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O princípio constitucional da

dignidade da pessoa humana

Fahd Awad*

Resumo Introdução
A dignidade da pessoa humana é um va-
Este artigo tem como objeto o estudo
lor supremo que atrai o conteúdo de todos
do princípio da dignidade da pessoa huma-
os direitos fundamentais do homem, desde
o direito à vida. O conceito de dignidade da na nos aspectos jurídico e constitucional.
pessoa humana obriga a uma densificação Destaca, também, o conceito, sua relação
valorativa que tenha em conta o seu amplo com os direitos fundamentais, bem como
sentido normativo-constitucional, não uma com a Constituição Federal de 1988. In-
qualquer idéia apriorística do homem, não troduzir o referido princípio como princí-
podendo se reduzir o sentido da dignidade pio fundamental na consciência, na vida e
humana à defesa dos direitos pessoais tradi- na práxis dos que exercitam a governação
cionais, esquecendo-a nos casos de direitos e dos que, enquanto entes da cidadania,
sociais, ou invocá-la para construir “teoria são do mesmo passo titulares e destinatá-
do núcleo da personalidade” individual,
rios da ação de governo, foi, sem dúvida, a
ignorando-a quando se trate de garantir as
intenção do constituinte de 1988.
bases da existência humana. Daí decorre
que a ordem econômica há de ter por fim Quando hoje, a par dos progressos
assegurar a todos existência digna; a ordem hermenêuticos do direito e de sua ciência
social visará à realização da justiça social, à argumentativa, estamos a falar, em sede de
educação, ao desenvolvimento da pessoa e positividade, acerca da unidade da Consti-
seu preparo para o exercício da cidadania. tuição, o princípio que urge referir na or-
dem espiritual e material dos valores é o
Palavras-chave: dignidade da pessoa, direitos princípio da dignidade da pessoa humana.
fundamentais, eficácia, reconhecimento. Com a revolução hermenêutica, surge a
supremacia principiológica dos conteúdos
*
Mestre em Direito pela UFPR, professor das disciplinas constitucionais sobre os conteúdos legisla-
de Introdução ao Direito, Hermenêutica Jurídica e Direito tivos ordinários da velha dogmática e, ao
Processual Constitucional na UPF, coordenador do Serviço
de Assistência Judiciária de Palmeira das Missões.

JUST. DO DIREITO PASSO FUNDO V. 20 N. 1 P. 111-120 2006


JUSTIÇA DO
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mesmo tempo, representam a ascensão da postos no mais alto da escala normativa,


legitimidade material, que diminui o for- eles mesmos, sendo normas, se tornam,
malismo positivista e legalista do passado, doravante, as norma supremas do orde-
peculiar à dogmática do século XIX. namento. Servindo de pautas ou critérios
O direito constitucional brasileiro por excelência para avaliação de todos os
conteúdos constitucionais, os princípios,
tem evoluído de modo surpreendente nos
desde sua constitucionalização, que é, ao
últimos anos. Se é certo que, em 1988, mesmo passo, positivação no mais alto
ganhamos uma nova Constituição, não é grau, recebem, como instância máxima,
menos certo que naquele tempo não contá- categoria constitucional, rodeada de pres-
vamos ainda, de forma generalizada, com tígio e da hegemonia que se confere às nor-
uma dogmática constitucional sofisticada mas inseridas na Lei das Leis. Com essa
a ponto de dar conta da nova realidade po- relevância adicional, os princípios se con-
lítico-jurídica que se inaugurava. vertem igualmente em norma normarum,
Cabe ressaltar a indissociável vin- ou seja, normas das normas.1
culação entre a dignidade da pessoa huma- Na obra de Ruy Samuel Espíndola,
na e os direitos fundamentais, a qual cons- a natureza dos princípios constitucionais
titui um dos postulados nos quais se assen- é definida como “conteúdos primários di-
ta o direito constitucional contemporâneo retores do sistema jurídico-normativo fun-
mesmo nas ordens constitucionais nos quais damental de um Estado. Dotados de ori-
a dignidade ainda não tenha sido expressa- ginalidade e superioridade material sobre
mente reconhecida no direito positivo. todo os conteúdos que formam o ordena-
mento constitucional, os valores firmados
pela sociedade são transformados pelo Di-
Os princípios e o reito em princípios”.2
princípio constitucional Assim, “os princípios, enquanto se
traduzem em mandados de otimização,
da dignidade da apresentam um caráter deontológico do
pessoa humana dever ser”.3 São verdades objetivas, na
qualidade de normas jurídicas, dotadas de
Ao procurar o significado da palavra vigência, validez e obrigatoriedade. Esses,
“princípios”, encontra-se a terminologia que começam por ser a base de normas
utilizada, dentre outras formas, como pro- jurídicas, podem estar positivamente in-
posições diretoras de uma ciência, às quais corporados, transformando-se em normas-
todo o desenvolvimento posterior dessa ci- princípios e constituindo preceitos básicos
ência deve estar subordinado. Depreende- da organização constitucional.
