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O Papel dos Judeus nos Grandes Descobrimentos RESUMO Os judeus desempenharam impor- ante papel nos descobrimentos portugue- ses. Trabatharam na Astronomia, desde a Idade Média, foram excelentes cartgrafos a0 tempo do principe Henrique, o Nave- gador. Apds os massacres de judeus na Espanka em 1391 e a expulsdo em 1492, muitos foram para Portugal. Pertencendo 4s classes mais ricas, inimeras eram as fa- milias proprietdrias de grandes fortunas. Tinham importantes experiéncias de nave- ga¢do, devido a suas atividades comerciais ‘com outros paises. Ajudaram os reis portu- gueses, como D. Jodo Il e D. Manuel I, que valorizaram seus trabathos, oferecendo- hes abastadas gratificacaes. Os nomes dos astrénomes Abrao Zacuto, José Vecinho e Pero Nunes, muito serdo lembrados em seus trabalhos, auxiliando Cristévdo Colombo, em sua viagem. Suas participa. es como cientisias estenderam-se por longo tempo, nas navegagdes portuguesas. * Anita Novinsky ABSTRACT The Role of Jews in the Great Discoveries Iberian Jews played an important role in the Portuguese discoveries. With expe- rience in astronomy since the Middle Ages, Some were expert cartographers at the time of Prince Henry the Navigator. Following the massacres of 1391 and their expulsion in 1492, many Spanish Jews moved to Portugal. Belonging to the wealthier clas- ses, many Jewish families commanded great fortunes, Because of their internatio- nal commercial activities, they had great experience in navigation. They came to the aid of Portuguese Kings, such as Jodo II and Manuel I, who offered generous rewards in appreciation of their work. The astronomers Abrdo Zacuto, José Vecinho and Pero Nunes became renowned for their labors, contributing to Columbus, voyage. The role of Jewish scientists in Portuguese navigation extended over a long period, A primazia que teve Portugal nos Descobrimentos se deve em grande parte a uma sistemdtica atividade intelectual desenvolvida pelos judeus na Peninsula Ibérica, principalmente no campo da astronomia. O interesse.que 0s judeus demonstraram por essa ciéncia vem, no entanto, de muito longe, € podemos considerd-lo como uma parte de sua heranca cultural. Contudo, Professora do Departamento de Histéria/USP. sua atuacdo no campo cientifico, por razdes, principalmente politicas, ficou relegada ao esquecimento. Remontando ao tempo do chamado "TALMUD DE JERUSALEM", elaborado do Século II ao IV, encontramos surpreendentes afirmagdes sobre aestrutura do Universo e sua forma de globo. No ZOHAR, que, segundo a tradig&o, data do século II, consta que a Terra gira sobre 0 seu eixo, como uma bola, e quando em uma metade do globo é dia a outra parte esi mer- gulhada em trevas, e os que vivem na parte de baixo tém as suas cabecas em diregao oposta aos de cima. Essas idéias foram aceitas por muitos eruditos medievais 1, Rabinos, na Idade Média, possufam amplos conhecimentos sobre as- tronomia e sobre os aparelhos indispens4veis & navegacdo. Os instrumentos néuticos usados naquela época, eram, em sua grande maioria, baseados em modelos drabes. Foi 0 astrénomo judeu MASHAALA, do século VIII, que adaptou o Tratado grego do astrolabio, introduzindo para o mundo de lin- gua arabe os protétipos desse instrumento. Também os Tratados de JACOB BEN MAKHIR tornaram-se reco- nhecidos no mundo cientffico da época, inclusive por Kepler ¢ Copérnico, principalmente o seu “Quadrans Judaicus", um tipo mais aperfeigoado do quadrante que era