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Georges Abboud
Mestre e Doutorando em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Advogado.
Resumo: O artigo tem por escopo explorar o tema da teoria da justiça a partir do
método genealógico nietzscheano. Para tanto, a proposta busca revisitar específicos
conceitos tradicionais que cronologicamente na história foram considerados como
identificadores do sentido da justiça e explorar a temática moderna do tema a partir da
reviravolta linguística da filosofia e das teorias argumentativas retóricas e
procedimentais sobre a justiça. A par disso, a investigação lança-se no pensamento de
Nietzsche e suas projeções da noção do vínculo originário jurídico do princípio da
retribuição no processo pré-civilizatório da humanidade - bem representado pela
herdada noção romana de obligatio - e como sua expressão denota o sentido dos
conceitos de direito e de justiça, fato que, no estabelecimento do direito enquanto
linguagem, revela a impossibilidade de um direito e de uma justiça-em-si.
Abstract: The article has the purpose to explore the theme of justice theory from
Nietzsche's genealogical method. For this, the proposal seeks to revisit specific
traditional concepts that chronologically in history were considered as identifiers of the
sense of justice and explore in a modern way the theme from the linguistic turn in
philosophy and theories of rhetoric and argumentative about procedural justice. In
addition, the investigation is launched at the thought of Nietzsche and his projections of
the notion of original link of the legal principle of retribution in the pre-civilization of
mankind - well represented by the Roman notion of inherited obligatio - and how it
expression conveys the sense of concepts of law and justice, a fact that in the
establishment of law and language, reveals the impossibility of a right and a justice-in-
itself.
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Genealogia da justiça Uma abordagem a partir
do conceito de obligatio do direito privado
romano
Sumário:
- 1.A genealogia da justiça - 2.A teoria da justiça e a reviravolta linguística da filosofia -
3.A (im)possibilidade de uma justiça-em-si: reflexões a partir da abordagem genealógica
nietzscheana - 4.Conclusão - 5.Referências bibliográficas
1. A genealogia da justiça
O conceito de justiça não é algo que se possa definir ou delimitar em uma exata e
conclusiva definição, 1 o mesmo acontece com o conceito de direito.
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Genealogia da justiça Uma abordagem a partir
do conceito de obligatio do direito privado
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ideal foi originariamente associado à Revolução Papal com o Julgamento Final e o Reino
de Deus, depois, na Revolução Germânica com a consciência cristã; na Revolução
Inglesa com o espírito público; nas Revoluções Francesa e Americana com a razão e os
direitos do homem; e recentemente, na Revolução Russa com o coletivismo, a economia
planejada e a igualdade social. 5
Em síntese, foi o ideal messiânico de justiça que permeou e encontrou expressão nas
revoluções, uma vez que, “a substituição do Direito anterior era justificada como
restabelecimento de um direito como justiça, mais fundamental. Foi a crença de que o
Direito estava traindo os seus propósitos e finalidades que levou às grandes revoluções”.
6
Assim, dois pontos são fundamentais para essa abertura genealógica; o primeiro remete
a uma revisitação da formação da palavra; o segundo, para o sentido originário da
justiça.
Na verdade, o que Benveniste acaba determinando é que a noção de Thémis tem seu
complemento na de Diké, a primeira indica a justiça que se exerce no interior do grupo
familiar; a outra a que rege as relações entre famílias. O ponto de partida de atribuição
de Diké é costume, maneira de ser, como uma regra imperativa, como uma “fórmula
que rege a sorte”, uma maneira “habitual” que é na realidade uma obrigação natural ou
convencional é por meio dessa fórmula, responsável por estabelecer a sorte e a
atribuição, e que se tornou em grego a palavra “justiça”, a qual se transmudou na
própria expressão da justiça, que, por sua vez, intervém para por fim ao poder da força,
ela Diké é a virtude da justiça e quem a tem a seu lado é dikaios, justo. 9
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do conceito de obligatio do direito privado
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A partir desta concepção tradicional da justiça 12, em conjunto com a proposta dos
romanos ( suum cuique tribuere), de Santo Tomás de Aquino 13 e de Santo Agostinho,
isto é, da justiça verdadeira construída no cristianismo pela prática do amor, da caridade
e da devoção, passou-se então a delimitar nos contornos das teorias do direito e das
teorias políticas uma maneira de se dividir o estudo de justiça de um ponto de vista
formal e material.