se dessa definição que a palavra “princí- [...] os conceitos deontológicos caracteri-
pio” exprime a idéia de começo, onde tudo zam-se por estarem referidos ao conceito
se inicia. Para o direito constitucional, o ter- de comando ou do dever ser. Estão com-
mo, quando esculpido dentro do contexto dos preendidos nesta categoria as proibições,
princípios fundamentais, diz respeito ao início permissões, comandos e direitos a algo
de todo sistema jurídico, pois trata-se de toda [...]. assim, os princípios fazem parte do
a base em que se sustenta e desenvolve. As- âmbito dos conceitos deontológicos na
medida em que constituem comandos de
sim, os princípios constitucionais,
otimização [...].4
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Sendo os princípios normas gerais tuição, a estrutura e a competência dos


aplicados a determinados comportamen- órgãos constitucionais seria privá-los de
tos públicos ou privados, devem ser vistos eficácia juridicamente vinculante para
como forma de interpretação e integração a proteção e a garantia dos indivíduos e
das leis de teor pouco claro ou, mesmo, dos grupos sociais, comprometendo o va-
lor e a funcionalidade de todo o sistema
para aplicar-se àquelas normas que, propo-
constitucional, cujas várias partes se li-
sitadamente ou não, são obscuras. Têm-se gam estreitamente.
os princípios básicos como forma mister de
interpretação e integração das leis. A nor-
matividade dos princípios é a norma-chave
de todo o sistema jurídico, cuja relevância
Conceito do princípio da
consiste, essencialmente, na integração dignidade da pessoa humana
das normas de que são súmulas, ou que
as desenvolvem, mas têm eficácia plena e O constituinte de 1988 deixou claro
aplicabilidade imediata. Canotilho ensina: que o Estado democrático de direito tem
como fundamento a dignidade da pessoa
Consideram-se princípios jurídicos fun-
humana (art. 1o, III, da Constituição Fe-
damentais os princípios historicamente
deral). Aquele reconheceu na dignidade
objetivados e progressivamente intro-
duzidos na consciência jurídica e que pessoal a prerrogativa de todo ser huma-
encontram uma recepção expressa e ou no em ser respeitado como pessoa, de não
implícita no texto constitucional. Perten- ser prejudicado em sua existência (a vida,
cem à ordem jurídica positiva e consti- o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito
tuem um importante fundamento para a existencial próprio.