geralmente usado desde o século XII. Levi Ben Gershom, rabino de Bengnols, no sul da Franga, considerado por alguns historiadores como 0 mais eminente fil6sofo judeu do seu tempo, tem mais de metade da sua obra, “As Guerras do Senhor”, dedicada a astronomia, O Papa Clemente VII ordenou que essa parte fosse traduzida para o Latim, pois nela o autor descreve a invencfio de um "quadrante", ainda mais completo do que 0 co- nhecido até entdo, e que foi usado até ao século XVIII. Quando Regiomontanus leu 0 relatério sobre o quadrante, ficou to impressionado, que construiu um instrumento de acordo com as recomendagées do Rabi, instrumento esse que acompanhou os navegadores Fernando de Magalhaes, Crist6vao Colombo, Vasco da Gama e outros 2. As célebres "Tabelas Affonsinas”, datadas do século XIII, foram ela- boradas por um médico judeu, Judah Ben Moisés Cohen, e por um Hazant (Leitor) de uma Sinagoga de Toledo, Isaac Ben Sid, que trabalharam em conjunto com outros sabios judeus e depois as traduziram para o castelhano. Esse trabalho foi adaptado por Isaac Israeli, de Toledo em 1310, para uso 1 Cecil Roth - The Jewish Contribuition to Civilization (New York 1940) p. 77. 2 Tid p.79. 66 dos contempordneos; em 1396 por Joseph Ibn Wakkar, também de Toledo; € por um grupo de sébios judeus, em Aragao, para D. Pedro III. Outros cAl- culos foram feitos por Emanuel Ben Jacob, conhecido como Bonfiels de Tarrascon e usados por Pico de la Mirandola e Peiresc. Escritos em he- braico, foram logo depois traduzidos para o Latim. As "Tabelas Affonsinas" foram publicadas diversas vezes depois da invengio da imprensa, A iiltima edigdo, para uso pratico, sau em 1641 em Madrid ¢ foi consultada por Kepler e Galileu 3. Quando se iniciaram as perseguigdes aos judeus na Espanha, princi- palmente depois de 1391, estudiosos judeus procuraram reftigio em Portugal. Judeus, drabes e cristios coexistirao no reino lusitano por ainda mais um século, numa fecunda colaborago cientifica e social. O rei D. Joao Testendeu aos judeus numerosos privilégios e a sua atitude pode ser medida pela resposta que deu ao famoso frade pregador espanhol, Vicente Ferrer, quando este pretendeu estender a Portugal a sua propaganda anti-juddica "... que elle podia entrar, mas que primeiro Ihe hauia de mandar por uma coroa de ferro ardendo na cabeca” 4. Entre os emigrados espanhdis encontramos Salomio ¢ Judah, filhos do célebre Rabino Mor de Castela, Don David Ibn Jachia Negro, personalidade curiosa, envolvidas nos conflito politicos ¢ na Revolugdo "burguesa” de 1383 5, Entre os famosos mateméticos, cartégrafos, astrénomos, pilotos e ma- rinheiros que o Infante Henrique reuniu para aperfeigoar os conhecimentos sobre navegacdes, encontramos diversos especialistas judeus, Segundo o cronista Joao de Barros, D. Henrique "mandou vir da ilha de Maiorca hum illustre Jacome, homem muito docto na arte de navegar que fazia cartas e instrumentos: 0 qual lhe custou muito pelo trazer a este Reyno, para insinar sua sciencia aos officiais Portugueses daquelle mester" ©. O Professor Luis de Albuquerque, da Universidade de Coimbra informou-nos que essa afir- magao de Jodo de Barros "tem sido posta em causa, pois 0 judeu Jacome era cartégrafo e ainda nfo havia necessidade de instrumentos em néutica, para além da biissola.” 