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Resumo
O artigo estuda a “festa brasileira”, representação de caráter teatral
encenada durante a entrada de Henrique II em Rouen em 1550, cujo tema era a
vida dos índios brasileiros. Num primeiro momento, analisamos a documentação
existente sobre o evento, para em seguida descrever como se deu a encenação,
enfatizando o caráter idealizado atribuído à figura do índio. A “festa brasileira”
articulava-se com outro espetáculo da entrada: a naumaquia, o combate naval
entre franceses e portugueses. Ambas as atrações, por sua vez, fazem parte de
uma todo maior, que inclui as alegorias apresentadas em Rouen intramuros. O
conjunto consistia em criar um grande espetáculo que representasse o triunfo
da monarquia e da civilização francesas em articulação com um projeto de
expansão territorial de além-mar: a conquista do Brasil. Em Rouen, assistiu-se à
encenação de um projeto colonial que pretendia ser diferente daquele praticado
pelos espanhóis e portugueses no Novo Mundo. Os franceses imaginavam um
modelo de colonização que consistia na execução de uma política de aproximação
com os silvícolas, e não na sua eliminação física ou escravidão. A isso chamamos
de “política do bom selvagem”.
Palavras-chave
Henrique II, festa brasileira, bom selvagem.
1. Preliminares e documentação
A entrada de Henrique II e Catarina de Médicis em Rouen nos
dias 1° e 2 de outubro de 1550 é um dos exemplos mais representativos
da formação do mito do bom selvagem na França. Existe uma relação
entre a representação do índio mostrada nessa entrada e aquela elaborada
por Michel de Montaigne nos seus Ensaios: são, no século XVI, as duas
mais importantes manifestações dessa legenda que se tornou uma tópica
do pensamento e do imaginário franceses.
Esta entrada foi estudada principalmente por historiadores
franceses e anglo-americanos, mas muito pouco por brasileiros, em que
pese sua relevância histórica1. Esses estudos mostraram a riqueza e as
dimensões desse evento ao mesmo tempo político, social e cultural.
Parece-nos, contudo, que a significação ideológica da participação dos
índios brasileiros no conjunto das atrações da entrada não foi ainda
suficientemente estudada. Não pretendemos preencher completamente
essa lacuna, apenas oferecer ao público brasileiro interessado no assunto
uma visão de conjunto dos acontecimentos, procurando trazer à luz seus
aspectos ideológicos, mostrando como eles se articulam com a encenação
1
Ver bibliografia. O estudo
mais conhecido sobre esta
teatral sobre a vida dos índios brasileiros. entrada foi publicado por
Como todas as entradas reais, esta foi estruturada a partir de um DENIS (1850). O mais
“roteiro”, uma idéia-central que ordenava as partes de um conjunto. A completo dói publicado
por POTTIER (1835),
idéia consistia em criar um espetáculo que representasse o triunfo da conservador dos arquivos
monarquia e da civilização francesas em articulação com um projeto da cidade, na Revue de
de expansão territorial de além-mar: a conquista do Brasil. Em Rouen, Rouen. Um extrato do texto
de Pottier foi publicado,
assistiu-se à encenação de um projeto colonial que pretendia ser
em forma de brochura, no
diferente daquele praticado pelos espanhóis e portugueses no Novo “Programa das Festas de
Mundo. Os franceses imaginavam um modelo de colonização que Rouen dos dias 12, 13 e 14
consistia na execução de uma política de aproximação com os silvícolas, de junho de 1880, seguido de
uma notícia historiográfica
e não na sua eliminação física ou escravidão. O objetivo era fazer dos sobre a entrada de Henrique
índios, num primeiro momento, parceiros comerciais (na perspectiva II em Rouen em 1550” (p.
