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Entrelaçando Redes: Reflexões Sobre Atenção a Usuários de Álcool, Crack e Outras Drogas
Entrelaçando Redes: Reflexões Sobre Atenção a Usuários de Álcool, Crack e Outras Drogas
Entrelaçando Redes: Reflexões Sobre Atenção a Usuários de Álcool, Crack e Outras Drogas
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Entrelaçando Redes: Reflexões Sobre Atenção a Usuários de Álcool, Crack e Outras Drogas

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O CRR-EEFFTO-UFMG apresenta de forma clara como construiu suas intervenções, tendo a sensibilidade de aproximar a gestão e os serviços para escutar as reais necessidades da região. