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ANO edição

dez
xXII 86 2014
ANO XXII - Dezembro 2014 - nº 86
CAPA
Chanuquiá em liga de cobre,
Estampada com molde. Traz uma
imagem de Aharon acendendo as
luzes da Menorá do Tabernáculo.
Ze’ev Raban, Escola de Bezalel,
Jerusalém, início da déc. de 1920
Carta ao leitor

A festa de Chanucá é um mandamento respeitado de evoluir. O que o Judaísmo rejeita não é a imperfeição,
por milhares de judeus, que durante os oito dias da e sim, a regressão e a falta de progresso.
festividade, tanto em Israel como na Diáspora, cumprem
O segundo aspecto das luzes de Chanucá – o fato de
a mitzvá de acender velas.
que devem estar posicionadas em direção ao domínio
Essas luzes lembram os milagres Divinos que público – ensina que não é suficiente que o homem
permitiram que os Macabeus derrotassem as poderosas gere luz apenas para si próprio, deve também
forças sírio-gregas que ocupavam a Terra de Israel e compartilhá-la. Uma pessoa pode ser uma grande fonte
visavam extirpar o Judaísmo. Simbolizam o triunfo do de luz, mas se não a utilizar para abrilhantar o mundo,
bem sobre o mal, da luz sobre as trevas, da liberdade não terá cumprido sua missão na Terra.
sobre a tirania. Lembram-nos que o objetivo central da
As duas lições de Chanucá – o auto-aperfeiçoamento
vida é gerar mais luz no mundo. Isso se realiza à medida
ininterrupto e a responsabilidade com os outros – estão
que vivemos de acordo com os princípios e as ideias
entrelaçadas. Quanto mais luz se compartilha com o
simbolizadas pela luz: sabedoria, verdade, conhecimento,
mundo, mais luz se consegue gerar para si próprio.
integridade e generosidade.
A humanidade hoje enfrenta grandes desafios.
Qual a forma correta de cumprir o mandamento de
Há muita violência, caos, novas epidemias no mundo e
acender as luzes de Chanucá? Na primeira noite da
ameaças de terrorismo. Há certos momentos de profunda
festa, acende-se uma vela. E depois, dia após dia,
escuridão quando são cometidos atos terríveis. A alma
acrescenta-se uma vela, até que, na oitava e última
do Povo Judeu foi mais uma vez atingida pelo ataque
noite, acendem-se todas as oito velas da Chanuquiá.
perpetrado por terroristas, em novembro último, numa
Essa progressão culmina na oitava e última noite da festa,
sinagoga em Jerusalém, enquanto os fiéis rezavam. Um
com todas as oito velas acesas.
ato de covardia absolutamente deplorável onde quer e
A Chanuquiá deve ser colocada perto de uma janela, contra quem fosse. O Mundo Judeu está revoltado.
para que as luzes sejam vistas por aqueles que não estão
Não obstante, o Judaísmo nos ensina a enfrentar
em casa. As velas devem iluminar não apenas o interior
tragédias e desafios com coragem. Devemos difundir
de um lar, mas também o domínio público.
ainda mais luz e incentivar outras pessoas a fazerem o
Esses dois aspectos do acendimento da Chanuquiá mesmo. A luz, simbolizada pelas luzes de Chanucá, é a
transmitem lições valiosas para todos os seres humanos. solução para essa época turbulenta pela qual passamos.
A progressão no número de velas acesas nos ensina que
Toda vez que um ser humano acende uma vela, realiza
devemos sempre nos esforçar para melhorar.
um ato de bondade, sabedoria ou santidade, está
Hoje, graças à tecnologia, quase tudo é instantâneo. Isso ajudando a iluminar o mundo. Quando uma quantidade
leva muitas pessoas a acreditar que grandes feitos podem suficiente de velas for acesa, iniciar-se-á uma nova era:
ser realizados em pouquíssimo tempo. O Judaísmo, por um novo mundo emergirá – um mundo em que haverá
outro lado, ensina que grandes realizações advêm de anos paz e prosperidade para todas as nações e seres humanos.
de esforço. Ninguém jamais adquiriu grande sabedoria,
conhecimento ou espiritualidade em poucas semanas ou Chanucá Sameach!
meses. Tudo que é adquirido sem esforço não dura muito
ou não é valorizado.
As luzes de Chanucá nos ensinam que D’us não espera
que sejamos perfeitos, mas exige que o ser humano se
empenhe em melhorar, não medindo esforços na busca
do auto-aperfeiçoamento. A melhoria constante é
fundamental. Todos os seres humanos têm a obrigação
NOSSAS FESTAS

Milagres Divinos
e Triunfos Humanos
“quando o reinado perverso da Grécia se levantou contra
Teu povo Israel para fazê-los esquecer Tua Torá e forçá-los a
transgredir os decretos de Tua vontade; e Tu, em Tua abundante
misericórdia, Te ergueste por eles na hora de tribulação,
Tu lutaste seu combate, Tu julgaste sua causa, Tu vingaste sua
vingança, Tu entregaste os fortes nas mãos dos fracos...”
(Trecho da benção de “Al Hanissim” recitada em Chanucá)

a
festa de Chanucá celebra dois milagres Há mais de dois milênios o Povo Judeu celebra esses
ocorridos durante o 2º século antes da dois milagres de Chanucá. O mandamento básico dessa
Era Comum. O primeiro deles, a vitória festividade de oito dias é o acender da Chanuquiá – a
de um exército pequeno de judeus, em Menorá de oito braços – com óleo de oliva ou velas, em
inferioridade numérica e de munição, recordação ao milagre do óleo que ardeu durante oito
conhecidos como os Macabeus, sobre o exército dias. É importante observar, contudo, que a bênção
sírio-grego – a superpotência à época – que ocupava recitada antes do acendimento da Chanuquiá, bem como
a Terra de Israel. A revolta dos Macabeus foi as passagens adicionais recitadas durante os oito dias de
uma resposta à tirania sírio-grega, a seus decretos Chanucá na Amidá (Shemonê Esrê) e no Bircat Hamazón
malévolos e à tentativa de forçar o Povo Judeu a (Bênção após as refeições), enfatizam o triunfo militar
abandonar o judaísmo. dos judeus sobre seus oponentes. A razão para tal é que
a vitória militar dos Macabeus foi um milagre muito
O segundo milagre: o acendimento da Menorá com mais significativo do que o fenômeno sobrenatural do
óleo de oliva era um importante componente do serviço óleo que durou oito dias em vez de um. Na verdade, não
diário no Templo Sagrado de Jerusalém. Quando os fosse a vitória militar dos judeus, o milagre do azeite
Macabeus o libertaram das mãos dos sírios-gregos, teria sido uma ocorrência sobrenatural, mas despida
eles se depararam com apenas um pequeno jarro de de grande importância, pois os judeus poderiam ter
óleo de oliva ritualmente puro, não profanado pelos acendido a Menorá com óleo de oliva impuro, de acordo
opressores. O jarro continha óleo suficiente para apenas ao ritual. O milagre do azeite deu-lhes tempo suficiente
um dia e levaria oito dias para se produzir novo óleo de para produzir azeite ritualmente puro. Assim, puderam
oliva ritualmente puro. Os judeus acenderam o jarro e dedicar novamente o Templo Sagrado e voltar a oficiar
testemunharam um milagre: o suprimento que daria o serviço da Menorá sem ter que recorrer a práticas não
para um só dia ardeu durante oito dias – o tempo ideais do uso de azeite impuro. Isso era, obviamente,
suficiente para que se produzisse óleo de oliva novo, uma demonstração de favorecimento Divino, mas, na
ritualmente puro. ausência de uma vitória militar, será que teria garantido a

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“Acendendo as luzes de Chanucá”, óleo sobre tela, Moritz Daniel Oppenheim, 1880

perpetuação de uma festividade que superpotência. O resultado da guerra Talmud nos ensina que o homem
vem sendo celebrada há mais de dois poderia ter sido drasticamente nunca deve confiar em milagres,
milênios? diferente: os judeus poderiam ter pois estes raramente ocorrem. Como
perdido, como ocorreu dois séculos conciliar essas duas ideias? Serão os
O significado do milagre do azeite depois contra Roma. Os sírio- milagres eventos diários, comuns,
não foi tanto uma questão de pureza gregos poderiam ter vencido os ou ocorrências raras e incomuns?
ritual, mas sim a mensagem Divina Macabeus, destruído o Templo e Depende de como definimos
que transmitiu aos Macabeus, bem então massacrado milhões de judeus, “milagre”.
como àquela geração de judeus e a como fizeram os romanos. O Povo
todas as que vieram a seguir: o óleo Judeu venceu a Guerra por causa de A maioria das pessoas define os
da pequena jarra ardeu durante oito seus valentes soldados, mas também milagres como uma ocorrência
dias – um número que, segundo por causa “das salvações, dos milagres sobrenatural. De fato, segundo o
o misticismo judaico, simboliza e das maravilhas que Tu realizaste judaísmo, o milagre é um desvio
o sobrenatural – para lhes revelar para nossos antepassados, nestes dias, das leis da natureza: D’us criou e
que sua vitória militar tinha sido naquela época”. continuamente sustenta o mundo por
um milagre. Eles venceram não meio das leis da natureza, mas em
só porque lutaram com bravura Definindo Milagres ocasiões raras e muito especiais, Ele
e ímpeto, mas porque a Divina rompe algumas dessas leis em nosso
Providência havia decretado que eles Como o judaísmo define milagres? benefício. Exemplificando: Poderia
triunfariam sobre seus opressores. Na oração da Amidá (Shemonê D’us mudar o curso da Terra e do
Se D’us não tivesse lutado ao lado Esrê), que recitamos todos os Sol? É óbvio que sim. D’us criou o
deles, provavelmente teriam perdido dias, agradecemos a D’us “por Universo todo e tudo o que contém.
a guerra. Porque, afinal, eles eram Teus milagres que estão conosco Para um Ser Infinito, criar
apenas um grupo de guerreiros todos os dias, e por Tuas contínuas e administrar um Universo finito
travando uma guerra contra uma maravilhas e beneficências”. Já o não requer nenhum esforço.

7 DEZEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS

O Tanach relata que D’us o fez, uma alguém como Moshé e Yehoshua
vez: Ele adiou o pôr-do-sol, em uma – ou se muitas pessoas pedirem Sua
sexta-feira, permitindo, assim, que os ajuda. Essa é a razão para a reza
judeus continuassem a lutar contra comunitária ser tão importante:
seus inimigos sem ter que violar o quanto mais pessoas pedirem por
Shabat. Portanto, está escrito no milagres e maravilhas, maior a
Livro de Yehoshua ( Josué): “Então chance de que D’us atenda seu
Yehoshua falou ao Eterno, no dia pedido.
em que o Eterno deu os Emoreus
(derrotados) diante dos Filhos de Como essa definição de milagres se
Israel, e disse aos olhos de Israel: adequa ao conceito, mencionado na
“Sol, detém-te em Givon, e Lua, no oração da Amidá, de que D’us
Vale de Ayalon!” – e o sol se deteve, e realiza milagres todos os dias
a lua parou até que o povo se vingou e o dia todo? Esses milagres
de seus inimigos... E não houve são milagres ocultos – eventos
dia semelhante a este, nem antes inesperados e felizes: milagres que
nem depois dele, em que o Eterno ocorrem sem que as leis da natureza
tivesse atendido à voz de um homem sejam quebradas. Por exemplo:
– porque o Eterno guerreava por supondo-se que alguém necessite
Israel!” (Yehoshua 10: 12-14). desesperadamente de 1.000 reais
Essa passagem do Livro de e não tenha a quem pedir.
Yeshoshua transmite a definição De repente, inesperadamente,
de milagre sobrenatural. D’us pode alguém o contrata para realizar
mudar a órbita dos corpos celestiais um trabalho por exatamente
para atender os desejos de um ser 1.000 reais – nem um centavo a mais
humano. Um Ser Onipotente pode nem a menos. Muitos podem dizer
fazer qualquer coisa. A questão que é mera coincidência, ou pura
não é se D’us pode realizar milagres sorte. O judaísmo chamaria isso
– Ele obviamente pode –, mas sim, de um milagre dentro da natureza.
por que Ele deveria fazê-lo.
Quando os seres humanos oram A Divina Providência veio socorrer
pedindo um milagre, eles estão essa pessoa sem quebrar as leis
rogando, como na passagem citada da natureza. O dinheiro caiu do
de Yehoshua, que D’us atente para céu? Não. E se materializou do ar?
a voz do homem e Se desvie da Também não. A pessoa teve que
forma como Ele rege Seu Universo trabalhar para ganhar a soma. Um
– ou seja, que quebre uma de Suas emprego e um empregador: uma
leis que Ele próprio estabeleceu e fonte humana. Contudo, trata-se
implementa, continuamente. de um evento inesperado e fortuito:
um ser humano teve a oportunidade
D’us quebra, sim, Suas leis em de ganhar a soma exata que ele
ocasiões raras e extraordinárias. necessitava, quando o necessitava.
Os milagres lembram ao mundo Quando esses eventos inesperados
que D’us é invisível, mas não ausente. e felizes acontecem conosco – e se
Os milagres nos despertam para o expandíssemos nossa consciência,
fato de que existe muito mais no perceberíamos que eles ocorrem com
mundo do que o pouco que nossos frequência –, eles nos lembram que
cinco sentidos percebem. D’us D’us é um Ser presente que cuida de
também pode realizar milagres cada um de nós, o tempo todo. A isso
yehudá, o macabeu. detalhe da coleção
sobrenaturais em benefício de nossos Sábios chamam de Divina
rothschild. ferrara, circa 1470 um ser humano extraordinário – Providência. A maioria de nós não

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REVISTA MORASHÁ i 86

escola bezalel, jerusalém, 1908-29. em hebraico: chanucá: “essas luzes são sagradas”

percebe como a Divina Providência certamente ter transformado as altamente improvável – para explicar
modela até os menores eventos águas do Nilo em fogo, mas não era até mesmo os milagres abertos.
de nossa vida. Como nos ensina o necessário quebrar as leis da natureza Senão, a Divina Revelação seria tão
Talmud, não temos consciência da a tal ponto. grandiosa que negaria o mundo:
enormidade de milagres que D’us o finito cessaria de existir dentro
realiza para cada um de nós, a cada Mesmo o maior dos milagres não do Infinito, como uma vela acesa
dia de nossa vida. acarreta uma completa suspensão dentro do sol. D’us quebra as leis
das leis da natureza. Há que haver da natureza, mas Ele não as repele
É importante enfatizar que mesmo uma explicação natural – ainda que completamente. Se D’us anulasse
quando D’us realiza um milagre totalmente as leis da natureza,
aberto, quebrando as leis da natureza, a realidade como a conhecemos
Ele não as descarta inteiramente. cessaria de existir – ou, no mínimo,
Os melhores exemplos de milagres deixaria de fazer sentido. D’us pode
abertos foram as Dez Pragas que certamente suspender Suas leis e
resultaram no êxodo dos judeus do fazer qualquer coisa, mas Ele opta
Egito: a água virou sangue, granizo por não o fazer.
contendo fogo caiu dos céus, etc.
No entanto, mesmo esses milagres Os milagres de Chanucá
permaneceram de alguma forma
conectados às leis da natureza. O milagre do óleo celebrado na
As águas que viraram sangue festividade de Chanucá foi um
– um líquido que se transformou milagre aberto. Talvez não tenha
em outro; a água não virou fogo. sido tão dramático como as águas
O granizo que caiu dos Céus do Egito que viraram sangue – mas
continha fogo, mas caiu do céu, não deixou de ser um fenômeno
como cai o granizo; não foi da sobrenatural. Vencer um exército
Terra para os Céus. D’us poderia sevivon. polônia, séc. 18 altamente superior, em uma guerra,

9 DEZEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS

pode ser algo altamente improvável, Há uma clara diferença entre os baixas judias. Diferentemente das
mas não é uma suspensão das leis milagres ocorridos no Egito – Dez Pragas que se abateram sobre o
da natureza. Como nos mostrou a quando Moshé liderava o Povo Egito, o milagre de Chanucá, a vitória
história, o resultado de uma guerra Judeu – e o milagre da vitória dos dos Macabeus, não foi um milagre
pode variar. Nem sempre é o exército Macabeus sobre as forças sírio- aberto, e, portanto, exigiu um enorme
mais forte o vencedor de uma gregas. No Egito, os milagres vieram esforço humano. Não tivessem eles
confrontação militar. Não fosse pelo dos Céus: não envolveram muita lutado tão intensamente por tanto
milagre do óleo, os judeus poderiam participação humana. Moshé, o tempo, não teriam vencido a guerra.
ter atribuído a vitória a seu poderio maior de todos os profetas, que falou Ao mesmo tempo, não fora pela
e genialidade militar. O milagre, face a face com D’us, não teve que interferência Divina, eles não teriam
portanto, transmitiu aos judeus a fazer esforços extraordinários para triunfado, apesar de seus enormes
lição de que a Divina Providência vencer o Faraó: tudo o que precisou esforços.
lhes dera a vitória. Um milagre fazer foi cumprir as instruções
aberto – o do óleo – ocorreu para Divinas, como a confrontação com A Parceria entre
lhes indicar que sua vitória o Rei egípcio e o uso de seu cajado D’us e o Homem
também tinha sido um milagre, para fazer acontecerem as pragas.
ainda que contido dentro das Já com os Macabeus, não houve A história e os milagres de Chanucá
leis da natureza. Contudo, como Moshé algum. Eles tiverem que lutar servem como manual de como
mencionamos acima, as bênçãos para vencer. Eles foram à guerra o homem deve viver sua vida
e orações recitadas em Chanucá sem que D’us lhes tivesse dito o para que tenha sucesso em seus
enfatizam o milagre do triunfo que fazer e sem lhes garantir que empreendimentos. Essa festa nos
militar, não do óleo. Ironicamente, eles prevaleceriam. Ademais, essa ensina que o sucesso depende tanto
o milagre aberto teve significado guerra durou vários anos. Não foi do empenho humano quanto da
menos impactante do que o um conflito rápido, muito menos ajuda Divina. Algumas pessoas creem
oculto. fácil, e certamente houve muitas que já que a Providência guia o

acendendo a chanuquiá. guache e pastel sobre papel. k. felsenhardt, 1893

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REVISTA MORASHÁ i 86

mundo – já que os milagres Divinos


ocorrem por toda parte e a toda
hora, como recitamos diariamente na
Amidá – o homem não precisa fazer
esforços na vida. “Que será, será”, diz
a canção. Não precisamos trabalhar
– D’us proverá, como fez para os
judeus comandados por Moshé no
deserto de Sinai. Não precisamos
lutar em nossa própria defesa – D’us
lutará contra nossos inimigos como
fez contra os egípcios. Essa é uma
linha de pensamento muito perigosa
– é uma interpretação gravemente
errônea do judaísmo –, que, em geral,
leva à destituição e à derrota e, em
última instância, ao desapontamento
e à perda da fé. O nível da
Providência Divina que cuida dos
seres humanos sem a necessidade
do empenho humano só se aplica a
pessoas do calibre de Moshé ou de
Rabi Shimon Bar Yochai.
A maioria das pessoas, até mesmo
os verdadeiramente justos, precisam
esforçar-se para ter sucesso. Se isso
foi válido para os Macabeus – eles
tiveram que lutar durante longo
chanuquiá, europa oriental. séc. 19
tempo e empenhar-se para vencer –
certamente é valido para nós.
O mundo pode seguir um caminho e que leva a uma vida de conteúdo
Contudo, há quem creia que o um tanto previsível – ao que e de sucesso. A Torá nos ensina que
sucesso e o fracasso dependem chamamos de leis da natureza – mas D’us espera que tenhamos uma vida
unicamente do empenho humano sempre há espaço para o inesperado plena de esforços, mas não podemos
– do trabalho duro, do talento e da – seja positivo seja negativo. esquecer jamais da Origem de nossa
genialidade. O judaísmo condena O Rei Salomão, o mais sábio de vida e de tudo o que possuímos e
essa filosofia de vida. Qualquer ser todos os homens, ensinou que conquistamos.
humano sensato deve perceber que “O orgulho precede a queda”
por mais que tentemos controlar o (Provérbios, 16:18). As pessoas A festa de Chanucá nos ensina
mundo e os eventos de nossa vida, orgulhosas, que acreditam que são muitas lições valiosas. Uma das
nós temos muito pouco controle do donos de sua sorte e destino, com mais importantes – universais e
que quer que seja. O imprevisível frequência sofrem reveses que lhes atemporais – é que se queremos
sempre pode ocorrer. Sem a ajuda fazem recordar que há um único viver uma vida de milagres, não
de D’us, até as iniciativas mais Mestre do Universo. precisamos ser um Moshé nem
promissoras podem dar errado; até esperar milagres como os ocorridos
as situações mais favoráveis e simples Um sábio, certa vez, deu o no Egito. Basta expandir nossa
podem tomar um rumo errado. seguinte conselho de como viver consciência, tornar-nos mais
O homem precisar esforçar-se muito, a vida: “Trabalhe como se tudo conscientes dos eventos inesperados
mas não pode esquecer-se de que, dependesse de você e ore como se e felizes ao nosso redor e apreciar
para ter sucesso, a ajuda e bênção tudo dependesse de D’us”. Esse é o a constante supervisão e bondade
Divinas são sempre indispensáveis. caminho defendido pelo judaísmo Divinas conosco.