A questão pontual, portanto, que encerra esta primeira parte é a compreensão de que a
divisão da justiça nestes dois aspectos é insuficiente por manter a análise da justiça
numa base completamente metafísica, 15 não possibilitando uma construção, enquanto
noção interpretativa do sentido do justo na aplicabilidade do direito, tampouco
acompanhando o desenvolvimento filosófico e o potencial do estudo científico do direito
que se criou e ampliou, principalmente a partir do século XIX, com o desenvolvimento
dos chamados princípios da justiça e do seu conteúdo racional-ético.
A dualidade metafísica a que se reportou é bem exposta por duas questões principais
que remetem ao tema da justiça no direito e que podem ser expostas em duas
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perguntas: o que é a justiça? Como conhecemos ou realizamos a justiça?
Dessa forma, as questões postas para serem analisadas devem receber um novo
contorno filosófico, em razão do giro linguístico, pois a partir do entendimento de que o
direito é criado, é criação humana e produzido pela linguagem, o esquema cognitivo
sujeito/objeto já foi superado, implementando-se nos últimos tempos cada vez mais as
teorias processuais da justiça, 19 que concebem a justiça e o direito justo como produto
do processo de determinação do direito.
Na verdade, a racionalismo que procura dar resposta à questão da justiça com os meios
da razão humana é consagrado tradicionalmente nas teorias jurídicas e em alguns
sistemas filosóficos.
Abre-se, assim, o estudo da justiça sobre três vertentes: a igualdade como um princípio
formal (justiça em sentido estrito), a adequação, como um princípio material da justiça
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(justiça social ou comum) e a segurança jurídica (paz jurídica). A justiça passa a ser
expressa simultaneamente no sentido da forma, do conteúdo e da função. 21
Assim, imbuído desse meio termo proposto pela nova retórica, de maneira que o Direito
não é o lugar do racional e do irracional, nos contornos da justiça Perelman analisa seis
exemplos possíveis de sua noção, sendo: a cada qual a mesma coisa; a cada qual
segundo seus méritos; a cada qual segundo suas obras; a cada qual segundo suas
necessidades; a cada qual segundo sua posição; a cada qual segundo a lei que lhe
atribui. 23
O conceito é genérico, portanto, abrangente, pois busca uma forma única que abarque
as possibilidades de trabalho com a justiça, pode-se dizer que essa tentativa, além do
racionalismo, demonstra uma tentativa de contorno material da justiça, uma justiça no
caso concreto.
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Diante desse posicionamento, fundamenta uma critica radical à nova retórica, buscando
a novíssima retórica.
O autor considera que a proposição da nova retórica tem que ser radicalmente
reconstruída para contribuir com a reinvenção do conhecimento-emancipação, vez que
se caracteriza por ser técnica (não adjudica entre as formas de influenciar, entre
persuasão e convencimento), por partir do princípio que o auditório e consequentemente
a comunidade, são dados imutáveis, ficando sem refletir sobre os processos sociais de
inclusão neles ou exclusão deles, nem os processos sociais de criação e de destruição de
comunidades e, por fim, atribui que a nova retórica é manipuladora, porque os oradores
visam apenas influenciar o auditório e não se consideram influenciados por ele, a não ser
na medida em que se lhe adaptam para conseguirem influenciá-lo. 26
Todo esse contexto filosófico de Perelman, que é estendido por Boaventura de Sousa
Santos, possui um interessante fundo filosófico que, como já demonstrado, dá-se nos
contornos do racionalismo.
Por outro lado, Hegel foi o primeiro a caracterizar como racionalismo a corrente que vai
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Toda a questão da justiça perpassa esse caminho racionalista, no entanto, para uma
completa observação sobre este estudo proposto no sentido da racionalidade ética de
dos princípios matérias de justiça, resta ainda uma reflexão sobre uma das mais
importantes teorias da justiça de nossos tempos proposta por John Rawls.