3 Ibid p. 82. M. Kayserling — Histéria dos Judeus em Portugal (ed. Pioneira, 1971) pg. 35. Veja nota 38, M. Kayserling — Histéria dos Judeus em Portugal cit. p. 34. aus Joao de Barros — Da Asia de Jodo de Barros: dos feitos que os porlugueses fezeréo no descobrimento & conquista dos mares & terras do Oriente (ed. Lisboa 1926) Dec. L. livro I cap. XVI. 67 A Ilha de Maiorca foi, em fins do século XIV, um importante centro de estudos, onde se concentravam os mais ilustres cartégrafos do tempo. Uma familia judaica, os Cresques, era conhecida h4 gerac6es como eximia na arte da cartografia. Abraham Cresques foi denominado pelo Infante D. Joao de Aragaio "mestre de mapas e compassos". Trabalhou numa enco- menda deste Infante, executando uma carta onde vinha representado o es- treito de Gibraltar, as costas Atlanticas e o imenso oceano. Dai resultou 0 famoso "Mapa Mundi", isto é, uma imagem do mundo e dos varios estados deste ¢ das regiSes que existem na Terra e das diversas manciras dos povos que a habitam 7. Nao sabemos ao certo quais as fontes usadas por Cresques, mas cré-se que tenham sido as experiéncias de Joseph o Fisico, ou Joseff Faquin, 0 Judeu de Barcelona, estabelecido em Maiorca e que se tornou fa- moso por suas viagens. Esse Mapa Mundi é considerado um dos mais noté- veis monumentos da ciéncia medieval. Em 1381, Carlos da Franga pediu ao Infante D. Joao de Aragéo um Atlas executado pelos cartégrafos de Maiorca, mandando-lhe o Infante o Mapa feito por Cresques, que hoje se encontra na Biblioteca Nacional de Paris. O movimento anti-judaico, que em 1391 destruiu as mais importantes judiarias espanholas, levou a um fenédmeno tnico na histéria dos judeus: 0 batismo em massa. Consta que foi entdo que Yehuda Cresques se converteu ao catolicismo, tendo mudado de nome, talvez para Jaime Ribas 8. Segundo cronistas e testemunhos do tempo, Cresques foi o principal cérebro dos es- tudos nduticos de Sagres, tendo sido encarregado pelo Infante Henrique de elaborar as "Cartas de Marear" nas quais registrava, dia a dia, as observa- gGes dos navegadores portugueses. O judeu Gabriel de Vallsecha, que elaborou em 1439 um célebre "Mapa Mundi", que pertenceu a Américo Vespucci, ¢ que se encontra no Instituto de Estudos Catalas, em Barcelona, foi quem empregou pela pri- meira vez o "meridiano dos Agores”. Segundo certos autores, este carté- grafo era filho de Hayim Ibn Rish, também pertencente a familia Cresques. 1 Cecil Roth op. cit. p. 84 Thid. p. 85. 68 Na Biblioteca Nacional de Paris encontra-se ainda um outro Mapa, da- tado de 1413, também executado por um maiorquino de origem judaica, Mecia de Viladestes 9. Os judeus salientaram-se também na construgdo de instrumentos as- tronémicos. Isaac Naffucci, referido por D. Pedro IV como "célebre Judeu de Maiorca”, foi encarregado por este de executar relégios ¢ quadrantes, Ephraim Bellshom, cientista que colaborou com Naffucci na construgao de um astrolébio, também traduziu para 0 catalio um trabalho do famoso as- ténomo A-Farghani. Depois dos massacres de 1391, Maiorca, como centro de estudos, en- trou em decadéncia, e os conhecimentos sobre cartografia que esclareciam rotas de comércio, cidades e regides remotas, apagaram-se na mente de seus sucessores. Assim Pedro Roselli, por exemplo, em seu planisfério de 1465, isto € 75 anos depois do inicio das perseguigées, marca quatro localidade para ¢ sul da extensdo do Atlas, mas seus sucessores conheceram apenas uma 10, Em nenhum pafs da Europa, desde sua dispersdo, puderam os judeus desenvolver tao amplamente sua criatividade, como na Peninsula Ibérica, durante e apés 0 periodo de ocupagaio moura. Viveram em Portugal em am. pla liberdade, e podemos dizer