11 DEZEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS

CELEBRANDO CHANUCÁ
ANO APÓS ANO, à ÉPOCA DE CHANUCÁ, AS LUZES SÃO ACESAS
EM TODOS OS LARES JUDAICOS PARA CELEBRAr OS ACONTECIMENTOS
“DAQUELES DIAS”, COM CÂNTICOS DE LOUVOR A D’US. ASSIM,
OS CAMINHOS DE ISRAEL SÃO ILUMINADOS PELA MENSAGEM ETERNA:
“A LUZ ESPIRITUAL DE ISRAEL NUNCA SERÁ APAGADA”.

a
festa de Chanucá inicia-se no dia 25 de Algumas comunidades usam o shamash para acender as
Kislev, este ano em 16 de dezembro, à noite, demais velas; outras, uma vela adicional.
e o acendimento das velas vai até 1º de
Tevet – 23 de dezembro, à noite. Desde Na sexta-feira à noite, véspera do Shabat, as velas
a histórica vitória dos macabeus sobre os devem ser acesas antes do pôr-do-sol e antes das velas
assírios, ocorrida em 165 a.E.C., os judeus celebram de Shabat. Nesse dia devem ser usadas velas maiores,
Chanucá durante oito dias. A festividade comemora a para que ardam até meia-hora após o início do Shabat.
preservação do espírito de Israel. Assim sendo, celebra- Na noite seguinte, as velas de Chanucá só podem ser
se Chanucá apenas espiritualmente, não havendo outros preparadas e acesas após o término do Shabat e da
mandamentos a respeito. Além disso, durante os oito dias Havdalá.
da festa, é proibido qualquer forma de luto público ou
jejum, podendo-se, no entanto, trabalhar. Na primeira noite, acende-se a vela da extrema direita
e, em cada noite subseqüente, acrescenta-se uma nova
A Chanuquiá – candelabro de oito braços especial do lado esquerdo à primeira e, assim, sucessivamente.
da festividade – deve ser acesa diariamente após o A 1ª vela a ser acesa é sempre a nova, procedendo-se da
aparecimento das estrelas, com exceção da véspera do esquerda para a direita.
Shabat, quando deve ser acesa antes do pôr-do-sol.
Qualquer material incandescente pode ser usado para Na segunda noite, por exemplo, acendem-se duas.
acendê-la, mas deve-se preferir a luz intensa do azeite A primeira vela deve ser colocada do lado direito
ou de velas de cera ou parafina, grandes o bastante para da chanuquiá e a segunda é adicionada à esquerda
permanecer ardendo no mínimo por meia hora. Por isso, da primeira. Durante os oito dias, uma nova luz é
se uma vela apagar durante esse tempo – com exceção da adicionada, noite após noite, até completar as oito. Por ter
noite de Shabat, recomenda-se reacendê-la. Num lugar um propósito sagrado, a luz da chanuquiá não poderá ser
de destaque, no candelabro, há uma outra vela auxiliar, de usada para nenhum outro fim, como trabalho ou leitura.
preferência de cera, chamada shamash. Todos os membros da família devem estar presentes

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REVISTA MORASHÁ i 86

na hora do acendimento das velas. parte externa das casas, à esquerda


Desde que possam segurar as velas de quem entra, ou seja, em frente à
com segurança, as crianças têm o mezuzá.
mérito de participar, acendendo-as
após ter sido acesa a primeira vela da Atualmente, há vários costumes
noite. sobre onde colocar a chanuquiá.
Alguns a colocam sobre uma mesa,
As mulheres têm a mesma obrigação; na janela que dá para a via pública,
portanto, em um lugar onde só haja ou no lado esquerdo da porta de
mulheres ou se o marido estiver entrada, em frente à mezuzá.
viajando ou chegar tarde demais, Outros a colocam em lugar especial,
cabe a elas acender as velas e na sala. Deve ser colocada em uma
pronunciar as bênçãos. altura entre três e dez palmos do
chão, porém não a mais de 9,6
Nossos sábios enfatizavam a metros, em lugar especial, isolado e
importância da participação feminina de destaque.
na cerimônia, pois grande parte
da milagrosa vitória militar dos Nas sinagogas, onde também se
judeus sobre seus inimigos se deve acendem as velas para disseminar
a Yehudit. Rabi Yehoshua Ben-Levi as lições do milagre, a chanuquiá
diz: “As mulheres são obrigadas a deve estar na mesma posição do
cumprir a mitzvá de Chanucá, pois candelabro do Templo de Jerusalém.
elas também são parte do milagre”. Mas o acender das velas na Casa de
Quando o povo de Israel não vivia Orações não nos exime da obrigação chanuquiá em prata, sinagoga
disperso, as luzes eram acesas na de acendê-las em casa. beit yaacov

13 DEZEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS

acendendo a chanuquiá
Todas as noites, acende-se primeiro o shamash,
Costuma-se colocar a chanuquiá
depois pronunciam-se as seguintes bênçãos: sobre uma mesa no lado esquerdo
da porta de entrada, em frente à
mezuzá, ou na janela que dá para a
A cada noite, após recitar as bênçãos, via pública.
acendem-se as velas da chanuquiá
com o shamash, que é colocado 1ª noite
25 de Kislev
na chanuquiá de modo a ficar mais Terça-feira,
Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu alto do que as demais chamas. Após 16 de dezembro,
Mêlech haolam, asher kideshánu acender as velas, recita-se em seguida às 20:20 horas
bemitsvotav, vetsivánu lehadlic ner
Hanerot halálu:
Chanucá.
2ª noite
26 de Kislev
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei Quarta-feira,
do Universo, que nos santificaste com 17 de dezembro,
a partir de 20:20 horas
Teus mandamentos, e nos ordenaste
acender a vela de Chanucá.
3ª noite
27 de Kislev
Quinta-feira,
18 de dezembro,
a partir de 20:20 horas

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Hanerot halálu ánu madlikim, 4ª noite


Mêlech haolam, sheassá nissim 28 de Kislev
al hanissim veal hapurkan, veal Sexta-feira,
laavotênu, bayamim hahêm, haguevurot veal hateshuot, veal 19 de dezembro,
bazeman hazê. haniflaot, sheassita laavotênu, às 19:30 horas,
antes de acender
bayamim hahêm, bazeman hazê, al as velas de Shabat
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei yedê cohanêcha hakedoshim. Vechol 5ª noite
do Universo, que fizeste milagres para shemonat yemê Chanucá, hanerot 29 de Kislev
nossos antepassados, naqueles dias, halálu côdesh hem, veen lánu reshut Sábado,
20 de dezembro,
nesta época. lehishtamesh bahem êla lir’otan a partir de 20:30 horas,
bilvad, kedê lehodot lishmêcha, após a Havdalá
Apenas na primeira noite, al nissêcha, veal nifleotêcha, veal
depois de recitar as duas yeshuotêcha. 6ª noite
bênçãos, recita-se o 30 de Kislev
shehecheyánu: Domingo,
Acendemos estas luzes em virtude 21 de dezembro,
dos milagres, redenções, bravuras, a partir de 20:23 horas
salvações, feitos maravilhosos e
auxílios que realizaste para nossos 7ª noite
antepassados, naqueles dias, nesta 1 de Tevet
Segunda-feira,
Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu época, por intermédio de Teus 22 de dezembro,
Mêlech haolam, shehecheyánu sagrados sacerdotes. Durante todos os a partir de 20:23 horas
vekiyemánu vehiguiyánu lazeman oito dias de Chanucá, estas luzes são
hazê. sagradas, não nos sendo permitido 8ª noite
fazer qualquer uso delas, apenas mirá- 2 de Tevet
terça-feira,
Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei las, a fim de que possamos agradecer 23 de dezembro,
do Universo, que nos deste vida, nos e louvar Teu grande nome, por Teus às 20:23 horas
mantiveste e nos fizeste chegar até a milagres, Teus feitos maravilhosos e
presente época. Tuas salvações.

14
NOSSAS FESTAS

O moderno Haman
e o novo antissemitismo
“Disse, então, Haman ao rei Achashverosh: “Existe um povo,
espalhado e disperso, dentre os demais povos de todas
as províncias de teu reino, cujas leis são diferentes de
qualquer outro povo, e que não cumpre as leis do rei;
pelo que não convém ao rei conservá-lo”.
(Meguilat Esther 3:8)

u
m dos mandamentos da festa de Purim de Amalek – arqui-inimigo histórico do Povo Judeu
é a leitura da Meguilat Esther, que relata e a personificação do mal -, repentinamente se torna
como Mordechai e Esther frustraram o Primeiro-ministro do Rei Achashverosh. Haman pede
plano diabólico de Haman de exterminar o e recebe permissão do rei persa para exterminar o Povo
Povo Judeu. Ensina o Talmud: “Quem lê a Judeu inteiro – homens, mulheres e crianças. Como todos
Meguilá de trás para frente não cumpre sua obrigação”. os judeus viviam sob o domínio do Rei Achashverosh,
Nossos Sábios explicam que não devemos considerar o triunfo de Haman representaria a “Solução Final da
essa proibição apenas literalmente. Ler a Meguilat Esther Questão Judaica”.
de trás para frente não significa apenas ler a história de
maneira desordenada. Significa, também, lê-la como um Por que Haman odeia com tanta intensidade o Povo
relato histórico – uma história que ocorreu no passado Judeu? Por que essa obsessão diabólica de aniquilá-los?
distante e que não é relevante no presente. Fazê-lo é não A razão oficial de Haman para odiar os judeus – seu líder,
captar a ideia do mandamento. Mordechai, recusara-se a se curvar perante ele – é um
mero pretexto. Ninguém decide exterminar todo
A cada ano, em Purim, ouvimos a leitura da Meguilá um povo ainda que despreze seu líder. A razão real para
não apenas para cumprir a Vontade de D’us e celebrar a Haman querer exterminar nosso povo é o fato de sermos
salvação de nosso povo, mas também porque sua história a luz e ele e seus filhos e simpatizantes, a escuridão. E a
e inúmeras lições são relevantes a cada geração de judeus. escuridão não pode coexistir em presença da luz. A guerra
A história contada pela Meguilat Esther é de extrema cósmica entre o bem e o mal – entre Israel e Amalek –
relevância para nossa geração – a cada um de nós – tanto personificados na história de Purim por Mordechai e
em Israel quanto na Diáspora. Haman – ocorre em todas as gerações. Os nomes, locais e
datas podem mudar, mas o tema geral continua o mesmo.
A Meguilá relata um episódio na História Judaica que
ocorreu há dois milênios aproximadamente, na antiga Nos últimos anos, a história de Purim se tornou
Pérsia – o Irã de nossos dias. Haman, descendente particularmente relevante, talvez mais do que em

15 DEZEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS

qualquer época desde o final da armava para a guerra. Como Hitler, temporariamente. Durante a guerra,
2ª Guerra Mundial. Haman não é o Haman de cada geração está Haman e seus filhos mataram quase
apenas um diabólico antissemita que constantemente enganando o mundo. sete milhões de judeus – dois terços
viveu há 2.000 anos, na Pérsia. Ele é Ele blefa e redobra o engodo. Ele do judaísmo europeu. Hitler chegou
uma força do mal presente em cada distorce a realidade, alegando ser perto de realizar o que Haman
geração – e, com certeza, na nossa. vítima e descrevendo suas vítimas tentara, mas fracassou.
Há boas razões para crer que Haman como infratores. Sorri e fala de paz
retornou a seu antigo país – o Irã e respeito mútuo e necessidade de O Holocausto – maior catástrofe na
de nossos dias – mas seus filhos, negociações enquanto orquestra História Judaica – ensinou muitas
que fiel e incansavelmente põem planos satânicos. Haman e seus filhos lições ao Povo Judeu. A primeira e
em prática sua vontade – estão em são mestres no engodo e criaturas mais importante: os judeus somente
toda parte. Eles estão no Oriente despidas de consciência. podem confiar sua segurança e
Médio, na Europa, na América bem-estar a outros judeus. Hoje, o
Latina e, mesmo, nos Estados Uma segunda marca de Haman Povo Judeu e o Estado de Israel têm
Unidos. Os filhos espirituais de é seu insaciável desejo de poder. muitos amigos e admiradores, mas
Haman dirigem muitos governos e Ele destrói qualquer um que esteja o mundo permaneceu em silêncio
organismos internacionais, controlam em seu caminho. Ele proclama enquanto os nazistas exterminavam
grande parte da mídia e possuem amar o povo que representa, mas milhões dos nossos.
um suprimento quase sem fim de não hesita em sacrificar quantos
riquezas e recursos. Como na história deles for necessário para atingir O mundo não mexeu um dedo
de Purim, Haman e seus filhos têm seus objetivos. Um milhão de civis sequer para nos salvar: quase todos
um objetivo principal: aniquilar o alemães morreram na 2ª Guerra os países até se recusaram a absorver
Povo Judeu por completo. Haman e Mundial. Pode-se ter certeza de que imigrantes judeus em fuga para salvar
seus filhos são, por vezes, facilmente Hitler teria sacrificado outros tantos sua vida. O Holocausto nos ensinou
identificáveis – como no caso de milhões mais se isso significasse que o Povo Judeu não pode confiar
Hitler e seus carrascos -, mas em vencer a guerra e exterminar o Povo seu futuro e segurança a nenhum
outras, não. Haman, em geral, muda Judeu. Para ele, a vida humana nada outro país ou nação.
de local e mesmo sofre mutações. vale. Além de ser um assassino em
Para vencê-los, primeiro temos que massa, ele é sádico: emprega o terror, Uma segunda lição que tiramos do
identificá-los. A Meguilat Esther e violência, assassinato e tortura para Holocausto foi que nunca devemos
certos eventos decisivos na História subjugar e destruir as pessoas – e subestimar a capacidade de Haman
Judaica, especialmente o Holocausto, gosta de fazê-lo. para a maldade. Se ele pudesse, teria
ajudam-nos a identificar seus padrões exterminado todos os judeus – e
de comportamento. Uma terceira marca de Haman, ainda da maneira mais horrenda possível.
mais reveladora, é um ódio violento Hitler não mediu esforços para
Quem é Haman? Ele é o mais e obsessivo pelos judeus. É um ódio aniquilar nosso povo. Ele teria tido
cruel dos malfeitores e um mestre que o consome. Muitos filhos de uma chance melhor de ganhar a
em maquinações do mal. Ele não Haman nunca conheceram um judeu Guerra se não tivesse gasto tantos
mente sobre seus objetivos – é muito em sua vida. No entanto, vivem e recursos tentando exterminar-nos.
honesto sobre sua ideologia e missão. respiram antissemitismo. Quem é De fato, podemos supor que diante
Faz publicidade sobre as mesmas Haman, hoje? Como está armando da escolha – ganhar a Guerra ou
para fazer contato com seus filhos contra nosso povo? Como podemos apagar os judeus da face da Terra –
espirituais e recrutá-los, a fim de que nós, judeus, frustrar seus esforços? ele teria escolhido a segunda opção.
o ajudem a executar seus planos. Ao Esse ódio obsessivo e essa capacidade
mesmo tempo, está constantemente O que o Holocausto de maldade são, felizmente,
enganando o mundo e disseminando ensinou ao Povo Judeu incompreensíveis para a maioria
mentiras sobre aqueles a quem dos seres humanos, mas são o que
odeia – especialmente os judeus. Em Na esteira da 2a Guerra Mundial, Haman personifica.
seus primeiros quatro anos como depois que o mundo ficou sabendo
governante absoluto da Alemanha, sobre o Holocausto e seus horrores, Uma terceira lição do Holocausto é
Hitler falava de paz enquanto se o antissemitismo saiu de moda – que a campanha de demonização é o

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REVISTA MORASHÁ i 86

meguilat esther com iluminuras. norte da itália, meados séc. 18

precursor da tentativa de genocídio. incitamento. Durante milhares de de nossa dispersão entre as nações,
Se alguém se perguntar por que os anos, o Haman de cada geração fomos expulsos de mais de 100
nazistas conseguiram exterminar preparou o terreno para nossa lugares. Onde quer que os judeus
quase sete milhões de judeus destruição. Ele, que é um mestre vivessem, sofriam perseguição
enquanto o mundo ficava calado e manipulador da propaganda e discriminação, constantes
– por que praticamente ninguém enganosa – vemos na história humilhações, conversões forçadas,
protestou, e, de fato, muitos até de Purim quão facilmente ele inquisições e pogroms.
ajudaram a executar a monstruosa convence o Rei Achashverosh a lhe O Holocausto foi a culminação de
campanha – a resposta é que nós, o permitir que aniquilasse os judeus 2 mil anos de violento
Povo Judeu, fomos demonizados por –, manipulou o mundo todo a odiar antissemitismo.
milhares de anos. Os antissemitas o Povo Judeu. Goebbels, Ministro
fabricaram e disseminaram as piores da Propaganda de Hitler, fez uma Após esse longo período de
mentiras sobre nosso povo. Basta famosa declaração de que se uma insuportável sofrimento, o Povo
demonizar uma nação por milhares mentira é contada com frequência, Judeu decidiu que retornaria à sua
de anos – dizer a seus filhos e dizer- as pessoas acabam aceitando-a Pátria ancestral. O objetivo central
lhes que digam a seus próprios filhos como verdade. Amalek, Haman e do Sionismo – o restabelecimento
que um certo povo é mau e que é seus descendentes disseram tantas de um país judaico soberano na
a raiz de tudo o que há de errado mentiras sobre nosso povo, com tanta Terra de Israel – era libertar o
no mundo – e ninguém moverá frequência e durante tanto tempo, Povo Judeu do jugo maldoso do
um dedo se alguém surgir e decidir que o mundo veio a aceitar tais antissemitismo. A fundação do
exterminá-los. calúnias como verdadeiras. Estado de Israel, maior pesadelo
de Hitler, libertou o Povo Judeu de
O Holocausto não se iniciou com os Durante 2 mil anos, estivemos uma posição de fraqueza. Com o
campos de morte e as câmaras à mercê de Amalek e Haman. estabelecimento de um Estado Judeu,
de gás, mas com mentiras e Desde a queda do Antigo Israel e os judeus não mais estavam sujeitos

17 DEZEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS

ao mando de líderes como anos depois apresentaram vários como antes. Ele não mais podia falar
o Rei Achashverosh, que, problemas a Haman. À medida abertamente contra os judeus. Ele
estimulados pelo Haman que o mundo ficou sabendo teria que esperar até que o mundo
de cada geração, poderiam dos horrores do Holocausto, o começasse a negar ou se esquecer do
expulsar-nos, torturar-nos e antissemitismo aberto se tornou Holocausto. E, até então, como iria
exterminar-nos. muito incorreto, politicamente. lutar contra os judeus?
Ademais, os judeus, que há 2 mil
O nascimento de um Estado Judeu, anos tinham vivido sob a sombra Haman e seus filhos perceberam
nosso, significava que não mais do terror de Haman, construíram que era necessário uma mudança de
éramos um povo sem terra e sem um país seu e um dos exércitos mais tática e de semântica. Surgiu-lhes
defesa. Agora tínhamos um país, potentes do mundo. uma ideia – óbvia e simples, mas
um exército e um lar nacional que eficaz. Já não mais se definiriam
receberia, de braços abertos, qualquer Antissionismo: como antissemitas. Iriam se
judeu que desejasse voltar a seu Lar. o novo Antissemitismo autodenominar antissionistas.
Os judeus não mais seriam pegos na Iriam mesmo jurar que não tinham
armadilha de Haman. Após o Holocausto, Haman nada contra o Povo Judeu. De fato,
A derrota nazista em 1945 e a percebeu que o mundo deixara de ser eles alegariam ter vários colegas
fundação do Estado de Israel três receptivo a sua diatribe antissemita, e amigos judeus. Explicariam

18
REVISTA MORASHÁ i 86

que se opunham aos sionistas e a parte – isto é, desde que os outros –, não é apenas porque o mundo se
seu Estado, não aos judeus. Para países lhe dessem guarida... sentia culpado pelo Holocausto. É
justificar seu “antissionismo”, eles também porque a assimilação está
alegariam que os sionistas fundaram O Sionismo significa o retorno realizando o trabalho de Haman
um estado em um território que a Sion, que é outro nome para em seu lugar – de modo muitíssimo
não lhes pertencia. Acusariam Jerusalém – nosso lar eterno. eficaz. Ele já não necessita sujar suas
Israel de ser um país imperialista, Sionismo significa soberania e mãos lutando contra os judeus na
racista e opressivo – um satélite dos liberdade judaicas: ter nosso próprio Diáspora – pois a assimilação está
Estados Unidos no Oriente Médio. lar nacional, onde falamos nosso rapidamente aniquilando o Povo
Para provar que ser antissionista e idioma, praticamos livremente Judeu fora de Israel. Em certos
antissemita eram duas coisas bem nossa religião e preservamos nossas lugares, a taxa de assimilação está
diferentes, eles iriam mencionar que tradições, nossa cultura e nossos perto de 90%. Nesse ritmo, em mais
há judeus que se opõem ao Estado valores. Apoiar a destruição ou algumas gerações, já não haverá
de Israel. Se alguém pode ser judeu e a dissolução de Israel – que judeus fora de Israel, excetuando-se
antissionista, pode-se muito bem ser significaria que os milhões de os ultra-ortodoxos. Por outro lado,
contra o Estado de Israel e não ser judeus que lá vivem seriam a assimilação é muito baixa em
antissemita. exterminados ou enviados de volta à Israel, por razões óbvias. Ademais,
Diáspora – é tão racista e condenável ano após anos, cada vez mais judeus
Esperta, essa estratégia... quanto alegar que todos os negros fazem Aliá. A população judaica do
Os argumentos apresentados pelos que vivem no Brasil deveriam ser país está constantemente crescendo.
antissionistas influenciaram e assassinados ou enviados de volta à Willie Sutton Jr, um notório ladrão
enganaram muita gente no mundo escravidão. de bancos americano declarou que
todo, mas não conseguem enganar roubava os bancos “porque é lá que
nenhum judeu que se preze. Haman odeia o Estado de Israel se encontra o dinheiro”. De modo
O antissionismo é apenas mais não apenas porque ser antissemita semelhante, Haman odeia Israel
um nome para o antissemitismo. não é politicamente correto. Haman porque é lá que se encontram os
Na verdade, pode-se argumentar detesta Israel não apenas porque é judeus.
que o antissionismo é pior que o o lar do Povo Judeu, mas também
antissemitismo. Ninguém é obrigado porque representa sua força e seu Desde a fundação do Estado de
a gostar de judeus ou de qualquer futuro. Se alguém se perguntar a Israel, Haman e seus filhos alegam
outra nação na face da Terra. razão para o antissemitismo estar não ter nada contra os judeus –
relativamente fraco na maioria dos apenas contra os “sionistas”. Alegam
Todos têm direito à sua própria países, desde a criação do Estado de serem humanistas, combatentes da
opinião. No entanto, ninguém pode Israel – no mínimo até recentemente liberdade, defensores dos fracos e
negar ao Povo Judeu o direito à sua
própria terra natal. Os americanos Imagem que se tornou ícone do Levante de VarsÓvia, abril de 1943.
e os russos e os iranianos têm seu Nazistas levam os sobreviventes para campos de morte onde serão assasSinados.

próprio país. Os árabes têm 22


países. Nós, judeus, temos direito a
nosso próprio país – em nossa terra
ancestral, que nunca se tornou um
estado independente desde a queda
do Antigo Israel, há 2 mil anos.
Afirmar que não se é antissemita,
mas apenas contra a pátria judaica
não é diferente do que alegar que não
se tem nada contra os americanos,
mas se acredita que os Estados
Unidos deveriam ser destruídos por
seus inimigos e que a população do
país deveria procurar abrigo em outra

19 DEZEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS

indefesos – de mulheres e crianças. líderes das organizações terroristas tornar uma potência nuclear. Por
Eles alegam serem liberais que que controlam Gaza, Líbano e vários outro, armam uma trama de mentiras
abominam o antissemitismo e outros países da região. A Carta- sobre o Estado Judeu. Assim como
qualquer forma de preconceito. magna da organização terrorista que Haman disseminou inverdades sobre
No entanto, às vezes, Haman controla Gaza determina o seguinte: o Povo Judeu para demonizá-lo –
e seus filhos deixam cair a “ ‘O Dia do Julgamento não virá até criando a atmosfera necessária para a
máscara – seu antissemitismo é que os muçulmanos lutem contra execução da “Solução Final” – assim,
tão intenso e profundo que nem os judeus e os aniquilem. Então, também, hoje ele conta mentiras
eles mesmos conseguem reprimi- os judeus se esconderão atrás das sobre o Estado de Israel. Seu objetivo
lo. Ocasionalmente, quando rochas e árvores, e as rochas e árvores é fazer de Israel um pária entre as
estão inflamados, eles usam o gritarão: ‘Ó, muçulmanos, há um nações. Como as Forças de Defesa
termo adequado para descrever judeu se escondendo atrás de mim, de Israel são as melhores forças
os “sionistas” – judeus. Às vezes, vinde e o matai’ ” (Artigo da Carta armadas no mundo, Haman decidiu
até expressam, como ocorreu Magna do Hamas). ir atrás de seu último recurso: uma
recentemente na guerra em Gaza, guerra nuclear, mesmo se significar a
que “Hitler estava certo”. Às vezes, O líder da organização terrorista que destruição mútua. Nesse meio tempo,
eles revertem a seus antigos hábitos controla o Líbano, que é um satélite ele e seus inúmeros filhos tentam
– insultam e atacam os judeus nas do Irã e que possui 150 mil mísseis enfraquecer Israel, tentando isolá-
ruas e destroem sinagogas, lojas direcionados a Israel, fez a seguinte lo do restante do mundo. Haman
e cemitérios – e justificam a sua declaração: “Se eles (os judeus) conspira para influenciar o mundo a
violência como vingança pelas todos se reunirem em Israel, isso nos forçar Israel a se retirar de partes de
operações militares de Israel, ainda poupará o trabalho de ter que ir atrás seu território, para que deixe de ter
que vêm declarando, há décadas, não deles, mundo afora”. Essa afirmação, fronteiras seguras.
ter problema algum com os judeus, inequivocamente, revela que o
mas apenas com os “sionistas”. propósito final das organizações Ele espera que se Israel reduzir
terroristas que lutam contra Israel consideravelmente seu território, um
Se alguém pensa que aqueles é realizar o que Hitler tentou e não ataque surpresa, como o que ocorreu
que lutam contra Israel não são conseguiu: exterminar todo o Povo em Yom Kipur de 1973, destrua o
tão antissemitas quanto Haman Judeu. Estado. Se Israel não se retirar para o
ou Hitler, essa pessoa deveria ler que Abba Eban chamou
algumas das declarações feitas pelos Quanto ao Irã – lar ancestral e atual de “fronteiras de Auschwitz”,
do próprio Haman – seus líderes Haman tentará convencer o mundo
negam o Holocausto enquanto a impor sanções e embargos
prometem lançar um novo. esmagadores sobre Israel, para que
O país está desenvolvendo o país imploda economicamente
armas nucleares – falando e não tenha outra opção a não ser
de paz, enquanto se arma para fazer concessões territoriais que
a guerra, como fez Hitler comprometam a segurança de todos
durante seus primeiros os seus cidadãos.
anos no poder. Só que
o Irã não fez segredo Temos que levar muito a sério a
sobre quem eles planejam ter como campanha de demonização de
alvo com o armamento nuclear que Haman contra Israel. Ele está
Reco-reco (ra’ashan) tentam construir... virando o mundo contra o Estado
em prata em formato de
uma Estrela de David. Judeu, assim como costumava
Bukhara- Séc. 20 Hoje, Haman e seus filhos lutam envenenar as nações contra os judeus
contra os judeus assim como o que viviam na Diáspora. Pensemos
fizeram no passado: com violência juntos: Há poucos meses, Israel lutou
e mentiras. Por um lado, empregam uma Guerra contra uma organização
o terrorismo e lançam milhares de terrorista que prega ideias similares
mísseis contra Israel e tentam se às de Hitler e que lançou milhares de

20
REVISTA MORASHÁ i 86

mísseis contra as principais cidades à própria existência do Estado Sim, nós admitimos que somos
de Israel, direcionando-os a milhões Judeu – é rotulado de estado racista. maus, mas o mundo não deveria
de seus civis. Essa organização Israel luta contra uma organização estar mais preocupado com aqueles
comete crimes de Guerra não apenas terrorista fanática que lançou mais que são piores do que nós? Haman
contra Israel, mas também contra de 4.000 mísseis contra suas cidades e seus filhos se regozijam cada vez
sua própria população civil, inclusive e é acusado de genocídio. Israel que fazemos essas perguntas; elas
suas crianças, ao usá-la como escudos foi até mesmo chamado de estado são uma admissão implícita de
humanos para proteger os locais apartheid e estado nazista! culpa. Devíamos contar ao mundo
de onde lançam os mísseis. Poder- a verdade: Israel está na dianteira
se-ia pensar que todo o mundo iria Como explicar a demonização da guerra contra o terrorismo, que
ficar ao lado de Israel contra esses de Israel? Não é muito difícil de ameaça todas as nações, inclusive
terroristas e criminosos de guerra. entender. Haman e seus filhos o mundo árabe. Israel está lutando
Pelo contrário, muitos governos e empreenderam uma brilhante contra um inimigo cuja ideologia
a maior parte da mídia condenou a campanha de propaganda contra é semelhante à nazista. Como
campanha militar de Israel em defesa o Estado Judeu: lançaram a vítima Hitler, eles almejam exterminar o
de seus cidadãos. Nem importou como o algoz. Que melhor maneira Povo Judeu, eles se deleitam com a
que Israel fizesse todo o possível – de fazer o mundo se esquecer sobre violência e o terror, têm ambições
sacrificando, mesmo, a vida de seus o Holocausto do que alegar que os megalomaníacas e estão prontos
soldados – para evitar mortes de civis judeus são tão perversos quanto os a sacrificar seu próprio povo para
em Gaza. Haman influenciou, com nazistas? Que melhor maneira de alcançar seus objetivos. Se o mundo
sucesso, grande parte do mundo, tentar isolar e sufocar o Estado Judeu não nos crê, deveria, no mínimo,
fazendo-os crer que os judeus sempre do que compará-lo com a África do crer nos terroristas de Gaza, que
são culpados, independentemente Sul, país racista? transmitiram a seguinte mensagem
dos fatos – independentemente de para Israel: “Das Brigadas
quem, como e por que estão lutando. Grande parte do mundo, Al-Qassam para os Soldados
especialmente a mídia, sofreu tanta Sionistas: As Brigadas Al-Qassam
Como mencionamos acima, Haman lavagem cerebral por parte de amam a morte mais do que vocês
espalhou as mais absurdas mentiras Haman que mesmo nós, judeus, amam a vida”. Defender Israel,
sobre o Povo Judeu enquanto caímos em sua armadilha ao não portanto, é defender a vida e a
vivíamos na Diáspora. Hoje reagirmos de forma eficaz às liberdade; opor-se a Israel é defender
essas mentiras dizem respeito ao mentiras que ele dissemina sobre a morte e a tirania. Condenar Israel
Estado de Israel. O único estado Israel. Durante a Guerra em Gaza, e expressar simpatia pelos terroristas
democrático no Oriente Médio muitos judeus perguntavam: ‘Por que equivale a apoiar os nazistas e
– um país tão democrático que o mundo está tão preocupado com condenar as Forças Aliadas que os
em seu Parlamento há membros Israel e não com a Síria e o Iraque?’. combateram e venceram na
de partidos árabes que se opõem O que se deduz dessa pergunta é: 2ª Guerra Mundial.