No ano de 1957, John Rawls traz a lume o primeiro texto, intitulado Justice as fairness, e
em torno do núcleo deste texto, foi-se, aos poucos constituindo-se, a obra intitulada A
theory of justice – traduzida para nós como Uma teoria da justiça – publicada em
Harvard no ano de 1971. Durante a década seguinte, várias críticas foram enfrentadas
pelo autor e em 1980 o autor começa a retomar o tema com uma nova série de artigos,
buscando, unicamente uma revisão sobre o campo de aplicação e os meios de efetivação
de uma teoria que permaneceu essencialmente intocada. 31
O objetivo de Rawls com esta obra foi apresentar uma concepção de justiça que
generaliza e leva a um ponto de reflexão maior a conhecida teoria do contrato social em
Locke, Rousseau e Kant. 32 Para isso, propõe que não se deve pensar no contrato original
como um contrato que introduz uma ordem social ou governamental, mas o contrário,
isto é, que os princípios da justiça como estrutura básica da sociedade são o objeto do
consenso original. 33
Tal fato denota uma importante tomada de partido por Rawls, pois ele apresenta o
esforço do autor em tomar o conceito de justiça a partir de uma forma procedimental e
sua crença na noção de “cooperação” e não de “dominação” no âmbito da estrutural
social inicial que enceta sua teoria numa perspectiva institucionalista.
De se notar, portanto, que Rawls propõe uma teoria da justiça como base da construção
social, para isso, procura elaborar uma teoria da justiça que represente uma alternativa
ao pensamento utilitarista em geral e consequentemente a todas as suas diferentes
visões. 34
Para uma tentativa de efetivação daquilo que se refere como “consenso original”
(posição original), Rawls elabora dois princípios de justiça.
“Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de
liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade
para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que
sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites
do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.” 35
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Nesse sentido, Rawls vai além, 36 procede de forma distributiva, não tomando a parte
desta ou daquela pessoa ou grupo, mas de todas (institucional), para ele é esta a
imparcialidade exigida pela justiça. 37 Dessa maneira, o princípio da equidade para
Rawls, assim se estabelece: age de tal modo, que todos os envolvidos participem de
forma igual, tanto nos benefícios como nos encargos. Portanto, não é justo um projeto
de tecnologia genética que apenas traz progresso e utilidade para a maioria, sendo as
desvantagens suportadas exclusivamente pela minoria, é a tutela das minorias, uma
inversão da ideia primeira do tradicional conceito de contrato originário social. 38
Tomando em conta estas noções, Amartya Sen, ao buscar uma concepção de justiça,
pode-se também dizer num sentido material, concreto, propõe uma das críticas mais
importantes ao pensamento de Rawls no que se refere ao contexto denominado como
“prioridade da liberdade formal”, que pelo próprio Rawls fora analisada moderadamente,
mas já, por Nozick 40 de forma um tanto inflexível. 41
Rawls considera através deste conceito que amplas classes de direitos, desde direitos
formais até direitos de propriedade, têm procedência política quase total sobre a
promoção de objetivos sociais. Esses direitos assumem forma de “restrições colaterais”
que não podem ser violadas, ou seja, os procedimentos empreendidos têm de ser
aceitos, independentemente das consequências que deles possam advir. Portanto, Sen
demonstra que a questão nesse sentido, não é a importância comparativa dos direitos,
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mas sua prioridade absoluta.
O argumento em favor desta “prioridade” pode ser demonstrado através da força das
considerações, como por exemplo, econômicas. A questão crucial, ao entendimento de
Sen se dá não pela total precedência, mas se a importância da liberdade formal de uma
pessoa deve ser considerada possuidora do mesmo tipo de importância que a de outros
tipos de vantagens pessoais, como rendas, utilidades etc. 43
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A teoria da justiça de Walzer não passa imune às críticas de Ronald Dworkin, que apesar
de ressaltar a sofisticação e a complexidade da teoria de Walzer, enfatiza o relativismo
ínsito a ela.
A obra de Dworkin talvez seja umas das maiores teorizações sobre a justiça, cuja
sistematização demandaria exame de toda sua obra, o que não é o escopo deste artigo.
