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Lais Myrrha
Desmanches:
físico 6
simbólico 6
voluntário 8
involuntário 9
deflagrador 10
voluntário rentável 12
voluntário exemplar 13
(in)voluntário punitivo 14
de função 16
de uso 18
de interdição 21
de negação 22
de afirmação 23
tautológico 24
reflexivo 26
precoce-monumental 27
parcial forçoso 28
de interdição antecipado 30
recuperatório 32
de segurança 34
de controle 36
Desmanche físico
Desmanche simbólico
Diz-se da operação em que uma edificação foi propositalmente Nos casos mais óbvios refere-se a edificações que foram
desmantelada, por exemplo, as demolições ou grandes acidentalmente desmanteladas, completa ou parcialmente, em
reformas. Mas a vontade de uns pode contradizer os anseios função de intempéries, envelhecimento, incêndios ou alguma
de outros. Então nos inclinamos a perguntar de quem foi, falha relativa à sua construção.
afinal, a ideia (a vontade) de demolir a biblioteca. Do
mais forte, é claro! Mais complicado é explicar a destruição de bairros, cidades
e até mesmo países em decorrência de conflitos. Sob os
escombros, o desmanche só (a)parece como involuntário para
quem o enxerga em contra plongée.
Desmanche deflagrador
As demolições de construções sãs para usos mais rentáveis e A casa de shows e o cinema continuam estruturalmente os
aproveitáveis é sua ocorrência mais típica. Nessa modalidade mesmos: o palco elevado, a plateia, a ótima acústica. Mas
é frequente o desmantelamento de casas para edificação de agora, na caixa de cena, o que se representa é o triunfo da
prédios. Primeiro, remove-se tudo aquilo que poderá ser moral cristã.
reaproveitado: batentes de janelas, portas, portões. Depois,
as lajes. Por último as paredes onde costumavam pendurar os
retratos da família.
Desmanche de função
Desmanche de uso
Esse subtipo do desmanche de uso é digno de nota. Nem tanto É uma modificação no uso e/ou no aspecto físico de determinado
porque o velho casarão passou a abrigar um banco, mas imóvel com o objetivo adequá-lo aos novos critérios legais.
pelo fato de que muitos, ao adentrarem o banco, fantasiam Apaga-se o antigo uso, remove-se a interdição.
atravessar um portal que os conduz à antiga mansão.
Assim, o odor adocicado dos perfumes femininos, misturado à
densa nuvem de tabaco, acabou tragado pelo cheiro de tinta
fresca que as falsas paredes exalavam.
Deriva da necessidade de remover dado aspecto de uma Serve para afirmar, intransigentemente, o desmanche daquilo
construção que se tornou desagradável ao convívio. Por ser que já foi desmanchado.
irreparável ou, simplesmente, démodé.
Desmanche tautológico
Tudo foi projetado com cautela. Esconderam todo traço que Toda e qualquer grande obra abandonada antes mesmo de ser
fazia daquele vão lugar impróprio à ocupação simétrica e concluída configura um desmanche precoce-monumental. Seja
plana. Depois vieram outras pessoas que preferiram assumir por desacordos, negligência ou incompetência, essa classe
as vertentes do espaço e deixaram nas paredes as marcas de desmanche deixa sempre, como rastro da má-fé, estranhos
de uma antiga reforma feita para obliterar o desnível do monumentos.
piso.
Desmanche recuperatório
Desmanche de segurança
Desmanche de controle
39
Con las reliquias de su ruina erigieron, en el mismo lugar, la desatinada
ciudad que yo recorrí...