21 DEZEMBRO 2014
NOSSAS FESTAS

vocês tentaram exterminar nosso


povo de uma maneira muito
covarde: assassinaram milhões de
judeus – mulheres, crianças e idosos.
Vocês atacaram um povo indefeso e
amante da paz; a maioria deles
eram pobres e religiosos e jamais
haviam portado uma arma. Hoje,
já não somos um povo destituído de
um lar nacional e indefeso.
Israel tem a melhor força aérea e
serviço secreto no mundo e as mais
bem treinadas forças armadas.

Hoje, podemos vencê-lo e a seus


meguilat esther. pune, índia. início do séc. 20 filhos – não apenas moral, espiritual
e intelectualmente, como sempre
o fizemos – mas agora, também,
Entre as inúmeras mentiras contadas A primeira é dirigida a todas militarmente. Somos um povo eterno
por Haman e seus filhos, há uma as pessoas ou organizações, e voltamos à nossa terra ancestral
particularmente perversa e traiçoeira: especialmente às de mídia, que para nunca mais sermos removidos
que se não fosse pelo Estado de “compraram” a propaganda de lá. Se vocês se levantarem
Israel, não haveria antissemitismo no “antissionista” de Haman. Entendam novamente contra nós, o farão por
mundo. Somente o maior dos tolos uma coisa: Haman não é amigo de sua própria conta e risco.
pode crer nisso. É difícil argumentar ninguém. Não é apenas Israel que ele
com 2 mil anos de história – com as deseja destruir, mas toda a civilização. A Meguilat Esther conta que Haman
expulsões, a perseguição, a Inquisição, e seus 10 filhos foram enforcados nas
os pogroms, os expurgos soviéticos A Alemanha elegeu Hitler e o forcas que ele construiu para enforcar
e, acima de tudo, com o Holocausto. mundo o apaziguou, e os resultados Mordechai. Hitler, covardemente,
Haman quer que os judeus deixem foram catastróficos – não apenas para escolheu sua forma de morrer
Israel para que eles voltem a cair os judeus, mas para o mundo inteiro. – suicidou-se após ter trazido a
nessa armadilha. Cada judeu deve Tivesse a Alemanha ou uma força catástrofe ao mundo e a seu povo –,
entender que a alternativa ao Estado externa o detido no início de sua mas seus 10 filhos foram enforcados
de Israel é Auschwitz. É viver sob o carreira, os anos mais sanguinários, em Nuremberg. Na verdade, as forcas
domínio de Haman e seus filhos – mais terríveis da história do mundo são o destino inevitável de Haman
sem exército algum que nos defenda. não teriam ocorrido. O mundo não e seus filhos. Como promete a Torá,
Que ninguém se iluda sobre as pode permitir-se cometer o mesmo o nome e a memória de Amalek e
seguintes verdades: o Holocausto erro novamente. Portanto, quando de todos os seus descendentes serão
não expurgou o antissemitismo nós, judeus, alertamos acerca de um obliterados. Quando isso acontecer –
do mundo: apenas o encobriu – novo Haman no horizonte, o mundo e que seja a Vontade de D’us que isso
temporariamente. O antissionismo deve prestar atenção a nosso alerta. aconteça em breve – “haverá para os
não é um fenômeno novo – é uma judeus, luz, felicidade, júbilo e honra”
forma inteligente, eficaz e covarde A segunda mensagem do autor (Meguilat Esther, 8:16). Amén, ken
de antissemitismo. As pessoas que é dirigida a Haman e seus filhos. yehi ratsón.
odeiam o Estado de Israel, que Sabemos quem vocês são e o que
conclamam ao seu boicote – ou pior, estão tentando fazer. Vocês podem
à sua destruição – são o pior tipo de enganar o mundo, mas não a nós. Obs: O título e algumas ideias deste artigo
antissemitas que existem. Nós os conhecemos há mais de foram tirados de um discurso no Knesset feito
pelo Primeiro Ministro de Israel, Binyamin
2 mil anos e conhecemos seu Netanyahu, então líder da Oposição, na esteira
O autor gostaria de concluir antepassado, Amalek, desde da Segunda Guerra do Líbano (2006). http://
www.youtube.com/watch?v=4EnwfNl2Ixg
transmitindo duas mensagens. o início dos tempos. Há uma geração,

22
ISRAEL

Massacre na sinagoga
de Har Nof em jerusalém
Eram sete horas da manhã do dia 18 de novembro de 2014
quando dois homens irromperam na sinagoga da comunidade
de Har Nof, bairro ultra-ortodoxo situado ao noroeste de
Jerusalém. Com exclamações histéricas, gritando em árabe
Allah Akbar, atacaram os judeus que, envoltos em talitim e
com tefilins na testa e no braço, silenciosamente rezavam
a Amidá do Shacharit, primeira reza da manhã.

P
ortando uma arma de fogo, facas e um Resta pouco a acrescentar, mas muito para refletir.
machado, os dois palestinos se lançaram sobre Como escreveu o Rabino Benjamin Blech em carta
os devotos. Seis ficaram feridos e quatro aberta, “A morte é um infortúnio. O assassinato é
faleceram. Os atacantes afligiram-lhes mortes bem mais terrível de se suportar. E quando se trata
horríveis e covardes. Foram encontrados de um massacre, choca-nos e torna-se um sofrimento
deitados em poças de sangue, seus talitim e livros de difícil de ser mitigado. Mas o ataque terrorista em
orações encharcados de sangue no chão da sinagoga. Israel, teve algo mais. Ocorreu na cidade sagrada de
As quatro vítimas fatais foram os Rabino Moshe Jerusalém, um lugar onde devemos sentir a proximidade
Twersky, 59, Rabino Aryeh Kopinsky, 43, Rabino a D’us. Ocorreu em uma sinagoga frequentada por fiéis
Avraham Shmuel Goldberg, 68, e o Rabino Calman madrugadores que ali estavam apenas diante da presença
Levine, 55. Vinte e seis crianças ficaram órfãs. do Todo Poderoso, em total devoção perante o Criador
do Universo”. O que mais nos comove, o que mais nos
O que aconteceu em seguida está registrado nos espanta e indigna não foram apenas as imagens dos
relatórios criminais, dando conta de que a polícia rabinos assassinados.
israelense chegou rapidamente e os dois assassinos
foram mortos em um tiroteio. Dois oficiais israelenses Comovente é a mensagem das quatro viúvas, que,
foram feridos. Um deles, Zidan Saif, druso, morreu em em meio ao horrível pesadelo, estendem a mão para
consequência de seus ferimentos, na noite do ataque. alcançar o mundo judaico com sua mensagem de união e
Ele tinha sido o primeiro a chegar ao local do massacre e esperança no Todo Poderoso.
se colocara entre os terroristas e os fiéis.
Espantosa e indignante é a resposta do mundo árabe. São
O ataque, o mais sério atentado contra judeus em as imagens, captadas logo após o morticínio, de homens,
Jerusalém desde 2008, foi reivindicado pelas Brigadas Ali mulheres e crianças, agitando flores, bandeiras e lenços
Abu Mustafa, braço armado da radical Frente Popular nas ruas de Gaza para celebrar o feito alcançado em Har
para a Libertação da Palestina (FPLP). Nof. São as demonstrações de júbilo e de aprovação nos

23 DEZEMBRO 2014
ISRAEL

quatro cantos do mundo árabe. São as vozes de milhares,


que louvam nas ruas a ação dos “mártires gloriosos”,
perpetradores do massacre. O assassinato de inocentes
não precisa nenhuma justificação quando é feito em
nome de suas crenças religiosas; mas quando as vítimas
são judias, a hora é de regozijo. É a atitude do líder
palestino, Mahmoud Abbas, que condenou proforma o
massacre para o Ocidente, o mundo de língua inglesa
– enquanto, ao mesmo tempo, elogiava para seu próprio
povo aqueles que realizaram a violência contra os judeus,
condizente com o que vem incentivando, de forma
ruidosa, nos últimos meses.

24
REVISTA MORASHÁ i 86

Carta das viúvas dos


rabinos assassinados
“Em lágrimas e com o coração partido pelo sangue que foi
derramado, o sangue de pessoas santificadas, nossos maridos,
chefes de nossas famílias (Hy’d), dirigimo-nos a nossos irmãos
e irmãs, a todos da Casa de Israel, onde quer que estejam, para
que fiquem unidos para merecer a compaixão e a misericórdia
do Altíssimo. Devemos aceitar sobre nós a responsabilidade de
aumentar o amor e a afeição uns pelos outros, quer seja entre
uma pessoa e seu semelhante, quer seja entre irmãos de diferentes
comunidades dentro do Povo Judeu. Rogamos a vocês que cada
um aceite sobre si a responsabilidade, na hora do recebimento do
Shabat, para que este Shabat, Shabat Parashat Toldot, seja um dia no
A verdade é que os assassinos dos qual expressemos nosso amor uns pelos outros, um dia em que nos
rabinos não agiram por impulso. abstenhamos de falar de forma a criar discórdia ou de crítica aos
Seu ato covarde é apenas a ponta outros. E assim, estaremos fazendo-o em grande mérito pelas almas
visível de uma longa série de de nossos maridos, assassinados em nome de D’us. D’us nos vê do
acontecimentos que os levaram Alto e vê nossa dor, e Ele enxugará nossas lágrimas e declarará:
àquela insanidade, incentivada
‘Basta de toda a dor e sofrimento’. E nós teremos o mérito de
constantemente por seus líderes.
É um complemento para os testemunhar a vinda daquele que foi Ungido, dentro em breve, em
recentes, sucessivos e propositais nossos dias, Amén, Amén.
atropelamentos de judeus em
Jerusalém perpetrados por palestinos. Chaya Levine, Breine Goldberg, Yakova Kupinsky,
Bashi Twersky e suas famílias”.
Deixa-nos perplexos, porém não
surpreende a resposta dos que estão
na vanguarda da crítica de Israel;
daqueles que estão pedindo o boicote
do Estado judeu; daqueles que
marcham nas ruas da Europa, os
que afirmam não poder ficar calados
diante da situação dos palestinos.
Os horrendos assassinatos não
provocaram demonstrações, não
inspiraram repugnância, não levaram
os governos a denunciar, aberta e
firmemente, o terror árabe.

Fazemos nossas as palavras do


Rabino Blech: “O resultado da
carnificina me faz chorar mais do
que tudo – chorar por um mundo
que ainda não entendeu que – ao
não lamentar adequadamente
pelos judeus assassinados – está
lançando as sementes de sua própria
destruição”.

25 DEZEMBRO 2014
NOSSOS SÁBIOS

O REBE DE LUBAVITCH

Transcorreram 20 anos desde o falecimento do Rabi Menachem


Mendel Schneerson, o Lubavitcher Rebbe – o sétimo e último
líder de uma prestigiosa dinastia chassídica. Neste pequeno
tributo, desejamos celebrar o permanente legado do Rebe:
não como o Tzadik, o Sábio e o fazedor de milagres que ele foi,
mas como o estadista judeu cuja influência mudou o mundo
judaico de uma forma sem precedentes.

M
uito se tem dito e muito se tem escrito procurá-los movido por puro amor”. Essa foi sua
sobre o Rebe. As pessoas que o conheceram, missão principal e permanente: estender a mão e ajudar
judeus e não judeus, tinham certeza de que os judeus, física e materialmente. Entre outros, ele
ele era um ser humano extraordinário – uma expandiu a chamada outreach campaign, uma campanha
alma especial, um verdadeiro Tzadik, um mundial que chega até os judeus, atraindo-os ao estudo
Sábio, um erudito em Torá fora de série, um visionário e à prática do judaísmo, iniciada por seu sogro, o Rabi
e um ser humano que possuía habilidades sobrenaturais. Yosef Yitzchak Schneerson, sexto Rebe de Lubavitch.
Aqueles que apreciam a sabedoria, falam de sua sabedoria; O Rebe definiu que o objetivo do movimento Chabad-
aqueles que estão profundamente imersos no estudo da Lubabitch seria o de abraçar os judeus de todo o mundo.
Torá falam de sua erudição; aqueles que são líderes, falam Cada um dos indivíduos era importante para ele.
de sua liderança, e aqueles fascinados com o sobrenatural,
falam dos milagres e maravilhas que realizou. O Rebe era um homem de extraordinárias qualidades
– é raro encontrar-se uma única pessoa com tantas
Mas qual foi o legado do Rebe? O que as pessoas – mas também uma mistura de opostos. No ano passado,
falarão sobre ele daqui a cem anos, daqui a mil anos? dois influentes rabinos – o Rabi Adin (Even Israel)
Mais provavelmente, referir-se-ão a ele como o homem Steinsaltz e o Rabi Joseph Telushkin – escreveram novos
que mudou a face do Judaísmo – um homem que livros sobre ele. Cada um celebra de uma forma diferente
fez ressuscitar espiritualmente o Povo Judeu após o a vida desse homem tão extraordinário.
Holocausto. A História Judaica testemunhou inúmeros
líderes, muitos sábios, até mesmo muitos milagreiros, Contrastando com sua enorme imagem pública, ele
mas, pouquíssimos homens mudaram a face do Judaísmo era um homem muito discreto em sua vida privada.
como o fez o Rebe. Se há uma declaração que resume seu Pronunciou e escreveu milhões de palavras, mas
legado, seria esta: o ex-Rabino Chefe da Grã Bretanha, raramente falava de si próprio ou de seus próprios
Lord Jonathan Sacks, afirmou: “Durante o Holocausto, sentimentos. Quando jovem, era muito introvertido,
os judeus foram caçados por ódio. O Rebe resolveu mas como “o Rebe”, tornou-se um desembaraçado

26
REVISTA MORASHÁ i 86

embaixador global do Judaísmo, que recebia pessoas e modéstia. Nunca se beneficiou pessoalmente de sua
sem fim – judeus ou não – que vinham em busca de seus posição. Presidentes e governadores o homenageavam;
conselhos e de suas bênçãos. Após se tornar “o Rebe”, membros do Congresso e Senado dos Estados Unidos
nunca deixou Nova York, mas enviava centenas de seus consultavam-no e os primeiros ministros de Israel o
emissários a quase todos os países onde havia judeus. visitavam, pedindo sua bênção e sua orientação. A revista
Possuía um conhecimento enciclopédico sobre assuntos Newsweek chegou mesmo a rotulá-lo como “o judeu
judaicos e seculares – era mestre nas facetas reveladas e mais influente do mundo”. Contudo, ele nunca mudou;
nas ocultas da Torá, a Halachá e a Cabalá – e também era continuou humilde, dedicado a servir a D’us e aos
poliglota e dominava a Física e a Matemática, além de homens – judeus e não judeus.
apreciar a Literatura Russa. Chefiava uma organização
mundial com um orçamento anual na casa dos bilhões O Rebe foi uma figura monumental que via além das
de dólares, mas vivia na maior modéstia e morreu fronteiras convencionais. Quando assumiu a liderança do
praticamente sem nada. movimento Chabad-Lubavitch, este era um prestigioso
grupo chassídico, mas relativamente pequeno, a quem os
Já em idade avançada e após sofrer um ataque cardíaco de nazistas e os comunistas estiveram perto de exterminar.
grande extensão, o Rebe ainda tinha o vigor para reuniões Quando seu sogro, o Rabi Yosef Yitzchak Schneerson,
privadas que duravam a noite toda, aconselhando e sexto Rebe de Lubavitch, chegou aos Estados Unidos,
abençoando pessoas que vinham em busca de sua logo estabeleceu a sede do movimento Chabad-
orientação. Ficava de pé durante horas, todo domingo, Lubavitch no Brooklyn. Quando o Rebe Menachem
para dar a milhares de pessoas, uma de cada vez, sua Mendel o assumiu, transformou-o em um império de
bênção tão especial e tão pessoal. Ele nunca tirou um âmbito mundial, com influência superior a seus números.
único dia de folga nos 40 anos em que liderou a maior
organização judaica do mundo. Reis e presidentes Sob sua liderança, o Chabad-Lubavitch tornou-se o
tiram férias; o Rebe nunca o fez. Ele adquiriu grande maior e mais influente movimento religioso judaico no
poder e influência, mas nunca perdeu sua simplicidade mundo. Atualmente, sua influência global vai muito

27 DEZEMBRO 2014
NOSSOS SÁBIOS

além do que a de qualquer outra instituição judaica na logo ultrapassou o dos professores. Na adolescência, já
história. Praticamente em todos os lugares, no mundo, se correspondia com vários renomados eruditos sobre
onde há uma comunidade judaica, há uma Chabad House assuntos sagrados.
em locais afastados entre si, como Congo, Guatemala,
Marrocos ou Moscou. Há cerca de 4.000 “casais Chabad” O jovem Menachem Mendel e sua família sofreram sob
em pelo menos 80 países através do globo. o comunismo à medida que o clima social e político se
deteriorava, na Rússia. Após a Revolução Bolchevique,
Sua vida em 1917, os comunistas assumiram o controle do
país e iniciaram um brutal ataque contra as religiões,
O Rabi Menachem Mendel Schneerson nasceu em uma particularmente o judaísmo, fechando escolas e sinagogas.
família judia ilustre, em 18 de abril de 1902 (11 de Nissan Sem qualquer motivo, o governo aprisionava e, às vezes,
de 5762), em Nikolaev, pequena cidade na Ucrânia. Ele executava a liderança judaica.
recebeu o nome de seu bisavô paterno, o terceiro Rebe da
dinastia Chabad-Lubavitch. Correndo um grande risco, seu futuro sogro, o Rabi
Yosef Yitzchak Schneerson, abria escolas clandestinas
Seu pai, o Rabi Levi-Yitzhak Schneerson, foi um grande e fornecia recursos financeiros e alimentos casher à
erudito em Torá e um respeitado cabalista. Sua mãe, população judaica. Em 1923, o Rabi Menachem Mendel
Rebetzin Chanah, também vinha de prestigiosa família encontrou-se com o Rabi Yosef Yitzchak pela primeira
de rabinos. Quando Menachem Mendel tinha cinco vez, juntando-se a ele em sua missão. Foi quando este
anos de idade, mudou-se com seus pais para a cidade de último o escolheu como marido adequado para sua filha,
Yekatrinislav (hoje, Dnieperpetrovsk), onde seu pai foi Chaya Mushka. Eles eram primos distantes.
nomeado Rabino Chefe.
Em 1928, Menachem Mendel deixa a então
Desde pequeno, o Rebe foi reconhecido pelos professores União Soviética com seu futuro sogro. No ano seguinte,
como uma mente singular, um verdadeiro prodígio ele se casa com Chaya Mushka, em Varsóvia. O Rabi
em sua erudição sobre a Torá. Rapidamente superou a Yosef Yitzchak tinha três filhas, mas nenhum filho
educação formal judaica e passou a ter aulas com seu pai homem. Ele considerava o genro um verdadeiro “Gaon”,
e professores particulares. Contudo, seu conhecimento palavra hebraica para gênio. Pouco depois do casamento,
o casal se mudou para Berlim.

Menachem Mendel era também um grande estudioso do


Talmud e do misticismo judaico. Ele estudava a Cabalá
e estava profundamente imerso nas leis da Chassidut. No
entanto, sempre se tinha interessado por Ciências e Física
e, em paralelo, adquiriu uma vasta educação secular. Era
também fluente em várias línguas.

Enquanto vivia em Berlim, Menachem Mendel estudou


Matemática, Filosofia e Física Teórica na Universidade
de Berlim, com professores vencedores do Prêmio Nobel,
tais como Walther Nernst e Erwin Schrödinger.

Quando os nazistas subiram ao poder, em 1933, o casal


mudou-se para Paris. Nessa cidade Rabi Menachem
Mendel continuou seus estudos seculares e, em 1937,
formou-se em Engenharia Mecânica e Elétrica na
prestigiosa École Spéciale des Travaux Publiques, em
Paris. Ele também cursou algumas matérias na Sorbonne.
Em 1941, três dias antes de Paris cair em mãos dos
nazistas, o Rabi Menachem Mendel e sua mulher
O Rebe observa o seu sogro rabi Yosef Yitzchak Schneerson fugiram para Vichy e, a seguir, para Nice. No mesmo ano,

28
REVISTA MORASHÁ i 86

o casal emigrou para os Estados Unidos. Com a esposa, Nada o detinha. Em 1978, sofreu um infarto de grandes
ele se estabeleceu no Brooklyn, em Nova York, a alguns proporções. Contra a vontade de seu médico, após
quarteirões da nova sede do Chabad-Lubavitch, em 770 poucas semanas voltou ao trabalho com a mesma
Eastern Parkway. intensidade de antes.

Ao chegar a Nova York, seu sogro o nomeou diretor Em 1986, iniciou uma tradição dominical de encontros
da divisão educacional do Chabad, Merkos L’Inyonei com quem o quisesse ver. Ele entregaria notas de 1 dólar,
Chinuch, bem como da organização beneficente Machne
Israel e da Kehot, a editora do movimento. Estar à frente
dessas três importantes organizações, tornou-o uma
figura chave no movimento Chabad.

Em 1950, em 10 de Shevat de 5710, falece o Rabi


Yossef Yitzhak. O sexto Rebe de Lubavitch não havia
indicado seu sucessor, mas criava vulto uma campanha
internacional para que seu genro, Rabi Menachem
Mendel, se tornasse o sétimo Rebe da dinastia Chabad-
Lubavitch. Ele nunca cobiçara a posição do sogro, mas
entendeu que o futuro do movimento dependia de sua
alçada à liderança. Aceitou a nomeação com relutância
em 17 de janeiro de 1951, ao se completar um ano do
falecimento de seu sogro.