interpretação, integração, conhecimento
A dignidade é um valor espiritual e mo-
e aplicação do direito positivo.5
ral inerente à pessoa, que se manifesta
Integram o direito constitucional po- singularmente na autodeterminação
sitivo mostrando-se na forma de normas consciente e responsável da própria vida
fundamentais que ordenam as valorações e que traz consigo a pretensão ao respei-
políticas do legislador, ou seja, o conjunto to por parte das demais pessoas, consti-
tuindo-se em um mínimo invulnerável
de normas oriundas de decisões políticas
que todo estatuto jurídico deve assegu-
que o constituinte globalizou na forma de rar, de modo que, somente excepcional-
nossa Carta. mente, possam ser feitas limitações ao
Pode-se dizer que o âmago de nos- exercício dos direitos fundamentais, mas
sa lei maior é a busca da ordem política sempre sem menosprezar a necessária
e da paz social. Fonte primária de nosso estima que merecem todas as pessoas
ordenamento, a Constituição Federal é, ao enquanto seres humanos.6
mesmo tempo, derivada e subordinada à
Adotar a dignidade da pessoa huma-
ordem dos valores socialmente professa-
na como valor básico do Estado democrá-
dos. Hoje se diz que os princípios gerais
tico de direito é reconhecer o ser humano
constitucionais ocupam o lugar dos prin-
como o centro e o fim do direito. Essa prer-
cípios gerais do direito constitucional, uni-
rogativa é o valor máximo, constitucio-
ficando os princípios deste em torno dos
nalmente falando, o valor absoluto. Esse
princípios constitucionais.
princípio se tornou uma barreira irremo-
Afirmar que os princípios garantem uni- vível, pois zela pela dignidade da pessoa,
camente a parte organizativa da Consti-
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que é o valor supremo absoluto cultivado posterior, é o contexto sociocultural e eco-


pela Constituição Federal. nômico no qual estão inseridos.
Para que possamos conceituar o Assim, dada a impossibilidade de se
princípio da dignidade da pessoa humana estabelecer um conceito concreto e preci-
é necessário compreendermos a existên- so da dignidade da pessoa humana, por
cia do próprio Estado. Criou-se o Estado, ser um conceito jurídico indeterminado
o qual existe para que os interesses do e é bom que seja assim –, é a autonomia
homem possam ser atendidos. Quando o que se coloca como conteúdo nuclear da
homem vivia em seu estado natural, per- dignidade humana, pois “cada ser huma-
cebeu que não poderia viver em sociedade no é humano por força de seu espírito, que
se não houvesse uma efetiva proteção de o distingue da natureza impessoal e que
seus interesses contra os outros indivíduos o capacita para, com base em sua própria
(seus semelhantes) da sociedade. decisão, tornar-se consciente de si mes-
Então, para que o Estado conseguis- mo”.8 No entanto, como já vimos, a digni-
se atuar de forma a garantir a proteção dade humana serve de limitação à autono-
dos interesses do homem, este teve de dis- mia da vontade.
por de parte de sua autonomia, conferindo
Construindo sua concepção a partir da
poderes àquele. Assim, percebe-se que o natureza racional do ser humano, Kant
Estado foi criado para o benefício do ho- assinala que a autonomia da vontade,
mem, não para o seu martírio. Destarte, entendida como a faculdade de determi-
o Estado poderoso e controlador deverá nar a si mesmo e agir em conformidade
sofrer limitações a sua atuação para que com a representação de certas leis, é um
não ofenda a própria natureza de quem o atributo apenas encontrado nos seres ra-
criou, ou seja, o Estado possui limites, os cionais, constituindo-se no fundamento
quais estão ligados (limitados) à existên- da dignidade da natureza humana.9
cia do indivíduo humano. Entretanto, mesmo que o termo “dig-
É justamente neste sentido que assume nidade” comporte vários significados, estes
particular relevância a constatação de possuem uma mesma base comum. Os limi-
que a dignidade da pessoa humana é si- tes dos significados diferem de uma socie-
multaneamente limite e tarefa dos pode- dade para outra, de um espaço para outro,
res estatais e, no nosso sentir, da comu- uma vez que são formados por influências
nidade em geral, de todos e de cada um, religiosas, filosóficas e morais, embora
condição dúplice esta que também apon- todos procurem relatar uma mesma rea-
ta para uma paralela e conexa dimensão
lidade. Numa sociedade, ao referido termo
defensiva e prestacional da dignidade.7
pode ser atribuído um significado, que po-
O princípio da dignidade da pessoa derá tornar-se mais amplo ou menos res-
humana tem íntima relação com o direi- trito, de pessoa para pessoa, dentro desse
to natural. Se considerarmos que o direito mesmo corpo social.