Borges
*
A cidade maia de Edzná está localizada ao norte do estado mexicano de
Campeche, na península de Yucatan. Edzná já era habitada em 400 a.C., mas
depois de ter florescido durante o período Clássico — há evidências de que
no ano de 650 d.C. moravam nela por volta de 70 mil almas — foi abandonada
pelos seus habitantes na metade do século XV. A floresta tropical, então,
avançou sobre a cidade, envolveu o Templo das cinco histórias, a Acrópole,
o Templo das máscaras, a Casa da lua. Troncos e raízes quebraram as pedras *
e destelharam as casas. No início do século XX, Nazário Quintana Bello Na Avenida Paulista, 37, no bairro de Bela Vista, sobrevive a Casa das Rosas.
começou a explorá-la. Inspirada no modelo arquitetônico dos casarões franceses, foi projetada, no
final da década de 1920, pelo escritório de Ramos de Azevedo, para servir de
* residência a uma das suas filhas. O casarão foi habitado pela família até 1986,
No momento da sua conclusão, o World Trade Center, conhecido em conjunto quando foi desapropriado pelo Governo do Estado de São Paulo. Desde 11 de
como “Torres Gêmeas”, apresentava os edifícios mais altos do mundo. março de 1991, abriga o espaço cultural conhecido por Casa das Rosas. Nunca
Construídos entre os anos de 1975 e 1985, o complexo, localizado no coração pareceria uma ruina aos olhos vorazes dos turistas, desejosos de ver arquitetura
de Nova York, tinha 1.240.000 metros quadrados de espaço de escritórios. autêntica e bela. A mansão restaurada e o belo jardim de roseiras são, porém, o
Na manhã de 11 de setembro de 2001, dois aviões colidiram contra as torres, espectro maquiado do que alguma vez foi a elegante Avenida Paulista.
que desmoronaram em pouco tempo. A queda das torres, combinada aos
incêndios que os destroços iniciaram em vários prédios vizinhos, levou ao *
colapso parcial ou completo de outros edifícios na zona próxima. O processo O título deste livro, Breve cronografia dos DESMANCHES, cria uma expectativa:
de limpeza levou oito meses, depois dos quais restou um espaço de terra o termo desmanche, no Brasil, é usado comumente para aludir ao desmonte de
devastada. um automóvel, geralmente roubado, para vender as peças usadas. Assim, o
desmanche supõe uma posterior utilização das partes do objeto desmanchado.
II III
Porém, entre as várias significações do verbete desmanchar, encontramos a desmanche ou ruína às fotos dos escombros informes ou às dos prédios em
1.2: fazer(-se) em pedaços, reduzir(-se) a fragmentos, despedaçar(-se), fragmentar(-se), perfeito estado de conservação. Se bem, a maioria dessas imagens exibe terrenos
destroçar(-se) e a 1.9: fazer desaparecer ou desaparecer, acabar com; extinguir(-se), baldios com restos de edificação, entulho de casas arrasadas, edifícios em processo
eliminar(-se)1. Nesse sentido a palavra pode designar os diferentes processos de destruição, estátuas de líderes sendo derrubadas, obras abandonadas antes de
de destruição e aniquilamento — não apenas físico, mas também afetivo e sua conclusão. A autora não naufraga no deleite da melancolia; pelo contrário,
simbólico — dos objetos que amamos ou das cidades que habitamos. sutis ironias são alinhavadas lá e acolá. Ante a imagem da destruição, os textos
nos permitem um sorriso imprevisível.
Desmanche precoce-monumental
Quando passamos suas folhas, apesar de observar um ou outro prédio intato, Toda e qualquer grande obra abandonada antes mesmo de ser
vemos os restos de catástrofes: viadutos inacabados, casa derruídas, amplos concluída configura um desmanche precoce-monumental.
terrenos desolados em meio a prédios novos, uma fachada que ainda se sustenta Seja por desacordos, negligência ou incompetência, essa
classe de desmanche deixa sempre, como rastro da má-fé,
na frente da morada ausente, escombros, desmantelamentos, derrubamentos,
estranhos monumentos3.
desmanches, ruínas.
O monumento não é monumento apenas pelo seu tamanho, mas na ausência
Cada foto do livro é acompanhada de um verbete classificatório que se resolve de sentido aparente — que significam os pilares da ferrovia sem a ferrovia? —
num breve relato. Um relato em ruínas, também, que oscila entre o ficcional se constitui como alegoria do descaso e da corrupção. Walter Benjamin acredita
e o fatual. Porque a toda hora nos perguntamos sobre a pertinência de chamar
2 MYRRHA, Lais. Breve cronografia dos desmanches. São Paulo, 2013. p.28.
1 Disponível em: < http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=desmanchar>. Acesso
em: 20 nov. 2013. 3 MYRRHA, 2013. p.27.
