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O

O
INDETERMINISTA

org. Luther Blisset


Luther Loide Blissett é um ex-jogador de sença de diversas partes de animais es-
futebol, treinador do futebol inglês, ro- palhadas pela cidade, porém, na melhor
mancista, intelectual; um Robin Hood da de suas performances, tudo não pas-
era cibernética. Nascido em Falmouth, sava de uma crítica ao sensacionalismo
em 1 de fevereiro de 1958 na Jamaica, da mídia italiana. Passou alguns anos or-
Blissett teve uma passagem de destaque ganizando inúmeras zombarias; notícias
como jogador pelo clube inglês Watford, falsas à mídia, coordenando heterodoxas
onde começou a carreira, em 1975. campanhas de solidariedade a vítimas
Foram 415 partidas e 148 gols, deix- da repressão, promovendo não-seques-
ando seu nome na história da equipe. tros. Também atuou como treinador de
Atuou também por Milan, Bournemouth, futebol no seu time de origem Watford
WBA, Bury, Derry City, Mansfield Town até 2001 e em outro clubes até assi-
e Southport. Blissett encerrou sua car- nar o contrato com Hemel em 2010.
reira em 1996 como jogador, atuando
em divisões semi-profissionais da Ingla- Este é seu primeiro ensaio documental
terra, jogando por Wimborne Town e criado durante uma breve passagem pelo
Fakenham Town. Porém, dois anos antes Brasil, em que se apoia apenas em fatos
de sua aposentadoria, em rápida pas- reais peculiares e até então não publica-
sagem de veraneio pela Italia, realiza sua dos. Aparentemente, seu interesse atual
primeira obra horrorista. Em Bolonha, está direcionado a visibilizar casos e re-
envia milhares de cartas aos veículos latos deixados de escanteio pela mídia
midiáticos locais, alertando sobre a pre- brasileira.
Em 1932, durante o programa Hora
Paulista da Rádio Tupi (ZYK656, frequên-
cia AM, 1150 Khz), um tipo relatara fu-
gazmente o quase linchamento, que teve
orgulho de participar durante a procissão
de Corpus Christi, ocorrida no centro de
São Paulo.

No período de revitalização do acervo da


Rádio pela Editora Abril, ocorrida no ano
de 1994, foram encontradas diversas fi-
tas magnéticas, dentre as quais figurava
a transcrição que segue:
Fita A32.7 (st9)

Considerações quem era aquele cara lá é aquele do chapéu sem


noção tava pedindo quem ele achava que era e quis levantar a voz pra
mim, bem pra mim, quem ele acha que era quem ele acha que era real-
mente deixa eu trombar ele de novo tu te prepara, burguês, vem mexer
com a procissão, as madames todas horrorizadas você mandou bem em
afrontar aquele peça deixa ele colar por aí marquei bem a cara do su-
jeito engomadinho de merda a gente devia ter esfregado a cara dele no
paralelepípedo isso sim os padres iam benzer ah, com certeza, iam benzer
a gente ele tava tirando com não só a cara da gente mas com a de deus
tava sim tirando uma com deus engomadinho de merda devia ter tava
querendo provar o que pra quem vagabundo sem noção me deixou grilado
arrastava a cara dele daqui até a lapa cês sabem no calo de quem ele pisou
fruto podre aquele não vale nem um vintém mas cê viu quando eu disse
vai lá então coloca este chapéu pra cê ver o que acontece um contra mil
um contra mil você sempre foi e sempre vai ser porquê os merdas são
minoria sempre os merdas burguesinho de merda deviam sim ah deviam
sim ter linchado ele ali, no meio da procissão, não curtiria sujar meus
sapatos com tripa de pouca bosta não, hahaha, não vale a graxa foi lindo
desse duas duas o quê? Cachaça, porra o que mais, não tá vendo que tem
cinco copos vazios aqui já foi lindo não foi, todo mundo gritando, foi lindo,
não foi? “lincha, lincha”, um merda a menos no mundo, foi lindo não foi?
“lincha”, até as madames gritavam “lincha” até as crianças gritavam “lin-
cha” se os cachorros falasse também latiriam “lincha” e os cavalos e os
policiais a mesma quem precisa de gente que é assim que vai contra deus
que vai contra tudo quem precisa que mundo precisa? Não o meu, não
assumo, não o meu, me nego! Traz mais duas, duas dessa, isso, do alam-
bique, me nego a viver num mundo assim me nego vou lutar! Vou lutar e
vou linchar! Gólgota, quem é gólgota? Que se exploda essa tal de gólgota,
não conheço essa vagabunda! Vagabunda sim! Pros infernos, ela e o cha-
péu daquele filho da puta!
Ao falecimento do Bispo Cândido Padin
Quaçuy em 2003, foram encontrados
documentos durante a limpeza de seu
gabinete. No interior de seu travesseiro
continha uma carta e uma pequena ano-
tação em seu envelope, assinada por ele
mesmo. Lia-se:

“Nunca obtive a coragem. Perdoe-me


Jesus, por não entregá-la. Não pude per-
der meu desejo pelo escrito. Não pude
conhecer a jovem. Nem ao menos pedi
por isso. Nem pude saber seu nome. Só
a carta satisfez-me até hoje. Perdoa-me
Senhor. Cândido Padin Quaçuy, 1932”.