da exploração econômica do Brasil) e, num segundo, novos súditos 1-26). A entrada de 1550 foi
re-encenada na mesma cidade
de um rei humanitário e esclarecido (na perspectiva da implantação trezentos e trinta anos depois,
da “civilização francesa” em terras americanas). Para obter êxito em mas sem algumas das atrações
seu projeto, os franceses contavam com a evangelização dos nativos, a originais, como a naumaquia
e a “festa brasileira”. Outros
introdução da agricultura e o desenvolvimento de uma sociedade civil.
estudos franceses importantes
O culto das letras, das artes e das ciências, além da observância às regras são o de MERVAL
da civilidade e das boas maneiras, fazia implicitamente parte desse (1868), CHARTROU
projeto de civilização. (1928), DESCHMAPS
(1973), MASSA (1975) e
A entrada de Rouen foi também um acontecimento diplomático, DIERICKX (1986). No
como normalmente era esse tipo de evento, graças à presença de domínio anglo-americano, há
embaixadores estrangeiros. Os embaixadores da Espanha e Portugal, estudos relevantes, como o de
McGOWAN (1968) e o de
adversários da França na colonização do Novo Mundo, estavam WINTROUB (1999). Entre
presentes às festividades. Naquele mesmo ano, acontecia uma polêmica os brasileiros, poderíamos citar
intelectual em Valladolid, Espanha, opondo o dominicano Bartolomeu MELO FRANCO (1937),
que deteve-se brevemente
de Las Casas e o jurista Juan de Sepúlveda, em torno da questão da
sobre esta entrada, assim como
PERONE-MOISÉS (1996).
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José Alexandrino de Souza Filho
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A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
2. A “festa brasileira” 4
As miniaturas medem 12 cm
de altura por 22 cm de largura.
Esta encenação permite visualizar em imagens, como nenhum 5
Cf. CHARTROU,
documento escrito poderia fazê-lo, como se dava a ação dos franceses 1928, p. 92-95.
nos primeiros tempos da colonização do Brasil. Por seu caráter teatral,
o espetáculo é uma representação das atividades dos traficantes 6
Graças, sobretudo, ao livro
normandos de pau-brasil, embora seja claramente uma representação de Ferdinand Denis Une fête
brésilienne célébrée à Rouen en
ideologicamente orientada. 1550, publicado em Paris
em 1850.
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A «festa brasileira»
Encenação representando a vida dos índios brasileiros. Cerca de 50 índios, trazidos à França pelos comerciantes de
pau-brasil, participaram do espetáculo, juntamente com cerca de 250 franceses, nus e pintados à moda indígena.
Vê-se, em primeiro plano, a cena da guerra. Assiste-se a uma batalha entre Tupinambás e Potiguaras, com a
vitória dos primeiros, aliados comerciais dos franceses no tráfico de pau-brasil. Em segundo plano, à esquerda, vê-
se o abate e transporte das toras de madeira para os barcos franceses. Clichê da Biblioteca Municipal de Rouen.
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A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
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A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
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Naumaquia
Combate naval entre franceses e portugueses. Em primeiro plano, à esquerda, um barco francês bombardeia outro
português; os marinheiros portugueses fogem à nado, enquanto sua embarcação é incendiada. No centro da imagem,
Netuno desfila em sua carragem puxada por cavalos do mar, sendo escortado por outras entidades mitológicas, como
sereias, nereidas etc. Homens fantasiados de tritões se jogam da ponte Mathilde nas águas do Sena. O espetáculo
representa as pretensões francesas sobre o território americano, especialmente o Brasil. Cinco anos depois, os franceses
puseram em prática seu plano, com a fundação da França Antártica por Nicolas Durand de Villegagnon, no Rio de
Janeiro. Clichê da Biblioteca Municipal de Rouen.
