Você está na página 1de 10

Histórias do Diário de Navegação de

Teotônio José Juzarte: a codificação do sofrimento colonial


RENATA FERREIRA MUNHOZ

Resumo: Este trabalho é a versão escrita da comunicação apresentada no VIII Seminário


Nacional do Centro de Memória – Unicamp - MEMÓRIA E ACERVOS DOCUMENTAIS: O
ARQUIVO COMO ESPAÇO PRODUTOR DE CONHECIMENTO. Apresenta-se o valor dos
“documentos de arquivo”, com destaque ao gênero “Diário de viagem”, para as Ciências
Humanas. Para tanto, adota-se como corpus o “Diário da Navegação” (1768), de Teotônio José
Juzarte, do Regimento de Dragões Auxiliares da capitania de São Paulo. Seu diário teve
diversas edições por conta da importância do mapeamento dos rios Tietê, Paraná e Iguatemi,
desde Porto Feliz (SP) até Praça de Iguatemi (MS). Além da contribuição geográfica, a obra
guarda a memória colonial do Brasil pela narração pormenorizada de ocorrências cotidianas,
que pode ser considerada “pitoresca”, por representar ideologias coevas. Por exemplo, a fé
católica levou os desbravadores a abandonarem um cadáver que enterrariam, por crerem que
isso lhes trouxesse mal agouro. Por meio dos estudos da linguagem, detalhes históricos, como
a rígida imposição militar, são depreendidos. Os estudos linguísticos encontram vasto corpus
na obra especialmente devido ao vasto repertório vocabular, dados os termos indígenas
explicados em Português pelo autor a seu superior, o Morgado de Mateus, Governador e
Capitão-General da Capitania de São Paulo. Além disso, são elucidados aspectos de cunho
sociológico, que emergem das inúmeras dificuldades de sobrevivência no inóspito “sertão”,
onde se aventuravam tantos habitantes da capitania nas expedições oficiais. Pretende-se realçar,
portanto, a inestimável riqueza de cunho histórico, linguístico, sociológico e artístico contida
em documentos de arquivo.

Palavras-chave: Filologia; Manuscritos; Cultura Escrita; Documentos de Arquivo.

1. Introdução
A motivação inicial para esta comunicação é a existência do Diário de viagem produzido
pelo ajudante do Regimento de Dragões e Auxiliares da Capitania de São Paulo, Teotônio José


Doutora pela FFLCH/USP. E-mail: renatamunhoz@usp.br
2

Juzarte, a mando do Governador e Capitão-General da Capitania de São Paulo, Dom Luís


António de Sousa Botelho Mourão, o Morgado de Mateus. Trata-se de “uma das mais
extraordinárias narrativas da navegação fluvial no Brasil do século 18” (SOUZA; MAKYNO,
2000, p. 12). Redigido entre os anos de 1769 e 1771, o diário retrata as inúmeras ocorrências
durante a navegação realizada nos rios Tietê e Paraná na monção de 36 embarcações com cerca
de 700 tripulantes chefiada por ele. É evidente quão árdua foi a tarefa de mapear e desbravar o
longo percurso, desde Araritaguaba, a atual cidade de Porto Feliz, até a Praça de Iguatemi no
Mato Grosso do Sul, realizada em mais de dois anos.
É comum que se encontre a subjetividade nos escritos contidos no gênero textual “diário”
na atualidade. Contudo, o gênero “diário de viagem”, ou “de navegação”, como é o caso do
corpus aqui trabalhado, representava um gênero supostamente marcado pela objetividade
concreta dos registros feitos pelo profissional incumbido da função da escrita. Este trabalho
pretende demonstrar a existência de marcas do discurso expressivo do autor, capazes de retratar
a subjetividade do sofrimento por que passaram os tripulantes de sua navegação.

