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O
INDETERMINISTA
Aqui, transcrevemos-a.
Três batidas na porta, mas nenhuma palavra. Já é quase hora.
Arrasto-me até o quarto de banho, carrego uma bacia de metal e ramos
de flores secas. Olho com certa desconfiança paras as vestes brancas ca-
prichosamente engomadas que repousam sobre aquele banco de madeira
abaixo da janela. Decisivamente conheço o que diverge dessa limpeza de
corpos, mas serei hoje a dileta das mulheres que cristo amou. Seguimos
em silêncio ao encontro dos justos e distanciando-me do olhar da SEVE-
RA vociferam cânticos desconhecidos e me junto às filhas daquela outra
mãe. Por debaixo do saiote não uso roupa interior pretextando calor que
tais aglomerações me provocam. Percebo uma agitação fora da cadência
vagarosa do cortejo e me aproximo abanando a barra alva da saia. Entre
os corpos aglomerados e gritos fervorosos, nossos olhares se cruzaram.
Visto em meu rosto um sorrisinho casto e provocador enquanto me lem-
bro das promessas antigas de casamento. Eu tinha doze ou treze anos. E
doer, aí doeu, ele era enorme. Mas enquanto virgem também de fantasia,
meu contentamento superava qualquer dor. Ele pedia que eu não contasse
a ninguém, nem mesmo a minha melhor amiga que, depois eu descobri,
ele também à devorava. Mas não me queixo, ainda hoje me deleito sobre o
gramado do jardim onde, no centro, ele cultivou um canteiro de lavanda
e alecrim. Ele se finge desconhecido, camufla-se rapidamente ao grupo de
homens do cortejo que continuam a ofender e a ameaçar o desconhecido
à minha face. Também olho para esse sujeito com o olhar mais pudico do
que o direcionado anteriormente. O homem mais canalha que conheci não
usava chapéu.
Em outubro de 1993, no bairro Vila Nova
Joaquina, Paulínia – SP, Brasil, centenas
de pessoas foram trancadas em suas
propriedades. Autoridades locais relatam
que mais de 300 cadeados foram utiliza-
dos para cercear os cidadãos em suas
casas. Curiosamente, no dia anterior
ocorreram diversas pichações espalha-
das nos muros da cidade, com dizeres de
caráter ambíguo: “Citoyens, GO HOME!”
[Cidadãos, VÃO PARA CASA!].
***
***
***
Sai. Vai em direção a estação de trem. Pega o primeiro trem em direção à leste e logo quando
entra se depara com o fiscal de passagens.
Kenneth sai do trem e vai em direção à um café bem perto da estação. Lá encontra seu amigo.
K. – Como vai?
A. – Vou levando, estou bem, mas poderia estar melhor.
K. – Normal.
A. – E você? Ainda está alterado como das últimas vezes que nos vimos?
K. – Ficarei normal dessa vez.
A. – Tenho que tomar esse café rápido. Preciso terminar de montar as
minhas coisas. E ainda vou voltar andando.
K. – Você vai percorrer todo o caminho, na volta para a galeria?
A. – Vou sim. Vou caminhando, prefiro.
K. – Você está suando.
A. – É longe e está calor, mas mesmo assim eu prefiro.
K. – Isso é bom... é bom pra você.
A. – Terminei de ler o seu livro e gostei bastante.
K. – Oh, obrigado.
A. – Você já viu o trabalho do Abbie Hofmann?
K. - Sim, claro. Todo mundo conhece o cara.
A. – Serio? Não sabia.
K. – Ele é uma espécie de...de...cara famoso.
A. – Estou lendo o livro dele. (mostrando)
K. – Vi um monte desses nas prateleiras.
A. – Onde?
K. – Em uma loja de cafés.
A. – Não sabia que era fácil de ser encontrado.
K. – Há no mundo todo, o que é muito bom.
A. – Pensei em fazermos o lançamento do seu naquele café que é na ter-
ceira avenida.
