicando
periodicamente o “idealismo burguês” nacional e democrático. Como bem notou Coutinho, uma
interpretação que abre um diálogo implícito com outro conceito de Gramsci praticamente
ausente do debate intelectual brasileiro até meados dos anos 1990: a revolução passiva.6
Apesar da precocidade com que Fernandes associara sua reflexão sobre a revolução
burguesa brasileira ao pensamento de Antonio Gramsci, foi apenas no início dos anos 1990
que esta pista passou a ser explorada de maneira direta e extensa. O cientista político e ex-
militante comunista Luiz Werneck Vianna - que já nos anos 1980 citava Gramsci em suas
análises -7 foi o primeiro a trabalhar neste sentido. Para Vianna, seguindo os passos de

4
O uso do termo é impreciso - Gramsci utiliza a expressão “revolução passiva” para falar da experiência
italiana -, bem como o sentido atribuído ao pensamento de Gramsci sobre a revolução burguesa na
Itália (cf. Coutinho, 2000).
5
Sobre este assunto, vale a pena recuperar a literatura polêmica produzida antes de 1973 a respeito da
revolução de 1930 e que opôs correntes interpretativa tais como: a tese da revolução de classes médias,
representada por Virgínio Santa Rosa, Werneck Sodré e Guerreiro Ramos; a tese revolução burguesa
nacional, por Wanderley Guilherme dos Santos e Ruy Mauro Marini; e a tese da revolução intra-
oligárquica por Bóris Fausto.
6
Praticamente, mas não completamente ausente. Em 1973, mesmo ano da publicação do ensaio de
Fernandes, Antonio Carlos Meirelles publicou em francês um artigo pioneiro em que caracterizou a
Revolução de 1930 no Brasil como “revolução passiva” (Meirelles, 1973). Neste, argumentou em
polêmica com a tese de Bóris Fausto (1970) sobre o assunto que o movimento político-militar liderado
por Vargas possuíra, ao mesmo tempo, natureza oligárquica e efeitos industrializantes.
7
Em 1983, Vianna escreve retomando ecos dos debates dos anos 1970: “Os fatos não passam de fatos,
e só vem integrar o campo da política na medida em que organizados por quem é ator em política.”;
“Como observa Gramsci em seu ensaio sobre Maquiavel, as conjunturas se constituem em momentos de
períodos organicamente estruturados”; “Nesse sentido, pensar a conjuntura se confunde com pensar
sobre si, resolver o problema da sua identidade social e política” “Quando o ator vê seu lugar na
hierarquia das classes e no funcionamento do modo de produção. Mas não só, na medida em que este
momento também corresponde àquele em que se reconhece em oposição a outros, com interesses

6
Fernandes, a sobrevivência do “atraso” e do “periférico” explicaria o tempo da política brasileira
e isso aproximaria o pensamento de Gramsci da investigação desta realidade (Vianna, 1995, p.
75, 69). As ideias de Gramsci - especialmente a busca por uma “solução unitária” para
modernizar a Itália - fariam dele um pensador, por excelência, do terreno “da revolução como
fenômeno do atraso” (Ibid., p. 68-69).
Vianna elabora, então, uma aproximação conceitual nada óbvia entre fascismo e
americanismo, como exemplos concretos de revoluções passivas (Ibid., p. 91). Revolução
passiva seria, a seu ver, um conceito analítico para estudo de processos políticos nacionais de
grande envergadura vividos fora “do tempo das revoluções” (Ibid., p. 59), um tempo encerrado
pelo processo progressivo de “globalização do mercado, deslocamento do Estado-nação de
seu antigo monopólio na representação de identidades coletivas” e pelo “assemelhamento
universal” resultante da estratificação aguda dos povos (Ibid., p. 60, 67). O fim do “tempo das
revoluções”, além disso, seria marcado por uma profunda mudança na política, com
“desqualificação da presença do ator no mundo” e pela emergência do “protagonismo dos
‘fatos’”8 (Ibid., p. 60). “Um mundo que não mais deseja reconhecer-se nas revoluções, apesar
de continuar convivendo com elas”, conclui (Ibid., p. 60).
Por este mesmo motivo, a transição democrática no Brasil seria sempre como um “fato”
em busca de um “ator” capaz de interpretá-la e conceder a ela “uma expressão política”. Em
outras palavras, se realizaria como uma combinação de atraso e moderno, como “explosão de
linguagens que desafiam a superficialidade”, o “jacobinismo demagógico” (Ibid, p. 61). O Brasil
jamais teria experimentado uma “revolução” no sentido clássico, e a obsessão dos intelectuais
com o termo - evocado para designar processos “corriqueiros” - seria expressão desta
ausência (Ibid., 1996, p. 43). A história política brasileira - incluindo sua modernização - seria
marcada, ao contrário, pelo esforço permanente de evitar uma “revolução”. A revolução
brasileira seria a realização da “modernização como compromisso com o passado”, dinâmica
política aprendida precocemente no início do século XIX - muito antes da experiência de 1848 e
seus desdobramentos na Europa (Ibid., p. 43). As elites brasileiras teriam aprendido, muito
cedo, a antecipar “surtos libertários” e a promover, de maneira preventiva, soluções do tipo
“restauração progressiva”, projetando sempre adiante a “tarefa de vencer a barbárie” (Ibid., p.
44). Por este motivo, o liberalismo brasileiro nunca teria sido capaz de libertar-se do “iberismo