2. O Diário de Navegação
De acordo com Bellotto (2002, p. 65), o diário é um documento não-diplomático
testemunhal de assentamento. Trata-se de um caderno em que se anotam as principais
ocorrências. Também é chamado de “caderneta de campo”. Seguindo esses parâmetros, a
divisão do texto é feita conforme o que entendemos hoje pelo gênero textual “diário”: com
narrativa que se compõe a cada dia. Além do texto, o diário conta com o plano borrão de 54
mapas de todo o percurso fluvial de Araritaguaba até a fronteira de Iguatemi.
Ao se desenvolver um trabalho de observação do corpus, do ponto de vista filológico, há
alguns aspectos a serem considerados. Em primeiro lugar, levando-se em conta a Diplomática,
pode-se classificar a tipologia textual como sendo um Diário de Navegação redigido
inicialmente em uma única via. Contudo, a gênese textual pode comprovar a existência de
outras vias, provavelmente grafadas ainda no período, após a chegada da primeira versão à
Secretaria de Governo do Morgado de Mateus.
3

A versão editada por Souza e Makyno (2000) encontra-se arquivada no Museu Paulista
de São Paulo e há outra versão na seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Trata-se claramente de duas cópias, conforme assegura Borges (2011, p. 24).
Por meio da análise paleográfica, o exemplar apresentado em sua versão fac-similar e
transcrito na edição organizada por Souza e Makyno (2000) denota uma caligrafia bastante
legível, regular. Esse punho hábil indica tratar-se de uma cópia, provavelmente feita como uma
segunda via de segurança, feita a mando do Morgado de Mateus por um de seus copistas em
sua Secretaria de Governo.
As análises de cunho codicológico não foram possíveis por não se ter acesso direto ao
exemplar manuscrito. Assim, as observações foram feitas por meio das reproduções fac-
similares publicadas por Souza e Makyno (2000). Observa-se que o espaço utilizado no papel
para a escrita, a mancha textual contida entre as margens em cada página, é extremamente
regular. Aparentemente, o papel utilizado é o de trapo e a tinta, a ferrogálica, conforme é comum
no período.
O assunto precípuo de que trata o diário é a prestação de contas de Teotônio José Juzarte,
enquanto responsável da expedição rumo ao Iguatemi, a seu superior, o Morgado de Mateus. O
intuito da expedição é o de colonizar e, por consequência, militarizar as fronteiras, com o
estabelecimento do presídio1 do Iguatemi. Deve-se ressaltar a proporção desse projeto, que se
tornou o principal motivo pela desestruturação do sistema econômico da capitania. Foi, por
conseguinte, a causa de o Morgado de Mateus ter sido destituído do cargo frente às denúncias
de ter ido “dilapidando os cofres públicos e particulares [de modo a realizar] verdadeiras
sangrias na população da capitania de São Paulo para povoar as fronteiras” (KOK, 2009).
Apesar disso, anteriormente, no tempo em que o Morgado de Mateus fora nomeado,
estava no centro da pauta do governo de Pombal o projeto de conquista do Iguatemi, de modo
a defender todo o território da provável invasão espanhola. Com o propósito precípuo de
militarização da capitania, o Governador investiu ao máximo em missões que adentrassem os
sertões, como eram chamadas as áreas não povoadas que circundavam a capitania de São Paulo.

1
De acordo com MUNHOZ, R. F. Filologia e discurso na correspondência oficial do Morgado de Mateus:
edição de documentos administrativos e estudo das marcas de avaliatividade. Tese de doutorado. São Paulo:
Universidade de São Paulo. 2015, 887 p. O presídio era uma fortaleza militar construída de taipa 1770 na região
do Mato Grosso Sul como parte do plano militar de proteção do oeste da capitania, de modo a evitar o acesso de
inimigos ao Brasil pelo Rio da Prata.
4