K. – Isso é legal e eu gosto disso.
A. – Colocaríamos seu livro, mas você não precisaria estar presente.
K. – Muito legal!
A. – Pensei em não colocar nada sobre você.
K. – Nós temos que ter um pôster.
A. – Um pôster do livro?
K. – Não sei, não sei.
A. – Fui no lançamento do Eric Watier semana passada.
K. – Disseram-me que havia um pôster lá.
A. – Havia, mas com ele é diferente.
K. – Sim, eu sei.
A. – Ele é um cara que faz um marketing em cima das publicações dele.
K. – É por isso que você não pode levar a publicidade a serio.
A. – Mas tem muita gente que é assim, K.
K. – Sim, talvez outras pessoas façam – elas adoram publicidade.
Nesse momento chega J., o outro amigo que eles estavam esperando.
J. – Olá gente, desculpe o atraso.
K. – Então, você estava dormindo?
J. – Oh, sim. Estava. Não tenho conseguido dormir antes do dia aman-
hecer, isso é um problema?
A. – Isso é terrível. Você não acha?
K. – Não, não se preocupe – sua vida irá mudar.
J. – Mas tenho dormido até meio-dia. Isso não vai mudar nunca?
K. – Tenho certeza, vai mudar.
J. – Tenho passado por tempos difíceis.
K. – Claro.
A. – Você soube da Karin?
K. – Claro.
J. – Ela não está bem.
K. - Disseram-me. Sim. Oh, sim. Você sabe o que você quer?
J. – Acho que vou pedir um omelete. Ela não quer mais falar agora.
K. – Eu gostaria de...de...panquecas, as panquecas parecem boas.
G. – Algo mais?
A. – Um Croissant para mim.
K. - Um cafezinho e uma água. Karin tem estado fora?
J. – Sim, ela saiu de casa para pensar e não voltou mais.
K. – Isso é bom pra você, os caras tiveram uma abertura.
J. – E eu devendo aquele texto pra eles. Era pro meu texto estar lá.
K. – Bem, ouvi isso no último domingo.
J. – Me falaram que foi muito boa.
K. – Foi bom que todos os artistas vieram.
J. – Sim. Vieram artistas de todos os lugares.
K. – Sim.
J. – Até o japonês estava lá. Parece que veio de Tokio só pra isso.
K. – Achei muito legal.
J. – Você foi, não é mesmo? Não estou lembrando.
K. – Quero dizer, todos nós chegamos ao mesmo tempo.
J. – Agora que eu lembrei que eu te vi por lá uma hora mesmo. Mas eu não
estava bem.
K. – Achei que estava muito triste.
J. – Tentei esconder, mas foi difícil.
K. – Boa jogada.
J. – Ai todos me perguntavam da Karin e eu tinha que contar tudo de novo.
K. – Isso significa que você tem que contar a história apenas uma vez.
J. – Sim. Da próxima vou juntar a todos e discursar. (toma um gole do
café) Eca, que café forte.
K. – Amargo?
J. – Muito.
K. – Você quer um pouco de leite?
J. – Quero sim, por favor.
K. – Como foi a sua abertura?
J. – Boa, dê uma olhada no catálogo.
K. - Essa é a pintura.
J. – Sim, mas não é a minha.
K. – E qual o nome da artista?
J. – Não me recordo agora.
K. – E de onde ela é?
J. – Também não sei.
K. – Normal.
J. - Você está sendo muito chato com isso.
K. – Obrigado.
J. – Mas dizem que ela também é bem chata.
K. - Pior do que eu?
J. – Acho que não. Isso é difícil.
K. – Claro.
J. – Estou cansado de tudo isso.
K. – Você viu esse artigo sobre Mason Reese no jornal?
J. – Vi sim. Como ele está gordo e cheio de doenças, não?
K. – Não é deprimente?
J. – Sim. Conheço muita gente que ficou assim. Na verdade não é depri-
mente, é o que acontece com bebes que viram famosos.
K. – Oh. Sim, quero dizer que também é como o... quero dizer, também é
como o Danny Partridge, o que é seu nome?
J. – Ele tem uma estória que muitos invejariam na TV.
K. - A estória do Danny Partridge?
J. – Sim, um artista desde os seus cinco anos de idade.
K. – Sim, mas foi muito triste.
J. – Sim, ele está louco agora.
K. – Mas o melhor foi a criancinha negra retardada.
J. – Aquela que fazia os comerciais?
K. – Não, não. O de, você sabe, do... ele foi adotado por uma família... o
branco.
