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Filosofia, exegese e contrassenso

Pierre Hadot

Conhece-se a frase de Whitehead: “A filosofia ocidental é apenas uma série de


Fußnoten aos diálogos de Platão”1. Isso pode significar, de início, que a problemática
platônica marcou de uma forma definitiva a filosofia ocidental, o que é verdadeiro. Mas
isso pode significar também que a filosofia ocidental tomou, concretamente, a forma de
comentários, sejam eles de Platão ou de outros filósofos, e de uma maneira mais geral a
forma exegética. E isso também é verdade, em uma grande medida. É de fato
extremamente importante constatar que, durante quase dois mil anos, do meado do século
IV a.C. até o fim do século XVI, a filosofia foi concebida sobretudo como uma exegese,
referindo-se a um pequeno número de textos emanados de “autoridades”, dentre as quais
as principais foram notadamente Platão e Aristóteles. E é legítimo se perguntar se, após
a revolução cartesiana, a filosofia ainda não se ressente desse longo passado e se ela ainda
não permanece sendo, até um certo ponto, uma exegese.

O longo período de filosofia “exegética” está ligado a um fenômeno sociológico:


a existência de escolas filosóficas, nas quais são religiosamente conservados o
pensamento, o estilo de vida, os escritos de um mestre. Esse fenômeno já existia, parece,
entre os pré-socráticos. Mas pode-se observá-lo sobretudo a partir de Platão. Este de fato
deu à Academia uma organização material e jurídica extremamente sólida. Os chefes da
escola se sucederão em uma cadeia contínua até o fechamento da escola de Atenas por
Justiniano (529)2 e a atividade escolar se exercerá segundo métodos fixos e tradicionais.
As outras grandes escolas: peripatética, estoica e epicurista, terão uma organização
análoga. Em cada escola, os escritos do fundador servem de base ao ensino. Determina-
se em qual ordem deve-se lê-los, para adquirir a melhor formação: nós possuímos assim
conselhos de platônicos concernentes à ordem de leitura dos diálogos de Platão e pode-
se constatar que a partir do século IV d.C. os escritos lógicos de Aristóteles serão
repartidos segundo uma ordem escolar determinada – o Órganon – que não variará mais
até nossos dias. Mas sobretudo, o ensino em si mesmo consistia em comentar Platão ou

1
Prcess and Reality, The Mac Millan Co, 1929, p. 63 – NA
2
Afirmação inexata: a instituição fundada por Platão se encerrou no primeiro século antes de Cristo, cf.
J.P. Lynch, Aristotle’s School. A Study of Greek Educational Institution, University of California Press,
1972, p. 154-207.
Aristóteles, utilizando para isso os comentários anteriores e acrescentando aqui ou lá uma
interpretação nova. Nós temos sobre esse ponto um interessante testemunho de Porfírio a
respeito dos cursos de Plotino (Vida de Plotino, 14, 11): “Durante suas conferências, lia-
se para ele comentários de Sévérus, ou de Cronius, ou de Numénius, ou de Gaius, ou de
Atticus, e também, entre os peripatéticos, comentários de Aspasius, de Alexandre e de
Adraste, ou qualquer outro que pudesse se apresentar. Nunca ele se contentava pura e
simplesmente com essas leituras. Mas ele dava, ele mesmo, a explicação geral (theôria)
do sentido do texto [de Platão ou de Aristóteles] de uma maneira pessoal, que se afastava
da opinião comum. Quanto às explicações de detalhes (exetasis)3, ele as fazia em
conformidade com a exegese de Ammonius”. O primeiro comentador do Timeu de Platão
parece ter sido Crantor (aproximadamente em 300 a.C.) e a atividade dos comentadores
de Platão se desenvolverá até o fim da escola de Atenas no século VI e continuará, tanto
no mundo árabe como no Ocidente latino, até a Renascença (Marsílio Ficino). O primeiro
comentador de Aristóteles é Andrônico (século I a.C.): ele é o primeiro de uma série que
se estenderá até o fim da Renascença (Zabarella). Ao lado de comentários propriamente
ditos, a atividade exegética das escolas filosóficas se traduz seja por tratados dogmáticos
consagrados a pontos particulares de exegese, seja por manuais ou introduções que são
unicamente destinados a introduzir à leitura das obras dos mestres. De outra parte, vê-se
aparecer, no fim da Antiguidade, ao lado da autoridade de Platão e de Aristóteles, aquela
das Revelações: a Bíblia, para os Judeus e os cristãos, os Oráculos caldeus, para os
filósofos pagãos. O judaísmo, como o cristianismo, querendo se apresentar perante o
mundo grego como filosofias, desenvolvem com Filo, depois Orígenes, uma exegese da
Bíblia, análoga à exegese tradicional de Platão. Quanto aos comentadores pagãos dos
Oráculos caldeus, como Porfírio, ou Jâmblico, ou Proclo, eles se esforçam para mostrar
que o ensino dos “deuses” coincide com aquele de Platão. Se se entende por teologia a
exegese racional de um texto sagrado, pode-se dizer que, desde então, a filosofia se torna
uma teologia, e que ela permanecerá assim durante toda a Idade Média. Desse ponto de
vista, a escolástica medieval aparece como a continuação normal da tradição exegética
antiga. Se, como bem o sublinhou M. D. Chenu, a característica específica da escolástica
é o de ser uma dialética “aplicada à inteligência de um texto, seja de um texto seguido
para constituir um comentário, seja de textos escolhidos como base e prova de uma
construção especulativa”, se a escolástica “é uma forma racional de pensamento que se

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elabora consciente e voluntariamente a partir de um texto estimado como fazendo
autoridade”4, pode-se dizer que a escolástica nada mais faz senão retomar os percursos
de pensamento utilizados tradicionalmente na maioria das escolas filosóficas da
Antiguidade e que essas escolas filosóficas já praticavam uma escolástica. Na Idade
Média, o ensino continua a ser essencialmente comentário de texto (seja a Bíblia,
Aristóteles, Boécio ou as Sentenças de Pedro Lombardo).