Nesse sentido, Teotônio José Juzarte, oficial de Ajudante, foi nomeado à função de
Capitão-Mor Regente da expedição que deveria colonizar a praça de Iguatemi dos ataques de
inimigos. Essa missão contava com trinta e seis canoas de cerca de sessenta palmos de
comprimento, com um piloto na frente, o proeiro e cerca de seis remeiros, todos em pé. Ao
longo da canoa, viajaram sentados sobre as cargas os demais tripulantes. Partiram de
Araritaguaba no dia 13 de abril de 1769 pelo Rio Paraná abaixo, rumo à Praça de Nossa Senhora
dos Prazeres do Iguatemi, onde aportaram no dia 12 de julho de 1771.
O diário revela a dificuldade dos sertões, não obstante as qualidades atribuídas aos
paulistas: “fundadores de currais, caçadores de escravos, descobridores de ouro, os paulistas
açulados pelo espírito de aventura, pela cobiça ou pela necessidade de expansão do gado”
(AZEVEDO, 2010, p. 152). Ademais, houve um notável despovoamento da região, revelado
por diversos estudiosos do período: “as bandeiras paulistas extraem, de fato, uma raça vigorosa
e um sangue jovem – a raça e o sangue dos mamelucos, povoadores de Piratininga – um excesso
transbordante de forças que as sangrias, frequentes e quase periódicas, das expedições,
temperam dificilmente, em cerca de um século de expansões sertanejas” (AZEVEDO, 2010, p.
152).
Revela a História que o Iguatemi consistia em um local de terras estéreis, com um
povoado de homens famélicos. Sendo assim, esse projeto do Morgado de Mateus, que visava à
militarização e à defesa do território, gerou, além dos gastos exorbitantes, a completa dizimação
dos povoadores. Após o Tratado de Santo Ildefonso, em 1.º de outubro de 1777, a Praça de
Iguatemi foi ocupada por cerca de três mil espanhóis e seus cúmplices, os índios guaicurus.
Desse modo, os colonizadores em nome da Coroa Portuguesa foram forçados a abandonar o
local e viajar novamente de volta às suas cidades de origem, comumente já sem saúde e sem o
mínimo de condições de sobrevivência.

3. Um retrato minucioso do sofrimento dos colonizadores


Quando empregamos o termo “colonizador”, comumente associamos a visões
romanceadas de pessoas com o mínimo de condições de residir em uma nova área. Contudo,
levando-se em conta que “na medida em que nos ligamos ao concreto, eliminamos a
generalidade” (LE GOFF, 2013, p. 43), ao conhecermos os fragmentos da realidade,
5

construímos um padrões de análise mais sólidos acerca de nossa história. Assim, a realidade
colonial apontada pelo diário denota toda a sorte de percalços e dificuldades.
O diário de Juzarte revela a triste apresentação de privações vivida durante dois anos e
três meses, em que os 700 colonizadores enviados à Praça do Iguatemi presenciaram e
padeceram as mais severas adversidades causadas pela natureza e por seus inimigos, sobretudo
índios e castelhanos.
Em primeiro plano, deve-se pontuar a não adesão dos 320 colonizadores do sexo
masculino que participaram da expedição. Embora sejam tratados como “voluntários”, foram,
via de regra, alistados de maneira impositiva, mediante a prisão de seus familiares para que não
desertassem.
Embora este trabalho adote como base a publicação Souza e Makyno (2000), em que
consta uma edição modernizada do diário, optou-se por transcrever os fragmentos textuais de
maneira semidiplomática a partir da reprodução fac-similar dos manuscritos. Optou-se por essa
transcrição por ser conservadora, de modo a manter na íntegra a grafia do período, com o
desenvolvimento das abreviaturas existentes.
O diário analisado foi concebido com a proposta, mesmo que intuitiva por parte de seu
autor, de que “a história é acima de tudo uma arte, uma arte essencialmente literária. A história
só existe pelo discurso. Para que seja boa, é preciso que o discurso seja bom” (DUBY, 1980,
apud LE GOFF, 2013, p. 40). Diante disso, pode-se observar que o discurso construído tinha
fundamento consistente, seja em sua construção retórica, seja em seu arcabouço de conteúdo.
O autor serve-se de formulações fixas, tais como a que inicia todos os dias de seu diário:
“Em este dia treze deAbril” (SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 138). Em acréscimo a essa, há
outras fórmulas ao longo de seus relatos: “Em este dia de madrugada” e “Amanhecendo este
dia”. Essas expressões colaboram com a organização do texto, sobretudo nas qualidades
textuais de coesão e coerência.
Em relação às qualidades textuais, deve-se assinalar que, apesar de parágrafos bastante
extensos, nota-se a clareza das ideias expressas pelo autor: “Iuntos os Povoadores, preparadas
as Em= | barcaçoens, e carregadas com tudo o necessario | se Embarca a gente, tanto da
mareaçaõ | como os passageiros; eas Embarcaçoens se | poem todas em filleira prezas ao Porto
dadita Fragata [...] a este tempo to= | das as pessoas estaõ confessadas, e Sacra= | mentadas,
6