J. – Sim, mas ele não era tão novo assim. Era pequeno e louco.
K. – Ele é realmente baixinho e saiu para roubar produtos de limpeza à
seco.
J. – Sim. Mas porque estamos falando disso. Quero te contar do que tenho
visto por aí.
K. – Certo. Ok, certo.
J. – Fui a essa exposição de novos artistas. Estava realmente boa.
K. – Qual era o nome da exposição?
J. – Não me lembro agora. Fiquei com as crianças da TV na minha cabeça.
K. – Sim, quero dizer, foi no início dos anos 80 e eu não assistia TV.
J. - Lembra daquele do comercial do shampoo?
K. – Sim, Willis.
J. – Willis Durk.
K. – Esta certo. E eu não me lembro o nome do baixinho, seja no palco ou
fora dele.
J. – Gary...
K. – Gary Coleman.
J. – Claro. Ele fez o Arnold na TV. Esse sim que era da família dos brancos,
adotado. Ele era demais. Tinha uma menina que era sua irmã. Diziam que
ele tinha 18 anos, mas parecia ter 8.
K. – E a menina era gata?
J. – Tinha os seus dons.
K. – Mas ela roubou uma loja
J. – E daí? Isso pode se tornar interessante.
K. – De qualquer forma...
J. – Que música. Como é o nome desse guitarrista mesmo?
K. Eddie Van Halen?
J. – Isso mesmo. Ele é muito bom. E também começou cedo.
K. – Lembra da Valerie Bertinelli?
J. – Claro. A atriz. Também fazia comerciais quando era criança.
K. – Como ela era na TV quando éramos crianças, quando ela apareceu
pela primeira vez na TV, eu tinha uma queda total por ela.
J. – Estou tentando lembrar o filme que ela fez. Não era um que as crian-
ças brincavam em uma vila quando estavam de férias?
K. – Algo assim.
(...)
Texto encontrado em caçamba de en-
tulho, na altura do número 423 da Rua
Guaicurus, no Bairro da Lapa, São Paulo-
SP, durante a operação Cata Bagulho,
realizada em fevereiro de 2012 pela pre-
feitura da cidade. O funcionário público
Wilson Gerval Santos Gorsky, encontrou
uma pasta que continha quatro folhas
numeradas a mão e datilografadas com
o texto a seguir, assim como foto pb im-
pressa em papel fotográfico. Ele mesmo
deu entrada do documento no Arquivo
Histórico Municipal Washington Luiz, sit-
uado no bairro Bom Retiro.
1982
Esqueci de vez essa história toda. Ela foi importante enquanto eu
vivi. Porém, anos depois, já havia esquecido de reparar na cidade de novo,
percebo que o prédio da Rua Vitória foi construído quando caminhava com
minha irmã ao encontro de nosso pai na Av. Ipiranga. Pedi um estante a
ela, enquanto ela esbravejava sobre os problemas que estava tendo com
seus funcionários no novo consultório, saí sorrateiramente pela calçada.
Corri um pouco, atravessei a Av. São João, entrei na Vitória e ergui esper-
ançoso a cabeça: DBAT j cheguei primeiro.
O presságio da pós-imagem se fez no tempo seu eterno presente. A
pessoa não só marcou todas as imagens as quais manteve contato no ato
em que fez ela imprimir a primeira escrição em caneta Piloto no tapume,
como conteve em seu gesto as três imagens que dele decorriam. Deste
tempo não há prescrição possível, apenas atravessamento. A pós-imagem
é ainda, mesmo que separada, a única possibilidade de não ser imagem.
Partida, só existe em ação, como presságio de um passado fictício e de um
futuro ainda por vir: um presente que dura muito tempo para deixar de
sê-lo.
1986
Em 2010 mais de 40 câmeras filmado-
ras Tekpix alteradas foram entregues
anonimamente, por meio dos correios,
esparsamente na cidade de Recife. As
câmeras filmavam continuamente, sem
possibilidade de serem desligadas.