IV V
que tanto a ruína como a alegoria falam de uma ruptura na relação entre forma foi alguma vez salão de baile e convoca os espectros familiares para dançar
e significado: As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que são as ruínas no reino silenciosamente na nova-velha sala.
das coisas4. A modernidade pareceria projetar o ameaçante passo do tempo sobre
os destroços do passado, como o mostraria a produção contemporânea de Desmanche de interdição
literatura, arte e arquitetura impregnada do fragmentado e do ruinoso.
É uma modificação no uso e/ou no aspecto físico de
determinado imóvel com o objetivo de adequá-lo aos novos
As ruínas do viaduto nunca finalizado seriam, também, ruínas do futuro, como critérios legais. Apaga-se o antigo uso, remove-se a interdição.
quer Carlos Garaicoa. Para o artista cubano, essas ruínas — esqueletos de
prédios em processo de construção, abandonados logo que esta se iniciara; casas Assim, o odor adocicado dos perfumes femininos, misturado
à densa nuvem de tabaco, acabou tragado pelo cheiro de tinta
destelhadas, sem janelas —, seriam os remanescentes de um projeto político e
fresca que as falsas paredes exalavam6.
social fracassado.
*
O encontro com esses lugares evoca uma estranha sensação:
Se o final do século XX foi marcado por uma intensa demanda de memória,
não são ruínas de um passado luminoso, mas de um presente
incapaz. Olhamos para uma arquitetura que nunca foi a primeira década do século XXI desperta cominada por um estranho amor
finalizada, pobre na sua incompletude, proclamada ruína pelas ruínas. As ruínas do século XX —, afirma Svetlana Boym — desvelariam
antes de existir plenamente. A verdadeira imagem do as contradições internas das primeiras vanguardas; as singularidades e as
arruinado pelo abandono: as chamarei ruínas do futuro5. excentricidades que as definem, tanto quanto o elemento visionário e a busca
da igualdade social7. O fascínio contemporâneo pelas ruínas revela-se como um
Outras fotos, outros verbetes, expõem edifícios bem conservados
paradoxo moderno a nos lembrar o inevitável fracasso das utopias.
— a fachada da boate Olímpia em Belo Horizonte, nos anos 1990,
um palacete eclético ocupado por um banco na Avenida Paulista
As ruínas começaram a ser percebidas como resíduos valiosos do passado
em São Paulo, ou o auditório impecável do Museu de Arte da Pampulha, até
durante a Renascença. Os remanescentes arquitetônicos de antigas civilizações
1957, boate do Cassino da Pampulha.
adquiriram o estatuto de testemunhos, ainda vivos do passado. Mesmo tendo
perdido seu significado e sua função, foram investidas com atributos estéticos,
O que neles se desmanchou, o que se arruinou, não foi o aspecto material, uma
políticos ou históricos do presente. Assim, a ruína é um tropo de indagação
e outra vez restaurado, mas sua função primeira, que apagada, foi esquecida e
sobre a própria origem; o lugar de estratégias de reflexão que podem nos dizer
substituída por uma nova. Vez por outra, algum artista relembra que o auditório
mais sobre quem as olha que sobre o que é olhado.
4 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984,
p.200. 6 MYRRHA, 2013. p. 21.
5 GARAICOA, Carlos. Disponível em: <http://www.universes-in-universe.de/car/ 7 Cf. BOYM, Svetlana. De la torre de Tatlin a la arquitectura de papel, in Punto de Vista, n.
documenta/11/brau/s-garaicoa.htm>. Acesso em: 15 nov. 2007. 88, p. 20 e ss.
