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CINEMA EXPANDIDO

Uma ode ao Tupy

Por Matheus A. Santos

É preciso se adaptar, deixar que o corpo seja invadido pelo cinemão, abandonar o mundo-
de-fora; os carros que atravessam barulhentos as avenidas, os vendedores que anunciam
seus produtos em alto-falantes, o sol escaldante sobre nossas cabeças. Aqui, a paisagem
é outra e a adaptação não é metafórica, mas física e carnal. O mundo iluminado da cidade
não é o mesmo deste tomado pela escuridão, é necessário algum tempo de imersão para
que a pupila se dilate suficientemente e os vultos que mal distinguimos de início se tornem
formas mais ou menos contornáveis. Até lá, tudo que vemos é a tela iluminada onde se
desenrola o filme e esperamos pacientemente até que encontremos um lugar naquela
engrenagem.

***

Conhecer o Cine Tupy é algo que eu deveria ter feito há muito tempo e ao caminhar em
sua direção me pergunto insistentemente porque não o fiz. Ando pela Baixa dos
Sapateiros observando a multidão e talvez por nunca ter andado esse percurso ele me
pareça um tanto longo; lojas e mais lojas se sucedem até que avisto a Igreja Universal do
Reino de Deus, uma construção branca e imensa colada parede com parede ao Tupy. Há
uma doce ironia no fato de que apenas alguns tijolos dividam aqueles dois templos e de
que tanto de um lado, como do outro, eles abriguem experiências tão intensamente
eróticas. Os fiéis da igreja se contorcem epilépticos em transe, falando em línguas e sendo
possuídos por forças divinas e diabólicas; os fiéis do cinemão se lançam uns sobre os
outros em orgias e transas sem fim, gemendo em êxtase a cada gozo. Em ambos os casos,
há a uma espécie de abertura do corpo individual à coletividade; do Uno ao Todo, papo
místico mesmo.

***

Sento e me deixo afundar em umas das poltronas. Na tela assisto a “Big Macky 4”, uma
produção do grupo Brasileirinhas, dirigida por M. Max. Ao meu lado um homem se
masturba em pé encostado na parede, na tela Macky acaricia seu pau gigante por cima da
cueca enquanto Julia Paes, uma das atrizes mais famosas do filme, dança sensualmente
em direção a ele e a todos nós. O pornô é um gênero fílmico do tipo que convoca o corpo
à ação, assim como o melodrama nos promete as lágrimas, ele nos anuncia os espasmos
quase mortais do gozo. Enquanto olho fixamente para a tela alguém se aproxima e se
senta ao meu lado. Não vejo muito bem quem é, apenas sinto sua mão abrir
vagarosamente o zíper da minha bermuda e a boca quente que engole minha pica. Sinto
alguém vindo por trás e me acariciando o peito, acho que era o cara que estava batendo
uma quando cheguei, não sei muito bem. Neste momento estamos todos; Eu, Macky, Julia
e eles participando do mesmo movimento orgiástico.

***

Minha visão se acostuma lentamente à pouca luz e começo a perceber mais nitidamente
a estrutura ao meu redor. Ando devagar observando a arquitetura do lugar, o pé direito
imenso, a disposição das poltronas divididas por dois largos corredores, os banheiros e
cabines que funcionam como espaços mais reservados paro o sexo... Algumas pessoas
estão sentadas nas poltronas, outras caminham de um lado a outro em busca de algum
encontro: bixas, travestis, putas, bolo-doidos, maconheiros, garotos de programa; todo
um adorável bestiário reunido sob o mesmo teto. Pergunto-me se as pessoas que hoje
habitam o Tupy o fariam também em sua “era de ouro”, quando na década de 70 ele fazia
parte dos grandes cinemas da cidade e era frequentado pela elite intelectual e artística da
Soterópolis. Não; o que para muitos é decadência, para outros é a própria possibilidade
de existência. Sinto-me feliz de estar aqui agora.

***

Já não sei quantas horas terão se passado. Sento em uma das poltronas suado, sem camisa,
exausto depois de outra foda. Meu corpo tem cheiro de sexo, o mesmo cheiro do Tupy.
Olho ao redor e observo os movimentos que animam o espaço. Duas fileiras à frente um
casal transa sem se importar com as pessoas que se aproximam para assistir a cena. Ali
mesmo, no meio das poltronas, eles se posicionam e começam uma espécie de show que
acompanho sem precisar me mover; o filme agora são eles. Vendo o cinema tomado por
esse jogo entre exibicionismo e voyeurismo penso em como os espectadores do Circuito
SaladeArte ou do Cine Glauber Rocha se assemelham a animaizinhos docilmente
intelectualizados, sentados em suas cadeiras, escravizados pela imagem cinematográfica.
Aqui a espectatorialidade é outra e o filme não está apenas na projeção, mas todo o cinema
é imagem feita e desfeita a cada encontro. O Tupy é cinema expandido: é cinemão.
***

Certamente uma das razões pelas quais não conhecia o Tupy é porque até alguns anos
atrás havia o Cine Astor, na Praça da Sé, e o Astor era suficiente para mim. Quem passa
pela sua antiga entrada, hoje transformada em muro, nem imagina o que um dia já foi
aquele lugar. A história do Astor foi soterrada e talvez por isso eu precise falar sobre o
Tupy. Há sempre o risco de falar demais e deixar escapar os segredos que envolvem
encontros como os que acontecem nestes cinemas que um a um foram fechando suas
portas.

talvez essa seja uma tentativa de rasurar as narrativas sensacionalistas em busca de outra
sensibilidade.

Em pleno fim-do-mundo, este é um relato para o futuro.

No início da década de 80 os cinemas de shopping centers começaram a substituir aqueles


de rua: Guarany, Pax, Bahia, Capri, Bristol Art, Liceu, Tamoio, Jandaia, Excelsior, Astor,
um a uma

- gentrificação

- decadência - abjeção

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