Aqui, transcrevemos-a.
Três batidas na porta, mas nenhuma palavra. Já é quase hora.
Arrasto-me até o quarto de banho, carrego uma bacia de metal e ramos
de flores secas. Olho com certa desconfiança paras as vestes brancas ca-
prichosamente engomadas que repousam sobre aquele banco de madeira
abaixo da janela. Decisivamente conheço o que diverge dessa limpeza de
corpos, mas serei hoje a dileta das mulheres que cristo amou. Seguimos
em silêncio ao encontro dos justos e distanciando-me do olhar da SEVE-
RA vociferam cânticos desconhecidos e me junto às filhas daquela outra
mãe. Por debaixo do saiote não uso roupa interior pretextando calor que
tais aglomerações me provocam. Percebo uma agitação fora da cadência
vagarosa do cortejo e me aproximo abanando a barra alva da saia. Entre
os corpos aglomerados e gritos fervorosos, nossos olhares se cruzaram.
Visto em meu rosto um sorrisinho casto e provocador enquanto me lem-
bro das promessas antigas de casamento. Eu tinha doze ou treze anos. E
doer, aí doeu, ele era enorme. Mas enquanto virgem também de fantasia,
meu contentamento superava qualquer dor. Ele pedia que eu não contasse
a ninguém, nem mesmo a minha melhor amiga que, depois eu descobri,
ele também à devorava. Mas não me queixo, ainda hoje me deleito sobre o
gramado do jardim onde, no centro, ele cultivou um canteiro de lavanda
e alecrim. Ele se finge desconhecido, camufla-se rapidamente ao grupo de
homens do cortejo que continuam a ofender e a ameaçar o desconhecido
à minha face. Também olho para esse sujeito com o olhar mais pudico do
que o direcionado anteriormente. O homem mais canalha que conheci não
usava chapéu.
Em outubro de 1993, no bairro Vila Nova
Joaquina, Paulínia – SP, Brasil, centenas
de pessoas foram trancadas em suas
propriedades. Autoridades locais relatam
que mais de 300 cadeados foram utiliza-
dos para cercear os cidadãos em suas
casas. Curiosamente, no dia anterior
ocorreram diversas pichações espalha-
das nos muros da cidade, com dizeres de
caráter ambíguo: “Citoyens, GO HOME!”
[Cidadãos, VÃO PARA CASA!].