natural é aquele que nasce com o homem, A proteção à dignidade, inserida
a dignidade humana faz parte dele, haja como fundamento do próprio Estado de-
vista que o homem detém capacidades pró- mocrático, é pressuposto da participação
prias e poder de raciocínio já ao nascer, o social do indivíduo no próprio destino des-
que diferencia dos demais seres. Todos os se Estado e, pois, condição de cidadania.
homens, ao nascerem, são iguais em dig- Considera-se que o objeto de proteção es-
nidade; o que os diferencia num momento tende-se a qualquer pessoa, independen-
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temente da idade, sexo, origem, cor, condi- que humanismo e democracia são traços
ção social, capacidade de entendimento e constitutivos da nação.
autodeterminação ou status jurídico. Assim, respeitar a dignidade da pessoa
No entanto, esclarece-se que há di- humana, traz quatro importantes conse-
ferença entre as expressões “dignidade da quências: a) igualdade de direitos entre
pessoa humana” e “dignidade humana”: todos os homens, uma vez integrarem a so-
aquela dirige-se ao homem concreto e indi- ciedade como pessoas e não como cidadãos;
vidual, ao passo que esta dirige-se à huma- b) garantia da independência e autonomia
nidade, entendida como qualidade comum do ser humano, de forma a obstar toda co-
ação externa ao desenvolvimento de sua
a todos os homens. “A dignidade constitui
personalidade, bem como toda atuação
atributo da pessoa humana individual- que implique na sua degradação e desres-
mente considerada, e não de um ser ideal peito à sua condição de pessoa, tal como se
ou abstrato, não sendo lícito confundir as verifca nas hipóteses de risco de vida; c)
noções de dignidade da pessoa humana e não admissibilidade da negativa dos meios
dignidade humana (da humanidade).”10 fundamentais para o desenvolvimento de
Pode-se dizer, pela sua importância alguém como pessoa ou imposição de con-
já demonstrada, que o princípio da digni- dições subhumanas de vida. Adverte, com
dade da pessoa humana, assim como os carradas de acerto, que a tutela constitu-
demais princípios fundamentais, é norma cional se volta em detrimento de violações
jurídica de eficácia plena, isto é, auto-apli- não somente levadas a cabo pelo Estado,
mas também pelos particulares.11
cável, não necessitando de normas infra-
constitucionais para regulamentá-lo. Co-natural ao reconhecimento jurídi-
co da dignidade da pessoa humana decorre
a salvaguarda dos direitos da personalida-
Direitos assegurados pelo de. Estes configuram um conteúdo mínimo
princípio da pessoa humana e imprescindível da esfera jurídica de cada
pessoa, incidentes sobre a sua vida, saúde e
Os direitos advindos da dignidade integridade física, honra, liberdades física
humana aderem à pessoa, independente- e psicológica, nome, imagem e reserva so-
mente de qualquer reconhecimento pela bre a intimidade de sua vida privada. Des-
ordem jurídica; por isso mesmo podem ser sa enumeração emanam questões relativas
oponíveis tanto ao Estado como à comuni- à vida em formação, aos novos métodos de
dade internacional e, ainda, aos demais reprodução da pessoa humana, à manipu-
indivíduos do grupo social. lação genética da pessoa, às situações de
O princípio da dignidade da pessoa risco de vida, ao transplante de órgãos, te-
humana garante essencialmente o reco- cidos e partes do corpo humano, entre ou-
nhecimento do homem como ser superior, tras de patente atualidade.