porque daqui para baixo naõ há mais || Igrejas, nem Sacramentos.” (SOUZA; MAKYNO, 2000,
p. 122). Nota-se, no fragmento que, ao lado do relato do cumprimento da ordem, o autor já
esboça seu pesar em relação à carestia que viverá nos próximos dias. A ausência de civilização
cristã é simbolizada pelos termos “igrejas” e “sacramentos”.
A ideologia católica perpassa todo o diário, a exemplo de todas as correspondências e
documentos oficiais da épocas. A semântica da religiosidade está presente de diversas maneiras
ao longo dos relatos diários. De maneira geral, adota-se o catolicismo como o meio
indispensável para o sucesso da expedição: “Acabada a Ladainha benze o Parocho | atodas as
Canoas, e cometiva, edepois im= | plorando a todos a Divina Clemencia larga a || Capitania
dando muitas salvas de Espingar- | da, elevando a Sua Bandeira larga.” (SOUZA; MAKYNO,
2000, p. 123). Nota-se que o reforço desse conceito dá-se pela prática do sacramento. A posição
de subserviência à divindade denota o mérito da expedição e eleva a sua posição social. Tanto
o verbo “implorando”, quanto a expressão “divina clemência”, ambas grafada com iniciais
maiúsculas, reiteram a imagem da missão como uma atividade essencialmente católica. A
certificação disso dá-se pela generalização do grupo por meio dos vocábulos que indicam
quantificação “todas” e “muitas. O discurso revela, portanto, não haver ideologias dissonantes
do catolicismo no grupo chefiado por Juzarte.
À moda da época, os dogmas da religião católica misturam-se com a superstição gerada
pelo desconhecimento do que sofrem na expedição no decorrer dos tantos dias de viagem: “aqui
entraraõ a tomar agouro | quazetodos os Povoadores, ehomens | da marinha, que o naõ abrandar
o ven= | to, e andarmos com tantos trabalhos | éra a cauza, o defunto que hia no Cai= | xaõ para
se enterrar no Rio Gatemy | como requereraõ seos Pays.” (SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 262).
Nota-se que as tentativas de apaziguar o sofrimento por que passavam os colonizadores levava-
os a atitudes supersticiosas. O contexto das privações e falta de expectativa em recursos
materiais fazia com os tripulantes recorressem ao plano do espiritual. A compreensão do que
viviam na ocasião da escrita do diário é fundamental para que o discurso nele contido seja
compreendido na íntegra. Afinal, “a significação em história é essencialmente contextual” (LE
GOFF, 2013, p. 43). A narrativa relata a ocorrência da morte da filha de um casal. A pedido
dos pais, o corpo seria enterrado ao final da viagem, onde poderia receber os sacramentos.
Entretanto, o mau tempo, a carestia de víveres e as várias adversidades que retardaram a viagem
7