VI VII
Georg Simmmel acreditava que as ruínas denunciavam a ruptura do pacto o trabalho do homem no informe da matéria bruta, mas estaria a criar novas
entre o homem e a natureza8. As construções, erguidas à revelia do espaço formas contaminadas, totalmente significantes, compreensíveis, diferenciadas10.
natural, ir-se-iam arruinando num processo em que a natureza parecia lutar
contra o corpo estranho construído nela. Abandonado pelos humanos, o Na ruína, o equilíbrio entre natureza e espírito se destrói e a natureza prevalece.
edifício esboroaria, derrubado pelo descaso e pela intempérie. A vingança Surge assim, um processo de luto que as habita com os espectros da melancolia.
consumava-se quando o monte de escombros era revestido pela vida vegetal e A ruína cria a forma presente de uma vida passada, não com base nos seus conteúdos ou
povoado pelas animálias que faziam dele sua guarida. nos seus restos, mas com base no seu passado, enquanto tal11.
*
Nos últimos anos, muitos artistas se voltaram para um imaginário de decadência
e destruição. Observamos uma proliferação de trabalhos que exploram as ruínas
da arquitetura modernista, das estruturas fenecidas dos anos 1950, das paisagens
devastadas por desastres industriais ou climáticos. Seus precursores imediatos
são alguns artistas das décadas de 1960 e 1970 que exploram a falência do
projeto utópico da modernidade. Robert Smithson, Gordon Mata-Clark e Hélio
Oiticica conseguiram ver, nessa época, as sombras que avançavam desde o futuro
até seus próprios tempos.
8 Cf. SIMMEL, Georg. La rovina: Rivista di Estetica, 8, 1981, 10 Cf. HUYSSEN, Andreas. Autenthic ruins. In: HELL, Julia e SCHONLE, Andreas.
p. 121-127. (Org.). Ruins of Modernity. Durham/London: Dike University Press, 2010. p. 19.
9 Cf. SIMMEL, 1981, pp. 121-127. 11 SIMMEL,Georg. 1981, pp. 121-127.
VIII IX
Entre todos seus trabalhos, talvez seja Pódio para ninguém, 2010, o que expresse
melhor essa tensão. O Pódio tem a forma e as medidas do objeto usado nas
premiações, está feito, porém, de pó de cimento prensado. Ninguém poderá
subir ao pódio, ninguém será premiado nunca. Apenas montada, a forma esboroa
e tende a desaparecer. Só restará a poeira, espalhada no chão como a de tantas
construções desmanchadas.
*
Sobre a ruína — sobre os desmanches — estende-se um véu de melancolia que
nasce da percepção paradoxal de que, neles, a obra humana transforma-se num
joguete, seja da natureza, seja das forças de destruição humanas.
Se, como cita Benjamin, a fachada partida, as colunas despedaçadas, têm a função de
proclamar o milagre de que o edifício em si tenha sobrevivido às forças elementares da
destruição, do raio e do terremoto12, sabemos que hoje esse milagre parece não ser
mais desejável. Depois dos atentados, depois dos tsunamis e dos maremotos,
depois das invasões e as guerras, tudo será reconstruído ou desaparecerá.
As mercadorias não envelhecem e os montes de entulho que provém dos
desmanches serão jogados em algum aterro. O mesmo acontecerá com os
desmanches simbólicos, o velho uso será — ou não —, enterrado em alguma
plaquinha de bronze inaugurada pela autoridade de turno.
12 BORINSKY apud BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo,
Brasiliense, 1984. P. 200.
13 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum sul método.Torino: Borati Boringhieri, 2008.
X XI
Breve cronografia dos DESMANCHES
Lais Myrrha, 2013
Revisão
Daniela Pinheiro
Direção de fotografia
Lais Myrrha
Tratamento de imagens
Estúdio 321
Lais Myrrha (encarte)
Agradecimentos
Alexis Azevedo
Danielle Menezes
Fábio Tremonte
Farinha Produções
Fernando Cohen
Galeria Manoel Macedo
Impressão
Gráfica Pampulha
Trabalho realizado pelo Edital Bolsa Funarte de
Estímulo à Produção em Artes Visuais, 2012