distintos e diversa concepção do mundo e projeta, no terreno da ação, sua vontade para transformar sua
posição” (Vianna, 1983, p. 9).
8
Expressão que, nos anos 1980, Vianna usou para designar a o “lugar na hierarquia” social percebido
pelo “ator”, mas que aqui recebe uma conotação mais forte, como dinâmica abrangente, incontrolável,
estrutural.

7
territorialista” (uma forma particular de regionalismo conservador), e a revolução passiva teria
adquirido, por aqui, sempre um caráter recessivo (cujo protagonismo se sustenta
exclusivamente nos “fatos” e nunca nos “atores”) (Ibid., p. 47).
Na ausência da conformação de uma identidade coletiva clássica do tipo “intelectuais-
povo”, a revolução burguesa brasileira teria seguido sempre um caminho “passivo”, de
transição política e econômica realizadas sempre como movimentos de “restauração” (Ibid., p.
47). Por outro lado, os momentos de conformação de novas “antíteses” políticas, não
burguesas, teriam sido marcados pela “incorporação das massas ao mundo dos direitos e
modernização econômica. como estratégia de criar novas oportunidades de vida para a grande
maioria” (Ibid., p. 48). Seriam, portanto, as situações de realização do pólo progressivo da
revolução passiva (Ibid., p. 49). “A vitalidade do processo de transformismo”, continuou, seria
justamente o que empresta “legitimidade às elites políticas territorialistas” brasileiras (Ibid., p.
49). A revolução passiva, nesse sentido, teria sido, no Brasil, o “terreno comum às elites, ao
sindicalismo, à intelligentsia e à esquerda, especialmente o PCB” (Ibid., p. 49) e definido, dessa
forma, a “revolução sem revolução como registro positivo” da história política brasileira.
A elaboração de Vianna sobre a revolução passiva no Brasil abriria uma nova fase da
presença do pensamento de Antonio Gramsci entre os intérpretes do Brasil. Em primeiro lugar
porque se realiza como combinação de análise da realidade brasileira e interpretação teórica
do pensamento gramsciano que toma como apoio todo aparato metodológico e conceitual
desenvolvido para leitura dos Cadernos do Cárcere a partir do final dos anos 1970 e início dos
anos 1980. Em seguida, por estabelecer um balanço da atuação das organizações de
esquerda no pós-1964 contrastante com as leituras centradas no papel das da luta armada e
das greves selvagens dos anos 1960 e 1980. Para Vianna, a abertura democrática teria
seguido o caminho pecebista, “das rupturas moleculares, tendo como inspiração principal os
temas da democracia política, os quais, sobretudo a partir de meados dos anos 1970, foram
crescentemente vinculados aos da agenda da democratização social” (Ibid., p. 52).
Em meados dos anos 1990, essa reorientação via pensamento gramsciano ganharia
uma força imprevista entre os intelectuais brasileiros, em parte por ter seus argumentos
extraídos do próprio processo de conformação da intelectualidade democrática da segunda
metade do século XX. Em parte, ainda, por se sustentar de maneira original e bem informada
nos próprios escritos gramscianos e de comentadores de ponta que faziam o mesmo fora do
Brasil. Vianna apresentou, assim, o processo de transição democrática no Brasil pós-1988
como combinação de dinâmicas de americanização “por baixo” - geradas pelas fortes
mobilizações sindicais - e racionalização da participação política “por cima”; ou seja, como

8
revolução passiva na qual a democracia encontraria um equilíbrio, à esquerda, enquanto esta
mantivesse um programa político por um “transformismo ativo” (Ibid., p. 54).

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