fizeram com que os tripulantes acreditassem ser o cadáver que carregavam a causa de todos os
males. Diante dessa inferência, o corpo foi enterrado à revelia dos familiares.
A narrativa contém outras tentativas de responsabilizar pessoas da tripulação pelas
dificuldades enfrentadas: “As | mulheres que nunca ja mais saõ boas de con= | tentar, huãs com
dores do parto, por estes mo- || tivos, eja cansado foi que transportei para a | outra margem
doRio este Povo para me ficar livre o tempo de dous dias” (SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 125).
O autor atribui valoração bastante negativa às mulheres, como fonte constante de problemas,
retratado pela dupla negativa “nunca” e “jamais”. Nos dias atuais, tal asserção poderia retratar
o preconceito de gênero. Sem incorrer em anacronismos, notamos a declaração do autor de que,
na função de comandante da viagem, viu-se diante da necessidade de isentar-se por dois dias
de tantos transtornos para conseguir resolver questões de ordem burocráticas.
Contudo, os problemas não eram gerados apenas pelas mulheres colonizadoras. Diversas
eram as doenças por assolavam toda a tripulação: “Porem inda aqui naõ pararaõ tantos in- |
comodos, trabalhos, e impertinencias, porque | estando tudo na forma dita sobre veyo huma |
dearreya geral por homens, mulheres, e Cri- | anças, de tal sorte que huns escondidos pelo mato,
outros desfalecidos que se naõ moviaõ de | hu͂ lugar” (SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 136). A
generalização das contendas foi reforçada em “tantos”, “tudo” e “geral”.
Diversos são os perigos a que estão expostos durante o longo percurso: “se matou huã
grande cobra coral, eduas jararacas [...] taõ venenózas que mordendo em qual quer pessoa
estantaneamente fica sem vida, e entra a exalar sangue pelos ólhos, boca, e nariz, epelas unhas”.
(SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 145). As cores com que o autor descreve o risco faz com que
entendamos a sua inserção no quadro de temeridade diante do risco de morte iminente.
Dada a sua periculosidade, as cobras são alvo de muitas abordagens: “Alem destes
inceptos há os bichos que se temem | muito os quaes saõ as cóbras de extraordinaria | grandeza,
e diversas qualidades de que ao diante | darei noticia como saõ jararacas, Cascaveis, co | rais, e
sobre tudo as grandes, e monstruozas | sucuris.” (SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 117). Toda a
expressividade reflete com clareza a subjetividade do autor em sua preocupação diante desses
animais rastejantes. A marca indicativa de afeto acerca do temor é o advérbio “muito”, que
reitera a “extraordinária grandeza” das cobras. Além do tamanho, a diversidade é apontada:
“diversas qualidades”, de modo a corroborar a apreciação negativa que resume: “monstruosas”.
8

Além dos animais capazes de matar instantaneamente um homem, há outros fenômenos


da natureza do sertão igualmente: “esta taõ horroróza tempestade molhan | do-se tudo”
(SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 145). Mais uma vez, a generalização expressa em “tudo” reforça
o alto grau do sofrimentos físicos a que estão submetidos os tripulantes.
O quadro abrangente de dificuldades ultrapassava o físico, chegando a repercutir em
questões de ordem emocional e moral: “soube que hu͂ homem se achava esmo= | recido, eque
ja naõ comia havia tres dias, o | qual seachava deitado escondido fóra da | comunicaçaõ das
mais pessoas, oqual fiz com= | duzir, econsolando-o, e fortificando-o com vinho, eSustento foi
tornando assy, e | medisse que por acanhado, emalancólico es= | perava occaziaõ de se deixar
ficar, e morrer | naquelles matos, ao qual dahy em diante me foi | percizo por-lhe vigia.”
(SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 148). A melancolia atribuída ao homem retrata de maneira
expressiva todo o estado da tripulação. Por meio do discurso expressivo, nota-se que o quadro
de esmorecimento e desânimo inclui o próprio autor, apesar de sua posição de distanciamento
diante da situação, como aquele capaz de reintegrá-lo à convivência do grupo.
A narração é recheada de muitas descrições pormenorizadas. Esse alto grau de
detalhamento revela o caráter intersubjetivo da obra. Afinal, o esforço do autor na construção
de um discurso claro visa, sobretudo, à correta compreensão de seu interlocutor, seu chefe, o
Morgado de Mateus. Exemplo disso é a seguinte passagem: “Os inceptos que perseguem saõ
mosquitos | chamados polvora, borrachudos, pernilongos, | e em tanta quantidade que se formaõ
nu= | vem; alem destes há os vernes que picando | nacutes introduzem dentro hu͂ bicho negro |
gadelhudo a similhança de huã lagarta de | coube, há os carrapatos de varias qualidades | e de
uns miudos á similhança de piolhos | de galinha que se formaõ em bollas do tamanho de nózes
eestaõ pendentes nas folhas das | arvores que cahindo huã destas sobre qual quer | pessoa o
enche de tal sorte, que para se tirarem hé | percizo despir-se nú, e outra pessoa correr || [[lhe]]
todo o corpo com hua bolla de sera da terra, ou esfregalo com caldo detabaco defumo, ou sarro
de pito.” (SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 116). Ao citar os nomes por que são chamados os
insetos e pormenorizar a ação dos vermes, o autor enfatiza os danos causados por esses parasitas
e no corpo humano e, principalmente, relata a penúria da situação.
Um resumo de toda a empreitada de tantos sofrimentos pode ser encontrada no seguinte
excerto: “rio abaixo navegan= | do de noite, ededia, chegamos á Praça ás Ave Marias, cansados,
9