Ao analisar a intervenção realizada,


propôs-se procurar recorrências de dis-
curso que o ato podia ter gerado. Em con-
versa, Sr. Cícero Correia, único chaveiro
do bairro, revelou que ao abrir as casas
encontrou preso em um dos cadeados o
seguinte texto escrito a mão.
Quando sou rua, quando sou casa. Quando não posso e não aceito
ser nenhum.
Ao retornar não fui mais eu, pois na impossibilidade de sair me
estremeceu a passivel memória de estar. Alguém que não pensa me fez
entreter comigo mesma. Que descaso, disse ao resto na mesa. Restos,
penso ao que não abriga meu eu. Estamos à sós conosco, e ainda assim,
não nos deixam ser mais que isso... ser habitantes de nossa cidade! O que
farei aqui, presa. Estou presa, e desalarmada com o resto, ou melhor, me
fizeram estar. Proponho-me uma visão pela janela, e nada. Será que nin-
guém se preocupou em transcender este estado? Quando posso estar em
casa, ou melhor, quando me fizeram estar em casa, não desejo. Tudo que
sempre é imposto é desnecessário à nós. Quero impor a mim mesma, oras.
Pois isso me faz me autojulgar, me fazer querer destruir minha própria
casa para querer sair, o que me traz a ideia que posso ser uma pessoa
absurda por querer isso. Disso não posso, alguma coisa vai acontecer, há
de ter uma boa alma para me tirar desta situação. Compassos de coração.
Mesmo assim não vejo nada afora. Só aqui.
A liberdade me foi retirada. Não quero me comprometer com isso.
Ou devo? Estraçalhar a janela, serrar as grades? É minha casa, como pode
alguém, que não mora comigo, se dar a liberdade de me trancar aqui? E
por quanto tempo? Devo, eu, somente eu, agir? Alguém grita pra me fazer
sentir potente.
Isso tudo me faz pensar que estar aqui comigo, não estou, estou
o tempo todo pensando que quero outra coisa. A TV ligada me falando
de outro lugar, aquele amigo me falando dele, a outra pessoa, aquela out-
ra pessoa falando com outra pessoa no celular, ao meu lado no almoço,
aquele caminhão que passa. Aquilo, aquilo, menos eu aqui. Tudo reflete
pra me trazer para fora, e, no entanto, me sinto um ser incapacitado se
me dizem para ficar em casa, sem motivos. Mas tanto faz para quem esta
lá fora. Mais um dia engaiolado por uma ideia, o que pode me ferir? Vou
dormir por uma semana que nem eu vou me perceber.
Distorção.
Por que me chamas pelo meu nome-de-rua e por que raios me im-
põe ir para minha-própria casa? O que ele quer dizer? Nada como um ser
alheio a mim, me impondo coisas que não posso escolher. A escolha está
dentro de mim, que se foda o resto. A cidade impõe o medo, mas o medo
mora em mim quando estou só. Os habitantes-próprios tem propriedades
inabitáveis.
O que vi na rua outro dia me alarmou, tanto me refez. Pensei no que
era dia e no que era noite, pensei no que eu era na rua e dentro de mim. Me
pus no lugar de cada um que o visse, aquele chamado. Ou aquela pertur-
bada reclusão. Afinal, o que me chamava para casa e o que me chamava
para rua? Destinos que eu próprio tracei como metas do que poderia ser.
Se não saísse não seria.
Quando descansei em casa pensei no que faria na rua. A casa serve
para pensar no outro lado. O que faria se eu me refizesse nos lados de
fora do meu-eu- descanso? O que me fez ir para casa senão a compulsória
e pasmática avenida turbulenta que não me deixava pensar. Sentar na
praça seria bom, até o próximo ruído. Precisar tomar decisões fora de
casa, talvez seria possível, e na verdade, fazemos isso o tempo todo, mas
as decisões são diferentes, mais impulsórias. Ser-público é quase impar-
cial com nós mesmos em alguns momentos. Talvez nem saiba o que me im-
peça ser, fora de casa. Às vezes preciso pensar ao contrário para entender
o que eu quero, já que tudo tende a ser duas coisas. A cidade também hab-
ita uma casa.
Na minha casa não preciso me preocupar com o que os outros vão
pensar, mas também sou observador. E por que na rua os olhares são de
aprovação ou não, sendo que cada um é cada um? A aprovação acaba por
ser de nós mesmos, seres duplos, públicos e privados. Seres que nós in-
ventamos. Paradigmas. E isso me invade: Tudo o que as pessoas dizem ser
privado é tão público quanto parece, já que todo mundo faz e sabe que o
outro faz. Por que não o devo fazer em público? Assim como muitas vezes
o que sinto ser eu dentro não condiz com o eu aqui fora. Na rua sinto pre-
cisar não parecer louco comigo mesma, manter aquele ar parado de mim
mesmo, aquela paisagem imaginária para vermos seguir quando nos en-
caram. O bom dia tem que ser calmo e exuberante. Ser-público é ter que
ser pragmático. Já que só te vejo fora de casa, vamos manter os limites.
Qual a diferença então, já que somos seres individuais, entre estar em
casa e estar fora dela. Dentro sou individualista, individualizada por mim