Nas décadas seguintes, o Rebe liderou e fomentou


uma expansão sem precedentes do movimento. Ele
iniciou uma verdadeira revolução, expandindo a prática
do sogro de enviar emissários, os “shluchim,” em volta do
mundo, para conter a onda de assimilação que surgia.
Trabalhava incansavelmente – por vezes, durante as
24 horas do dia – e nunca tirou um dia de descanso. o Rebe e o rabino Noach Gansburg

29 DEZEMBRO 2014
NOSSOS SÁBIOS

Menachem Mendel Schneerson, acelerou-se o


crescimento do movimento de maneira sem precedentes.
E continua crescendo, com grande ímpeto, ano após ano.

Alcançando todos os judeus

O Povo Judeu estava destroçado após o Holocausto


e muitos dos sobreviventes escondiam sua identidade
judaica. Os nazistas haviam conseguido caçar a maioria
dos judeus europeus, assassinando quase 7 milhões dos
nossos. Mas, seu objetivo final ia muito além: queriam
garantir que não sobrasse nenhum judeu vivo na face da
Terra.

A missão do Rebe em vida foi a antítese da dos nazistas.


Eles não pouparam esforços para nos aniquilar. O
Rebe não poupou esforços para nos salvar. Os nazistas
tentaram cobrir o mundo de maldade e escuridão. O
Rebe, com luz e bondade.

Rabi Telushkin escreve em seu livro “Rebbe” que o envio


de emissários em busca dos judeus “é reconhecido como a
realização mais revolucionária e talvez mais duradoura do
Rebe”. Seus “shluchim”, mensageiros que ele enviava para
que serviriam como um meio físico de transmitir suas servir os judeus e as comunidades judaicas nos quatro
bênçãos. A cada domingo, milhares de pessoas, judias cantos do mundo, ajudaram imensamente a revitalizar o
ou não, receberiam uma nota de 1 dólar e uma bênção judaísmo pós-Holocausto. “O Rebe lançou o primeiro
do Rebe. Desta forma, ele esperava encorajar os outros a esforço conhecido, na História Judaica, para atingir cada
dar tzedacá e a fazer trabalho beneficente. “Quando duas comunidade judaica e cada judeu no mundo”, disse o
pessoas se encontram, algo de bom deve resultar em prol autor.
de um terceiro”, costumava dizer, citando o sogro.
Hoje, há centenas de cidades, tanto nos Estados Unidos
Em 1988, no dia 22 do mês judaico de Shevat, falece sua como em outros países, onde há apenas um rabino
mulher, a Rebetzin Chaya Mushka. Durante 60 anos, – um emissário do Rebe. Hoje, há centros do Chabad
ela fora sua companheira de vida e sua única confidente. em 48 dos 50 estados dos Estados Unidos e em 80 países.
A partir de então, o Rebe passa cada vez mais tempo O objetivo do movimento é atender todas as
sozinho em seu gabinete, na sede mundial do Chabad, comunidades judaicas do mundo.
no 770, em Nova York, e dentro de dois anos, ele
praticamente já não mora em sua casa. O Rebe também elevou o status das mulheres no
mundo dos ultra-ortodoxos – gesto sem precedentes.
No dia 2 de março de 1992, enquanto orava no túmulo E o conseguiu fazendo as esposas dos emissários parte
de seu sogro, ele sofreu um derrame que paralisou seu ativa da shlichut – da missão sagrada – de seus maridos.
lado direito e, ainda mais devastador, lhe roubou a fala. O Rebe também insistia para que as meninas também
Dois anos e três meses depois, o Rebe ascendeu aos Céus, aparecessem na capa da revista juvenil do Chabad,
aos 92 anos de idade, nas primeiras horas da manhã do juntamente com os rapazes.
dia 3 de Tamuz, 12 de junho de 1994.
“Outreach”: Alcançando os
Ele não tinha filhos e não nomeou nenhum sucessor. judeus em todo o mundo
Muitos haviam previsto que o movimento Chabad-
Lubavitch não sobreviveria sem o Rebe. Estavam Da Rússia para Israel para os pontos mais distantes do
totalmente errados. Após o falecimento do Rabi mundo, o Rebe tocava o coração das comunidades e dos

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REVISTA MORASHÁ i 86

judeus, individualmente. A missão de sua vida era trazer condenava. Para ele, o judaísmo não era uma forma de
os judeus para mais perto do judaísmo e de D’us. vida de tudo ou nada. Dizia que se um judeu cumpria
uma Mitzvá – apenas uma e mesmo que uma única vez –
Considerava todos os judeus seus filhos. Este homem já era motivo de celebração. Evidentemente, ele esperava
que não teve filhos, na realidade, teve milhões deles. que o cumprimento de um Mandamento Divino levasse
Abraçava-os todos, independentemente de sua idade, ao cumprimento de outro e mais outro e mais outro...
gênero, status social ou comprometimento religioso. Para
ele, não havia judeus religiosos ou seculares, chassidim, Esperava que todas as pessoas, judeus ou não,
ortodoxos, conservadores ou reformistas. Não fazia vivessem intensamente, crescendo sempre, espiritual
distinções entre eles. Seu braço e seu coração chegavam e materialmente, de igual maneira. Contudo, ele
até todos. Amava-os com igual intensidade. incentivava as pessoas com amor – e não com severidade.
Ele acreditava que os indivíduos eram capazes de muito
Ninguém ficava fora de seu radar. O Instituto Aleph, mais do que pensavam. Contava com o melhor de cada
organização filiada ao Chabad, por exemplo, atende um deles porque acreditava neles e os amava, do fundo
milhares de judeus que cumprem sentenças nas prisões e do seu coração.  
ajuda esses indivíduos a cumprir nossos mandamentos e
tradições. A tecnologia desempenhou um importante papel
no programa de outreach do Rebe. Desde cedo, ele
O Rebe estimulava mulheres e meninas judias a percebeu o poder desse veículo e estimulava seu uso
acender as velas de Shabat; os homens, a colocar para difundir o judaísmo e alcançar o maior número
Tefilin diariamente e a estudar obras e textos da Torá. de judeus possível. Já em 1960, ele começou a valer-
Influenciou um número sem fim de judeus a cumprir o se de transmissões por rádio para ensinar Torá. Na
máximo possível de Mitzvot, Mandamentos Divinos. Sua década de 1970, suas conferências eram transmitidas
mensagem era de amor: ele destacava o grande mérito por telefone aos principais centros Chabad no mundo.
de realizar qualquer mandamento – ainda que apenas Nos anos de 1980, valia-se da televisão a cabo. Com o
um e uma única vez. Ele não julgava, não criticava nem avanço da computação, o Chabad Lubavitch estabeleceu

31 DEZEMBRO 2014
NOSSOS SÁBIOS

uma presença na Internet, com milhares de páginas Mensagem


de conteúdo sobre judaísmo, informações sobre como
encontrar uma sede do movimento, quando acender as Sentado em seu modesto escritório, o Rebe introduzia
velas de Shabat e um guia para os dias sagrados judaicos, uma nova maneira de viver. Estimulava as pessoas
entre inúmeras outras. de todas as crenças a praticar boas ações. Acreditava
ser responsabilidade de cada membro da sociedade
Em 1974, ele idealizou uma nova forma de outreach. dar continuamente de si próprio e de seus bens
Vans conhecidas como “Mitzva Tanks” passeavam por à caridade, chegando mesmo a defender que os
Manhattan, tocando conhecidas melodias religiosas para empresários acrescentassem um dólar em espécie a
atrair judeus. Voluntários do movimento se aproximavam cada contracheque para os funcionários darem a terceiros.
das pessoas nas calçadas e lhes perguntavam se eram
judeus. Convidavam os homens judeus a colocar Tefilin Para o Rabi Telushkin, a qualidade mais impressionante
e entregavam às mulheres um folheto e velas com do Rebe era o amor incondicional que ele estava sempre
instruções para o acendimento das velas de Shabat. disposto a dar – e parte de sua grandeza era não julgar
ninguém por sua aparência. Tratava a todos com respeito
Antes de sua “Campanha da Mitzvá”, o cumprimento de e dignidade. Ela tinha a capacidade de discordar dos
uma Mitzvá era um ato privado, realizado em casa ou na outros sem se distanciar de outras pessoas, defendendo
sinagoga. O Rebe mudou isso. O judaísmo se tornou algo argumentos que considerava moralmente importantes
público, orgulhoso de si. Ele defendia as demonstrações para a sociedade, sem, no entanto, afastar os que estavam
públicas de nossos rituais religiosos mesmo em locais em desacordo. É digno de nota o fato de que, apesar
majoritariamente não judeus. O Rebe concebeu e de ter aproximado tantos judeus ao judaísmo, ele se
implementou a ideia das Chanuquiot em praças públicas, opunha ao conceito de kiruv rechokim (a aproximação
servindo para levar a mensagem das luzes de Chanucá a de um judeu afastado a D’us). Disse, certa vez, que não
todos, judeus e não judeus, indistintamente. podemos classificar ninguém como “afastado” de D’us,
complementado: “Quem somos nós para determinar
quem está distante e quem está próximo a D’us?
Todos estamos próximos a D’us. Não devemos julgar o
outro, apenas amá-lo e envolvê-lo, incondicionalmente”.
Ele acreditava que quando um judeu cumpre uma
Mitzvá, ele se iguala à pessoa mais sagrada do mundo,
pois o cumprimento de um Mandamento Divino
cria um elo entre o ser humano e D’us.

O Rabino Benjamin Blech declarou, certa vez: “O Rebe


explicou-me que para ser um bom judeu é tão importante
ter fé em D’us quanto nos nossos semelhantes, judeus.
E me disse, também, que sem o amor da Torá e de nossos
semelhantes, o amor de D’us não duraria”.

Talvez sua frase mais famosa seja “Dizem que tempo


é dinheiro; eu digo que tempo é vida”. O Rebe insistia
que as boas ações não devem ser postergadas, mas feitas
imediatamente. Conhecemos, também, a expressão “Se
você for gastar seu tempo fazendo algo, faça-o da melhor
maneira possível”. O Rabino Telushkin explica que a
capacidade do Rebe de conseguir tudo o que conseguiu
emana de um princípio ligeiramente diferente: “Tudo o
que vale a pena fazer, faça-o já”.

O Rabi Menachem Mendel incansavelmente falava em


otimismo e na linguagem otimista. Por exemplo, ele não

32
REVISTA MORASHÁ i 86

1. O Rebe com o então Presidente de Israel Zalman Shazar. 2. Com Ariel Sharon. 3. Com Binyamin Netanyahu. 4. Com o então
Primeiro-Ministro Menachem Begin.

usava a expressão beit cholim para se referir ao hospital consultas individuais que se estendiam noite adentro.
porque não achava construtivo chamá-lo de “casa dos E, como vimos acima, todas as tardes de domingo,
doentes”. Usava a expressão “casa de cura”, beit refuá. desde 1986 até adoecer em 1993, o Rebe ficava de pé,
Alguns exemplos de seu otimismo podem ser vistos nas na porta de seu gabinete, no 2o andar do 770 Eastern
frases em iídiche que usava com tanto gosto: “Tracht Parkway, em Brooklyn – às vezes durante 6 horas
gut un vet zein gut” (Pense positivo que dará certo) e sua ou mais – recebendo milhares de pessoas, que,
substituição do conhecido “S’iz shver tzu zein a Yid” quando chegava sua vez, pediam sua bênção e conselho.
(É duro ser judeu) por “S’iz gut tzu zein a Yid” (É bom Durante anos, levas de pessoas vinham – homens,
ser judeu). mulheres, crianças; judeus e não judeus de todas as
camadas sociais.
Os visitantes do Rebe
A lista de personalidades que foram até o Rebe inclui,
A influência do Rebe se origina de sua liderança e seus entre outros, os prefeitos David Dinkins e Rudy Giuliani,
ensinamentos, bem como de sua interação com multidões de Nova York; Elie Wiesel; o Primeiro Ministro
de pessoas. A quantidade de tempo que ele dedicava aos Binyamin Netanyahu; e Shirley Chisholm, primeira
outros era impressionante. Dormia pouco, mas tinha a mulher negra eleita para o Congresso americano; os ex-
energia e a perseverança para dedicar muito tempo aos Primeiro Ministros Menachem Begin e Ariel Sharon
outros, dias e noites sem fim. – todos em busca de seu aconselhamento, assim como
Bob Dylan, que o visitou em Crown Heights mais de
Ele parecia encontrar tempo para todos. Segundo o seis vezes. Este último retornou ao judaísmo graças ao
Rabino Telushkin, o Rebe Anterior disse certa vez: Rebe. Generais israelenses e outros discutiam estratégias
“Às 4 da manhã, Menachem Mendel está-se levantando com ele, e ele também interagia e influenciava líderes
ou indo dormir”. mundiais como Ronald Reagan e Robert F. Kennedy.

Era generoso com seu tempo. Além de construir Após sua vitória, nas eleições de 1977, já Primeiro
uma organização internacional, ensinar, escrever, Ministro de Israel, Menachem Begin declarou, ao visitá-
supervisionar e envolver-se em volumosa lo: “Vim, esta noite, ao nosso grande mestre e rabino,
correspondência, ele passava horas e mais horas em pedir sua bênção antes de meu encontro, em Washington,

33 DEZEMBRO 2014
NOSSOS SÁBIOS

com o Presidente Carter… Suas bênçãos são muito Educação. Convocou o Congresso para estabelecer um
importantes para mim”. “Dia da Educação” no calendário do país. O Rebe sentia
que isso podia levar a um novo significado às antigas
Governo dos EUA tradições americanas. O Senado e Câmara do país
atenderam o chamado do Rebe e declaram 1977 como
O Rebe recebeu as Medalhas do Congresso e da o Ano Nacional da Educação. Em abril do ano seguinte,
Presidência dos EUA, as mais altas condecorações o Congresso reconheceu o empenho do Rebe e aprovou
civis do país. Presidentes americanos, como Richard uma resolução conjunta, proclamando seu 76º aniversário
Nixon, Gerald Ford, Bill Clinton e Barack Obama o como o Dia da Educação nos EUA. O Presidente
homenagearam, destacando suas valiosas contribuições ao Jimmy Carter assinou a proclamação tornando-a lei e o
país. Dia da Educação se tornou, desde então, uma tradição
anual no país. Em reconhecimento por seu trabalho e
A deputada Shirley Crisholm, representante de Brooklyn realizações, o dia de seu 80º aniversário foi designado,
no Congresso, creditou ao Rebe sua inspiração de pelo Presidente Ronald Reagan, “Dia Nacional da
trabalhar para expandir o programa de “food stamps” Reflexão”. Reagan também organizou um Pergaminho
(“vale alimento”), que atende milhões de americanos. Nacional de Honra que foi entregue ao Rebe, assinado
Ela também ajudou a criar o programa de suplementos pelo Presidente, pelo Vice-Presidente George Bush e por
alimentares para mulheres grávidas e crianças. “Se os todos os senadores e deputados.
neonatos carentes têm leite e as crianças pobres têm
alimento, isso se deve à visão do Rabino de Crown Judeus soviéticos
Heights”, disse anos mais tarde.
O Rebe esteve à frente do trabalho clandestino em
O Rebe estimulou os sistemas educacionais a prestarem prol dos judeus perseguidos na antiga União Soviética.
atenção especial ao desenvolvimento da personalidade, Desde o início da opressão comunista aos judeus, o
enfatizando os valores positivos. Conclamou os governos movimento Chabad-Lubavitch manteve acesa a chama
mundiais a exercerem sua influência para melhorar os da vida judaica naqueles países. O ex-Primeiro Ministro
padrões educacionais, morais e éticos. Em 1978, em meio Yitzhak Shamir, que, durante anos trabalhara no Mossad
a seus esforços para revitalizar o amplo foco na educação, – serviço secreto de Israel – declarou, em 1994: “Na
ele declarou o ano de 5738 (1977 - 1978) como Ano da década de 1950, quando começamos a mandar nossos
agentes à Rússia, descobrimos uma rede secreta que
chegava a todas às comunidades judaicas, operada pelo
Lubavitcher Rebbe”.

Os israelenses e os emissários do Chabad trabalharam


lado a lado, durante muitos anos, na ex-URSS. O Rebe
esteve profundamente envolvido, nos bastidores, nas
negociações entre Ronald Reagan e Michael Gorbachev,
numa iniciativa que muitos creem tenha pavimentado o
caminho para que os judeus deixassem a ex-URSS.

Seu legado permanente

Quantas vidas terá o Rebe tocado? Quantos judeus,


em todo o mundo – em Israel e na Diáspora – se
aproximaram do estudo e da prática do judaísmo por
sua causa? Quantos judeus ele salvou da assimilação, do
desespero, de uma vida sem propósito? Não o sabemos.
Mas sabemos que, não fora por ele, o Povo Judeu, o
judaísmo e o mundo todo seriam, hoje, um lugar muito
diferente. O Rebe tocou a vida de inúmeros judeus –
direta ou indiretamente, quer o percebam ou não.

34
REVISTA MORASHÁ i 86

reuniÃo anual dos shluchim do Chabad de todas as partes do mundo, no Brooklyn

O Rebe não deixou apenas um legado – Dia após dia, um número maior de velas
deixou vários. Sua influência foi tão grande ilumina o mundo. O Rebe influenciou
que podemos ter certeza de que nosso povo um judeu, que influenciou outro, que
jamais o esquecerá. Daqui a mil anos, os judeus influenciou outro, indefinidamente.
ainda contarão suas histórias. Contarão a seus Ele influenciou pais que influenciaram seus
filhos que após a grande catástrofe que se filhos e influenciou filhos que influenciaram
abateu sobre nosso povo, um homem, sozinho, seus pais.
reacendeu a alma de todo o Povo Judeu.
Há 20 anos o Rebe deixou fisicamente
O Rebe ensinou ao Povo Judeu que a pessoa este mundo. Estadista, cientista, sábio,
pode ser religiosa e cumprir os mandamentos erudito, mestre chassídico, cabalista e
e, ao mesmo tempo, um homem do mundo. milagreiro, o Rebe foi um verdadeiro homem
Ele nos ensinou que não é um anacronismo o de D’us, um verdadeiro homem da Torá e
cumprir dos mandamentos – que não importa um verdadeiro líder e amante de seu povo.
o quanto progrida o mundo, os mandamentos Foi um verdadeiro Tzadik e, portanto, ele
e os valores do Judaísmo continuam relevantes continua espiritualmente entre nós. O Zohar,
para todos nós. O Rebe nos ensinou que um obra fundamental da Cabalá, ensina que um
judeu pode cumprir todos os Mandamentos Tzadik se torna muito mais poderoso após seu
da Torá e, ainda assim, participar e mesmo falecimento porque não mais está restrito às
Bibliografia conduzir uma empresa, uma cidade, ou até um limitações deste mundo físico.
Rabi Telushkin,
país.
Joseph, Rebbe: The
Life and Teachings Passados 20 anos desde seu falecimento,
of Menachem M. Muito se tem dito e escrito sobre ele. Cada sua luz se recusa a se apagar. Pelo contrário, fica
Schneerson, the um de nós se relaciona com ele à sua maneira. mais forte a cada dia, brilhando com
Most Influential
Rabbi in Modern
Pergunte a 10 judeus qual foi o legado do mais intensidade, iluminando o mundo
History, Editora Rebe e, com certeza, ouvirá 10 respostas todo e ajudando a trazer o dia em que tudo
HarperWave, 2014 diferentes. Mas, provavelmente, seu maior será Luz.
Rabi Steinsaltz ,
legado foi ser uma fonte de luz para muitas
Adin (Even Israel), velas que, por sua vez, acenderam outras tantas “Zecher Tzadik Le’Vrachá”. Que sua memória
My Rebbe, Editora velas. O resultado foi um efeito multiplicador seja uma fonte perpétua de luz e proteção para
Maggid , 2014 extraordinário. o Povo Judeu e para toda a humanidade.

35 dezembro 2014
HISTÓRIA

O Machzor itinerante
de Jenny Teich
POR Sergio D. Simon

Quando minha tia Hilde Simon faleceu, aos 93 anos de idade,


em maio de 2010, encerrou-se um capítulo importante na
história de minha família: o dos sobreviventes do Holocausto.
Tia Hilde nunca nos contara muitos detalhes de sua vida
durante a Guerra, e tudo o que soubemos sobre ela vinha
aos poucos, em pequenas doses.

q
uando, semanas Hilde e Arno Simon casaram-se Siegbert Simon, irmão de Arno,
depois de sua morte, em janeiro de 1939 em Berlim, oito conseguira sair de Berlim em 1936,
minha prima Ilona meses antes do início da Guerra. tendo vindo para o Brasil, onde se
cumpria a triste Ela viera de Beuthen, uma pequena estabelecera como representante
tarefa de desmontar cidade na Silésia, para a capital, a comercial. Sua decisão de sair de
o apartamento de sua mãe, ela fim de buscar emprego naqueles Berlim fora muito criticada por
encontrou, num armário da anos difíceis. Berlim era uma cidade meus avós, que ainda não viam
biblioteca, alguns livros de reza efervescente, cheia de cultura, teatros, motivos para se deixar a Alemanha,
bastante antigos. Folheando-os cafés, cabarés e uma vida noturna apesar das dificuldades pelas quais
no silêncio do apartamento vazio, que a tornara famosa em todo o os judeus já passavam em 1936.
Ilona deparou-se com o nome mundo. Ali, acreditavam muitos Foi somente após a Noite dos
“Jenny Teich, Blankenfeldstrasse 14, judeus de cidades menores, era Cristais, em novembro de 1938,
Berlin” escrito a mão ou carimbado mais fácil passar despercebido e ser que meus avós escreveram para o
em quatro machzorim. Ilona jamais menos discriminado. Em Berlim, Brasil, implorando que meu pai lhes
ouvira falar nessa senhora. Quem Hilde trabalhou como assistente conseguisse um visto de saída porque
seria Jenny Teich, a proprietária de vendas em uma loja de meias de a situação tornara-se intolerável para
original desses livros? Por que tia senhoras, emprego modesto, mas os judeus.
Hilde nunca a havia mencionado que garantira sua sobrevivência
para a própria filha? Ilona buscou até então. Ela e meu tio Arno se Apesar das dificuldades impostas
o nome no livro de endereços de conheceram num dos muitos salões pelo Itamaraty, na época, meu pai
Berlim que sua mãe mantinha, com de dança pelos quais Berlim era conseguiu um visto de imigração
o nome de seus amigos alemães. Não famosa, e o casamento foi uma para meus avós, já após o início da
havia menção a Jenny Teich. Ilona forma de dar mais segurança aos dois guerra, e eles finalmente chegaram a
decidiu ir atrás dessa senhora para jovens judeus vivendo numa cidade Santos em fevereiro de 1940. Arno
saber sua identidade. tão perigosa para ambos. Meu pai, e Hilde, entretanto, não podiam se

36
REVISTA MORASHÁ i 86

Arno e Hilde
Simon em
Berlim, 1947,
com Ilona no
colo

beneficiar desse visto e terminaram O casal foi ajudado por uma família em condições difíceis de descrever ou
por ficar em Berlim durante toda a cristã que trabalhara com meu avô. mesmo imaginar.
guerra. Este casal possuía uma pequena casa
de campo em Hönow, um bairro Em maio de 1945 o casal percebeu
Inicialmente, ambos foram poupados distante do centro de Berlim. que os bombardeios haviam cessado:
de serem mandados para os campos Mesmo sabendo dos riscos que isso a cidade havia sido invadida pelos
de concentração, mas foram, como envolvia, decidiram ceder as chaves russos e pelas forças aliadas. Logo
inúmeros judeus, submetidos a um do casebre para que meus tios lá que se sentiram seguros, saíram de
regime de trabalhos forçados em se refugiassem. Eles conseguiram seu esconderijo e se dirigiram, com
fábricas do esforço de guerra. Ele documentos falsos, como se muita dificuldade, entre as ruínas
era operário numa indústria têxtil fossem empregados do Hospital da cidade e suas pontes destruídas,
que fabricava uniformes de guerra Charité, um dos maiores de Berlim. para a sinagoga da Oranienburger
e ela trabalhava numa fábrica de Diariamente, saíam da casa com Strasse, um dos raros edifícios que
baterias. Assim sobreviveram até o os papéis falsos, perambulavam milagrosamente sobrara, pelo menos
fim de 1942, bastante precariamente. pelas ruas da cidade em guerra e parcialmente, de pé, no centro de
Em janeiro de 1943 o capataz de eventualmente faziam trabalho Berlim. Uma bomba atingira a parte
Hilde, na fábrica de baterias, avisou- caseiro para alguma família. À noite, central da grande sinagoga, mas
lhe que, no dia seguinte, a Gestapo voltavam para a casinha em Hönow. o edifício e sua imponente torre
viria buscar os últimos judeus para Este ritual era um disfarce para que ainda estavam lá e era para lá que
a deportação e seria melhor que ela os vizinhos não percebessem que convergiam os poucos sobreviventes
não aparecesse mais para trabalhar. estavam desempregados. E assim, judeus que haviam restado na cidade.
Assim, Hilde e Arno mergulharam até o fim da guerra, quando Berlim Lá, meus tios foram recebidos por
na anonimidade da cidade grande estava totalmente destruída pelo tropas americanas responsáveis
em guerra, tentando sobreviver como bombardeio aliado, Hilde e Arno pelas pessoas deslocadas de guerra
possível. Simon lutaram por sua sobrevivência e foram imediatamente acolhidos