que, apesar de terem aumentado as medidas restritivas depois da ascensao da dinastia de Avis, desfrutaram ainda condi- gOes extremamente favoraveis até 0 reinado de Afonso V, quando ainda os encontramos ocupando cargos ptiblicos e convivendo largamente com os cristdos, Apesar de todas as queixas apresentadas contra os judeus, que se en- contram nas atas dos diversos parlamentos, Afonso V, da mesma maneira que os monarcas anteriores, ndo deixou de rodear-se de sébios, médicos e filésofos judeus, honrando-os com posig6es de destaque. Os judeus constitufam uma classe média ¢ uma camada considerdvel Possuia notveis fortunas. O Estado taxava-os com impostos elevados e apesar de nao termos dados precisos, podemos avaliar a importancia de suas contribuigdes para os cofres piiblicos. Sabemos que além da quantidade de impostos indiretos, j4 no tempo de Afonso IV, pagavam diretamente uma 9 Ibid. p. 86, Ibid. p. 86, v. também nota 1. 69 soma de indenizacao anual de 50.000 libras, e que a comuna judaica de Lisboa, no ano de 1462, pagou, s6 de servicos & Coroa, 50.000 reais 11. Desde o tempo de D. Sancho pagavam o imposto de marinha, isto é, para cada navio que o rei equipasse, os judeus tinham de dar uma Ancora e uma amarra do comprimento de 60 covados, ou fornecer a soma equivalente a 60 libras. As 4ncoras naquele tempo eram também usadas como arma de arremesso nas batalhas e contra fortes. Além disso, comunas isoladas tinham de emprestar somas aprecidveis a infantes empobrecidos, quantias essas que geralmente nao eram restitui- das. O infante D. Fernando, quando morreu, devia aos judeus de Barcelos, Guimaraes, Chaves, Braganca e Mesdo Frio a soma de 130.501 reis Eram obrigados também, como os vassalos cristos abastados, a man- ter cavalos ¢ armas para defesa do Estado, por terra e por mar. Pouco tempo antes de 1497, quando se deu a conversdo forgada dos judeus de Portugal, pagavam algumas judarias os seguintes impostos: Porto, 10.000 réis; Alter do Cho, 6.000 réis; Barcellos, 16.000 réis; Vila Vicosa, juimardes, 25.000 reis; Chaves, 31.000 réis; Portela, 2.000 réis ¢ Braganca, 30.000 réis !2, A importancia relativa desses impostos pode ser avaliada por um do- cumento do século XV, no qual, numa arrecadagao de Afonso V para defesa do reino, apés a desastrosa incursao em Castela, a contribuigdo dos hebreus Tepresentou uma quinta parte do total, devendo-se considerar que a imposi- ¢o abrangia também os privilegiados, fidalgos e eclesidsticos, donos da maior parte da propriedade territorial. Apesar de muitas vezes terem sido as expedi¢des maritimas financia- das por particulares, nao temos elementos que comprovem a contribui¢ao direta de capitais judaicos ou de crist4os-novos nas conquistas portuguesas. Sabemos entretanto, que a armada de Crist6vao Colombo, em 1492, foi fi- nanciada na sua maior parte por Luis de Santagel, cristdo-novo espanhol, tendo também contribuindo o judeu Isaac Abravanel, famoso estadista por- tugués, acolhido por Fernando e Isabel como refugiado politico, e Gabriel Sanches, tesoureiro da Coroa. Os judeus, além do poderio econémico, ti- nham interesses no financiamento das atividades maritimas da Peninsula. a *Monarquia Lusitana” V, livro 18 p. 17 apud M. Kayserling Histéria dos Judeus em Portugal cit. pp. 48-49. Ibid. p. 49. 