| mórtos de fome faltos de sono, e | mordidos dos péssimos mosquitos.” (SOUZA; MAKYNO,
2000, p. 314). Após tantos trabalhos, ao chegarem a um destino, os navegantes apresentam-se
sem as mínimas condições de sobrevivência.

4. Conclusão
Diferente do que os documentos oficiais do período do governo do Morgado de Mateus
revelam acerca do êxito dessa missão, o diário revela fatos que desnudam a história
convencional, aquela escrita pelos homens detentores do poder. É por meio do estudo mais
detido de obras como essa que as convenções estabelecidas historicamente podem ser revistas.
É de grande importância essa revisão dos grandes eventos por meio da observação de narrativas
de fatos privados e de ocorrências particulares, que levam em conta outros ângulos. Afinal, “A
história é o produto mais perigoso que a química do intelecto elaborou [...] A história justifica
o que quiser. Não ensina rigorosamente nada, pois tudo contém e de tudo dá exemplos.” (PAUL
VALÉRY, 1931, apud LE GOFF, 2013, p. 43)
Sendo assim, a breve análise de fragmentos desse discurso de cunho privado revela
ocorrências históricas relevantes à compreensão do complexo processo da colonização
brasileira. Tais ocorrências são narradas por um discurso construído a partir da subjetividade
do autor.
A qualidade do diário grafado por Juzarte faz com que o diário represente uma obra de
referência sobre o período colonial. Não se trata, portanto, de um diário composto por “notas
de viagem, toscas e rudes, de soldado semianalfabeto, mas cheias de interessantíssimos
informes” (SOUZA; MAKYNO, 2000, p. 18). O valor dessa obra ultrapassa o registro de
ocorrências que podem ser consideradas pitorescas na atualidade. Trata-se de um documento
que impede que situações de marcada relevância histórica, tal qual o fato de o arrolamento
militar na capitania de São Paulo durante o governo do Morgado de Mateus ter se apoiado na
violência e no abuso do poder.
O diário representa, portanto, a esfera subjetiva do sofrimento colonial transformada em
um discurso histórico rico em detalhes e informações.
5. Referências bibliográficas

AZEVEDO, Fernando. de. A cultura brasileira. São Paulo: Edusp, 7. ed. 2010.
10

BORGES, Maria Aparecida Mendes. Diário de navegação: edição e estudo de variantes dos
manuscritos luso-brasileiros. Tese de doutorado. São Paulo: FFLCH/USP. 2011. Disponível
online: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-19042012-131035/pt-br.php

KOK, G. Vestígios indígenas na cartografia do sertão da América portuguesa. In: Anais do


Museu Paulista: História e Cultura Material. 2009. ISSN 0101-4714. Disponível online:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142009000200007

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 7. Ed. São Paulo: Editora Unicamp, 2013.

MARQUILHAS, Rita. A faculdade das letras. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
2000.

SOUZA, J. S.; MAKYNO, M. (Org). Diário da Navegação: Teotônio José Juzarte. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado. 2000.

Você também pode gostar