37 DEZEMBRO 2014
HISTÓRIA

em uma casa onde havia comida, Ilona decidiu que os machzorim,


aquecimento, roupa de cama e como todo livro de reza judaico,
todo o conforto que lhes fora deveriam ter um fim digno. Assim,
negado durante tantos anos. levou-os em 2012, em uma de suas
A casa pertencera até a véspera a um viagens à Alemanha, para o Zentrum
graduado oficial alemão. Judaicum, que por coincidência
funciona na mesma sinagoga da
Arno acabou por amealhar um Oranienburger Strasse onde seus
patrimônio importante no pós-guerra pais haviam sido acolhidos no fim
em Berlim, atuando no negócio de da guerra. Lá, entregou-os para
carnes e frios. Ele foi o proprietário que fossem enterrados na Guenizá,
da Fleischerei Arno Simon, o segundo a tradição judaica. Com
primeiro açougue casher de Berlim no jenny teich e sua mãe
isso, pensava ela, encerrava-se a
pós-guerra. Este havia sido seu ramo história de Jenny Teich, mais um dos
de negócios junto com meu avô, até o 6 milhões de mártires judeus cuja
início da guerra. Minha prima Ilona Services (ITS) em Bad Arolsen, identidade se perdera na torrente da
nasceu logo após, em 1947, ainda em um centro de documentação do trágica história do Holocausto.
Berlim. Em 1954 Hilde, Arno e Ilona governo alemão que tem os registros
acabaram por emigrar para o Brasil das pessoas mortas na guerra. De Mas a história não acabou por aí.
para se juntar ao resto da família. lá recebeu a seguinte informação: Em fevereiro de 2014, Ilona recebe
Aqui meu tio fundou o Frigorífico “Jenny Henriette Teich, nascida em um e-mail do International Tracing
Simon, na época uma empresa de 26/12/1871, foi transportada em Service indagando se poderiam
bom porte e que lhes garantiu uma 24/08/1942 de Berlim para Terezin passar seu e-mail para uma pessoa
vida de bastante conforto. e, em 26/09/1942, de Terezin para que se dizia parente de Jenny Teich.
Treblinka, onde foi imediatamente Ilona concordou e, dois dias depois,
Mas como vieram parar nas mãos de assassinada”. Seguiam dados sobre o num alemão infantil e cheio de erros,
meus tios os livros de reza de Jenny número do comboio do transporte mas absolutamente compreensível,
Teich? Quem era ela? para os campos de concentração. chegava a seguinte mensagem:
Ilona soube, então, que em 1945 os
A resiliência do livros de oração dos judeus mortos “Prezada Sra. Simon: meu nome
povo Judeu na guerra foram distribuídos entre é Suzy Ehrmann e moro em
os judeus sobreviventes, e sua mãe, Melbourne, Austrália. Nasci
Intrigada, Ilona entrou em contato Hilde, recebera os livros dessa Sra. em Berlim, de onde saí ainda
com o International Tracing Jenny Teich. criança, em 1938, fugindo com
meus pais. Mas guardo ternas
lembranças de minha avó, a Sra.
Jenny Teich, a quem chamávamos
carinhosamente de Mama. Era na
casa dela que costumava passar os
feriados religiosos judaicos e dela
guardo as melhores recordações de
minha infância. Ela, com seu rosto
sorridente, enrugado, com seus
cabelos brancos, nos acolhia com
muito chocolate e muita ternura.
Quando saímos de Berlim, em
1938, minha avó disse que estava
muito idosa para sair e que confiava
que tudo iria terminar bem para os
judeus. Minha avó foi tão importante
sinagoga da Oranienburger Strasse em minha vida que dei o seu nome à

38
REVISTA MORASHÁ i 86

minha filha, Jenny Ehrmann, nascida


aqui na Austrália. Minha Jenny
acabou por tornar-se uma judia
religiosa e hoje vive em Jerusalém.
Fui informada pelo ITS que os
livros de reza de minha avó Jenny
Teich encontram-se em sua posse, e
gostaria, se possível, de comprá-los.
Minha filha Jenny, criada escutando
durante toda sua vida falar de
sua bisavó, gostaria de rezar em
Jerusalém com os livros que estão em
sua posse, em memória da alma de
sua bisavó, Jenny Teich. Agradeceria
o seu contato o mais rápido possivel.
Atenciosamente, Suzy Ehrmann,
Melbourne, Austrália”. susie ehrmann, neta de jenny teich E A bisNEta, jenny ehrmann

Atônita, no primeiro momento,


Ilona apressou-se em responder: ainda estejam por lá. Estou indo Poucos dias depois, estavam de volta
“Prezada Sra. Ehrmann. Li com para Berlim dentro de 15 dias e, se ao Brasil, nas mãos de Ilona.
emoção sua mensagem sobre sua avó, estiverem lá, posso trazê-los de volta
Jenny HenrietteTeich, cujos livros para o Brasil e poderemos retorná- Por mais uma coincidência, o neto de
de reza foram utilizados por muitos los a seus donos originais”. Ilona realizaria seu Bar-mitzvá em
anos, aqui no Brasil, por minha mãe, Jerusalém em julho, e toda a família
Hilde Simon, que os recebeu na Ilona, conhecedora da tradicional viajou para Israel. Finalmente, no
sinagoga em Berlim no pós-guerra. eficiência alemã e descrente da dia 28 de junho de 2014, Ilona
Eu os cederia de muito bom grado possibilidade de sucesso, mesmo encontrou-se com Jenny Ehrmann, a
à sua família, mas infelizmente os assim escreveu para o Diretor do bisneta de Jenny Teich, em Jerusalém,
livros foram enterrados em Berlim, Zentrum Judaicum perguntando e entregou-lhe os livros que haviam
há cerca de 2 anos e, portanto, pelos livros. Ele não se lembrava da dado a volta ao mundo. Emocionada,
não existem mais. Espero que, doação e lhe pediu alguns dias para Jenny leu o Shechecheianu do próprio
mesmo assim, a memória de Jenny tentar saber qual tinha sido o fim dos livro de sua bisavó, morta em
Teich continue viva entre vocês. mesmos. E dentro de uma semana Treblinka em 1942.
Atenciosamente, Ilona Simon, São chega a mensagem: “Os livros de
Paulo, Brasil”. Jenny Teich ainda estão aqui e não Assim, setenta e dois anos após
foram enterrados!” sua trágica morte, Jenny Teich foi
Dias depois, minha prima relembrada de maneira especial,
Ilona comentou comigo, ainda Assim, numa manhã gélida de março através de seus livros de reza, nas
emocionada, esta história bizarra, de 2014, dirigi-me a pé de meu hotel mãos de sua bisneta, em Jerusalém.
que quase tivera um final feliz. para a Oranienburger Strasse, onde A história do machzor de Jenny Teich
Fiquei inconformado com este final recebi, pálido de emoção, levou décadas para se completar,
quase perfeito da história, a ponto os livros perfeitamente embalados atravessou continentes várias vezes,
de não conseguir dormir à noite. De e conservados de Jenny Teich. ligou corajosas mulheres judias de
manhã cedo liguei para minha prima: Estavam na mesma sinagoga várias gerações, e mostrou, mais uma
“Ilona, você pensou em consultar o que meu pai frequentara na sua vez, a força da tradição e a resiliência
Zentrum Judaicum em Berlim para adolescência, que escapara do fogo do povo judeu na adversidade de
se certificar se os machzorim foram na Kristallnacht, que sobrevivera aos nossa História.
realmente enterrados? Talvez não bombardeios aliados que quase a
tenham sido...”, disse eu, com uma destruíram e que servira de abrigo Sergio D. Simon é médico e presidente
ponta de esperança, “quem sabe para meus tios no pós-guerra. do Museu Judaico de São Paulo.

39 DEZEMBRO 2014
livros

A Sinagoga Bait lançou uma nova tradução do Chumash , os Cinco


Livros da Torá acompanhada das explicações do clássico comentarista
Rashi conforme interpretadas pelo Rebe de Lubavitch. Por meio das
ricas e profundas explicações e elucidações do Rebe, os comentários de
Rashi sobre a Torá se tornam acessíveis mesmo àqueles que nunca antes
estudaram a Torá. Nessa nova tradução da Torá, os comentários de
Rashi estão interpolados no próprio texto. Isso proporciona uma leitura
fluente, facilitando o entendimento tanto do texto quanto dos comentários.

Ao longo da história judaica, muitos Sábios e místicos escreveram


comentários sobre o os Cinco Livros da Torá mas nenhum alcançou a
importância e imortalidade de Rashi. De fato, até hoje, é raro alguém
estudar o Chumash sem consultá-los. Desde que Rashi publicou seus
comentários, praticamente todos os Chumashim os trazem impressos.
Estes se tornaram inseparáveis do Texto sagrado: não se estuda
simplesmente a Torá; estuda-se a Torá com Rashi.

Os comentários de Rashi foram traduzidos para várias línguas. Contudo,


uma mera tradução de sua obra não é o suficiente, pois, por sua vez, estas
exigem explicações para que sejam devidamente compreendidos.
A nova tradução do Chumash realizada pela sinagoga Bait – um projeto
que envolveu uma logística complexa entre equipes localizadas em diversos
países – é a primeira obra a tornar os comentários de Rashi acessíveis aos
leitores de língua portuguesa.

A primeira edição da obra foi dividida em cinco livros, que correspondem


aos Cinco Livros da Torá. Já foram impressos os primeiros dois volumes,
Gênesis e Êxodo. Os outros três serão lançados em breve. A tradução
foi feita por Claudia Malbergier Caon e o coordenador editorial foi o
Rabino Aron Meir Shloush.

Informações no site http://www.bait.org.br/,


pelo email bait@bait.org.br ou pelo telefone 011.3663.2838.

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REVISTA MORASHÁ i 86

boas pessoas
Nir Baran
Editora Alfaguara / Objetiva

Boas Pessoas, de autoria do israelense Nir Baram e lançado em março de 2014


no Brasil pela editora Alfaguara/Objetiva, é um romance sobre culpa e moral
situado na Europa durante a 2ª Guerra Mundial. Num dos momentos
mais terríveis da história, enfrentando as dúvidas morais num mundo que
desmorona, os protagonistas Thomas e Aleksandra decidem sobreviver a
qualquer preço. Thomas Heiselberg, forçado a abandonar sua carreira de
publicitário, colocara seus talentos a serviço dos nazistas. Aleksandra Vaisberg,
filha de intelectuais judeus, após ver seus pais serem condenados pelos
soviéticos como “inimigos do povo”, sabe que, para salvar seus irmãos, precisa se
aliar ao regime . Às vésperas da invasão da ex-União Soviética pelos alemães, os
dois arquitetam um elaborado plano que pode marcar o rumo de suas vidas, e
mudar o curso da história. Boas Pessoas tem tradução de Nancy Rozenchan.

Nir Baram nasceu em Jerusalém em 1976. Logo após servir nas Forças de Defesa
de Israel, publicou seu primeiro romance, Purple Love Story, que foi recebido
com entusiasmo pela crítica e pelos leitores de sua geração. Como colaborador
do jornal israelense Maariv, o autor escreve sobre política, crítica literária e
análise cultural. Ele também edita uma série de livros de não ficção e outra de
clássicos. Baran esteve em novembro no Brasil para participar da Feira do Livro
de POA e de um colóquio de Linguagens do Oriente, organizado pela USP e
lançar seu livro no Instituto Goethe.

dez mitos sobre os judeus


Maria Luiza Tucci Carneiro
Ateliê Editorial

Fantasma de impressionante resiliência, o antissemitismo atravessa séculos e


desafia os esforços contra uma das mais longevas versões de racismo. Assim
como em outras formas de preconceitos atrasados e medievais, dirigidos
a variados grupos étnicos, religiosos ou de outra natureza, o sentimento
antijudaico se assenta sobre mitos e sua perpetuação, fenômeno abordado de
forma densa e clara neste livro. Estudiosa de diversas minorias, a historiadora
Maria Luiza Tucci Carneiro oferece um estudo de relevância ímpar. Com
precisão cirúrgica, destrincha raízes do antissemitismo e, mais importante,
expõe os preconceitos à luz do mundo contemporâneo. (Jaime Spitzcovsky)

Tucci Carneiro é uma historiadora, com graduação e pós-graduação em


História pela USP. Tanto no Mestrado como no Doutorado tem o racismo
como objeto de estudo. Tucci Carneiro desenvolve pesquisas sobre a questão
dos direitos humanos, intolerância, anti-semitismo, etnicidade, escravidão,
censura, nazismo e imigração judaica para o Brasil.

41 DEZEMBRO 2014
PERSONALIDADE

Patrick Modiano recebe o


Nobel de Literatura de 2014
Poucos escritores europeus da atualidade têm sido mais
assombrados pela história da França durante a 2ª Guerra
Mundial - e principalmente a dos judeus que viviam no país
- do que o escritor francês Patrick Modiano. Aos 69 anos,
ele é o 15º francês a ganhar o Nobel de Literatura.

e
m seus livros, Modiano mercado negro e negociando com os – futura intérprete de filmes de
aborda com frequência nazistas. Ao anunciar o nome de Becker, Autant-Lara e Goddard
um lado negro da Patrick Modiano como o vencedor –, trabalhava como tradutora
história da França com do Prêmio Nobel de Literatura de na Paris ocupada pelos nazistas
o qual muitos franceses 2014, em Estocolmo (Suécia), quando conheceu Albert. O casal
lidam com dificuldade e desconforto: Peter Englund, secretário se divorciou quando ele ainda era
o papel desempenhado pelos permanente da Academia Nobel, criança.
franceses durante o Holocausto, afirmou que a Academia escolhera o
inclusive sua participação na escritor “pela arte da memória com Muitas das informações que temos
deportação de judeus para campos a qual evocou os destinos humanos sobre o pai e a família do escritor
de concentração nazistas. mais incompreensíveis e descortinou estão em sua obra, principalmente
ao mundo a vida sob a Ocupação”. através da mais autobiográfica de
A ocupação nazista, a vida judaica todas, Un Pedigree (2004).
sob o regime colaboracionista de O peso de uma
Vichy e a perda de identidade são herança sombria Durante a ocupação, Albert não
temas recorrentes nas obras de se registrou como judeu e se
Modiano. Para ele, escrever sobre Considerado por alguns críticos o recusava a usar a Estrela de David
esse período e o colaboracionismo mais importante escritor francês obrigatória para toda a população
francês não é mero interesse histórico vivo, Patrick Modiano nasceu em judaica. Acabou sendo preso
ou filosófico, mas uma forma de lidar Boulogne-Billancourt, nos arredores pela polícia francesa, que trabalhava
com seu legado familiar, de digerir de Paris, em 1945. Seu pai, Albert em estreita parceria com a Gestapo,
o passado sombrio de sua família, Modiano, era um homem de mas graças à influência de um francês
pois seu pai, Albert Modiano, judeu negócios oriundo de uma família que colaborava com os nazistas e
de origem sefaradita, sobrevivera à sefaradita, vinda de Salônica. atuava no mercado negro, foi solto
Guerra e ao Holocausto atuando no A mãe, a atriz belga Louise Colpeyn logo em seguida.

46
REVISTA MORASHÁ i 86

Este episódio aparece, sob Na realidade, Patrick via muito editora do país, a Gallimard, quem o
diferentes ângulos, em inúmeras pouco os pais – o pai, levando introduziu no mundo das letras.
obras de Modiano. Trabalhando sua vida bem escusa e a mãe,
com o setor de compras da Gestapo atriz, geralmente em turnês, fora Sua obra
na França, o pai do escritor, que de casa. A quase total ausência
sobreviveu à Guerra sob a falsa da mãe na sua infância e adolescência Ocupação, abandono, perda,
identidade de Henri Lagroux, o aproximou ainda mais do irmão solidão, ausência de raízes, pais
conseguiu acumular uma fortuna. Rudy, dois anos mais novo. ausentes, Paris, tudo isso Modiano
colocou em seus livros. Suas obras
A sombra de um passado indigno, A morte deste último, com apenas são sobre a vida sem pontos fixos,
vergonhoso, esteve presente durante seis anos, afetou-o profundamente. na qual os personagens de sua
toda a infância e adolescência do Tendo que se virar praticamente literatura de ficção vez por outra
escritor. Aos 13, Modiano lembra sozinho, era enviado de um internato têm que recorrer a velhas agendas
que vivia em um apartamento que deplorável a outro. Mais velho, telefônicas para confirmar a
pertencera a pessoas detidas e, porém, frequentou o ginásio mais existência e os endereços de
provavelmente, mortas nos campos conceituado da França e, por fim, pessoas que conheceram no passado.
nazistas. Um dos moradores a Sorbonne. Na sua conturbada
anteriores fora o escritor François adolescência, ele encontrara um Os principais personagens são,
Vernet (nascido Albert Sciaky, de apoio fundamental num amigo muitas vezes, jovens sós no mundo,
uma família de Tessalônica), que da mãe, o célebre escritor que estão sob a proteção de pessoas
teria sido assassinado em Dachau; Raymond Queneau, que, entre mais velhas, com fonte de renda e
e Maurice Sachs, um escritor judeu outros, dava-lhe aulas particulares. passado misterioso. O personagem
francês colaborador dos nazistas que A literatura foi sua salvação e central geralmente está em busca
se tornou protagonista de um de seus foi Queneau, então membro do de pessoas que fizeram parte de seu
livros. conselho da mais conceituada passado e se perderam no tempo.

47 DEZEMBRO 2014
PERSONALIDADE

1. modiano com françoise hardy, no bois de boulogne, em 1969 2. o escritor recebeu o prêmio Roger Minier pelo romance
La Place De L’Etoile, em 1968

Mas, não há duvida de que a obra colocação da Estrela de David que


de Patrick foi profundamente os judeus eram obrigados a usar
marcada pelo colaboracionismo em suas roupas – e não a grande
de seu pai, as ambiguidades e intersecção viária em Paris. Essa
a degradação daquele estilo de referência à estrela amarela que
vida. Em várias entrevistas que os judeus eram obrigados a usar
concedeu, o escritor costuma dizer durante a ocupação nazista tem um
que sua memória começou antes significado doloroso para Modiano.
de seu nascimento, diretamente
ligada à história de seus pais, que Seu primeiro conto, que escreveu
se conheceram durante a ocupação aos 21 anos, fala de um campo
nazista da França, e aos fatos vividos de concentração no qual jovens
por ambos. na década de 1960 (denominados
“children of Himmler and
Não por acaso seu primeiro Coca-Cola” – filhos de Himmler
romance, La Place de L’Étoile, e Coca-Cola) são, supostamente,
de 1967, tem como um de seus presos por “kapos charmosos”,
personagens principais Maurice incluindo cantores populares
Sachs, judeu colaboracionista, como Mireille Mathieu e
simpatizante da Gestapo morto a Françoise Hardy.
tiros pelos nazistas quando estava
sendo evacuado do campo ao qual Nos últimos anos, alguns autores
havia sido finalmente enviado. franceses abordaram em sua obra
a questão do colaboracionismo e
O título da obra se refere a uma a obra de Modiano. No início de
piada praticamente intraduzível: 2014 foi lançado pelo advogado e
Um transeunte em Paris pergunta escritor, Christian Gury, o livro “The
a um judeu onde fica a Place de Bloody Barge: Violette Morris, Cocteau,
l’Étoile (uma das mais célebres Modiano” (A Barcaça Sangrenta:
praças europeias); e o judeu aponta Violette Morris, Cocteau, Modiano),
a seu peito, entendendo “place de que aborda diretamente a questão do
exibindo o prêmio goncourt, em 1978 l’étoile” como sendo o lugar de colaboracionismo.

48
REVISTA MORASHÁ i 86

Em seu livro, Gury analisa os dois


notórios colaboradores nazistas
(Morris e Cocteau), que aparecem
em vários romances de Modiano. Em
Under the Skin of Patrick Modiano
(Sob a pele de Patrick Modiano),
o jornalista Denis Cosnard mostra
como a ocupação francesa durante a
2ª Guerra afetou a criação literária
de Modiano. Para Cosnard, o fato
do vencedor do Prêmio Nobel de
Literatura desse ano de 2014 ter
muitas vezes mentido sobre a data
de seu nascimento – dizendo ter sido
em 1947 e não em 1945 – foi uma
tentativa de se afastar da “pilha de
cadáveres e ruínas” da guerra.

Em entrevista concedida em 2007,


o vencedor do Nobel confessou que
se sentia “estressado e atormentado”
por ter nascido em 1945. Em outra
entrevista, em 2010, referiu-se a Ele recebeu o prêmio pelo livro A literatura não é o único talento
si mesmo como “um produto do Rue des Boutiques Obscures, de Modiano, que também se
estrume da Ocupação, um tempo lançado no Brasil como aventurou pelo universo do cinema,
bizarro quando pessoas que nunca “Uma Rua de Roma”. Esta obra tendo feito o roteiro de filmes como
deveriam ter-se encontrado se conta a história de um detetive que “Viagem do Coração” (2003), de
encontraram e, por acaso, geraram perdeu a memória e precisa Jean-Paul Rappeneau, “Lacombe
um filho”. descobrir quem realmente é. Lucien” (1974), de Louis Malle,
Em junho deste ano de 2014 ele “Le Parfum d’Yvonne” (1994), de
Nos dias de hoje ganhou o prestigiado Prêmio da Patrice Leconte, e “Une Jeunesse
Biblioteca Nacional da França pelo (1983”), de Moshé Mizrahi, os
Em 1972, Modiano casou-se com conjunto de sua obra. dois últimos adaptados de obras
Dominique Zehrfuss, filha do suas. Atuou, também, como ator,
arquiteto Bernard Zehrfuss, com Seu portfólio de sucessos de ao lado de Catherine Deneuve, em
quem tem duas filhas, a produtora de público e de crítica é amplo; “Genealogias de um Crime” (1997),
cinema Zina Modiano e a cantora e Modiano escreveu cerca de de Raoul Ruiz.
escritora Marie Modiano. 30 livros, sendo a maioria romances.
Entre outros a “Vila Triste”, A escolha de Modiano surpreendeu
O escritor vive em Paris, cidade “Meninos Valentes”, “Ronda da o mundo da literatura, pois seu
que serve de cenário a quase todos Noite” e “Do Mais Longe do nome não fazia parte da lista de
os seus trabalhos. É muito popular Esquecimento”, lançados no Brasil. candidatos favoritos ao Nobel deste
na França, sendo considerado A maioria de seus livros são obras ano. Surpreendeu o próprio escritor
por alguns críticos o mais muito curtas que se constituem de que, em sua primeira entrevista após
importante escritor francês vivo. “variações de um mesmo tema, a a divulgação do prêmio, concedida
Em 1972, Modiano recebeu o lembrança da perda, a relação entre ao site da Academia Sueca, contou
Grande Prêmio de Romance identidade e memória”, disse o que estava na rua quando soube da
da Academia Francesa com Les escritor e historiador sueco Peter novidade. Modiano revelou, ainda,
Boulevards de Ceinture e, em 1978, Englund, secretário da Academia “Nunca pensei que isto me pudesse
o prestigiado Goncourt, principal Sueca, em entrevista após o anúncio acontecer, estou muito tocado, cheio
prêmio literário do país. do prêmio. de emoções”.

49 DEZEMBRO 2014
ARTE

NOTA DEZ PARA ZERO mostel


POR ZEVI GHIVELDER

DEPOIS DA 2ª GUERRA, OS ESTADOS UNIDOS FORAM IMPREGNADOS


PELO MACARTISMO, AS PERSEGUIÇÕES DIRIGIDAS A DEZENAS DE
SUPOSTOS COMUNISTAS QUE ATUAVAM NOS MAIS DIVERSOS
SEGMENTOS DA COMUNIDADE ARTÍSTICA AMERICANA.