70 As atividades comerciais de ultramar que exerceram durante a Idade Média, permitiram que judeus se tornassem profundos conhecedores das regides orientais ¢ puderam assim servir aos portugueses como guias e in- térpretes. Ao mesmo tempo que Bartolomeu Dias procurou por mar chegar as indias, D. Joao enviava, com o mesmo fito, dois emissérios por terra: Afonso de Paiva e Pero de Covilha, que partiram em 7 de maio de 1487, & procura dos reinos de Preste Jodo. Serviram-se dos conhecimentos de dois mercadores judeus, conhecedores dessas regides, para orientd-los em suas missdes. Afonso de Paiva fez-se grande amigo de um deles, em companhia do qual percorreu toda a costa da Africa. Paiva faleceu na viagem de volta, ¢ foi o judeu que levou a El-Rei as informag6es obtidas. Pero de Covilha, depois de visitar Cananor, Calecut e Goa, de volta ao Cairo, ponto marcado para 0 reencontro com Afonso de Paiva, teve noticias do falecimento deste. Cansado das peregrinag6es, aprontava-se para voltar ao reino, quando soube da presenga de dois judeus portugueses que traziam cartas de D. Joao Il, e que o fizeram mudar de intento. Eram eles Rabi Abraham, natural de Beja, e mestre José, sapateiro de Lamego, que havia residido alguns anos em Bagda e que contou ao Rei sobre as imensas riquezas do Oriente. Pero de Covilha, obedecendo as ordens trazidas pelos mensageiros del-Rei, resolveu seguir viagem para Ormuz, em companhia do sébio Abraham, que devia auxilid-lo com seus conhecimentos ¢ experiéncia, e José sapateiro, depois de algum tempo voltou a Portugal, levando a noticia que, se os navios con- tinuassem a navegagdo ao longo da costa da Guiné, chegariam certamente ao extremo da Africa. O mito de Preste Jodo encheu toda a Europa. Foi também como conselheiro e intérprete que o conhecido Gaspar da Gama prestou inestimaveis servigos aos navegadores portugueses. Vasco da Gama encontrou um judeu, em Anchiediva, na india, e dele se tornou tio amigo que o levou para Portugal, onde o rei D. Manuel 0 fez cavaleiro de sua casa, cobrindo-o de honrarias. "El Rei entregou ao capitio mor Gaspar da Gama, 0 juden, porque sabia falar muytas linguas, aque El Rei deo alvaré de livre e forro e de sua comédia em terra dez cruzados cada mez, muyto lhe recomendando que 0 servisse com Pedro Alvares Cabral, porque, se bom servico lhe fizesse, lhe faria muyta mercé; e porque sabia as cousas da India, sempre bem aconselhasse ao capitéo-mér 0 que fizesse, porque este FL judeu tinha dado a El-Rey muyta enformagao das cousas da india e mor- mente de Goa" 13, Gaspar da Gama acompanhou a Armada de Pedro Alvares Cabral em 1500, como intérprete, por falar muitos idiomas, e como conselheiro, por ser grande conhecedor das terras ¢ gentes da india. Em 1502 fez nova via- gem ao Oriente, sob 0 comando do seu padrinho Vasco da Gama, e em 1505 seguiu Francisco de Almeida para a india. Sendo estimadissimo do Vice-Rei adotou seu nome, passando a chamar-se Gaspar de Almeida. Judeus também prestaram auxilio As conquistas portuguesas de Safi e Azamor no século XVI, ¢ serviram como intérpretes a Martim Afonso de Souza quando este foi governador na india. Os trabalhos teéricos dos cientistas judeus foram extremamente valo- rizados pelo rei D. Jodo II, que convidou diversos judeus para participarem de sua Comissao de Estudos Nauticos. Além do famoso Martin Behaim, trabalharam em conjunto mestre Josef Vecinho e mestre Rodrigo, preocu- pados em descobrirem uma maneira de se fazer a navegagiio pela altura do sol, no largo mar, em vez de ao longo da costa como se fazia até ento. Desses estudos resultou a tabuada da declinagdo solar, que foi "invengao admirdvel e proveitosa, que muito animou os nossos ¢ abriu mais o