mesmo, e fora, me trato como ser individual, perante a um coletivo. Posso
me preocupar com o outro ao lado, mas ele pode nem saber que estou lá.
Está individualizado para ele mesmo. Não me resta apenas, ser eu para
mim. Ah, que ambiguidade!, ser um-coletivo, se nos tratam como ser-na-
da-além-do-outro. “O que importa é o que eu sinto. O que importa é como
estou, e não só como sou.” Mostrar o estar é pisar para fora de casa. Se
não o quero, não saio. Quando sou?
A ideia de exigência está posta por todos os lados. A natureza indi-
vidual humana deseja estar plena, por isso as demandas são obedecidas,
para uma breve sobrevivência, mas elas se tornam interiores e perdem
o valor de ser cada-um. Porém, quem as produz publicamente? Seriam
pelos confins da maioria? Não. Se não tivesse uma casa, não pensaria no
eu-casa. A rua me constrói, então a ideia de casa é assim, subjetivada por
mim. Só pelo fato de termos coisas. Quem não possui coisas, casas, de-
mandas, tem um certo livre arbítrio de criar, talvez um efêmero estar? Se
não me sinto bem em casa, então porque construí-la. As coisas precisam
de casas, não nós. Talvez porque nós nos resumimos em coisas. Externa-
mente somos coisas, e de lá de dentro nada importa. Só te vejo na rua.
Que raios de objetivos são esses que se confinam em casa. Afirmação de
alguma história para alguém ler, ou eu, enquanto presença ínfima sã.
Despossuir por estar tão próximo.
Nada se confirma. Ainda estou preso lá fora, e, em mim mesmo sem-
pre desejaram que de fato não estivesse. Os casos amorosos, as histórias
que se prendem aqui dentro de mim. Não confabulam e não condizem com
que eu queria. Alguém me mandou nascer, nasci e aqui estou, em casa,
por alguém que obrigou a me fazer pensar em tudo isso. Não estou em
nenhum lugar, mesmo pretendendo estar em palavras. Estas mesmas não
se perduram se o ato não acontece. Um descaso com os outros, já que não
somos um todo o tempo. Um descaso comigo, já que caso com o outro.
Palavra adubada. Anulada por duplos significados. A tensão da
prévia estância que pode ser causada pelo amanhã. Quem sabe talvez.
Amanhã não seja mais eu. A memória me corrompe. Assim que me vi
atribuida à uma ação do outro que nunca sairá do anonimato, um ser in-
constânte me tomou, e me vi claramente nunca nítida. Perpasso entre
mil-eus. Após esta ação não terei palavras para os montes, nem olhos de
paisagem para o verde. Ser duplo que diz adeus. Obscenidade que é fazer
o outro atar-se.
Sentimento de coisa. Sentimento de nada.
Quando a rua invade a casa. Imprevisível ela fica, coincidem-se os
sentimentos.
Em 15 de junho de 2016, Dona Ivete
Schuster, viúva e mãe de três filhas, com
72 anos de idade, recém completados no
dia 24 de Maio, se instalou na escadaria
da prefeitura da cidade de Balneário de
Pinhal (RS, Brasil). Após ter passado dois
dias exposta a temperaturas variáveis en-
tre -1 e 5˚C, seu corpo veio a falecer por
hipotermia térmica. Junto ao cobertor e
bolsa encontrados, uma pasta de arquivo
chamou a atenção da perícia. Se encon-
travam os papéis reunidos a seguir:
Não basta estuprar, tem que viralizar pra todo mundo ver.

Olimpíadas: é 15 vezes mais fácil ser estuprada do que pegar zika,


diz professor da USP

A violência e a sexualidade foram transferidos como símbolo de


virilidade, transformando o lugar desde qual o homem pode exercer seu
domínio sobre a mulher e sobre os outros. Tanto violência quanto a sexu-
alidade são produtores de relações de poder.

***

Pouca gente sabe de um caso que aconteceu há exatos dois anos, em


maio de 2014 com uma menor de 17 anos aqui em Pinhal, litoral norte do
Rio Grande do Sul. A menina foi estuprada por cinco guris, eles regulavam
de idade com ela, ela conhecia eles. O vídeo da menina sendo violentada
foi posto na internet como troféu, grande façanha, eu não tive coragem de
ver, mas disseram que ele é ainda pior do que o da menina do Rio, porque
a menina de Pinhal estava acordada gritando, pedindo pra parar, um hor-
ror! Esse caso não teve repercussão nenhuma, saiu apenas um jornal lo-
cal. Os cinco guris de Pinhal não eram traficantes mal influenciados ou
qualquer coisa assim, eram apenas uns guris de interior sem nada na ca-
beça e com muito tempo livre. Independente do que aconteceu com eles,
a vida dela acabou, todo mundo na cidade ficou sabendo do vídeo, muita
gente viu.
Aqui nossa vida é pacata e no Balneário de Pinhal já existe um estu-
pro coletivo com imagens divulgadas na internet. Quantos mais casos em
quantos cantos do país ainda vão acontecer? Já aconteceram entre o tem-
po que eu escrevo e alguém lê.
O Brasil é grande demais pra polícia liderada por homens, em dis-
puta de poder, dar conta desse probleminha da violência sexual.