José Alexandrino de Souza Filho
11
Cf. DECRUE, 1885, p.394, finado pai, Francisco I, houvera assinado contra as embarcações lusas. O
em que o autor observa, a
pedido é deferido e os franceses proibidos de “ir às navegações do rei de
esse respeito : “Montmorency
favoreceu os empreendimentos Portugal” bem como a “nenhuma terra descoberta pelos portugueses”13.
marítimos dos franceses na A naumaquia de Rouen demonstra claramente que havia intenção dos
Índia e no Brasil. Era uma franceses em ocupar parte do território americano.
ameaça ao rei de Portugal,
aliado do Imperador [Carlos
Quinto]. No verão de 1540,
ele encorajou Jacques Cartier
a ir às Terras Novas, com um 4. “Política do bom selvagem”
destacamento de soldados, o
qual foi posto sob as ordens de Conforme já foi assinalado, o projeto francês de colonização
Clément Marot”. do Novo Mundo pretendia ser melhor do que o dos espanhóis e
portugueses. Seu principal argumento era a própria superioridade da
12
Niccolo Tommaseo registra
a observação de Cavalli, em “civilização” francesa. Tal pretensão era o produto de uma política de
suas Relations des ambassadeurs auto-afirmação da identidade nacional impulsionada pelo dinamismo
vénitiens: “Com Portugal, não é cultural característico do Renascimento francês. No contexto das disputas
possível ter bom entendimento,
uma vez que continua a haver políticas, diplomáticas, intelectuais e militares em torno da colonização
uma guerra surda entre os dois das terras americanas, a entrada de Henrique II em Rouen adquire a
paises: os franceses pretendem consistência de um programa de ações e os contornos de uma peça de
navegar até a Guiné e o Brasil,
coisa que os portugueses não
propaganda política. As alegorias desta entrada mostram que havia um
aceitam de nenhuma maneira”. projeto de expansão geopolítica fundamentado no culto às origens e ao
Citado por McGOWAN, gênio nacional. A “política do bom selvagem” procurava promover uma
1968, p. 223-224.
imagem redentora da civilização francesa, a única que não fazia de sua
superioridade cultural um argumento para justificar a exterminação ou
a degradação humana dos povos nativos do continente americano, ao
contrário, esse era justamente o elemento diferenciador em relação aos
modelos ibéricos de colonização. Estas são, ao menos teoricamente, as
bases ideológicas do projeto colonial francês para o Novo Mundo e mais
particularmente para o Brasil.
Dizemos projeto no duplo sentido da palavra: uma “filosofia” de
ação e a antecipação de um programa de atividades. Este programa foi
exibido pública e solenemente durante a entrada de Rouen, não sem
alguma audácia e provocação. O acontecimento se deu cinco anos antes
da execução do programa, com a fundação da França Antártica, na baía
de Guanabara, a cargo de Villegagnon. Havia a intenção de pôr em
prática uma política expansionista “politicamente correta”.
As diferentes etapas e a variedade de atrações dessa entrada
descrevem um processo evolutivo que vai da “barbárie” brasileira até a
“civilização” francesa. Da floresta tropical aos jardins “à francesa”, aos
espectadores da entrada de Rouen em 1550 se apresenta um modelo de
evolução histórica. A civilização “à francesa” pretende se distinguir das
suas congêneres européias pela doçura de seus costumes, a organização
de sua sociedade e o brilho de sua cultura. Enquanto outros se impõem
pela força e pela violência, os franceses querem convencer pela sua
eloqüência, civilidade e sabedoria. A auto-afirmação nacional estava a
serviço de um projeto de expansão colonial onde o Brasil aparece como
13
Cf. HEULHARD, alvo privilegiado. A exaltação da civilização “à francesa” não se faz,
1897, p. 90. porém, em detrimento da “barbárie” brasileira. Ao contrario, esta é vista
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«Cenas do bom selvagem»
Representação idealizada da vida dos índios brasileiros, composta de cenas bucólicas mostrando uma existência simples
e feliz. Nenhuma alusão ao canibalismo. A imagem edulcorada atendia aos interesses do Estado francês, cuja política
em matéria de relações internacionais consistia em difundir outro modelo de colonização para o Novo Mundo, diferente
dos métodos «bárbaros» empregados pelos espanhóis e portugueses. Ao contrário desses, os franceses não pretendiam
escravizar nem eliminar os «selvagens», mas aliar-se com eles, a fim de explorar economicamente as novas terras. A
«doçura» do método simbolizava, nesse caso, a superioridade da civilização francesa sobre as outras nações européias.