C
omo consequência, uma implacável lista Desde cedo, as artes plásticas eram o principal interesse
negra incluiu atores, diretores, autores e de Mostel. Por volta dos 15 anos de idade, costumava
produtores de Hollywood e um número um ir diariamente ao museu Metropolitan, na Quinta
pouco menor da Broadway, entre os quais Avenida, onde copiava a lápis num caderno de folhas
um ator judeu genial, chamado Zero Mostel, grandes as obras dos grandes mestres. Tal era a sua
que celebra seu centenário de nascimento em 2015. habilidade que os visitantes do museu faziam um
Assim como muitos outros, Mostel, por sua inclinação círculo a seu redor para vê-lo desenhar. Talvez tenha
para a esquerda, foi intimado a depor perante o Comitê sido nessa circunstância que Zero começou a gostar
do Senado Sobre Atividades Anti-Americanas, ou de se sentir a atração do público. Tanto assim, que
HUAC, conforme a sigla ficou conhecida. Ao ser seu passo seguinte foi atuar como guia voluntário do
inquirido para que estúdio trabalhava, respondeu: “Sou museu, fazendo considerações e dando informações
contratado da 20th Century Fox ou será que é a 18th sobre as obras expostas. Logo passou a inserir piadas e
Century Fox?” trocadilhos em suas dissertações. Certa ocasião, um
dos ouvintes lhe disse: “Rapaz, você tem que largar
Samuel Joel Mostel, filho de um casal de judeus isso e ser comediante”. Mesmo assim, preferiu
ortodoxos oriundos da Europa Oriental, nasceu no continuar a frequentar cursos de arte e fazer palestras
Brooklyn no dia 28 de fevereiro de 1915. Seu pai, Israel, em museus e galerias de Nova York. Suas apresentações
era um erudito em matéria de judaísmo e fluente em sete no circuito das artes, sempre enriquecidas com
idiomas. No início de sua carreira num clube noturno, incomparável verve e comicidade, se tornaram
por sugestão de um empresário, o jovem Sammy adotou conhecidas e ele começou a ser convidado para
o nome artístico de Zero, “porque era por onde eu estava festas particulares nas quais divertia os convidados.
começando, do zero”. Numa época em que os reis da Seus cachês giravam em torno de 5 dólares,
comédia, os Irmãos Marx, tinham nomes bizarros como mas ele impunha uma condição: ao fim de cada
Groucho, Chico e Harpo, Zero parecia um pseudônimo show deveria receber uma batelada de sanduíches de
bastante apropriado. pastrami.

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Em 1941, após completar um de permanente: “Quanto você quer a trabalhar em dezenas de filmes de
seus divertidos monólogos numa ganhar?” Mostel: “Quero mil dólares Hollywood. Jaffe estava no elenco de
pequena boate, foi procurado por um por semana”. O outro: “Eu estava uma peça, Café Crown, encenada na
empresário da noite que lhe disse: pensando algo em torno de 25 Broadway. A peça era uma referência
“Você é fantástico! Aonde mais dólares”. Acabaram fechando por ao Café Royale, situado na Rua 12,
está trabalhando?” Respondeu: “No 40, mais os sanduíches de pastrami. perto da Segunda Avenida, em frente
estúdio”. O homem insistiu: “Qual Na mesma ocasião, acertaram que ao Yiddish Art Theatre, onde todas as
estúdio, Paramount ou Fox?” Mostel: doravante seu nome artístico seria noites se reuniam os artistas judeus
“No meu estúdio de pinturas”. Zero Mostel, com estreia marcada para comer, beber e jogar cartas.
para o dia 16 de fevereiro de 1942, Mostel fazia duas apresentações por
O sujeito ficou de lhe obter um pouco antes que completasse 27 anos noite na boate. Entre uma e outra,
trabalho na boate Café Society, mas de idade. ia até o teatro onde estava sendo
a boa intenção gorou. O dono do representada Café Crown. Entrava
lugar, o astuto Barney Josephson, O sucesso na boate foi imediato, pelos bastidores e invadia o cenário,
queria apresentar cantores e não principalmente por causa das sentava-se à mesa e começava a
comediantes. Eis que, em novembro imitações que Mostel fazia, além jogar cartas com os demais atores,
daquele mesmo ano, ocorre o de debochar de si mesmo por conta improvisando falas que nada tinham
ataque japonês a Pearl Harbour. de seu gordo corpanzil. Certa noite, a ver com a peça. Algo semelhante
Na percepção de Josephson, o que anunciou ao público que faria a jamais tinha sido visto no teatro
público então preferia era dar boas imitação de uma azeitona grega americano.
risadas como forma de escapismo com sotaque turco. Um jornalista
para uma guerra de sombrias escreveu: “Por incrível que pareça, Ao longo de toda a vida, Zero
previsões. Josephson voltou a o rapaz fica mesmo com cara de sempre acentuou que devia seu estilo
procurar o jovem comediante Sam azeitona”. Seu melhor amigo, naquela ao teatro judaico de Nova York.
Mostel e lhe ofereceu um emprego época, era o ator Sam Jaffe que viria Que estilo era esse? O historiador

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ARTE

anos seguintes, viesse a participar de


inúmeras manifestações da esquerda
americana. Voltou para Nova York e
começou a se apresentar na boate La
Martinique, quando foi convocado
para o exército. Contudo, não chegou
aos campos de batalha. Serviu três
anos como soldado raso em Camp
Croft, na Carolina do Sul, com a
missão de vigiar os prisioneiros de
guerra alemães trazidos da Europa.
Daquele tempo guardou uma
recordação: “Eu ficava com muita
raiva porque os malditos alemães
ganhavam mais comida do que eu”.
Seus contemporâneos do exército
lembram que Mostel costumava
zero mostel, o primeiro à dir., como pseudolus, em “um escravo das arábias em entreter os companheiros de farda
roma”, filme de 1966 com engraçadíssimos monólogos, um
gênero que depois viria a ser rotulado
Irving Howe escreveu que os grandes Lady. Foi então chamado pela pela mídia como stand up comedy,
atores judeus se caracterizavam por Metro que lhe ofereceu um longo até hoje em voga. Sua fama de
serem pessoas dotadas de vitalidade contrato e, de início, um papel no comediante chegou aos altos escalões
e grandiosidade, acostumadas a filme DuBarry Was a Lady (DuBarry e ele foi enviado para a Europa, onde
ocupar todos os espaços do palco. Era um Pedaço) ao lado de Gene se juntou a outros famosos artistas de
Em síntese, assim pode ser descrita Kelly e Lucille Ball. Entretanto, a Hollywood, todos designados para
a qualidade artística de Zero participação de Mostel se resumiu entreter as tropas aliadas.
Mostel, que sempre foi reverente aos a nada mais do que uma abreviada
famosos atores judeus que assistiu repetição dos monólogos que fazia De volta aos Estados Unidos, passou
nos palcos, entre os quais Boris nas boates. As cenas não agradaram a frequentar os círculos socialistas
Tomachefsky, Jacob Adler e Maurice aos produtores e a maior parte constituídos na maioria por jovens
Schwarz. Além disso, ele e o irmão, delas foi cortada na edição final. judeus. Há inúmeras controvérsias
Aron, quando adolescentes, faziam Ao mesmo tempo, a Metro estava quanto ao seu engajamento com
figurações em representações do rodando um filme chamado Tennessee o comunismo. A atriz Madeline
teatro em iídiche para ganhar um ou Johnson, biografia do presidente Gilford, sua amiga de infância e
dois dólares. americano Andrew Johnson. Ao mulher do ator Jack Gilford, disse
lado de um grupo de funcionários numa entrevista que “Zero não era
O ano de 1943 foi particularmente da Metro, Mostel assinou uma uma pessoa capaz de repetir o chavão
generoso com Zero Mostel, que petição contra a exibição do filme de que só acreditava na paz e na
passou a integrar o elenco do sob o argumento de que Johnson democracia; seu pensamento era bem
programa de rádio Chamber Music era uma escravocrata e reacionário mais sofisticado no sentido de julgar
Society of Lower Basin, transmitido e que o filme era uma distorção que o capitalismo correspondia a
de costa a costa dos Estados Unidos. da história. Como consequência, a um sistema que pouco poderia fazer
Seu êxito foi tão extraordinário Metro cancelou seu contrato. Foi pelas artes”. De um modo geral,
que foi eleito pelos colunistas um dos primeiros embates políticos Mostel tinha o hábito de levar a
especializados como o maior astro que Zero ainda travaria na indústria comicidade também para fora dos
do ano. Logo ganhou seu próprio do cinema. Embora o macartismo palcos, a ponto de ser evitado pelos
programa, The Zero Mostel Hour, ainda não estivesse em curso, foi amigos em lugares públicos. Certa
com material que lhe era fornecido apontado como comunista. Negou, ocasião, andava pela Quinta Avenida
por Alan Jay Lerner, o futuro autor afirmando que seu credo era a quando avistou, vindo a seu encontro,
das letras das canções de My Fair liberal democracia, embora, nos a aclamada professora Stella Adler,

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idealizadora e fundadora do Actor’s


Studio. Parou na frente dela e pôs-se
a gritar tal como Marlon Brando
numa celebérrima cena da peça e
do filme Um Bonde Chamado Desejo:
“Steeellaaa!”. Um artista plástico
que mantinha um estúdio perto do
estúdio de Zero e frequentemente o
encontrava na rua, revelou que “por
trás de tanta palhaçada, foi uma das
pessoas mais sérias que conheci em
toda a minha vida”. Numa entrevista,
Mostel disse: “A verdade é que eu
não me levo muito a sério. Todo o
mundo, no mundo todo, se leva a
sério. Um eletricista acha que está
salvando a humanidade quando
troca uma lâmpada. O que eu não com woody allen em “testa de ferro por acaso”, de 1976
gosto, mesmo, é de demonstrações
de riqueza. Outro dia minha mulher
me arrastou para um almoço na casa 1948, chegou à televisão como antes, os eleitores do estado de
de um pessoal muito rico. Cheguei lá protagonista do programa Off the Wisconsin haviam eleito para o
e pedi um suco de tomate. Disseram Record que fracassou e só foi ao ar cargo de senador um político até
que só tinha champanhe. Aí eu pedi uma vez. De fato, a televisão não então inexpressivo chamado Joseph
um alka seltzer. Novamente disseram lhe era o veículo de comunicação McCarthy. Em 1950, durante um
que só tinha champanhe. Respondi, mais apropriado. Mostel só tinha discurso pronunciado em West
então, que ia morrer de sede com a graça perante um público ao vivo Virginia, o senador anunciou que
maior dignidade”. e que pudesse interagir com sua tinha coletado os nomes de “mais de
espontânea comicidade. Dois anos duzentos comunistas ‘de carteirinha’
Em 1944, depois de um primeiro que têm a intenção de cometer
casamento que pouco durou, Zero atos de traição contra os Estados
começou um romance com Kathryn Unidos”. Estava plantada a semente
Harkin, uma das famosas “roquetes” do macartimso cuja paranoia
da casa de espetáculos Radio City. tomou conta do país. Havia, porém,
Seus amigos entraram em pânico. graves antecedentes. Em outubro
Os pais de Mostel jamais aprovaram. de 1947 o HUAC intimou uma
Na verdade, foi um casamento série de profissionais da indústria
tumultuado que se estendeu por cinematográfica para comparecerem
33 anos com sucessivos altos e baixos. perante o Comitê em face da suspeita
Eles mal conseguiam viver juntos, de que havia propaganda comunista
mas também não conseguiam viver infiltrada nas produções dos grandes
separados. Tiveram dois filhos: Josh, estúdios. Assim, foi elaborada a
nascido em 1946, e Tobias, nascido tristemente famosa lista dos “Dez
em 1949. de Hollywood”, que incluía nomes
conhecidos como o do roteirista
Depois de integrar os elencos de Dalton Trumbo e do escritor Ring
algumas peças de pouca repercussão Lardner Jr.
em Nova York, Mostel voltou ao
circuito das boates apresentando- As oitivas começaram com
se em Chicago, Hollywood e no depoimentos de Walt Disney e
célebre Palladium de Londres. Em Ronald Reagan, então presidente

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ARTE

do sindicato dos atores. Disney imensas proporções na comunidade


confirmou que a ameaça comunista artística dos Estados Unidos.
era de fato muito séria. Reagan A primeira pergunta dos senadores
revelou os nomes de diversos aos depoentes era sempre a seguinte:
membros do sindicato que ele julgava “O senhor é atualmente ou já foi
serem comunistas. Como protesto, membro do partido comunista?” Em
alguns dos mais consagrados seguida, os inquisidores insistiam
astros de Hollywood, como o para que as testemunhas citassem
diretor John Huston, Humphrey os nomes dos comunistas de que
Bogart, Lauren Bacall e Danny tinham conhecimento. Alguns
Kaye organizaram o Comitê Pela artistas, como o diretor Elia Kazan,
Primeira Emenda, ou seja, aquela que apontaram nomes, o que lhe valeu
garantia no país a plena liberdade de o rompimento com um de seus
expressão, inclusive tendo feito uma melhores amigos, o dramaturgo
manifestação em frente ao Congresso Arthur Miller. Outros optaram pela
americano. A mídia, porém, disse sustentação da Quinta Emenda, que
de forma quase unânime que se não obriga qualquer pessoa a se auto-
tratava de um movimento ingênuo incriminar, conforme a lei americana.
e sem possibilidade de êxito, como
de fato aconteceu. Os chamados Dentre os que citaram nomes de
“Dez de Hollywood” se recusaram comunistas, estava o coreógrafo
a comparecer perante o HUAC Jerome Robbins (verdadeiro nome
e foram todos incriminados e Rabinovitch) que incluiu Zero
sentenciados por desacato a um Mostel em sua lista, sem ter qualquer
ano de prisão. A realidade é que o prova do que dizia, mas por ouvir
HUAC provocou um terremoto de falar. O depoimento de Mostel foi
marcado para o dia 14 de outubro de
1955, sob a presidência do senador
Clyde Doyle. Embora Mostel tivesse
se comprometido com seu advogado
a manter um ar solene durante a
inquirição, Mostel transformou seu
testemunho num verdadeiro circo.
Quando lhe perguntaram se era
ou tinha sido membro do partido
comunista, esticou os braços num
gesto como se fosse estrangular o
senador e gritou: “Socorro! Este
homem está me chamando de
comunista!” O recinto explodiu com
gargalhadas. Em seguida, quando fêz
referência à “18th Century Fox”, outro
senador, Frank Taverner, disse que
não aceitava tal resposta e Mostel
aparteou: “Então pode corrigir
para 19th Century Fox”. Taverner
continuou: “Seu nome é Samuel, mas
o senhor também é conhecido pelo
pseudônimo de Zero. Posso saber
o motivo?” Mostel: “É por causa da
em uma loja no lower east side, então reduto judaico novaiorquino minha situação financeira”. Taverner:

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REVISTA MORASHÁ i 86

“O senhor compareceu a dezenas de


eventos promovidos por dezenas de
organizações, todas filiadas ao partido
comunista. Não é verdade?” Mostel:
“Correto. Compareci a eventos em
benefício de doentes de câncer, do
coração e até mesmo de gripes”.
Taverner: “Outra testemunha aqui
afirmou que o senhor compareceu a
uma reunião do partido comunista
em Hollywood, em 1938”. Mostel:
“Sinto muito, mas eu só cheguei a
Hollywood em 1942”. O senador
resolveu ser mais incisivo: “Ivan
Black, responsável pela publicidade
do Café Society era comunista”?
Mostel: “Opto pela Quinta Emenda”.
E acrescentou: “Minhas convicções
religiosas impedem que eu seja um
ZERO MOSTEL No papel de Tevye, o leiteiro, com Maria Karnilova, na versão da
delator”. Volta o senador Doyle: “Por Broadway do musical “Violinista no Telhado”, 1964
que o senhor não se distancia dessa
atmosfera de subversão? O público
americano vai lhe admirar muito Melvyn Hesselberg”. A pressão incluído na lista negra, ou seja,
mais se o senhor deixar bem claro sobre os donos dos estúdios foi de tal estava impedido de exercer sua
que não há o mais leve resquício natureza que, acovardados, emitiram profissão. Para sustentar a família,
de comunismo em suas posições”. o que chamaram de Declaração passou a vender os quadros que
Mostel: “Meu caro amigo, eu sou Waldorf, documento segundo a pintava, embora não merecesse
adepto da antiquada ideia de que um qual se comprometiam a jamais grandes elogios por parte da crítica
artista exerce sua profissão a partir de dar emprego a um comunista. O especializada em artes plásticas.
seu talento e não de seu pensamento único que se recusou a assinar foi Um fiel retrato do que foi o flagelo
político”. Samuel Goldwyn, (verdadeiro nome do macartismo pode ser visto no
Shmuel Gelbfisch), que declarou: filme The Front (Testa de Ferro
O historiador inglês Michael “Ninguém vai me ensinar a dirigir o por Acaso), de 1976, com Woody
Freedland sustenta que toda meu próprio negócio”. A lista negra Allen no principal papel. Conta a
a atuação do HUAC foi, na começou a se diluir quando o ator história de um roteirista sem talento
verdade, uma orquestrada ação Kirk Douglas (verdadeiro nome que vende às televisões, sob seu
antissemita. Como os donos dos Issur Danielovich) chamou Dalton nome, os trabalhos de profissionais
maiores estúdios de Hollywood Trumbo para escrever o roteiro do listados, de modo a garantir-lhes
eram judeus, a verdadeira intenção filme Spartacus e fez questão que a sobrevivência. No filme, Mostel
do macartismo era atingi-los e ele assinasse o trabalho com seu interpreta um ator listado que, levado
prejudicar seus vultosos lucros, próprio nome e não com um nome ao desespero, acaba se suicidando no
além de minar sua influência. Na de fantasia como era costume entre quarto de um hotel em Nova York.
Câmara dos Representantes, o os perseguidos pelo macartismo. O personagem foi inspirado na
deputado John Rankin fez um Há pouco, Douglas declarou trágica e verdadeira história do ator
discurso em apoio do HUAC, numa entrevista: “Eu trabalho em Philip Loeb, incluído na lista negra,
enfatizando: “Não se esqueçam que Hollywood há 60 anos e atuei em 85 que assim deu fim à vida.
o verdadeiro nome de Danny Kaye filmes. Mas, o que mais me orgulha é A rigor, a dita lista era mais voltada
é Daniel Kaminsky; Eddie Cantor ter acabado com a lista negra”. para o cinema do que para o teatro.
se chama Isic Iskopwitz; Edward No ano seguinte, Zero pôde fazer um
G. Robinson se chama Emmanuel O fato é que depois do depoimento pequeno papel numa peça de Brecht
Goldenberg e Melvyn Douglas é no HUAC, Zero Mostel foi encenada fora da Broadway.

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ARTE

Fiddler, contava-se no meio teatral


americano uma anedota segundo a
qual, certa noite, havia um lugar vago
na quinta fila, no centro do teatro, e
uma senhora idosa ao lado. Alguém
lhe perguntou: “Desculpe, mas como
se explica este lugar vazio?” A mulher
respondeu: “É que eu e meu marido
compramos os ingressos quatro
meses atrás e nesse meio tempo ele
faleceu”. A pessoa insistiu: “Mas
não tinha ninguém da sua família
para lhe acompanhar ao teatro?” Ela:
“Está todo o mundo no velório”.
Mostel foi colocado nas nuvens
pela crítica, tendo ele e o espetáculo
recebido uma enxurrada de prêmios.
como convidado do programa nº 202 de “os muppets”, que foi transmitido nos Com efeito, o Tevye de Mostel está
eua três meses após sua morte, em set. 1977 para a história do teatro musical
americano assim como a Teoria da
Em 1958, através de seu grande intransponível. O diretor Hal Prince Relatividade está para Einstein..
amigo, o ator Burgess Meredith, fazia questão de que a coreografia
ficou com o principal papel em coubesse a Jerome Robbins. Com O indomável Samuel Joel Mostel
Ulysses, peça baseada no décimo muito tato e receio foi conversar a faleceu no dia 8 de setembro de
quinto episódio do romance de James respeito com Zero e deu-se o seguinte 1977, vítima de um aneurisma da
Joyce. O sucesso foi espetacular e diálogo. Zero: “Eu vou ter que jantar aorta, com apenas 62 anos de idade.
Mostel, além de receber o prêmio ou almoçar com ele?” Prince: “Não, Dizem que ninguém é insubstituível.
Obie, dedicado às peças produzidas apenas trabalhar”. Zero: “Então diga Zero Mostel é.
fora do circuito tradicional da a ele que nós, da esquerda, não temos
Broadway, levou o espetáculo a lista negra”. No primeiro dia em que Ele costumava contar o que apontava
Londres e Paris. Em 1960, obteve os dois se encontraram no palco, como o fato mais intrigante de sua
outro grande êxito, desta vez na o elenco todo ficou em suspense carreira e que jamais conseguiu
Broadway, e um prêmio Tony, com para ver o que ia acontecer. Robbins compreender. Certa noite, depois
a peça Rinoceronte, de Ionesco. Em caminhou até Mostel e estendeu-lhe a de uma apresentação de O Doente
seguida, outro sucesso na televisão, mão. Zero retribuiu e exclamou: “Fala, Imaginário, de Molière, uma senhora
com o programa especial O Mundo boca mole!” foi ao seu camarim e lhe disse:
de Sholem Aleichem. No mesmo ano, “Parabéns, o senhor é um ator
foi atropelado por um ônibus em Entretanto, seu grande triunfo, excepcional. Pena que essa obra-
Nova York, o que o obrigou a uma o ponto mais alto, o momento prima não tenha sido representada
permanência de cinco meses no culminante de sua carreira, o cume no original, no idioma francês”.
hospital. Por sorte e muita habilidade da glória ainda estava por vir: a Mostel indagou: “A senhora fala
dos médicos, não perdeu a perna encenação do musical Violinista francês?” E ela: “Não, nem uma
esquerda. no Telhado, no qual interpretou o palavra”.
personagem Tevye, doce criação
Recuperado, foi escalado para o do escritor Sholem Aleichem,
principal papel do musical Something novamente com coreografia de BIBLIOGRAFIA
Funny Happened on the Way to the Jerome Robbins. O espetáculo ficou Zero Mostel: A Biography, de Jared Brown,
editora Atheneum, EUA, 1989. Fontes
Forum (Um Escravo das Arábias em em cartaz de 22 de setembro de 1964 da internet:IMDB e IDBD.
Roma, título do filme subsequente). a 2 de julho de 1972, com um total
Houve, porém, antes dos ensaios, algo de 3.242 representações. Para que
que poderia provocar um obstáculo se tenha uma ideia do sucesso de zevi ghivelder é escritor e jornalista.