***

Aqui é úmido e pacato. A areia da praia entra na casa, o vento traz,


o vento leva, a areia é ela, são elas. A serem pisadas, pisoteadas, usadas
de brinquedo, esfarelando, desaparecendo em meio a água, é o lugar de
deixar o lixo, e atirar pelo ralo durante o banho, só suja, atrapalha, se
gruda nos cantinhos, é insignificante… Essa areia, são elas. Todas elas, e
elas são tantas, cada uma um grão. Pequeno e minúsculo e insignificante,
sozinho. Um conjunto de pequenas partículas de rochas, um mineral.
Observado de perto, bem perto, pelo olho eletrônico de um micro-
scópio cada grão é único e lindo e cheio de brilho e cores e impressiona,
mas não a olho nu, de longe apenas uma cor ou textura, nada. nada. nada.
Insignificante.

***

A calcinha dela ele rasgou, a força do elástico contra a virilha deix-


ou uma marca vemelharoxoamarelada, mas a marca da calcinha que ele
rasgou, não era nada pra ela, não doía, insignificante. A calcinha foi só a
preliminar.
O que ele rasgou mesmo foi por dentro. E ele foi plural. Depois dele
veio outro ele, e outro ele com ainda mais força que ele, e ele não satisfei-
to, chamou ele e mandou rasgar tudo lá por dentro também, ferir mesmo
não só preencher, aprofundar, destruir, arrombar, quanto mais sangue,
mais ele se excitava, e quanto mais ela gritava mais ele queria mais que
ela gritasse, e vinha ele e trocava e vinha ele e ele e mais ele e ele também.
Ela gritou e se calou diversas vezes, e ele continuava lá, sempre um ele
diferente e mais profundo, até que ela se dividiu também, tinha ela (ou o
que restava dela) e tinha ela, a dor, e ela fraca, sentiu ela muito forte e ela
insuportável fazia ela dormir pra não sentir mais ela, ela fazia ela dormir
sempre que podia, porque enquanto ela fazia ela dormir ele não tinha a
voz dela gritando, ele fazia o que queria e ela nem sabia, ele vinha e vinha
ele outro e ele vinha também. Todos eles sem dó. Nenhum deles sentiu ela,
a dor. Nenhum deles sentiu ela, ela. Porque eles não sentem e nunca vão
sentir nada que não seja ele, o que eles enfiaram nela, e isso é só o que eles
querem sentir. Ela acordou e finalmente todos eles tinham indo embora.
Ela, a dor, vai ficar pra sempre nela (ou o que restou dela), uma vez assim
elas se resumem de novo em uma só palavra: culpada.

***

Já deu? deu? Já?


Já! deu! Já deu!
Em 2004, um manuscrito foi encon-
trado em uma república estudantil ouro-
pretense por estudantes de química apli-
cada. Ao perceberem que se tratava de
um texto cênico, foi-se entregue ao De-
partamento de Artes Cênicas da Univer-
sidade Federal de Ouro Preto.

O texto original contém mais de 3 mil pá-


ginas e até hoje se encontra em processo
de transcrição. Apesar da divulgação em
nível internacional, não houve nenhuma
requisição legal para a autoria do texto
até o presente momento.

Segue nesta edição suas primeiras pági-


nas como amostra da maior obra escrita
por um dramaturgo anônimo:
Diálogo - Entreato

K. desce as escadas de seu prédio e se depara com um outro morador entrando.

K. – Bom dia, como está?


M. – Vou bem, e o senhor?

Sai. Vai em direção a estação de trem. Pega o primeiro trem em direção à leste e logo quando
entra se depara com o fiscal de passagens.

F. – A passagem, por favor?


K. - Sim. Espere um segundo, tenho o meu bilhete aqui.
F. – Obrigado!
K. – OK.
F. – (como se pedisse licença) Pegarei os próximos.
K. – (debochado) Lá vai você. Obrigado.
F. – Tenha uma boa semana.
K. –Até logo. Oh oh oh, pensei que você tivesse dito “Tenha um bom final
de semana...”
F. – Não, eu disse tenha uma boa semana.
K. – Oh, OK. Tenha uma boa semana. Até logo.

Kenneth sai do trem e vai em direção à um café bem perto da estação. Lá encontra seu amigo.

A. – Olá, vou pedir um café, você quer também?


K. – Como você está fazendo?
G. – (interrompendo) Bom dia, senhor. Quer um café também?
K. – Tudo bem, tudo bem. Dois, por favor.
A. – Tenho uma nota de dez aqui.
K. – Você não quer economizar? Ou pra você está ok?
A. – Pra mim tudo bem.
K. – (para o garçom) Você tem algum jornal por aqui?
G. – Está em cima da mesa. Algo mais?
K. – Eu só vou tomar um café pra começar. Obrigado.
G. – Obrigado a vocês.
A. – Vamos sentar naquela mesa?
K. – Ok. Ok.

Eles vão até a mesa.