caminho do descobrimento da india, em que por isso Ihe est4 em grande divida Portugal e toda Europa” 14. : J, Mendes dos Remédios chama a atengdo para o fato de que a gléria desta descoberta tenha sido atribuida somente ao notdvel astrénomo alemao Martim Behaim, que vivia em Portugal desde 0 reinado de Afonso V, dei- xando no esquecimento esses dois colaboradores judeus portugueses, mes- tre Rodrigo € mestre José, médicos do rei D. Jodo V, quando é aos trés que se deve a aplicagao do astrolabio aos usos da navegacao. E cita sobre am- bos, a opiniao de um erudito autor espanhol: "Por fortuna iniciaron la mar- cha de los progressos cientificos aquelles sAbios portuguezes maestros Rodrigo y Josef que, associados al insigne Behem y bajo los auspicios de 13 Gaspar Correia, Lendas da [ndia, Tomo I p. 149. 1 A. Ribeiro dos Santos “Memérias da Literatura Sagrada dos Judeus portugueses nos séculos XV a XVIII" in Memérias da Literatura Portugueza t. 8. pg. 162, apud J. Mendes dos Remédios, cit. p. 246-247. 2 D, Jodo IL, inventaron el astrolabio para navegar por fa altura del sol, y las tablas de sus declinaciones" 15. Mestre Rodrigo, mestre Josef e Martim Behaim foram os principais membros da Comisso organizada por D. Joao II, e da qual participaram também D. Diogo Ortiz, bispo de Ceuta, 0 licenciado Calcadilha, bispo de Vizeu, ¢ ainda o cartégrafo judeu, mestre Moisés. Este grupo de sbios teve um papel relevante em todos os acontecimentos ligados aos descobrimentos maritimos dessa época. Foi a eles que D. Jodo II submeteu os planos de Cristévao Colombo para o descobrimento da rota maritima para as Indias. A Junta também organizou um Regimento em que expunha as regras para a resolugdo dos problemas de astronomia ndutica. Os navios que partiam de Portugal, inclusive os de Cabral, levavam um astrolébio e um exemplar do Regimento. Durante as converses forgadas de 1497, Josef Vecinho batizou-se, mudando seu nome para Diogo Mendes Vecinho, continuando a distinguir- se com seus trabalhos no governo de D, Manuel. Encontramos seus descen- dentes, um século depois, estabelecidos na Itdlia, continuando a tradi¢ao cientifica da familia, professando a religiéo judaica. Um neto de Vecinho ficou em Portugal e foi condenado pela Inquisic&o pelo crime de judafsmo. Foi com Abraham Zacuto, mestre de Vecinho ¢ autor do conhecido "Almanach Perpetuum", que a contribuigao dos judeus alcangou seu pice. Professor de astronomia na Universidade de Salamanca, onde compilou uma série de tabelas astronémicas baseadas nas do judeu toledano Isaac Ibn Said, conhecidas como Tabelas Affonsinas. O trabalho de Zacuto foi depois traduzido do hebraico para o Latim e espanhol, pelo seu discfpulo José Vecinho. Encontramos Abraham Zacuto entre as primeiras e mais importantes familias refugiadas em Portugal, depois da expulsdo de Castela. Tornou-se astrénomo Del-Rei e dizem que foi devido a sua influéncia que D, Manuel libertou os judeus tornados cativos por D. Jodo II. Em Portugal inventou um novo astrolabio, de ferro em vez de madeira, como era costume, tornando seu uso mais acessivel. Suas tabelas acompanharam Vasco da Gama, Pedro Alvares Cabral, Jodo da Nova e Albuquerque, e delas fez uso Cristévao Colombo, encontrando-se em Sevilha uma cépia que lhe pertenceu 16, 15 Ferrer do Couto "De Oporto a Lisboa” na Revista Peninsular. 1. 1., pg. 27 (Lisboa 1855) apud J. Mendes dos Remédios, ibid p. 247. 