criador e medida de todas as coisas. A sua De suas características, duas guar-
liberdade como valor prioritário é instân- dam íntima vinculação ao tema sob enfo-
cia fundadora do direito, e a preservação que, quais sejam a irrenunciabilidade e a
dos direitos humanos, naturais e inatos é intransmissibilidade, as quais impedem
condição imprescindível da instituição da que a vontade do titular possa legitimar
sociedade e do Estado democrático. Há, o desrespeito à condição humana do indi-
pois, um fato, entre outros tantos, que não víduo. Limitam a liberdade de sua mani-
se pode olvidar no tocante a essa matéria: festação quando contrária à ordem públi-
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ca. Exemplificando, de nenhuma valia se mativa correr o risco de ser vulgarizada e


afigura o consenso capaz de importar na esvaziada. O princípio não deve ser usado
supressão do bem da vida. como um recurso exagerado e sem qual-
A dignidade como quer fundamentação racional, sob pena de
qualidade intrínseca da pessoa humana, poder acabar contribuindo para a erosão
é irrenunciável e inalienável, constituin- da própria noção de dignidade como valor
do elemento que qualifica o ser humano fundamental de nossa ordem jurídica.
como tal e dele não pode ser destacado, O conteúdo semântico da dignidade
de tal sorte que não se pode cogitar na da pessoa humana deve ser encontrado
possibilidade de determinada pessoa ser a partir dos critérios disponíveis em to-
titular de uma pretensão a que lhe seja dos os subsistemas jurídicos. Apesar de
concedida a dignidade. [...] qualidade in-
sua prevalência, eventualmente terá de
tegrante e irrenunciável da própria con-
dição humana, pode (e deve) ser reconhe-
submeter-se a adequações, com vistas ao
cida, respeitada, promovida e protegida, equilíbrio necessário que deverá partilhar
não podendo, contudo (no sentido ora com os demais valores albergados pelo or-
empregado) ser criada, concedida ou re- denamento jurídico.
tirada, já que existe em cada ser humano Disso surge a seguinte indagação: a
como algo que lhe é inerente.12 dignidade da pessoa humana, prevista no
É necessário, assim, ter em conta que art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988,
a questão da proteção e defesa da digni- foi considerada pelo constituinte como va-
dade da pessoa humana e dos direitos da lor absoluto ou o legislador maior permitiu
personalidade, no âmbito jurídico, alcança “limitações” à dignidade pessoal?
uma importância proeminente neste fim A doutrina majoritária mostra-se ab-
de século, notadamente em virtude dos solutamente contrária a qualquer tipo de
avanços tecnológicos e científicos experi- restrição à dignidade pessoal, pois consi-
mentados pela humanidade, que potencia- dera restrição como sinônimo de violação.
lizavam de forma intensa riscos e danos a Nessa linha de entendimento, nem mes-
que podem estar sujeitos os indivíduos, na mo o interesse comunitário pode justificar
sua vida cotidiana. Passa, então a temáti-
ofensa à dignidade individual, pois esta
ca DA “dignidade humana” – e dos direitos
que lhe são correlatos – a integrar o Direi- deve ser considerada como valor absoluto
to Constitucional, elevada à condição de e insubstituível de cada ser humano.
princípio fundamental, ou segundo outros, Por outro lado, Ingo Wolfgang Sar-
de valor essencial que dá unidade ao sis- let salienta que até mesmo o princípio da
tema, ocupando um estágio de relevância dignidade da pessoa humana (por força de
ímpar no ordenamento jurídico.13 sua própria condição principiológica) aca-
O princípio fundamental invocado ba por sujeitar-se a uma necessária relati-
vincula todo o ordenamento jurídico brasi- vização, nada obstante sua prevalência no
leiro, não somente determinados artigos. confronto com outros princípios e regras
Todos os dispositivos da Constituição, bem constitucionais.