O que desejamos ressaltar é o resgate da intrínseca relação entre política e legalidade
para se analisar a concepção de justiça. Dworkin propõe como um dos principais
paradigmas a serem enfrentados a releitura da legalidade para se examinar a questão da
própria justiça. Vale dizer, é possível afirmar que em sistemas jurídicos em que impera a
perversidade esses sistemas seriam dotados de legalidade? A legalidade pode ser
explicada abstratamente a ponto de ser admitida em estruturas políticas profundamente
injustas? 54
Em conclusão, importante ressaltar que a partir de Dworkin é possível concluir que não
faria nenhum sentido examinar-se, hodiernamente, a justiça fora da prática (mundo da
vida), sem levarmos em conta a complexidade das estruturas sociais contemporâneas,
essa é leitura inicial para a premissa dworkiana de que a justiça não é um deus ou um
ícone: nós a valorizamos, se o fazemos, devido a suas consequências para as vidas que
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A tomada de partida por esta utilização metodológica possui o intuito de causar uma
confrontação entre as noções tradicionais sobre o conceito de justiça e alguns conteúdos
de teorias argumentativas retóricas como a de Perelman e de teorias procedimentais da
justiça como a de John Rawls.
A reflexão se situa, portanto, entre aquilo que se busca superar em relação à tradição
das teorias clássicas e a importância de se entender pela construção em sentido material
do conteúdo de justiça que as teorias modernas vêm desenvolvendo.
A abordagem que aqui se ocupa do pensamento nietzscheano insere-se numa crítica que
refuta a imputação infundada de incoerência e carência de conteúdo sociopolítico na sua
obra, afirmando-se que temas centrais da sua filosofia originam-se e são desenvolvidos
em relação a questões sociais e políticas, especialmente também com a filosofia do
direito, que podem, portanto, ser enquadradas como elementos fundamentais de sua
filosofia da cultura. 59
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sua tese sobre a (pré)história da humanidade, algumas considerações sobre sua teoria
psicológica da vingança e do ressentimento – tendo em vista sua crítica à polêmica
interpretação de Eugen Dühring sobre a origem da pena – e sua proposta da
impossibilidade de um direito-em-si.
Para Nietzsche, a mais antiga e principal relação pessoal estabelecida foi entre
comprador e vendedor, credor e devedor, e dela se originou o sentimento da obrigação
pessoal e o sentimento de culpa. Pela primeira vez, com ela, mediu-se uma pessoa com
outra.
Portanto, nas sociedades mais primitivas e antigas já existia essa relação, 60 qual seja o
estabelecimento de preços e a troca de bens por medidas valorativas que possuem um
sentido de equivalência denotam as características dessa formação humana.
Ademais, o autor identifica o homem como um ser que mede e valora coisas, um “animal
avaliador”, suas relações de compra e venda e o sentido de sua formação no
pensamento do homem são os mais antigos elementos de organização social.
“Foi apenas a partir da forma mais rudimentar de direito pessoal que o germinante
sentimento de troca, contrato, débito [ Schuld], direito, obrigação, compensação, foi
transposto para os mais toscos e incipientes complexos sociais (em relação com
complexos semelhantes), simultaneamente ao hábito de comparar, medir, calcular um
poder e outro. O olho estava posicionado nessa perspectiva; e com a rude coerência
peculiar ao pensamento da mais antiga humanidade, pensamento difícil de mover-se,
mais inexorável no caminho escolhido, logo se chegou à grande generalização: ‘cada
coisa tem seu preço; tudo pode ser pago’ – o mais velho e ingênuo cânon moral da
justiça, o começo de toda ‘bondade’, toda ‘equidade’, toda ‘boa vontade’, toda
‘objetividade’ que existe na terra. Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre
homens de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de entender-se
mediante um compromisso – e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um
compromisso entre si.” 62
Tal modo de pensar compensador é bem entendido na própria relação direta entre
credor e devedor, 63 dado que o credor poderá ser sempre mais humano quanto mais
rico for, pois o sentimento de sua injúria passa a ser a demonstração do quanto rico é,
do quanto sua riqueza suporta essa injúria sem ele sofrer.