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ATUAÇÕES DE ZERO MOSTEL

Zero Mostel em várias de suas performances

CINEMA E TELEVISÃO • Great Catherine (Catarina da • DuBarry Was a Lady


Rússia) (DuBarry Era um Pedaço)
• The Electric Company • Children of the Exodus (curta)
(série de TV) • Monsieur Lecocq
• The Little Drummer Boy Book • The Producers (Primavera Para TEATRO NA BROADWAY
(curta para TV) Hitler)
• Mastermind • A Funny Thing Happened on the • Café Crown (Substituição)
• Journey Into Fear Way to the Forum (Um Escravo • Keep’em Laughing
( Jornada do Pavor) das Arábias em Roma) • Top Notchers
• Foreplay • The World of Sholem Aleichem • Concert Varieties
(filme para TV)
• Once upon a Scoundrel • Beggar’s Holiday
• The Model and the Marriage
• Rhinoceros • Flight Into Egypt
Broker
• Old Faithful (filme para TV) • The Guy Who Came Back • Lunatics and Lovers
• Marco (O Último Jogo) (Substituição)
• Saga of Sonora (filme para TV) • Mr. Belvedere Rings the Bell • The Good Woman of Setzuan
• The Hot Rock (Belvedere, o Gênio do Asilo) • Good as Gold
(Os Quatro Picaretas) • Sirocco • The Good Soup
• The Angel Levine (O Anjo • The Enforcer • Rhinoceros
Levine) (Um Preço Para Cada crime) • A Funny Thing Happened on the
• The Great Train Robbery • Panic in the Streets Way to the Forum
(O Grande Roubo do Trem) (Pânico nas Ruas) • Fiddler on the Roof

57 DEZEMBRO 2014
história

MISTÉRIO DA TORÁ
DE SALAMANCA
POR ARNALDO NISKIER
exclusivo para morashá

“Minhas relações com as colônias sefaraditas de todo o


mundo permitiram conhecer os sentimentos que perduravam
na maioria dos judeus espanhóis, depois de 400 anos do seu
desterro. Conservavam o castelhano como idioma vernáculo,
um tesouro, que chamavam de maternal. Era um delicioso
castelhano do século 15, cuja fonética os espanhóis tinham
esquecido”. - D. Ángel Pulido Fernández

a
vida nos proporciona condições, elaborada por escribas ser aplicado tanto a infrações contra
certos mistérios altamente especializados, que D’us como contra o próximo.
que são, na verdade, desenharam de forma competente as A Torá é a primeira Constituição
instigantes. Foi com suas 305 mil palavras. escrita. Seus 613 artigos, preceitos
o que nos deparamos ou mandamentos estão divididos em
na visita feita à Universidade de Fomos alertados de que, ao penetrar duas categorias: os positivos
Salamanca, na Espanha, para naquele imenso cofre, guardada com e os negativos. Os primeiros em
realizar uma conferência sobre o mil cuidados, encontraríamos uma número de 248, para a contínua
poeta brasileiro Manuel Bandeira preciosidade do século 16: uma Torá, elevação em direção a D’us. Os 365
e sua importância para o com toda a sua imensa riqueza, e que restantes referem-se a proibições, que
modernismo. Mesmo sendo uma não poderia ser tocada nem retratada devem ser respeitadas durante todo
das mais antigas instituições de perto. o ano.
universitárias do mundo (data de
1218), seus dirigentes e professores Ao ser aberta pelo diretor da Estando na Espanha, é natural que
têm um especial carinho pela cultura Biblioteca, Eduardo Hernández, se fizesse referência a Maimônides,
brasileira. pudemos observar a absoluta que organizou esse legado, no
integridade do seu conteúdo, sem século 12. Grande pensador na
Mas não reside aí o mistério. que ninguém soubesse como havia época da dominação árabe sobre a
Depois da palestra, levados pelo sido conduzida até lá. E preservada Península Ibérica, Rabi Moisés ben
professor Manuel Portillo Rubio, totalmente, com todos os seus Maimon (1135-1204) ficou famoso
fomos conhecer a incrível Biblioteca ensinamentos, como os elementos com o nome de Maimônides ou pela
Nacional, onde se encontram jurídicos que estipulam as relações abreviação de Rambam.
inúmeras raridades bibliográficas, entre os cidadãos, o direito agrário,
uma delas a que mais nos comercial, familiar, o de sucessão, Logo foi lembrado que ele nasceu
surpreendeu: uma Torá em perfeitas o penal. Este último destinava-se a em Córdoba, na Andaluzia, tendo

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REVISTA MORASHÁ i 86

arnaldo niskier na biblioteca nacional de salamanca

sido filósofo, místico, matemático, Os judeus foram expulsos da (Sefarad). Durante esse período,
médico (de grande prestígio em Espanha (ou das Espanhas) pelos nem sempre houve tranquilidade,
todo o país), e que aliava a todos reis católicos Fernando e Isabel, apesar da reconhecida contribuição
esses predicados um grande talento no século 15. Como poderia ter dos judeus à ciência e à economia da
literário. Foi o único filósofo da sido produzida uma Torá depois região. Veja-se o que diz o estudioso
Idade Média que influenciou dessa expulsão, quando, em teoria, Luís Garcia Moreno a propósito
pensadores cristãos e muçulmanos. não havia nenhum judeu vivendo desses tempos:
Aproximou a filosofia de Aristóteles na Espanha? Deve ter sido um
das leis fundamentais da Torá. trabalho clandestino. Na época, as “No ano de 693 tivemos a afirmação
sinagogas também foram sacrificadas, explícita por parte do rei Egica, da
Maimônides visitou Eretz Israel o que leva a crer que a Torá de existência de uma proibição escrita das
e se estabeleceu no Egito, onde se Salamanca teria sido guardada com sinagogas, que haviam sido submetidas
tornou médico da corte do vizir e, muito cuidado, a fim de que fosse a uma destruição sistemática”.
depois, do famoso sultão Saladino. inteiramente preservada
Sua grande satisfação era o estudo a sua integridade. Quem sabe, foi Essas perseguições se tornaram mais
da Torá. parar na Biblioteca Nacional porque claras a partir de 1391, até a medida
não havia sinagoga para recebê- extrema tomada pelos reis católicos.
Explicamos aos nossos interlocutores la, nos tempos conturbados das
que basicamente o homem se perseguições religiosas, promovidas a espanha sempre
inclina para o bem. É com essa pela Inquisição, sendo mais provável lembrada
visão que estávamos diante da que tenha sido confiscada ou
Torá que enriquece a Biblioteca roubada. Para muitos estudiosos, o berço
Nacional. Quem teria recolhido essa da hispanidade estaria na síntese
preciosidade e levado à entidade Foi mais de 1.000 anos a presença das três grandes religiões: a católica,
oficial? Mistério! judaica em território espanhol a muçulmana e a judaica, está

59 DEZEMBRO 2014
história

presente, sobretudo, na Espanha No tempo de Alfonso VII os judeus cultura cristã e europeia), obras
medieval. dos guetos (aljamas) da região sul de grande saber nos campos da
peninsular sentiam-se ameaçados e Medicina e da Astronomia,
O florescimento cultural dos buscaram refúgio entre os amigos livros de clássicos gregos e a própria
judeus tornou-se realidade cristãos de Madri, Toledo e outras Torá. Mesmo depois de morto,
na Espanha sob os reinados cidades castelhanas. o médico e filósofo Maimônides
benevolentes de califas de Córdoba continuou a influenciar, com suas
(terra de Maimônides) e soberanos Por várias décadas, árabes, cristãos, ideias, a cultura dos judeus espanhóis,
cristãos como Alfonso, o Sábio. judeus e muçulmanos conviveram que tinham seus bairros principais
Depois vieram as perseguições, o em paz na Espanha, como aconteceu na Castilla conquistada. Pode-se
drama dos conversos, até chegar durante muitos anos também em afirmar que a síntese integradora
à rainha Isabel II, a Católica, Portugal. É um registro histórico do espanhol provém exatamente
responsável pela Real Cédula de que convém sempre ressaltar, para dessas três culturas peninsulares da
1492, quando os judeus foram evitar o pensamento de que isso é Idade Média.
expulsos, com incríveis repercussões. uma realidade impossível de existir.
Hoje se pode afirmar que esse ato Os hispano-judeus viveram entre as Os judeus toledanos chamavam o
foi um erro de grandes proporções, outras duas religiões mais jovens. espanhol de “língua materna” para
pelo que os judeus representavam se opor ao latim, que eles detestavam
para a economia e a cultura da O BRILHO DE TOLEDO por ser romano. Consideravam
Espanha, que se busca hoje reparar o reinado de Alfonso X (o Rei
devolvendo a cidadania a todos os O movimento cultural que ocorreu Sábio) como o início de uma Nova
descendentes dos sefaraditas que na cidade de Toledo revela um Era. Queriam despertar no Rei a
assim o desejarem. dado de grande valor: sábios inclinação para ler numa nova língua,
linguistas e eruditos cristãos, acessível a todos.
A Inquisição foi uma triste página hebreus e muçulmanos, na Escola
de perseguições e mortes, como se de Tradutores de Toledo, traduziram E assim foram feitas as traduções
pode registrar nos cenários da para o latim douto (idioma da alta dos livros sagrados do Pentateuco.
Praça Mayor de Madri, onde Isso explica a decisão do Rei Sábio
se realizavam os autos de fé. em vulgarizar e não latinizar a
Sofrimentos e torturas não foram História, o Direito e a Ciência,
suficientes para abafar o nascimento, que, até então, se expressavam
entre os marranos, de escritores como somente em latim (até meados do
Fernando de Rojas e talvez o próprio século13). Os judeus doutos de
Cervantes. Tinham necessidade Toledo eram muito apreciados pelo
de ocultar sua ascendência, devido Rei Sábio. Exerceram até postos
à síndrome da limpeza do sangue. políticos e na administração por
Muitos dos pensadores e escritores força dessa influência.
do Renascimento espanhol
ocultavam suas origens. Só com A perseguição antijudaica
a chegada de Napoleão é que o iniciou-se em Sevilha e se
Tribunal da Inquisição deixou de estendeu depois a toda a península,
funcionar. entre os anos de 1391 e 1412.
Algumas sinagogas toledanas
O curioso é que, apesar dos foram destruídas e outras
cinco séculos de diáspora sefaradita, transformadas em igrejas católicas,
os marranos demonstraram como tivemos oportunidade de
sempre fidelidade à pátria que os observar, em visita recente à cidade.
expulsara, guardando seu idioma, sua Em uma mesma antiga sinagoga
cultura, a música e até a gastronomia, conviviam sinais claros de que ela
como um precioso e inesquecível o casal ruth e arnaldo niskier em
havia sido transformada em igreja
tesouro. salamanca católica.

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2 3

1. o casal niskier examina o rolo da torá 2. niskier e o diretor eduardo hernÁndez 3. na biblioteca nacional de salamanca,
manuel rubio, eduardo hernÁndez e o casal niskier

A rebelião contra os judeus, na islâmico-hebraico que não é possível


verdade, disfarçava o desejo de se fragmentar, porque cada um dos
apoderarem de suas riquezas. três grupos sociais e religiosos estava
Os então malfeitores não tinham imbricado existencialmente nos outros
realizado esses estragos apenas por dois, devido a um longo período de
ódio religioso, mas principalmente convivência em paz e tolerância”.
pelo afã de levar vantagem e
confiados na impunidade que era Quando Isabel, a Católica, tinha
geral. Houve uma grande matança apenas 13 anos (1464), começaram
de judeus em 1391. as perseguições inquisitoriais contra
os conversos de Madri, Toledo e
A EXPULSÃO Castilla. Depois, houve um ensaio
de expulsão dos que viveram desde
A Inquisição acusou o cristão tempos imemoriais nas principais
converso padre Serrano de “ler em cidades da Andaluzia: Sevilha e
BIBLIOGRAFIA
casa de judeus a Bíblia romanceada Córdoba. Surgiu frei Tomás de
Ray, Jonathan – La Frontera – Alianza
Editorial, Madrid, 2006. dos judeus”. Criou-se um clima Torquemada, que anulou as ações
desfavorável aos judeus, daí as de Roma em favor dos conversos.
Cabezas, Juan Antonio – Madrid y sus judíos
– Ediciones La Librería, Madrid, 2007.
matanças em 1389 em Andaluzia e O frei reorganizou os Tribunais
Castilla. do Santo Ofício, realizando uma
Morashá, Revista – Instituto Morashá de violenta campanha para exterminar
Cultura, São Paulo – coleção, 2010 a 2014.
Antes e durante o reinado dos o judaísmo. Criou-se assim um
Moreno, Luís A. García – Los judíos de la Reis Católicos, Fernando e Isabel, ambiente propício à expulsão, de
España antigua – Rialp, Madrid, 2005. foi-se criando um clima antijudaico, que hoje as autoridades da Espanha
Niskier, Arnaldo – O Iluminismo Judaico – jamais conhecido, o Américo Castro ostensivamente se arrependem.
Altadena, Rio, 2010. assim o ressalta:
Román, Fernando García – Madrid judío
– Travesías Ediciones – Casa Sefarad Israel, “A história da Espanha entre os Arnaldo Niskier é membro da Academia
Madrid, 2010. séculos X e XV foi um contexto cristão- Brasileira de Letras

61 DEZEMBRO 2014
DESTAQUE

Reuven Rivlin,
décimo presidente de Israel
POR jaime spitzcovsky

Apesar de um cargo essencialmente cerimonial, a Presidência


do Estado de Israel costuma projetar uma função política
relevante, de esteio para fortalecer uma sociedade com
desafios gigantescos e intenso debate ideológico. Em julho
passado, o Knesset elegeu Reuven Rivlin como 10o presidente
do país, na sucessão de uma das figuras mais marcantes da
história contemporânea: Shimon Peres.

D
e início, o likudista Reuven Rivlin seu mandato, de sete anos. Para diversos analistas,
carrega a responsabilidade de suceder um o novo mandatário vai preservar o caráter mais
ícone da trajetória israelense, responsável cerimonial e simbólico do cargo, que tem atribuições
pela carreira política mais longeva do como conceder perdão a prisioneiros e indicar o
país. Prêmio Nobel da Paz e com deputado mais apto a formar um novo gabinete, após
projeção internacional ímpar, Shimon Peres, nascido eleições no jogo parlamentarista israelense.
a 2 de agosto de 1923, acumulou 48 anos de história
no Knesset, o cargo de primeiro-ministro, o comando “Peres era um presidente voltado à política externa”,
de pastas como Defesa e Relações Exteriores, além afirmou Reuven Hazan, cientista político da
de participações em 12 gabinetes. Uma biografia sem Universidade Hebraica de Jerusalém, em entrevista
paralelo a pairar sobre o novo presidente. ao site da alemã Deutsche Welle. “Reuven Rivlin
vai se concentrar em Israel, e ele será um presidente
Embora sem o robusto currículo do antecessor, para o povo, a sociedade, os israelenses – alguém que
Reuven Rivlin também é um veterano do Knesset, vai criar pontes entre os israelenses judeus e árabes”.
onde ocupou uma cadeira desde 1988. Presidiu o
Parlamento em duas oportunidades: 2003 a 2006 Rivlin domina a língua árabe com fluência. Seu pai,
e 2009 a 2013. A carreira sólida lhe permitiu Yossef Yoel, pesquisava idiomas semitas. E, apesar
granjear apoio entre deputados de diversos matizes de suas credenciais históricas como um político
ideológicos, e alcançou, num segundo turno, de direita, sempre manteve relações frutíferas,
63 dos 119 votos, ao derrotar Meir Sheetrit, do no Knesset, com parlamentares árabes e de esquerda.
partido Hatnua, que amealhou apoio de 53 O likudista se apresenta como intransigente defensor
parlamentares. da democracia israelense, com atuação destacada
na defesa dos direitos de minorias e muitas vezes
O fato de não contar com o peso histórico e internacional embaralhando divisões maniqueístas no tabuleiro da
de Shimon Peres leva “Rubi” Rivlin a mudar o foco de política.

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REVISTA MORASHÁ i 86

Reuven Rivlin: responsabilidade de suceder um ícone da trajetória israelense

Sobre Rivlin, escreveu o jornalista vegetariano que chora com facilidade.


Liel Leibovitz, no site judaico Tablet: Derramou lágrimas ao receber o
“Ele personifica um compromisso voto de 104 deputados para presidir
firme com os ensinamentos de Zeev o Parlamento, em fevereiro de
Jabotinsky, que enfatizava na mesma 2003. Emocionado, prometeu ser “o
medida uma dedicação à Terra de presidente do Knesset de todos”.
Israel e aos valores da democracia
liberal”. O novo presidente defende No cargo de Presidente do país, já
a ampliação de construção de protagonizou, por exemplo, iniciativa
assentamentos na Cisjordânia e com o deputado árabe Ahmed Tibi
rejeita a ideia de um Estado palestino para construir pontes. Reuniu-se
em territórios conquistados por Israel com judeus e árabes para um jogo de
na Guerra dos Seis Dias, em 1967. futebol em Shefayim. Convidou para
Defende um Estado Judeu no qual a residência presidencial um menino
minorias continuem a ter amplos de 11 anos que havia postado um
direitos políticos. vídeo sobre o bullying que sofria na
escola. O filme-resposta, gravado por
A personalidade do afável político iniciativa de Rivlin e com mensagem
direitista, um ex-ministro das contra violência e hostilidade, foi
Comunicações no governo de divulgado às vésperas de Yom Kipur.
Ariel Sharon, confunde jornalistas
e comentaristas habituados a Suas posições lhe renderam elogios
comparar “falcões” da política de adversários ideológicos. Ilan
israelense a lideranças que projetam Gilon, deputado do esquerdista
força e inflexibilidade. Rivlin é um Meretz, acenou com apoio ao reuven rivlin e sua esposa Nechama

63 DEZEMBRO 2014
DESTAQUE

Com o Primeiro Ministro Bibi Netaniahu

parlamentar do Likud na corrida “Ele é um democrata exemplar, de presidente. Mesmo como alguém
presidencial, apesar da firme oposição honesto e incorruptível, modesto do campo da direita, cujas opiniões
de seus correligionários no Knesset. em seu comportamento pessoal e frequentemente são o oposto das
tem o perfil de um estadista em suas minhas, ele passou pelo teste,
O Partido Trabalhista também concepções e conduta pública. permanecendo como uma rocha
mostrou simpatia. A deputada Shelly Ninguém precisa especular sobre sólida em defesa da democracia”.
Yachimovich declarou: como ele vai-se comportar no cargo
A guerra em Gaza, contra o
Hamas, em julho e agosto, ofuscou
a cerimônia de posse de Rivlin.
O primeiro mês na nova função
concentrou-se em visitas a famílias
de soldados mortos em combate
e a militares hospitalizados.

O presidente discursou num dos


momentos mais trágicos da crise
para a sociedade israelense: a morte
de Daniel Tragerman, de 4 anos,
atingido por um foguete disparado a
partir de Gaza.

Rivlin cultiva uma relação especial


com crianças, e, ao lado da esposa
Nechama, criou um jardim voltado
reuven rivlin no knesset a iniciativas educacionais dentro

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1 2 3

4 5 6

1. rivlin no kotel 2. com O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, out. de 2014 3. Rivlin e o Presid. da Agência Judaica, Natan
Sharansky recebem centenas de novos imigrantes 4. Cumprimentando novos imigrantes dos EUA e Canadá 5. com shimon
peres 6. Rivlin visitou as FDI em 31 de julho para se reunir com o Centro de Comando e inteirar-se da Operação Margem
Protetora com o Chefe do Estado-Maior, Gal. de Divisão Benny Gantz.

do complexo presidencial. O público infantil Ao recebê-las, e comentando sobre linhas


aprende sobre o mundo das plantas e pode religiosas, afirmou: “Não podemos concordar
“adotar” um pedaço de terra para cuidar. No em tudo, mas somos irmãos e somos uma
começo do ano, o então deputado declarou: grande e única família”. O presidente também
“Não há um dia sequer em que não vejo um de observou, em encontro recente: “Também posso
meus netos. Estar com eles, é uma necessidade; dizer, a todos vocês, que somos uma família
algo que não suporto pensar é que possa viver e a conexão entre todos os judeus, em todo o
uma hora sem eles. Sou um avô muito melhor mundo, é muito importante para o Estado de
do que fui pai”. Israel”.

Laços familiares sempre guardaram lugar Embora oriundos de campos ideológicos


especial na vida do advogado formado pela distintos, Reuven Rivlin e Shimon Peres
Universidade Hebraica de Jerusalém, onde colecionam diversos pontos em comum. Um
nasceu a 9 de setembro de 1939. Os Rivlin deles, fora do campo político, é a paixão pelo
contabilizam, ao redor do mundo, cerca de futebol. O décimo presidente de Israel é um
50 mil integrantes, a maioria deles em Israel. torcedor fanático do Betar Jerusalém, onde
A visitantes, o presidente se anima ao relatar trabalhou em cargos de direção na década de
a história de sua família, que chegou à capital 1960. Assistiu ao primeiro jogo em 1946 e
de Israel em 1809, vinda da Lituânia. A árvore nunca mais abandonou o time. Nos últimos
genealógica remete ao Gaon de Vilna, rabino e tempos, engajou-se numa causa política nos
JAIME SPTIZCOVSKY, sábio do século 18. estádios: combater a intolerância demonstrada
foi editor por torcedores da sua equipe de coração.
internacional e
correspondente O conceito de família também contaminou O novo presidente evidencia, em início de
da Folha de S.
Paulo em Moscou
algumas de suas conversas recentes com mandato, energia de sobra para enfrentar
e em Pequim. lideranças de comunidades norte-americanas. diversos desafios.

65 DEZEMBRO 2014
SHOÁ

AS MENINAS DO “QUARTO 28”


POR REUVEN FAINGOLD

O que vem à mente quando se ouve falar da 2ª Guerra Mundial?


Um nome com certeza: Anne Frank. Mas existem outras tantas
vítimas do Holocausto com nomes e histórias que ainda
precisamos desvendar. Nada sabemos, por exemplo, dos
sobreviventes de Theresienstadt. O episódio protagonizado
pelas meninas do “Quarto 28” é, certamente, um excelente
exemplo de “resistência cultural”.

p
erto de Praga, uma elite precisariam conviver e se aceitar de concentração para casos especiais”,
intelectual é usada como para sobreviver às adversidades. pois abrigaria artistas famosos,
forma de propaganda Esta é uma história sobre a perda conhecidos cientistas, músicos
nazista para mostrar ao da infância, mas também a virtuosos e outros judeus de talento.
mundo que os judeus reconquista da juventude por meio
têm uma bela cidade administrada da amizade mantida viva por um O campo de Theresienstadt tem
com autonomia cultural, política punhado de jovens, através do a forma geométrica de uma
e social. Ricos judeus são amor e empenho das cuidadoras e estrela de várias pontas. Sua
“convidados” a ir para essa cidade professoras, da esperança num futuro topografia de altos bastiões, fortes
judaica, abrindo mão de seus bens melhor e do temor de um desfecho muralhas, alinhamento de ruas e
em favor do governo alemão. trágico . Atualmente, são poucas as casas e uma praça central com
Mas na realidade, aquilo não passava sobreviventes do Quarto 28. Igreja, fizeram do local um espaço
de uma encenação, sendo uma cidade fácil de ser transformado em
de lojas sem mercadorias, uma Theresienstadt – gueto isolado e campo modelo.
escola sem alunos e até um banco Fortaleza nazista Judeus proeminentes de renome
sem clientes. No entanto, apesar internacional foram “convidados”
das agruras, medo e sofrimento, A invasão alemã da Tchecoslováquia, pelo 3º Reich para habitar em
lá também floresceram talentos em 1939, fechou o cerco aos judeus uma cidade aprazível sob a proteção
artísticos. que ainda viviam no país. Iniciou-se do Führer. Ali teriam alojamento,
uma perseguição com a deportação alimentação e cuidados médicos,
Entre 1942-1944 sessenta moças para guetos e campos. Theresienstadt desde que assinassem um termo
judias habitaram o “Quarto 28” era uma fortaleza construída, em cedendo todos seus bens ao
do gueto de Theresienstadt. Todas 1780, pelo Imperador Josef II. Reich, que, dessa forma, guardava
tinham personalidades diferentes e Localizada a 60 km de Praga, lá foi para si a quantia de 400 milhões de
contrastantes, mas entenderam que estabelecido um gueto e um “campo marcos.