como os das demais leis que lhe são infe- O que nos parece deva ficar consignado é
riores, devem ser lidos com olhos fixos no que não se deve confundir a necessidade
princípio da dignidade da pessoa humana. de harmonizar, no caso concreto, a digni-
A dignidade não deve ser vista como qual- dade na sua condição de norma-princípio
quer pessoa deseja ver, sob pena de a pró- (que, por definição admite vários níveis de
realização) com outros princípios e direitos
pria noção de dignidade e sua força nor-
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fundamentais, de tal sorte que se poderá desenvolvimento, da igualdade, da justiça,


tolerar alguma relativização, com a neces- tudo endereçado a que seja alcançado um
sidade de respeitar, proteger e promover a estágio representativo de absoluta eficácia
igual dignidade de todas as pessoas, não e efetividade da dignidade humana.
olvidando que, antes mesmo de ser norma A pretensão é de ser construída uma
jurídica, a dignidade é, acima de tudo, a
democracia para o século XXI com precei-
qualidade intrínseca do ser humano e que
tos que, ao serem aplicados, abram espaços
torna merecedor ou, pelo menos, titular de
uma pretensão de respeito e proteção.14
para a execução de medidas concretas, que
resultem em oferecer ao cidadão qualquer
A interferência do princípio da digni- que seja a escala a que ele pertença na
dade da pessoa humana difundiu-se entre grade social, segurança pública e jurídica,
nós reverenciando a igualdade entre ho- assistência à saúde, atendimento escolar,
mens, impedindo que o ser humano seja moralidade, liberdade, amplo emprego, res-
considerado como objeto, degradando-se peito aos seus direitos fundamentais e ou-
a sua condição de pessoa, o que implica a tros valores que estão inseridos no contexto
observância de prerrogativas de direito e representativo da dignidade humana.
processo penal na limitação da autonomia
da vontade e no respeito aos direitos de Se existe algum fundamento único para a
democracia, ele não pode ser outra coisa
personalidade, para garantir um patamar
senão o próprio reconhecimento da dig-
existencial mínimo. nidade humana. Mas tal dignidade é, ela
Uma vez que a dignidade, na con- própria, destituída de qualquer alicerce
dição de valor intrínseco do ser humano, religioso ou metafísico. Trata-se apenas
gera para o indivíduo o direito de decidir de um princípio prudencial, sem qualquer
de forma autônoma sobre seus projetos conteúdo pré-fixado, ou seja, uma cláusula
existenciais e felicidade, mesmo nos mo- aberta que assegura a todos os indivíduos
mentos em que sua autonomia lhe faltar, o direito à mesma consideração e respeito,
deverá ser considerado e respeitado pela mas que depende, para a sua concretiza-
sua condição de pessoa humana. ção, dos próprios julgamentos que esses in-
divíduos fazem acerca da admissibilidade
ou inadmissibilidade das diversas formas
O princípio da dignidade de manifestação da autonomia humana.15

da pessoa humana como A Constituição Federal de 1988, no


título “Dos Princípios Fundamentais”, em
fundamento da República seu artigo 1o, III, dispõe, in verbis:
Federativa do Brasil Art. 1o - A República Federativa do Bra-
sil, formada pela união indissolúvel dos
A Carta de 1988 apregoa, a partir
Estados e Municípios e do Distrito Fede-
do seu “Preâmbulo” e com continuidade ral, constitui-se em Estado Democrático
no exposto nos demais títulos e capítulos de Direito e tem como fundamento:
que a compõem, mensagens imperati- [...]
vas contendo propósitos de homenagem III - a dignidade da pessoa humana.