Essa possível ocorrência direciona o sentido inicial da justiça para outro; o da absolvição
ilegítima, o “‘tudo é resgatável, tudo pode ser pago’, termina por fazer vista grossa e
deixar escapar os insolventes – termina como toda coisa boa sobre a terra, suprimindo-
se a si mesma. A autossupressão da justiça: sabemos com que belo nome ela se
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Cabe neste ponto, inicialmente, fazer referência a um importante jurista estudado por
Nietzsche, Alberto Ermanno Post.
A base etnológica de Post – que Nietzsche utiliza e que vai de encontro substancial ao
seu pensamento – demonstra que seu primitivo sujeito de direito não são pessoas
individualmente consideradas, mas, sim, as comunidades de estirpe, representadas por
tribos ou clãs, isto é, sociedades, como já pormenorizadamente demonstrado no
primeiro capítulo, fundadas em laços de parentesco sanguíneo e praticantes da vingança
privada, pois – conforme também antecipadamente evidenciado – nas relações dessas
comunidades, toda a responsabilidade é coletiva e a vingança é prerrogativa da
comunidade.
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Desse modo, lança-se uma hipótese interpretativa pela polêmica que desperta
Nietzsche, fundada em categorias jurídicas, mais especificamente no direito penal,
referente à interpretação sobre a origem de pena de Eugen Dühring.
Como bem observa Oswaldo Giacoia Jr., Dühring enfaticamente deixa clara sua tese
sobre a origem da pena, aplicando os princípios de mecânica racional, enquanto advinda
do ressentimento e provocadora da vingança. 68
Com a instituição da lei, Nietzsche afasta a ideia de que a justiça possa ser derivada de
sentimentos negativos e reativos como a vingança e afasta também a hipótese de que
teria algum sentido considerar algo em si mesmo como justo ou injusto, algo como uma
justiça em si, um direito em si. Para Nietzsche, não há fatos, há interpretações de fatos.
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Por fim, desse modo pode se dizer que as linhas de uma filosofia do direito em Nietzsche
perceptivelmente se constroem em oposição direta às doutrinas tradicionais do direito,
principalmente em relação ao pensamento contratualista e do direito natural, bem como
do exacerbo das escolas racionalistas e das manifestações do utilitarismo e do
positivismo. Justamente nesse sentido se compreende a intensa crítica nietzscheana
sobre a moderna doutrina de igualdade de direitos. Se a própria noção de direito se
estabelece na pretensão de regularização e ação social fundada no reconhecimento de
vários graus de poder que vigem entre os homens, é preciso então que a desigualdade
seja pensada como uma das próprias condições para que hajam direitos, pois a
suposição ideal de uma sociedade universal é no mínimo irrazoável, ao passo em que o
mundo é formado por relações de dominação e poder. 77
4. Conclusão
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Kelsen, por sua vez, apresenta dados históricos e antropológicos, e investiga as próprias
bases anteriores a essa consciência de autodomínio. Ele a anuncia ao evidenciar o nível
de desenvolvimento da mentalidade primitiva e o quanto nesse processo a ideia do
princípio da causalidade se afigura como uma ideia moderna, pois, até então, havia a
total predominância do princípio da retribuição;
Neste ambiente, o tema da justiça nos remete à noção dos primeiros “sujeitos de
direito”. Os “primitivos sujeitos de direito” não são pessoas individuais, mas, sim, clãs,
gens, organizações coletivas de cujo desenvolvimento surgem as comunidades tribais e
posteriormente os povos inteiros. A importância dessa revelação desloca a interpretação
histórica dos “modernos sujeitos de direito”.
Fato é que, todo este estudo aliado às novas projeções da reviravolta linguística da
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Neste sentido, a proposta do artigo foi também a de promover de modo pontual uma
análise do pensamento racional da justiça até John Rawls e revelando a atual polêmica
levantada por Walzer e a crítica e posicionamento de Ronald Dworkin, entendidos como
viáveis para a renovação da discussão sobre o tema da justiça.
Por fim, tem-se que o intuito fora o de fornecer um ambiente profícuo capaz de fomentar
o direito e reconhecer a sua importância e a sua potencialidade de transformação social,
reforçando e comprovando a possibilidade teórica e prática da necessidade de renovação
das formas jurídicas – justiça –, que a partir do que se propôs, pretende-se que
adquiram novo foco de discussão e atuação, promovendo um direito mais
compromissado filosoficamente.