Esse conjunto de fatos tem consequências extremamente importantes para a


interpretação geral da história da filosofia, sobretudo em seu período pré-cartesiano. Na
medida em que a filosofia foi concebida como uma exegese, a busca da verdade se
confundiu, durante todo esse período, com a busca do sentido de textos “autênticos”, de
textos fazendo autoridade. A verdade está continua nesses textos: ela é a propriedade
desses textos e de seus autores, como ela é também a propriedade dos grupos que
reconhecem a autoridade desses autores e desses textos e que são os “herdeiros” dessa
verdade original.

Os problemas filosóficos se colocam então em termos exegéticos. Nós vemos por


exemplo Plotino escrever, a propósito do problema do mal: “É preciso buscar em qual
sentido Platão diz que os males não perecerão e que eles existem necessariamente”
(Enéadas, I, 8, 6, 1). E toda a sequência da pesquisa vai consistir efetivamente em discutir
os termos empregados por Platão no Teeteto, 176a5-8. A célebre questão dos Universais,
que dividiu toda a Idade Média, se vincula à exegese de uma frase do Isagôgê de Porfírio.
Poder-se-ia aliás fazer uma reunião – e ele seria bastante curto – dos textos discutidos que
estão na base de toda a problemática antiga e medieval: algumas passagens de Platão
(notadamente no Timeu), de Aristóteles, de Boécio, o primeiro capítulo do Gênesis, o
prólogo do evangelho de São João.

Se os textos autênticos colocam problemas, não é em virtude de uma imperfeição


que lhes seria inerente: a sua obscuridade é apenas um procedimento do mestre, que quis
assim fazer entender muitas coisas e guardou, de alguma maneira que seja, a “verdade”
nessas fórmulas. Todo sentido possível, do momento em que ele permanece coerente com
o que se considera como a doutrina do mestre, será então verdadeiro. O que Ch. Thurot
disse sobre os glosadores de Priscien pode se aplicar a todos os filósofos-exegetas: “Ao
explicar o texto deles, os glosadores não buscam entender o pensamento de seu autor,

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mas a ensinar a ciência em si mesma que se supunha ali estar contida. Um autor autêntico,
como se dizia então, não pode nem se enganar, nem se contradizer, nem seguir um plano
defeituoso, nem estar em desacordo com um outro autor autêntico. Recorria-se aos
artifícios de exegese os mais forçados para acomodar a letra do texto àquilo que se
considerava como a verdade”5.

Pensa-se que a verdade é “dada” nos textos do mestre e que se trata unicamente
de trazê-la à luz e de explicitá-la. “As teorias que proponho”, diz Plotino, “não são novas
e não são de hoje. Elas foram enunciadas há muito tempo, mas sem serem desenvolvidas,
e nós não somos hoje senão os exegetas dessas velhas doutrinas cuja antiguidade nos é
atestada pelos escritos de Platão” (Enéadas, V, 1, 8, 10). Nós encontramos aqui um outro
aspecto da concepção da verdade implicada na filosofia “exegética”. Cada escola ou cada
grupo, filosófico ou religioso, pensa possuir uma verdade tradicional, comunicada desde
a origem a certos sábios pela Divindade e pretende, então, ser o detentor legítimo da
verdade. Desse ponto de vista, a controvérsia entre pagãos e cristãos, a partir do século II
d.C., é muito instrutiva. Pagãos e cristãos, reconhecendo analogias entre suas respectivas
doutrinas, se acusam mutuamente de roupo: uns dizem que Platão plagiou Moises, outros,
o contrário, e são levados a discussões cronológicas para saber qual dos dois precedeu
historicamente o outro. Para Clemente de Alexandria, o roupo é mesmo anterior à criação
da humanidade. É um anjo maligno que, tendo descoberto qualquer migalha da verdade
divina, soprou seus conhecimentos e revelou a filosofia aos sábios deste mundo
(Stromates, I, 17, 81, 4). Mas sobretudo, pagãos e cristãos explicam mutuamente as
diferenças que, malgrado certas analogias, subsistem entre suas respectivas doutrinas,
pelos contrassensos e as incompreensões, dito de outra forma, por uma má exegese de
textos roubados. Para Celso, a concepção cristã da humildade é apenas uma má
compreensão de uma passagem das Leis de Platão (716a), a ideia de um reino de Deus é
apenas um contrassenso feito ao ler o texto de Platão sobre o Rei de todas as coisas (Carta
II, 312a), a noção de ressurreição é apenas a noção de transmigração mal compreendida.
Do lado cristão, Justino afirma que certas fórmulas de Platão mostram que ele não
compreendeu o texto de Moisés.

Vê-se então que, nesse universo de pensamento, o erro é o resultado de uma má


exegese, de um contrassenso e de uma incompreensão.

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