à instituição de um Estado democrático,
com finalidade primordial voltada para a Neste dispositivo, a Constituição Fe-
proteção dos direitos sociais e individuais, deral assegura a dignidade do homem ou
tendo como centro maior a valorização da da mulher, tal como existem, da pessoa
liberdade, da segurança, do bem-estar, do concreta, na sua vida real e cotidiana, que
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a ordem jurídica considera irredutível e in- sociais radica tanto no princípio da digni-
substituível e cujos direitos fundamentais dade da pessoa humana (saúde, educação,
a Constituição Federal enuncia e protege. etc), quanto nos princípios que, entre nós,
Não é de um ser ideal e abstrato. Em todo consagram o Estado social de Direito.17
homem e em toda a mulher estão presen- Como princípio fundamental ou es-
tes todas as faculdades da humanidade. truturante é uma das normas jurídicas
Com o artigo acima disposto consa- com a maior hierarquia axiológico-valora-
gra-se expressamente a dignidade da pes- tiva, pois constitui um valor que guia não
soa humana como um dos fundamentos do apenas os direitos fundamentais, mas toda
nosso Estado democrático (e social) de di- a ordem constitucional. Está colocada pelo
reito (art. 1o, III, da Constituição Federal). sistema no patamar dos seus mais eleva-
O Constituinte de 1988, além de ter toma- dos escalões, precisamente para penetrar,
do uma decisão fundamental a respeito de modo decisivo, cada uma das estruturas
do sentido, da finalidade e da justificação mínimas e irredutíveis, outorgando unida-
do exercício do poder estatal e do próprio de ideológica à conjunção, que, por impo-
Estado, reconheceu categoricamente que sição dos próprios fins regulatórios que o
é o Estado que existe em função da pes- direito se propõe implantar, organiza os se-
soa humana, e não o contrário, já que o tores mais variados da convivência social.
ser humano constitui a finalidade precí- Essa penetração nas estruturas jurí-
pua e não meio da atividade estatal.16 dicas menores se dá através do esquema
A dignidade da pessoa humana é cri- de densificação. O princípio da dignidade
tério aferidor da legitimidade substancial da pessoa humana é “densificado” a partir
de uma determinada ordem jurídico-cons- da aplicação de subprincípios, regras cons-
titucional, já que diz com os fundamentos titucionais e infraconstitucionais.
e objetivos, em suma, com a razão de ser Por ser uma norma jurídica de efi-
do próprio poder estatal. cácia plena, o referido princípio pode ser
O princípio aqui explanado é um aplicado independentemente de quaisquer
dos que ocupam maior proeminência no outras providências legislativas. Todavia,
ordenamento jurídico brasileiro, dos que em vista de sua generalidade, o intérprete
deverá promover a sua densificação para
possuem maior “peso” perante os demais
aplicá-lo no caso concreto em nome do pri-
princípios e normas constitucionais e infra-
mado da unidade do ordenamento jurídico.
constitucionais, e se traduz como princípio
Partindo da idéia de que o Estado e
estruturante ou fundamental. Seus efeitos
pessoa humana devem trabalhar juntos no
alcançam todo o ordenamento jurídico, uma
objetivo de alcançar a verdadeira dignidade,
vez que se encontra entre os princípios fun-
entende-se que é impossível a convivência,
damentais do ordenamento jurídico pátrio.
com êxito, do Estado com o cidadão quando
Assim, não há como negar que os direitos as suas relações estão em constante tensão. O
à vida, bem como os direitos de liberda- alcance dessa situação provoca insegurança,
de e de igualdade correspondem direta- medo, falta de confiança e incentiva a quebra
mente às exigências mais elementares da dos princípios da ética e da moralidade.