K. – Como vai?
A. – Vou levando, estou bem, mas poderia estar melhor.
K. – Normal.
A. – E você? Ainda está alterado como das últimas vezes que nos vimos?
K. – Ficarei normal dessa vez.
A. – Tenho que tomar esse café rápido. Preciso terminar de montar as
minhas coisas. E ainda vou voltar andando.
K. – Você vai percorrer todo o caminho, na volta para a galeria?
A. – Vou sim. Vou caminhando, prefiro.
K. – Você está suando.
A. – É longe e está calor, mas mesmo assim eu prefiro.
K. – Isso é bom... é bom pra você.
A. – Terminei de ler o seu livro e gostei bastante.
K. – Oh, obrigado.
A. – Você já viu o trabalho do Abbie Hofmann?
K. - Sim, claro. Todo mundo conhece o cara.
A. – Serio? Não sabia.
K. – Ele é uma espécie de...de...cara famoso.
A. – Estou lendo o livro dele. (mostrando)
K. – Vi um monte desses nas prateleiras.
A. – Onde?
K. – Em uma loja de cafés.
A. – Não sabia que era fácil de ser encontrado.
K. – Há no mundo todo, o que é muito bom.
A. – Pensei em fazermos o lançamento do seu naquele café que é na ter-
ceira avenida.
K. – Isso é legal e eu gosto disso.
A. – Colocaríamos seu livro, mas você não precisaria estar presente.
K. – Muito legal!
A. – Pensei em não colocar nada sobre você.
K. – Nós temos que ter um pôster.
A. – Um pôster do livro?
K. – Não sei, não sei.
A. – Fui no lançamento do Eric Watier semana passada.
K. – Disseram-me que havia um pôster lá.
A. – Havia, mas com ele é diferente.
K. – Sim, eu sei.
A. – Ele é um cara que faz um marketing em cima das publicações dele.
K. – É por isso que você não pode levar a publicidade a serio.
A. – Mas tem muita gente que é assim, K.
K. – Sim, talvez outras pessoas façam – elas adoram publicidade.

Nesse momento chega J., o outro amigo que eles estavam esperando.
J. – Olá gente, desculpe o atraso.
K. – Então, você estava dormindo?
J. – Oh, sim. Estava. Não tenho conseguido dormir antes do dia aman-
hecer, isso é um problema?
A. – Isso é terrível. Você não acha?
K. – Não, não se preocupe – sua vida irá mudar.
J. – Mas tenho dormido até meio-dia. Isso não vai mudar nunca?
K. – Tenho certeza, vai mudar.
J. – Tenho passado por tempos difíceis.
K. – Claro.
A. – Você soube da Karin?
K. – Claro.
J. – Ela não está bem.
K. - Disseram-me. Sim. Oh, sim. Você sabe o que você quer?
J. – Acho que vou pedir um omelete. Ela não quer mais falar agora.
K. – Eu gostaria de...de...panquecas, as panquecas parecem boas.
G. – Algo mais?
A. – Um Croissant para mim.
K. - Um cafezinho e uma água. Karin tem estado fora?
J. – Sim, ela saiu de casa para pensar e não voltou mais.
K. – Isso é bom pra você, os caras tiveram uma abertura.
J. – E eu devendo aquele texto pra eles. Era pro meu texto estar lá.
K. – Bem, ouvi isso no último domingo.
J. – Me falaram que foi muito boa.
K. – Foi bom que todos os artistas vieram.
J. – Sim. Vieram artistas de todos os lugares.
K. – Sim.
J. – Até o japonês estava lá. Parece que veio de Tokio só pra isso.
K. – Achei muito legal.
J. – Você foi, não é mesmo? Não estou lembrando.
K. – Quero dizer, todos nós chegamos ao mesmo tempo.
J. – Agora que eu lembrei que eu te vi por lá uma hora mesmo. Mas eu não
estava bem.
K. – Achei que estava muito triste.
J. – Tentei esconder, mas foi difícil.
K. – Boa jogada.
J. – Ai todos me perguntavam da Karin e eu tinha que contar tudo de novo.
K. – Isso significa que você tem que contar a história apenas uma vez.
J. – Sim. Da próxima vou juntar a todos e discursar. (toma um gole do
café) Eca, que café forte.
K. – Amargo?
J. – Muito.
K. – Você quer um pouco de leite?
J. – Quero sim, por favor.
K. – Como foi a sua abertura?
J. – Boa, dê uma olhada no catálogo.
K. - Essa é a pintura.
J. – Sim, mas não é a minha.
K. – E qual o nome da artista?
J. – Não me recordo agora.
K. – E de onde ela é?
J. – Também não sei.
K. – Normal.
J. - Você está sendo muito chato com isso.
K. – Obrigado.
J. – Mas dizem que ela também é bem chata.
K. - Pior do que eu?
J. – Acho que não. Isso é difícil.
K. – Claro.
J. – Estou cansado de tudo isso.
K. – Você viu esse artigo sobre Mason Reese no jornal?
J. – Vi sim. Como ele está gordo e cheio de doenças, não?
K. – Não é deprimente?
J. – Sim. Conheço muita gente que ficou assim. Na verdade não é depri-
mente, é o que acontece com bebes que viram famosos.
K. – Oh. Sim, quero dizer que também é como o... quero dizer, também é
como o Danny Partridge, o que é seu nome?
J. – Ele tem uma estória que muitos invejariam na TV.
K. - A estória do Danny Partridge?
J. – Sim, um artista desde os seus cinco anos de idade.
K. – Sim, mas foi muito triste.
J. – Sim, ele está louco agora.
K. – Mas o melhor foi a criancinha negra retardada.
J. – Aquela que fazia os comerciais?
K. – Não, não. O de, você sabe, do... ele foi adotado por uma família... o
branco.
J. – Sim, mas ele não era tão novo assim. Era pequeno e louco.
K. – Ele é realmente baixinho e saiu para roubar produtos de limpeza à
seco.
J. – Sim. Mas porque estamos falando disso. Quero te contar do que tenho
visto por aí.
K. – Certo. Ok, certo.
J. – Fui a essa exposição de novos artistas. Estava realmente boa.
K. – Qual era o nome da exposição?
J. – Não me lembro agora. Fiquei com as crianças da TV na minha cabeça.
K. – Sim, quero dizer, foi no início dos anos 80 e eu não assistia TV.
J. - Lembra daquele do comercial do shampoo?
K. – Sim, Willis.
J. – Willis Durk.
K. – Esta certo. E eu não me lembro o nome do baixinho, seja no palco ou
fora dele.
J. – Gary...
K. – Gary Coleman.
J. – Claro. Ele fez o Arnold na TV. Esse sim que era da família dos brancos,
adotado. Ele era demais. Tinha uma menina que era sua irmã. Diziam que
ele tinha 18 anos, mas parecia ter 8.
K. – E a menina era gata?
J. – Tinha os seus dons.
K. – Mas ela roubou uma loja
J. – E daí? Isso pode se tornar interessante.
K. – De qualquer forma...
J. – Que música. Como é o nome desse guitarrista mesmo?
K. Eddie Van Halen?
J. – Isso mesmo. Ele é muito bom. E também começou cedo.
K. – Lembra da Valerie Bertinelli?
J. – Claro. A atriz. Também fazia comerciais quando era criança.
K. – Como ela era na TV quando éramos crianças, quando ela apareceu
pela primeira vez na TV, eu tinha uma queda total por ela.
J. – Estou tentando lembrar o filme que ela fez. Não era um que as crian-
ças brincavam em uma vila quando estavam de férias?
K. – Algo assim.
(...)
Texto encontrado em caçamba de en-
tulho, na altura do número 423 da Rua
Guaicurus, no Bairro da Lapa, São Paulo-
SP, durante a operação Cata Bagulho,
realizada em fevereiro de 2012 pela pre-
feitura da cidade. O funcionário público
Wilson Gerval Santos Gorsky, encontrou
uma pasta que continha quatro folhas
numeradas a mão e datilografadas com
o texto a seguir, assim como foto pb im-
pressa em papel fotográfico. Ele mesmo
deu entrada do documento no Arquivo
Histórico Municipal Washington Luiz, sit-
uado no bairro Bom Retiro.