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A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
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fosse preciso aniquilá-los, teria sido em vão que o mesmo Salvador teria
dito aos apóstolos: “Ide mundo afora e pregueis o Evangelho a todas as
criaturas.14
Bibliografia
Fontes primárias
EPITHOME en Rhitme Françoyse sur l’entrée, du tres puissant, & tres victorieux
Roy de France, Henry Second de ce nom, en sa ville & cité de Rouen, le premier jour
d’Octobre, mil cinq cens cinquante, & presentée audict Seigneur.Avec privilege. A
Rouen, pour Robert le Hoy, librairie demourãnt en la rue sainct Nicolas, 1552.
Cota Bibliothèque Nationale de France: Ye 423 Rés.
C’EST LA DEDUCTION du sumptueux ordre plaisantz spectacles et magnifiques
theatres dresses, et exhibes par les citoiens de Rouen ville Metropolitaine du pays
de Normandie, A la sacree Majesté du Treschistien Roy de France, Henry secõd
leur souverain Seigneur, Et à Tresillustre dame, ma Dame Katharine de Medicis,
La Royne son espouze, lors de leur triumphant joyeulx & nouvel advenement en
icelle ville, Qui fut es jours de Mercredy & ieudy premier & secõd jours d’Octobre,
Mil cinq cens cinquante, Et pour plus expresse intelligence de ce tant excellent
triumphe, Les figures & pourtraictz des principaulx aornementz d’iceluy y sont
apposez chascun en son lieu comme l’on pourra veoir par le discours de l’histoire.
Avec privilege du Roy. On les vend a rouen chez Robert le Hoy Robert & Jehan
14
Ver também dictz du Gord tenantz leur boutique, Au portail des Libraires, 1551. Cota
LESTRINGANT, Bibliothèque Municipale de Rouen: N 112-6.
1990, p. 226-270.
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A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”
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José Alexandrino de Souza Filho
McGOWAN, Margaret. Form and Themes in Henri II’s Entry into Rouen.
Renaissance Drama, 1, 1968, pp. 199-252.
MELO FRANCO, Afonso Arinos de. O Índio brasileiro e a Revolução
francesa. As origens brasileiras da teoria da bondade natural. Rio de
Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1976.
MONTAIGNE, Michel de. Les Essais. Edition Pierre Villey. Paris, Presses
Universitaires de France, 1999.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vinte luas – Viagem de Paulmier de Gonneville
ao Brasil : 1503-1505. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
POTTIER, André. Entrée de Henri II à Rouen. Revue de Rouen, Tome
cinquième. Rouen, Imprimerie de Nicétas Periaux, 1835, pp. 28-43 et 84-
108. Des extraits ont été reproduits dans le Programme des fêtes de Rouen des
12, 13 et 14 Juin 1880, suivi d’une notice historique sur l’entrée de Henri II à
Rouen en 1550.
STADEN, Hans. Nus, féroces et anthropophages. Traduit de l’anglais par
Henri Ternaux Compans. Paris, A. M. Métaillé, 1979.
THEVET, André. Les Singularités de la France Antarctique (1557). (Le
Brésil d’André Thevet). Edition intégrale établie, présentée & annotée par
Frank Lestringant. Paris, Editions Chandeigne, 1997.
WINTROUB, Michael. Taking Stock At the End of the World: Rites of
Distinction and Pratices of Collecting in Early Modern Europe. Studies in
History and Philosophy of Science. Vol. 30, N° 3, 1999, pp. 395-424.
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