dignidade da pessoa humana. Da mesma
É justamente nesse sentido que assume
forma, os direitos políticos [...] são mani-
particular relevância a constatação de que
festações do princípio democrático e da
a dignidade da pessoa humana é simulta-
soberania popular. Igualmente, percebe-
neamente limite e tarefa dos poderes es-
se, desde logo, que boa parte dos direitos
O princípio constitucional da dignidade ... 119

tatais. Na condição de limite da atividade imperioso comentar, na esteira do que tem


dos poderes públicos, a dignidade necessa- lecionado Paulo Bonavides, sobre uma
riamente é algo que pertence a cada um e correspondente globalização da dignidade
que não pode ser perdido ou alienado, por- e dos direitos fundamentias, sem a qual
quanto, deixando de existir, não haveria o que surgirá cada vez mais é a figura de
mais limite a ser respeitado (considerado o
alguns “homens globalizantes” e uma mul-
elemento fixo e imutável da dignidade).18
tidão de “homens globalizados”, sinalizan-
Assim, o primeiro postulado da ciên- do para uma lamentável transformação de
cia jurídica é o de que a finalidade, a fun- muitos Estados democráticos de direito em
ção ou razão de ser do direito é a proteção verdadeiros “Estados neocoloniais”.
da dignidade humana, ou seja, da capaci- Segundo Dworkin, governo que não
dade humana de amar, descobrir a verda- leva a sério os direitos não leva a sério o di-
de e criar a beleza. reito. Por isso, pode-se afirmar que o poder
público, as instituições sociais e particula-
Considerações finais res, bem como a ordem jurídica, que não tra-
tam com seriedade a questão da dignidade
Com o presente artigo, verificou-se da pessoa humana não trata com seriedade
que, com a promulgação da Constituição os direitos fundamentais e, acima de tudo,
Federal de 1988, o princípio da dignidade não levam a sério a própria humanidade.
da pessoa humana ganhou elevada im-
portância social, pois, juntamente com a
expressão Estado democrático de direito, Abstract
serviu como pilar para a construção dos
direitos fundamentais. The dignity of human person is a su-
Dentre outros princípios fundamen- preme value that attracts the content of all
tais, o princípio da dignidade da pessoa fundamental rights of the man, since the
humana reveste-se de uma certa singu- life right. The concept of dignity of human
laridade, pois, se assim não fosse, de que person obliges to a density of worth that
adiantaria ao Estado garantir a vida se looks upon his vast meaning normative-
esta não é digna. A dignidade não é algo constitucional and no any first idea of man.
que podemos comprar, ela é inerente a It is impossible to reduct the meaning of
cada ser humano, sendo, assim, dever do human dignity into a defense of teh perso-
Estado garantir sua proteção. nal and traditional rights, forgetting in the
Tratando-se da dignidade, utilizan- cases of social rights or to call to build “the-
do-se das palavras de Cármen Lúcia An- ory of the nucleus of individual personali-
tunes Rocha, do que se poderia denominar ty”, ignoring when treat about guaranting
de “coração do patrimônio jurídico-moral the bases of human existence. From then
da pessoa humana”, é necessário que se on the economic order must assuring for
atribua ao referido princípio, em todas as everybody worthy existence, the social or-
suas manifestações e aplicações, a máxi- der will aim at the realization of social jus-
ma eficácia e efetividade possível. tice, educacion, development of person and
Considerando a cada vez maior facili- his prepar for the exercise of townsman.
dade de acesso às comunicações e informa-
ções, bem como a capacidade de consumo Key-words: dignity of person; fundamen-
de parte da população mundial, torna-se tal rights, efficacious, recognition.
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3
Referências ALVES, Cleber Francisco. O princípio constitu-
cional da dignidade da pessoa humana: enfo-
que da doutrina social da Igreja. Rio de Janeiro:
ALVES, Cleber Francisco. O princípio cons- Renovar, 2001. p. 120.
4
titucional da dignidade da pessoa humana: LOPES, Ana Maria D’Ávila. Democracia hoje:
enfoque da doutrina social da igreja. Rio de para uma leitura critica dos direitos fundamen-
Janeiro: Renovar, 2001. p. 120. tais. Passo Fundo: UPF, 2001. p. 56.
5
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito consti- constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
tucional. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 1149.
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SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit, p. 108
2
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