Segue a transcrição e anexação da foto


encontrada na pasta que continha o tex-
to:
“Em fim, tenho observado nas ruas. Tenho desejado ser atravessado por coisas ‘pequenas’,
por aquelas experiências cujo só o pensamento mais profundo poderia causar um atravessa-
mento tal, desejado-imprevisto. Venho caçando, sem estar paramentado, um tipo de fenômeno
estético que apenas posteriormente à vivencia dele é que é, factualmente, experienciado. Pois
pode sê-lo imanente sempre”
Ao avesso de Flauber, Maurice Blanchot

Estou apenas com 34 anos, acabo de voltar de Paris, finalizei de


uma vez por todas o longo processo de estudos acadêmicos sobre Ciência
da Informação e conclui este doutorado na Université Paris Diderot (Par-
is 7). Chegar no Brasil, pós fartos conflitos políticos e abusos militares
aos civis de todos os lugares do país, prestes ao reclame de uma abertura
política necessária depois de tantos anos de enclausuramento de nossas
infâncias, faz-me, de modo unilateral, não ver o que ao meu entorno se
ergue como aparição.
Este Comentário começa como uma anotação, porque não é de todo
um lugar único de reflexão, pois o que se espera de um enfretamento da
imagem é a conspiração de sua força, de sua negação primeira. Escutei
muito em Paris, nesses últimos tempos, o crítico e pesquisador da ima-
gem Philippe Dubois articular a tentativa de entendermos a tal da sua
‘pós-imagem’, dessa aparição que mais se faz estranha e ao mesmo tempo
comumente em nossas vidas do que clara e de “de vez em quando”.
É uma aparição difícil de ser codificada, como se não houvesse ciên-
cia ainda que pudesse captura-la. Ela não só se relaciona com todas as
imagens sobressaídas exaustas da memória como também se descabela
com outras em que tomamos confronto enquanto vamos, vivemos. É uma
imagem que fala do futuro de si mesma, não é o que é no presente, mas é
sua conturbada relação com o futuro que ela mesma aponta e o passado
das imagens que retemos para trabalha-la.
Pronto, sem dizer, temos dito sobre a pós-imagem, sobre o fato desse
Comentário não ser mais do que uma mera anotação, um diário de minha
vida reflexiva.
Caminhando pelo centro de São Paulo, neste lugar em que hoje se
encontra um desejo compulsório de territorializar-se comercialmente, na
Rua Vitória, já bem próximo de encontrar a imponente Av. São João, repa-
ro no tapume metálico posto para assegurar a não invasão de um terreno
baldio. No tapume, imagens de prédios antigos do próprio centro de São
Paulo: do Teatro Municipal, Prefeitura, Viaduto do Chá, do Edifício Itália
e etc. Em meio as imagens dos prédios da cidade, que anuncia de primeira
a construção de mais um irreverente prédio, porém, faz-me saber mais
uma arquitetura construtivista/moderna um talvez, reparo na pichação
em vermelho: “campo de contração”. Escrita feita sem o ornamento verti-
cal e pontiagudos das recorrentes pichações espalhadas por todo o centro
da cidade desde os anos 1970. Esta, mais se parecia com aqueles frágeis
alertas de uma juventude cansada, talvez mais um ato estético-militante
de um punk saído da Boca do Lixo.
Eu me aproximo, atravesso a rua, chego próximo para reparar que
as imagens impressas dos prédios contém, em quase todos os últimos
andares, pequenas pichações. Provavelmente seriam as mesmas as quais,
se eu estivesse olhado atentamente, ou estivesse minimamente preocu-
pado antes, estaria também nos prédios que nesse dia passei perto. Pois
acontece que encontrei Suely para um rápido café no Terraço Itália. De-
sejávamos olhar a cidade de cima, com olhares de gaviões, porque encer-
raremos nesta semana o texto que estamos escrevendo juntos para a re-
vista de arquitetura subjetiva da faculdade em que ela ministra aulas.
De primeira instância o que deveria me chamar a atenção não o foi
o previsto, o “campo de concentração”/sangue que se anunciou muito for-
temente/, perdeu, no meu olhar, lugar para as imagens de prédios picha-
dos que anunciam a formação de mais um novo prédio na cidade.
Porém, não obstante de meu aleijado olhar, desta distante percep-
ção, a muito tempo longe da realidade dessa cidade, vejo que, com uma
caneta grossa preta, gravou-se, quatro andares a baixo do último, na ima-
gem de um prédio, outra pichação. Daí o susto, o arrepio. Sua grafia era:
DBAT j. Daí a certeza de que havia um campo de fato concentrado naquela
imagem, mas que não era o mesmo dos Judeus e muito menos dos que-
ridos punks, que requeriam àquele lugar sua mais fácil colocação, a de
ser justamente no capital da cidade um campo onde se concentrasse os
novos burgueses do centro da cidade, os mais novos debilitados econômi-
cos e hipocondríacos sociais. Havia alí um gesto pequeno, uma poesia que
Deleuze arrancou de Kafka mas que só se poderia, no meu ver debilitado
de uma possível pós-imagem, fora da literatura.
Possivelmente, para não dizer com a certeza que essa experiência
me aspira, a pessoa que retira de sua bolsa uma caneta grossa, dessas do
tipo Piloto usadas para gravar as caixas dos supermercados, e a ergue na
altura do pico do prédio e se inscreve entre as pichações impressas nas
imagens dos prédios seu próprio lugar. Essa pessoa dá-se a liberdade, sem
escalar 25 andares, e o direito de estar também no passado, no antes, no
momento em que a fotografia foi tirada.
Eu me afastei rapidamente dos tapumes, atravessei novamente a
rua e esperei alguma coisa que a experiência daquela imagem não man-
tinha comigo ainda uma séria colocação. A não ser o susto, não de encon-
trar a inscrição, mas de me fazer desvelar minha própria debilidade e ao
mesmo tempo poder gerar a própria apropriação de que Dubois não havia
dito: que a pós-imagem te encontra sem desejar vê-la, antes de qualquer
reflexão possível, ela te atravessa pro futuro.
Saí correndo, peguei o primeiro Taxi que me pudesse levar à Luz.
Sabia onde aquele prédio da imagem vista nos tapumes da Rua Vitória se
encontrava, quer dizer, supunha ser o mesmo de sempre, o mesmo que
ainda não havia sido ocupado pois seus proprietários a muito faliram.
Enquanto estive no trânsito, anotei rápidos pensamentos fugidios e
me detive à perseguir a imagem que havia me encontrado antes de eu me
encontrar de fato nessa cidade. Segue.
“Com uma pós-imagem singular//
Lhes será importante dizer um dia que, antes de qualquer coisa, nenhum
texto pode substituir a experiência da imagem, porém a experiência do
texto como uma imagem que referencía a si mesma, sem ilustrar outra
imagem externa a ele, pode, a meu ver, ser a maneira mais próxima que
podemos chegar da constituição, se possível for, de algum conhecimento
de algo que tangencia apenas a imagem da experiência. O que quero dizer
é que se conseguirmos nos distanciar da descrição de uma imagem, como
uma imagem de referencia a ela concedida, poderemos no mínimo deixar
que a experiência da imagem possa causar uma reflexão mais aprofunda-
da da experiência que podemos ter com ela. Mas isso só é possível se pu-
dermos unir estas duas mesmas experiências em um mesmo patamar de
entendimento da imagem. Seria de difícil acordo discutirmos as diferenças
da experiência dos fenômenos da vida e das imagens que obtemos destes
fenômenos. Se, a alguns anos, falávamos um para o outro que existia uma
grande diferença entre presenciar uma imagem-fenômeno ao vivo e ver a
imagem documental dela, hoje podemos dizer que a experiência da reali-
dade do registro dela tem se aproximado cada vez mais do que sabemos
sobre ela - sua descrição. Nesse sentido ambíguo que viemos construindo
sobre o significado verdadeiro e falso da experiência está a maneira a qual
soubemos entender a dissolução do sentido deste termo, da experiência
da imagem. Sem entender de maneira dialética a história da experiência
não poderíamos ter a percepção de que o interesse real do acontecimento
da experiência não está mais obrigatoriamente relacionado a sua necessi-
dade de ser trabalhada a imagem dela, já que concordamos que podemos
ter esta imagem hoje de maneira visual-visual ou visual-textual.”
Eu tive de lidar com isso.
Chegado no destino, pulei rapidamente do banco detrás do Taxi e
deixei estilhaçar os cruzeiros que me faltavam para mais um café mar-
cado para o fim de tarde. Dei apenas alguns passos aos tchaus com o Tax-
ista, virei a esquina e olhei atentamente para aquele alto prédio. Foquei os
olhos à quatro andares do seu fim, do céu. Lá estava, DBAT j, acrescido de
uma pequena frase de difícil leitura, “chego tarde volto sempre”.
Me afastei mais um pouco para ver se era aquilo que eu lia mesmo.
As pichações não são de fácil leitura, na verdade, desde este momento
nunca havia reparado em nenhuma delas. “Chego tarde AINDA MAS volto
sempre”, se fez ler em mim. É obvio que completei a escrita com minha
leitura, agora aberta e acrescida de felicidade.
Fui-me embora. Cheguei no café marcado e Peter não apareceu
como combinado. Acredito que ele tenha se desentendido com sua nova
namorada. Ultimamente estão frequente suas discussões. Desejava muito
encontra-lo, ainda mais naquele momento. Precisava compartilhar o de-
sespero de ter perseguido uma imagem. Pensei depois que foi melhor as-
sim. Que me calar frente ao que não poderia ser dito ainda era o mínimo
que me fazia perceber individualmente a cidade que retornava a mim.
Escrevi uma carta ao Peter e deixei no departamento em que ele
estava dando aula. A carta dizia sobre o encontro não encontrado que
tivemos e que ele havia dado de presente a mim, sem ao menos perceber,
sendo apenas um amigo displicente, a possibilidade de me encontrar. E
disse também, ao fim da carta: “Ainda chego tarde, mas volto sempre ami-
go”. Para mim, aquele era um presságio de uma pós-imagem ainda vivida,
em continuidade.