16 Cecil Roth The Jewish Contribuition to Civilization cit. p. 92. B D. Manuel, antes de Vasco da Gama empreender sua viagem, chamou Abrao Zacuto, ¢ em Beja, com ele se aconselhou.sobre o plano da desco- berta. Zacuto mostrou ao monarca os perigos de uma viagem para um pais Jonginquo como a india, como também a possibilidade de subjugar aquele pais em pouco tempo. Transcrevem os cronistas textualmente: "El-Rey D. Manuel era muyto inclinado a Estrolomia, polo que muytas vezes praticava com o Judeu Cacuto, porque em todo achaua muy certo. Hum dia 0 Judeu Cacuto disse a El Rey: Senhor, o mar que as vossas naos correm he muy grande (em que) em humas partes ha verdo e'em outras inuerno, e todo em hum caminho e poderia hir duas naos, huma apés outra e ambas per hum caminho, huma chegara a huma paragem quando aly for inuerno, e achara tormenta; e a outra quando aly chegar sera veri, e non achara tormenta, € outros ndo. E porque os inuernos e verdes non sao certos em hum proprio lugar he porque o mar he muy largo e muy deserto, apartado das terras, ¢ curs&o as tormentas e bonangas per muytas partes incertas... E porque, Senhor com o muyto desejo que tenha a seo seruico, tenho muyto traba- lhado por entender os segredos desta nauegac’o tenho entendido que o apartamento do sol causa as tormentas e desuairos dos tempos, porque apartandose o sol da linha equinocial pera a parte do Norte... O que todo bem ouvido por El Rey houve muyto contentamento e prometendo ao Judeu muytos mercés por seu trabalho, Ihe muyto Ihe enco- mendou que desse cabo a tao boa cousa como comegado. Ao que 0 Judeu se offereceo, e como jd tudo tinha experimentado, ¢ sabido acerteza do dis- curso do sol... tomando o esprimento polas estrelas com suas artes da estro- lomia, fez hum regime desta declinagdo do sol, apartando aos annos, cada hum sobre sy, ¢ os mezes e dias, de hum ano bisexto até o outro, que sao quatro anos apontadamente, de quanto anda o sol cada dia, contado de meo dia a meo dia assi pera a banda do Norte, como pera a banda do sul, todo per grande concerto e boa ordem, pera o que fez huma posta de cobre da grossura de meo dedo, redonda, com huma argola em que estava dependu- rada direita, ¢ nella linhas e pontos, e no meo outra chapa... tudo per grande arte e sobtil modo, e Ihe chamou estrolabio... O que o Judeu ensinou a al- guns pilotos, e que el Rey mandou, como e de que modo hauidio de tomar o 74 sol e ponto de meo dia com o estrolabio. Dios seja pera sempre muyto lo- vado, que Ihe aprouve, que 0 Judeu falou tao certo em todo € nos pequenos barcos..." 17. Também Crist6vao Colombo, que residiu em Portugal vérios anos, mantinha intimas relagdes com os judeus. No seu testamento manda que se dé "a um Judio que moraba a la puerta de la Juderia en Lisboa 6 a quien mandare um sacerdote el valor de medio marco de plata” !8. Os conselhei- ros de D. Jodo II rejeitaram seu projeto, como fantasista e seu fundamento, mas foram os trabalhos de Abrdo Zacuto, José Vecinho, Pedro Nunes ¢ ou- tros colaboradores judeus que tornaram praticdveis as navegacdes a longo curso. 17 1 imma Felner, “Colegio de Monumentos Inéditos para a Histéria das Conquistas dos Portugueses” (Lisboa 1858) I, 10 apud Kayserling, op. cit. p. 107, nota 11. 18 Navareto, “Coleccion de los Viages y Descobrimientos” ii, 313 e “Colection de Documentos inéditos de Espafia” XVI, 424 e seg. apud M. Kayserling Christopher Columbus and the Participation of the Jews in the Spanish and Portuguese Discoveries (Hermon Press, New York 1968 4 ed.) p. 12. 75

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