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2 Cf. Arthur Kaufmann. Filosofia do Direito. Trad. António Ulisses Cortês. Lisboa:
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5 Idem, ibidem.
6 Idem, ibidem.
8 Idem, p. 104-105.
9 No sumário do capítulo 2 que inicia nesta obra o estudo sobre o palavra díke, o autor
afirma que “o grego díke impõe a representação de um direito formular, determinado
para cada situação particular o que se deve fazer. O juiz – hom dikas-pólos – é aquele
que tem a guarda do conjunto de fórmulas e pronuncia com autoridade, dicit, a sentença
apropriada”. Émile Benveniste. O vocabulário das instituições indo-europeias cit., p. 112.
11 Cf. Aristóteles. Ética a nicômacos. 4. ed. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Ed.
UnB, 2001. O livro V da referida obra contém o estudo sobre A Justiça, que se inicia do
seguinte modo: “com vistas à justiça e à injustiça, devemos indagar quais são as
espécies de ações as quais eles se relacionam, que espécie de meio termo é a justiça, e
entre que extremos o ato justo é o meio termo”.
12 Sobre uma visão mais detalhada da experiência histórica da justiça, cf. Giorgio del
Vecchio. A justiça. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Saraiva, 1960. p. 83-93.
14 Tercio Sampaio Ferraz Junior. Estudos de filosofia do Direito: reflexões sobre o poder,
a liberdade a justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2002. p. 232.
15 Para uma temática diferenciada sobre este assunto, muito interessante são os
estudos nietzscheanos sobre a justiça. No contorno de sua obra, vale a pena ressaltar a
seguinte passagem: “Origem da justiça. A justiça (equidade) tem origem entre homens
aproximadamente o mesmo poder (…: troca é o caráter inicial da justiça. Cada um
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satisfaz ao outro, ao receber aquilo que estima mais que o outro. Um dá ao outro o que
ele quer, para tê-lo como seu a partir de então, e por sua vez recebe o desejado. A
justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou
menos igual: originalmente a vingança pertence ao domínio da justiça, ela é um
intercâmbio. Do mesmo modo a gratidão”. Friedrich W. Nietzsche. Humano, demasiado
humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. p. 92.
Continuando com a questão, importante também a crítica de Martin Heidegger a partir
do seguinte comentário “Nevertehless, because in Nietzsche’s thought it remains veiled
as to whether and how ‘justice’ is te essencial trait of truth, the keyword justice may not
be raised to the rank of the main heading in Nietzsche’s metaphysics”. Martin Heidegger.
Nietzsche. San Francisco: Harper Collins PBK, 1991. vol. 3, p. 249. Neste ambiente,
levando em conta a proposta de Tercio Sampaio Ferraz Junior sobre a dualidade
metafísica de justiça e sua noção de retribuição, passa a ser de fundamental importância
para complementação e finalização do assunto do princípio da retribuição aqui retratado
e a ser mais desenvolvido a partir do pensamento de Nietzsche, a compreensão das
consequências da justiça na forma de retribuição com base no texto “Vergeltung”
zwischen Ethologie und Ethic (“Retribuição” entre Etologia e Ética) de Walter Burkert. As
bases sob as quais Burkert estrutura seu estudo sobre retribuição fornecem importantes
revelações sobre os contornos em relação à elaboração dos modelos de justiça. Ele
retorna a textos e mitologias da Antiguidade alcançando importantes apontamentos
atuais que merecem relevo. Por mais que a aceitabilidade da agressão, repressão e
violência como base da retribuição justa pareça algo das sociedades primitivas, a
expressão latina vindex, os princípios islâmicos vigentes da pena e mesmo a pena de
morte, que não se divide necessariamente entre Ocidente e Oriente, apresentam a sutil
presença desse modo primevo de manifestação da justiça como retribuição. Tercio
Sampaio Ferraz Jr. Poder e justiça. Direito e poder: nas instituições e nos valores do
público e do privado contemporâneos. Estudos em homenagem a Nelson Saldanha.
Barueri: Manole, 2005. p. 168-182.