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REVISTA MORASHÁ i 86

ENTRADA DE THERESIENSTADT COM O SLOGAN “ARBEIT MACHT FREI” (O TRABALHO LIBERTA)

Gradualmente, iam chegando judeus mais opressivas, especialmente deles soldados. Após retirar a
a Theresienstadt, todos carregados de quando Adolf Eichmann decide população local, o lugar serviria
malas, preparados para uma jornada purificar racialmente o Protetorado. como gueto. Certa vez, em 1941,
sem fim. Famílias inteiras exibem Após exaustivas reuniões entre Reinhard Heydrich afirmou:
logo seus contratos com o governo, Goebbels, Heydrich e Eichmann, “Em Theresienstadt poderemos
pensando serem garantia de proteção Theresienstadt foi escolhido como acomodar entre 50.000 e 60.000
e bem-estar indefinidos. Mas, em local de trânsito para os judeus do judeus. De lá, serão enviados para
pouco tempo, os SS se apoderavam Protetorado. o Leste. Após sua evacuação
de suas bagagens, pilhando todo completa, o local será colonizado
objeto de valor. Homens respeitáveis, Em 1935, Theresienstadt já por alemães de acordo com
mulheres finamente vestidas e tinha 7.000 habitantes, metade um planejamento impecável,
crianças delicadas são despojados de transformando-se num núcleo de
seus pertences e obrigados a dormir vida alemã”.
no chão. Após noites de brutal
aprendizado, judeus saem das casas Desde 1941 chegam comboios
esgotados e sujos, com as pupilas repletos de pessoas. Os números
dilatadas de espanto. Imediatamente, são assustadores: dos 139.654
os membros das famílias são prisioneiros, 33.430 morrerão
separados para começar a trabalhar ali, enquanto outros 86.934
para a indústria alemã. serão deportados para o Leste
(principalmente Auschwitz-
Uma vez instaurado o Birkenau), e destes, 83.500 serão
Reichprotektorat (Protetorado assassinados. Numa casa que abrigava
Boêmia-Morávia), medidas 20 soldados, serão colocadas entre
antissemitas se tornam cada vez desenho de alice sittig 100 e 400 pessoas. Os prisioneiros

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SHOÁ

proeminentes poderão morar em o gueto. Foram estigmatizadas por fortalecido pelo desenrolar dos
casas com suas famílias; mas a serem “meninas judias”, sendo todas acontecimentos.
grande maioria será colocada em perseguidas, roubadas e deportadas
quartos mistos para homens e para Theresienstadt. Lá, seus Tomamos conhecimento da história
mulheres. A disparidade não foi caminhos se cruzariam. das meninas do “Quarto 28” através
apenas social e cultural, mas também da obra de Hannelore Brenner,
religiosa. Fora dos judeus, há quase O “Quarto 28” era um espaço de “Die Mädchen von Zimmer 28:
2.000 prisioneiros cristãos, 1.130 30 m² que abrigava, em média, 30 Freundschaft, Hoffnung und Überleben
católicos e 830 protestantes. meninas. Todas dormiam em beliches in Theresienstadt”. Algumas dessas
ou treliches estreitos, comiam meninas eram: Hana Epstein
Com o passar do tempo, a alimentos racionados e, à noite, (Holubicka), Eva Fischlová (Fiska),
superlotação de Theresienstadt ouviam histórias lidas em voz alta Ruth Gutmann, Irena Grünfeld,
gerou penúria e doenças graves. por uma das cuidadoras. E quando Marta Kende, Anna Lindt (Lenka),
O total de calorias na alimentação as luzes eram apagadas, conversavam Hana Lissau, Ola Löwy (Olile),
era insuficiente. Trabalhadores entre si, compartilhando suas Zdenka Löwy, Ruth Meisl,
e crianças recebiam rações experiências, pensamentos, Helena Mendl, Maria Mühlstein,
complementares, enquanto idosos preocupações e medos. Bohumila Polacék (Milka), Ruth
tinham porções menores, tendo que Popper (Poppinka), Ruth Schächter
rondar as latas de lixo espalhadas Às vezes, algumas moças eram (Zajícek), Pavla Seiner, Alice Sitting
pelo campo. subitamente retiradas de seu (Didi), Erika Stránská, Jirinka
convívio, e obrigadas a seguir em um Steiner e Emma Taub (Muska).
O quarto 28 dos temidos transportes em direção
ao Leste. Então, novas meninas Diários pessoais, álbuns de fotos,
O campo de Theresienstadt era chegavam ao “Quarto 28”, ajeitavam- cadernos com desenhos e cartas
amplo. Entre 1942-1944, moças se como podiam naquela situação, avulsas nos aproximam do mundo
com 12-14 anos moraram no assim- dando origem a novas amizades. E, dessas meninas. Há um sentimento
chamado Quarto 28, no “Abrigo para um dia, esse convívio seria também de tristeza de saber que suas
Meninas L410”. Elas faziam parte abalado pelos “transportes”. Assim, esperanças e sonhos nunca foram
das 75.666 pessoas que habitavam o grupo se formava novamente, realizados. Na imaginação da Ana
Flaschová (Flaska), que sobreviveu
à 2ª Guerra, suas companheiras
de quarto continuam sendo as
crianças de outrora, adoráveis,
criativas e talentosas; algumas
calmas e pensativas e outras mais
ativas e temperamentais. Flaska se
pergunta como teria sido o futuro
de suas amigas: Lenka, que escrevia
poemas maravilhosos; Fiska, que
inventava esquetes espirituosos e
que tanto gostava de fazer teatro;
Maria, com sua linda voz; Helena e
Erika, duas desenhistas e pintoras
talentosas. Qual teria sido a sorte de
Muska, Olile, Zdenka, Pavla, Hana,
Poppinka e Zajicek, esta última a
mais nova das meninas, tão carente e
necessitada de proteção?

Para Flaska, “o caderno de


casa das crianças. Theresienstadt. parte do filme propagandístico nazista sobre
o local recordações é mais do que uma

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1 3

2 4

1 e 2. O campo de Theresienstadt 3 e 4. as meninas do “quarto 28” que sobreviveram se reencontram em 1999

lembrança, é uma missão. A missão anseio: a derrota da Alemanha e o Este era o pacto de lealdade selado
de manter viva a lembrança das fim da guerra. Em Theresienstadt, pelas meninas do “Quarto 28”,
meninas assassinadas é a sua aquelas meninas do “Quarto 28”, que enquanto ondas devastadoras
responsabilidade pessoal”. Ao faziam parte de “Ma’agal”, fizeram de “transportes” para o Leste
folhear o álbum, consegue visualizar um juramento de fidelidade eterna. continuavam atingindo milhares de
as meninas e ouvir suas vozes. É Nas palavras de Flaska: “Sob o judeus.
como se clamassem para não serem velho campanário, na cidade antiga
esquecidas. de Praga, esperamos nos encontrar A rotina das crianças
num dos primeiros domingos após
As meninas do “Quarto 28” a guerra”. Essa era a promessa feita Em Theresienstadt, o cotidiano
formavam uma comunidade baseada quando acontecia uma despedida. era pesado. Às 7:00h da manhã
na lealdade e na amizade. Uma Uma promessa reforçada com uma todos acordavam com os gritos de
célula quase embrionária que fundou frase que, dita por elas, deve ter “Levantem-se, crianças!”, seguindo
uma organização chamada, em soado como um encantamento e uma logo para a fila do banheiro, frio
hebraico, “Ma’agal” (Círculo); uma senha secreta: e feio. Em cada andar havia duas
comunidade que compôs um hino e privadas para 120 meninas. Pela
criou uma flâmula com um círculo e, “Você acredita em mim, manhã era obrigatório arejar a roupa
dentro dele, duas mãos entrelaçadas: eu acredito em você. de cama e os cobertores. As meninas
um símbolo da perfeição, talvez Você sabe o que eu sei. colocavam as roupas sobre as janelas,
o ideal que todas almejavam. Venha o que vier, mesas ou estrados das camas.
“Ma’agal” era uma célula humana Você não me trairá, Imediatamente, eram divididas as
unida pela mesma esperança e Assim como não trairei você”. tarefas do dia: preparar o almoço,

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SHOÁ

fazer a faxina ou ajudar as pessoas célebres como Paul Klee, Vassily


idosas. Os nazistas proibiam as Kandinsky e outros nomes relevantes
crianças de estudar, mas permitiam da arte europeia. A escola Bauhaus
que tivessem aulas de desenho e tinha como fundamento filosófico
pintura. À tarde, longe dos olhares a teoria da “empatia estética”
dos nazistas, elas tinham aulas de (Einfuhlung), que resgata uma visão
matemática, história e geografia. estética sustentada na união entre
No final da tarde, os alojamentos o interno e o externo, da forma
mergulhavam em um silêncio criada não como mera representação
sepulcral, enquanto belas vozes objetiva da aparência, mas como
ecoavam do porão. Eram as canções exteriorização da relação do ser
das aulas do coral de Raphael humano com o mundo externo.
Schächte, que atraíam as meninas do
“Quarto 28”. Baseada na teoria da empatia
estética - segundo Liz Elsby -
À noite, enquanto as crianças “Friedl encorajava seus alunos a
estavam deitadas em seus beliches, Friedl Dicker-Brandeis abordar um sujeito ou um objeto
uma única palavra iluminava as não como se fossem uma câmara
intermináveis conversas: liberdade. fotográfica que apenas registra
Aquilo começava com um sussurro e “resistência cultural” em condições a imagem externa, mas a buscar
gradualmente se transformava num desumanizadoras. Constantemente, a sua essência, a percebê-lo por
verdadeiro desejo de um fim para Friedl estimulava as crianças do dentro e por fora, a ir além da
aquela guerra. gueto a encontrar a beleza no aparência e procurar identificar-se
presente, a não esquecer o passado e empaticamente com esse sujeito
Arte no gueto a não deixar de imaginar um futuro ou objeto, buscando acessar e se
promissor. identificar com suas experiências
O trabalho da educadora Friedl internas”.
Dicker-Brandeis no “Quarto 28” é Na década de 1920, a arte-educadora
fundamental para entendermos a estudou na Bauhaus com artistas Na prática, a metodologia de
Friedl Dicker-Brandeis consistia
em exercícios para favorecer o
fluir criativo, e estava composta
de diversos exercícios rítmicos,
de trabalhos de respiração e
relaxamento, de movimento corporal,
de exploração dos elementos da
linguagem visual para possibilitar
tanto o desenvolvimento da
espontaneidade criativa como
também das diferentes habilidades
artísticas. Ela incluía o ensino dos
elementos da arte nas experiências
emocionais e sensoriais de seus
alunos no aqui-e-agora, o que dava
às crianças a experiência de estarem
vivas, no sentido mais profundo e
humano do termo.

Em dezembro de 1942, Friedl


Brandeis e seu marido Pavel foram
desenho de ella stein enviados a Theresienstadt. Ela tinha

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REVISTA MORASHÁ i 86

direito de levar uma mala com alguns


quilos. Enquanto a maioria dos
deportados levava roupas, valores,
lembranças pessoais como álbuns
de fotos e objetos, em geral, Friedl
optou por levar o mínimo de roupas
e encheu a mala de materiais de arte
para dar aulas de desenho.

Contrariamente a outros artistas do


gueto, que procuravam documentar
o sofrimento em que viviam, Friedl
Brandeis estimulava a imaginação
e a percepção da beleza e harmonia
apresentação da ópera Brundibar em Theresienstadt, 23 DE SETEMBRO DE 1944
do mundo. Ela ajudou as crianças de
Theresienstadt a expressarem seus
medos e esperanças de sobreviver. Os nazistas logo perceberam o
Em suas próprias palavras: potencial propagandístico dessa
“Quando um espírito encontra iniciativa artística, organizando uma
sua própria força e se afirma sem nova encenação da ópera para o filme
medo do ridículo, irrompe uma “Theresienstadt - Eine Dokumentarfilm
nova primavera de criatividade aus den Jüdische Siedlungsgebiet”,
– é exatamente isso que estamos dirigido pelo cineasta Kurt Gerron.
buscando em nossas aulas de Esta mesma produção teatral de
desenho... Vamos incentivar a criança Brundibár foi repetida quando a
a expressar o que ela tem a dizer”. Cruz Vermelha inspecionou Terezin,
em 23 de setembro de 1944. Esta
Em outubro de 1944, aos 46 anos, seria a última das 55 apresentações
Friedl Dicker-Brandeis foi deportada no gueto.
para Auschwitz no transporte No.
167. Três dias depois era assassinada A trama de Brundibár é simples:
nas câmaras de gás. Na sua Aninka e Pepícek são duas crianças
despedida, entregou a Willy Groag cuja mãe está doente. Para a sarar,
duas malas com 3 mil desenhos que o médico lhes receitou leite e os
ficariam em Theresienstadt até o final filhos vão procurar leite ao mercado
da guerra. A maioria das 660 crianças da cidade, porém não têm dinheiro
desenhistas não sobreviveu. para comprá-lo. Três comerciantes
ofertam seus produtos: um sorveteiro,
Brundibár no campo um padeiro e um leiteiro. As crianças
tratam de obter o leite com cada um
Brundibár (O resmungão) é uma deles. Primeiramente, elas incluem
ópera para crianças, de 40 minutos. o leiteiro numa canção, mas ele lhes
Composta em 1938 por Hans Krása, informa que somente com dinheiro POSTER COLORIDO DA ÓPERA BRUNDIBÁR

com letra de Adolf Hoffmeister, poderão comprar o leite. De repente,


estreou em Praga interpretada por eles vêm Brundibár, um tocador de
crianças de um orfanato judaico. realejo resmungão, tocando numa rua
Em julho de 1943, a partitura de lotada de pessoas, e decidem incluí-lo
Brundibár foi contrabandeada na música, mas, também, sem grande
para Theresienstadt, onde Krása a sucesso. Esta atitude não agrada
orquestrou com os instrumentistas em nada nem a Brundibár nem ao
disponíveis naquele momento. público, que começam a expulsar as

71 DEZEMBRO 2014
SHOÁ

crianças. Três animais (um pássaro, do que foi Theresienstadt, então sempre bem vestidas, consultavam
um gato e um cachorro) chegam até o Tchecoslováquia. É possível que obras numa rica e agradável
lugar para ajudar Aninka e Pepícek, e essa mesma surpresa tenham biblioteca. Tudo reflete harmonia e
assim todos iniciam uma empreitada sentido os membros da Cruz tranquilidade.
para recrutar outras crianças e Vermelha Internacional na rápida Theresienstadt é tida como uma
colaborar com o plano deles. visita de inspeção às condições sociedade comunista, dirigida por
dos prisioneiros, realizada em 23 um sociólogo judeu, de alto valor, de
Dos numerosos depoimentos de junho de 1944. Na ocasião, nome Paul Eppstein (1901-1944).
sobre a ópera, há um que me tocou encontraram uma urbe de judeus; um Ele preside o Ältestenrat ou Judenrat,
sobremaneira. Nele, a menina Handa lugar onde corriam notas de dinheiro um Conselho de Anciãos da
Pollak afirmava: “Brundibár era o impressas com a efígie de Moisés e as comunidade. Além dele, 150 policiais
nosso pequeno segredo contra Hitler. Tábuas da Lei. checos fazem a guarda do gueto e 12
Nós lutávamos contra Brundibár, o oficiais nazistas comandam o lager
tocador de realejo, mas Brundibár Naquele dia, os membros da Cruz instalado na fortaleza.
não era Brundibár - era Hitler. E Vermelha ouviram um Réquiem
os comerciantes que negavam leite, de Verdi cantado pelo coral de A equipe pedagógica do campo era
pão ou sorvete às crianças não eram Theresienstadt. Os grupos de qualificada e o jardim de infância
só lojistas, eram os SS – as pessoas teatro representavam duas peças (criado para essa visita da Cruz
más. E, no final, vencíamos. Isto de Shakespeare, e nos programas Vermelha), adequado e moderno.
significava tudo para nós”. de ópera apresentava-se a ópera A escola estava bem equipada e
Carmem, Tosca e Flauta Mágica; além um cartaz indicava que as crianças
A ópera infantil Brundibár era, para de Brundibár, ópera composta por estavam de férias. O relatório da
os judeus, uma luz na escuridão, um um autor do gueto. Cruz Vermelha ainda observou que
ato de resistência, um símbolo da uma cozinha especializada preparava
esperança e da fé na vitória sobre os Pelos documentários sobre os alimentos dos pequenos.
alemães. Theresienstadt, vemos que as
orquestras, conjuntos de jazz e de Ao se iniciar a visita, os membros da
A visita da música clássica impressionaram inspeção ouvem o Dr. Paul Eppstein
Cruz Vermelha muito aos visitantes. Os esportes dizer: “Vocês irão visitar uma cidade
eram também praticados, sobretudo normal de província”. Discurso à
Assistir ao filme “O Führer o voleibol e futebol. Havia parte, Eppstein será acusado de
oferece uma cidade aos judeus” nos instalações sanitárias, 400 médicos colaborar com as organizações
coloca diante da singularidade (professores célebres), as pessoas, clandestinas da resistência ao
Reich, sendo preso pela Gestapo e
assassinado em 27 de setembro de
1944, na própria fortaleza.

O “melhor” documentário do campo


de Theresienstadt é a obra de um
prisioneiro alemão, o ator e cineasta
Kurt Gerron (1897-1944), deportado
com sua mulher para Auschwitz-
Birkenau. Hitler muito se serviu
desse filme para retrucar aos aliados
o quanto eram felizes os judeus sob a
tutela do Reich.

Desde que Eichmann anunciara


a visita da Cruz Vermelha a
Theresienstadt, a transformação
foto documenta a visita da delegação da cruz vermelha, em 1944. Theresienstadt do campo foi acelerada, fazendo

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REVISTA MORASHÁ i 86

FOTO DAS CRIANÇAS DO GUETO DE THERESIENSTADT DURANTE A VISITA de inspeção DA CRUZ VERMeLHA. Os nazistas haviam
“embelezado” o Gueto PARA enganar OS VISITANTES. TCHECOSLOVÁQUIA 23 DE JUNHO 1944

Theresienstadt, uma cidade de faz-de-conta, foi idealizada


pelos nazistas para desviar a atenção da imprensa e da Cruz
Vermelha Internacional do que realmente acontecia.

surgir jardins decorados com plantas, O “Quarto 28” e o Brasil


balanços de crianças, um coreto
para música, calçadas lavadas, O elo entre o “Quarto 28” e o Brasil
e casas recentemente pintadas. Cada se concretizou através da família de
um dos figurantes do filme ganha Erika Stránská, uma das meninas de
roupas novas, sendo instruído sobre Theresienstadt. No verão de 2012,
como devia comportar-se, ciente dos a escritora Hannelore Brenner
riscos de uma eventual desobediência. recebeu um e-mail do Brasil, da
jovem Adriana Zolko, cuja avó era
Em 23/06/1944 os ilustres Mônika Stránská Zolko, meia-
convidados tiraram fotos, recebendo irmã da Erika Stránská. O e-mail
um álbum de belas aquarelas de dizia o seguinte: “Olá, escrevo-lhe
“uma cidade normal de província”. porque minha avó era a irmã menor
O Dr. Maurice Rossel, médico de uma das meninas que viveu no
suíço da Cruz Vermelha, registrou Quarto 28, Erika Stránská. Minha
em seu relatório sobre a visita: avó se escondeu durante a guerra, ao
“Gostaríamos de dizer que ficamos erika stránská término da qual veio para o Brasil. E
muito surpresos ao encontrar aqui estamos até hoje. Sou Adriana e
no gueto uma cidade que vive vivo em São Paulo”.
uma vida praticamente normal”. bilhete nenhum de prisioneiro sobre
Pouco tempo depois, com ar de qualquer anormalidade no lugar e, Foi assim, via e-mail, que tudo
ingenuidade, o médico confessa muito menos, suspeitou de tudo ser começou. Monika tinha belas
haver sido enganado; pois jamais previamente montado para visitantes lembranças de Erika, sua irmã mais
duvidou de nada, não recebeu ocasionais. velha. Falava dela com orgulho:

73 DEZEMBRO 2014
SHOÁ

“Erika brincava muito comigo, pois anotações de diários; seus desenhos,


passava muito tempo conosco. peças de teatro, aulas de pintura
A mãe de Mônika, naquela época, secretas e poesias escritas em álbuns
tinha 23 anos, adorava crianças e de recordações, nos convidam
cuidou de Erika como se fosse sua a uma caminhada no campo de
filha”. Em 1939, a mãe da Erika, Theresienstadt.
Therese Stránská, juntamente com
sua cunhada, decidiu fugir para Theresienstadt, uma cidade de faz-
a Inglaterra, deixando Erika aos de-conta, idealizada pelos nazistas
cuidados dos avós paternos e de seu para desviar a atenção da imprensa
ex-marido e pai de Erika, George e da Cruz Vermelha Internacional
Stránská. George estava separado do que realmente acontecia.
de Therese e se casou novamente Uma história feita de tristeza, de
com Valerie Stettina. Em novembro amizade, compaixão e, sobretudo, de
de 1937 nasceu sua filha Mônika. esperança...
Quando Therese deixou sua filha hannelore brenNer
Erika em Praga, tinha certeza que
estava em boas mãos, cercada do
Bibliografia
carinho da família de seu pai. E, Palavras finais Brenner, Hannelore., “As meninas
realmente foi assim, até começarem do Quarto 28: Amizade, esperança e
os transportes em 1941. No decorrer da 2a Guerra, milhares sobrevivência em Theresienstadt. Texto
Editores, um grupo da Editora Leya. São
de judeus perderam a pátria, a Paulo 2014, 414 págs.
Erika Stránská foi levada a dignidade e as vidas. Suas histórias
Theresienstadt em setembro de são muito semelhantes àquelas Elsby, Liz, Coping through art - Friedl
Dicker-Brandeis and the children of
1941. A dor e a tristeza pelo destino que já conhecemos e, ao mesmo Theresienstadt. The International School
da irmã mais velha acompanham tempo são tão diferentes e únicas for Holocaust Studies, 2013.
Monika Zolko por toda a vida. Erika quanto seus nomes e atividades que
Kramer, Edith. On Friedl. In Wix,
morou no “Quarto 28” até 1944. desenvolviam. Linney. Through a narrow window: Friedl
Em 16 de maio, subiu em um vagão Dicker-Brandeis and her Terezin students.
e partiu rumo a Auschwitz quando Foram 60 meninas que conviveram University of New Mexico Press, 2010,
durante dois anos, mas delas apenas pp. 1-3.
faltavam seis dias para completar seu
14° aniversário. Nesse dia Erika havia 15 sobreviveram. Suas histórias, Makarova, E. Friedl Dicker-Brandeis.
morrido. mescladas com fatos históricos e Los Angeles: Tallfellow/Every Picture
Press, 2001.
Wix, Linney, Aesthetic Empathy in
Teaching Art to Children: The Work of
Friedl Dicker-Brandeis in Terezin. Art
Therapy: Journal of the American Art
Therapy Association 26(4) pp. 152-158.
Wix, Linney. Through a narrow window:
Friedl Dicker-Brandeis and her Terezin
students. University of New Mexico
Press. México 2010.

Prof. Reuven Faingold é historiador


e educador, PHD em História e História
Judaica pela Universidade Hebraica de
Jerusalém. É também sócio fundador
da Sociedade Genealógica Judaica
do Brasil e, desde 1984, membro do
Congresso Mundial de Ciências Judaicas
maio de 1945. internos no campo de Theresienstadt durante a libertação, de Jerusalém.

74
CARTAS REVISTA MORASHÁ

Escrevo para dizer o quanto fiquei impressionado com


a edição 84 da Morashá. Com um belo design gráfico,
muito bem editada e altamente informativa, de forma
muito equilibrada. Kol hakavod e muito sucesso no
cumprimento de seu importante trabalho comunitário em
prol do povo de Israel.
Rabbi Laibl Wolf
Spiritgrow Josef Kryss Wholistic Centre
Vitória, Austrália

Sempre fantástica a Morashá, Ao longo de tantos anos venho A ‘nossa’ revista Morashá, edição
não tenho palavras. Achei muito recebendo essa belíssima de Rosh Hashaná, está um primor
interessante as matérias sobre a Herança Espiritual que trouxe e é sempre muito bem-vinda.
comunidade judaica da Ucrânia, e vem trazendo benefícios na Agradeço imensamente pela
dessa e da outra edição, vocês minha vida espiritual, social e abrangência com que a matéria
conseguiram situar os judeus na intelectual. Hoje, sou com Enrico Macias chega em
história do país. Parabéns. Adorei, e um judeu religioso e observante nossas casas, no momento em que
aprendi muito com a matéria sobre e credito não somente à minha precisamos contar com pessoas
as “Quatro espécies de Sucot e o Sinagoga como, também, a vocês corajosas, exemplares, que não
que nos ensinam”. Que D´us vos da Morashá! No ano que vem irei apenas cantem... mas que, com
possa dar forças para continuar esse viver em Israel, porém, quero que suas palavras, tomem atitudes
trabalho tão importante. o meu lar continue sendo um certeiras. Enrico Macias representa
Ricardo Berenst
portal de bênçãos e todos os meus o imigrante judeu na sua eterna
Rio de Janeiro - RJ familiares tenham o privilégio de busca de refúgio e parnassá em um
continuar recebendo a revista! país onde é respeitado e bem-vindo.
A maravilhosa revista Morashá Assim, minha família e eu Fazer aliá neste momento é servir
é um elo de ligação entre os combinamos que após Morashá a Israel e encaminhar a sua família
membros da comunidade judaica ser lida por eles, irão remetê-las para a um futuro promissor. Através
de Milão, visto que circula em todo onde eu estiver morando em Israel. da Morashá poderemos conhecer
o seu núcleo de amizades. Também Marcio Shmuel
um pouco mais da sua biografia e
é repassada a algumas casas de Rio de Janeiro - RJ extraordinária trajetória.
repouso para idosos judeus. Ana Rosa Rojtenberg
Andrea Massarani
Quero agradecer à revista São Paulo - SP
Milano - Itália Morashá pela oportunidade de
oferecer aos meus filhos tão valioso A revista chegou na véspera
Salve Ano Novo 5775! Desejo instrumento sobre nossa origem. de Rosh Hashaná, em Shabat Tshuvá
que o toque do Shofar assegure É com a revista que aprendemos e e no dia de Tsom Guedalia,
que todos os seus sejam inscritos seguimos tradições judaicas. Através foi um elixir para o conhecimento.
no Livro da Vida com saúde, dela rezamos e comemoramos as Nosso agradecimento a todos
paz e sucesso em todos seus festas. que compõem a família Morashá
empreendimentos. Issac Chose
pela excelente publicação,
Meer Gurfinkel
Goiânia - GO que educa a todos os leitores.
Rio de Janeiro - RJ Com desejos de um Shaná Tová,
Parabenizo pelo maravilhoso que sejamos inscritos no Livro
Morashá é uma leitura que enche trabalho e rico conteúdo que nos da Vida, da saúde, do sustento,
minha terceira idade de alegria! trazem a cada exemplar da Morashá. da Paz.
Angela Frossard Fernando Skitnevsky Arie Dov Najmanovich
Petrópolis, RJ São Paulo - SP Porto Alegre - RS

75 dezembro 2014

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