1982

Esqueci de vez essa história toda. Ela foi importante enquanto eu
vivi. Porém, anos depois, já havia esquecido de reparar na cidade de novo,
percebo que o prédio da Rua Vitória foi construído quando caminhava com
minha irmã ao encontro de nosso pai na Av. Ipiranga. Pedi um estante a
ela, enquanto ela esbravejava sobre os problemas que estava tendo com
seus funcionários no novo consultório, saí sorrateiramente pela calçada.
Corri um pouco, atravessei a Av. São João, entrei na Vitória e ergui esper-
ançoso a cabeça: DBAT j cheguei primeiro.
O presságio da pós-imagem se fez no tempo seu eterno presente. A
pessoa não só marcou todas as imagens as quais manteve contato no ato
em que fez ela imprimir a primeira escrição em caneta Piloto no tapume,
como conteve em seu gesto as três imagens que dele decorriam. Deste
tempo não há prescrição possível, apenas atravessamento. A pós-imagem
é ainda, mesmo que separada, a única possibilidade de não ser imagem.
Partida, só existe em ação, como presságio de um passado fictício e de um
futuro ainda por vir: um presente que dura muito tempo para deixar de
sê-lo.

1986
Em 2010 mais de 40 câmeras filmado-
ras Tekpix alteradas foram entregues
anonimamente, por meio dos correios,
esparsamente na cidade de Recife. As
câmeras filmavam continuamente, sem
possibilidade de serem desligadas.

A partir de diversas denúncias realizadas


à polícia, a 2˚ DP da cidade abriu inves-
tigação sobre o caso. Ao coletarem as
infomações de todas as ocorrências, um
dos depoimentos foi elencado como rel-
evante pelo delegado Carlos Couto, titular
de Boa Viagem. Segue sua transcrição:

* Por motivos legais, foram suprimidas as per-


guntas realizadas pelos investigadores.
Ia ter festa em casa, fiz aniversário na quarta e daí a mulherada tava
preparando. Me ligaram, tava no trabalho, não tinha entendido muito
bem, mas já ia sair cedo pra ir no mercado e o Diego me passou uma
preocupação – pela voz, assim. Tem a ver com essa coisa de menino que
cresce sozinho em casa. Eu lembro quando era moleque com a idade
dele... Ia no ferro velho desde cedo. Tá. Eu fui pra casa logo depois,
entrei com o carro e o menino veio direto na garagem, junto do vidro,
não me esperou abrir a porta... 13h15? ...Dez pras duas. Me puxou pelo
assunto pra fora do carro, a gente foi por fora da casa até a frente. O
negócio tinha ficado no sofá, daí fui olhar. Vocês viram? Então, não sei
o que dizer, me preocupa demais a segurança da família, elas ficam soz-
inha com o menino-moleque – que coitado, ele não faz mal em ligar pra
polícia, pelo contrário. Eu sei que a polícia tem que ir é atrás de bandido,
mas será que não é bandido mesmo? Que porra, eu não sei o que fazer.
Não posso ficar sem uma resposta, desse jeito minha casa tá ao acaso.
Mesmo com o que eu... eu já pago. Só que o pé-de-pano não vai mandar o
carteiro abrir a bolsa antes dele por as conta no buraco, nem de entregar
alguma coisa. Não quis dizer nada com isso, só tenho receio. Até son-
hei, não tá legal, num tá...! Se pulo o muro da casa de alguém, faço
esperando bala, caralho. É, você sabe, então, não é isso? Vai
acabar ficando mais sério, não pode, tem que cuidar.
Se a gente for pra lá, mesmo assim, não tem condição de não ter um... A!
Sei lá, isso parece uma mentira na minha cabeça, e na dos meus filhos?
Parece que eles ainda tão me vendo. Eu quebrei aquela merda por isso!
Você não sabe o que eu passo no trabalho com a cabeça na minha casa
falindo. Sim, mas não adianta fazer nada, subir e descer montanha,
neve. Qualquer coisa, nem se fizer calor. Foda-se. Você pode ir e ser onde
você quiser, vai. Nós precisamos resolver, a saída. Eu fico. Eu
fico, tem... Eu disse, não. Disse. Não importa que
a ideia foi minha, não vou. Que não tem ninguém em casa, pelo
menos trabalho tranquilo o que não pude esses tempos. Hotel, sei
lá, tanto faz. E em casa, e sozinho não tem vez, também. Te projeto com
os menino, mas em casa, só, foda-se. Não tem vez. Vai.
nonnononn ono noo no nonononononon-
ononoononoonononoon ononono o non-
ono no nononononononoonoon no non
non onon no nononoo non onnno n n onn
n no o non o non ononoonononononon-
onononononononononnnoonnonononon-
nonononononnonono on no n n on o nono
no n n n n n on n n n n n n n nn
Luther Blisset
2016

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