19 O tema sobre as teorias processuais da justiça não será aqui tratado, pois, além de
não ser escopo do trabalho é complexo e exigiria, no mínimo, por honestidade
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20 Hans Kelsen. O que é justiça? Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 2.
23 Chaim Perelman. Ética e direito. 2. ed. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 9.
24 Idem, p. 19.
26 Idem, p. 104.
27 Idem, ibidem.
28 Idem, p. 107.
29 Nicola Abbagnano. Dicionário de filosofia. 4. ed. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 822.
30 Idem, ibidem.
31 Paul Ricoeur. O justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2008. p. 89.
33 John Rawls. Uma teoria da justiça. 2. ed. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímole
Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 12.
34 Idem, p. 24.
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35 Idem, p. 64.
36 Nesse sentido há também uma boa crítica de Otfried Höffe na obra Justiça política.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
38 Idem, p. 273.
41 Amartya Sen. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Cia. das Letras, 2000. p. 83.
42 Idem, ibidem.
43 O ponto de vista do autor pode ser bem entendido na seguinte passagem de sua
obra: “Em particular, a questão é se a importância da liberdade formal para a sociedade
é adequadamente refletida pelo peso que a própria pessoa tenderia a atribuir a essa
liberdade ao julgar sua própria vantagem global. A afirmação da preeminência da
liberdade formal (como liberdades políticas e direitos civis básicos) contesta que seja
adequado julgar a liberdade formal simplesmente como uma vantagem – tal como
unidade extra de renda – que a própria pessoa recebe por essa liberdade”. Amartya Sen.
Desenvolvimento como liberdade cit., p. 84.
44 Michael Walzer. Las esferas de la justicia: uma defensa del pluralismo y la igualdad.
2. ed. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2001. n. I, p. 17.
45 Idem, p. 19 et seq.
46 Ronald Dworkin. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Cap.
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10, p. 319.
47 Idem, ibidem.
49 Idem, p. 322-323.
50 Idem, p. 325.
51 Idem, p. 328.
52 Idem, p. 329.
53 A crítica de Dworkin está assim concluída: “Ele diz, por exemplo, que um sistema de
castas é justo numa sociedade cujas tradições o aceitam, e que seria injusto em tal
sociedade distribuir bens e outros recursos igualmente. Mas suas observações sobre o
que a justiça requer numa sociedade cujos membros discordam sobre a justiça são
obscuras. ‘Outras possibilidades de distribuição’ podem significar cuidado médico para os
pobres em algumas cidades, mas não em outras? Como uma sociedade que tem de
decidir se permite ou não que comitês de ação política financiem campanhas eleitorais
pode realmente ser ‘fiel’ à discordância sobre o significado social das eleições e da
expressão política? O que significaria ser fiel?Se a justiça é apenas uma questão de
seguir as opiniões compartilhadas, como as partes podem estar debatendo sobre a
justiça quando não existe nenhuma opinião compartilhada? Nessa situação, nenhuma
solução é possivelmente justa, pela descrição relativista de Walzer, e a política só pode
ser uma luta egoísta. Mesmo dizer que as pessoas discordam sobre significados sociais,
o que pode significar? O fato da discordância mostra que não existe nenhum significado
social compartilhado sobre o qual discordar. Walzer não levou a termo o pensamento
sobre as consequências de seu relativismo para uma sociedade como a nossa, na qual
questões de justiça são contestadas e debatidas”. Ronald Dworkin. Uma questão de
princípio cit., cap. 10, p. 324.
54 Sobre essas questões, ver Ronald Dworkin. A justiça de toga. São Paulo: Martins
Fontes, 2010. Cap. 6, p. 243 e 394, n. 29.
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59 Idem, p. 21.
62 Idem, ibidem.
63 Sobre a relação de crédito no direito romano, conferir: Paul Jörs e Wolfgang Kunkel.
Derecho privado romano cit., § 100, p. 234 et seq.
64 Idem, ibidem.
65 Idem, § 19.
66 A base na qual Nietzsche busca guarida sobre a noção de sujeitos de direito e sobre
as noções de dívida jurídica e promessa para contrapô-las ao emprego de categorias
metafísicas como finalidade ou progresso, conforme a precisa pesquisa de Oswaldo
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13-15.
72 Idem, p. 41.
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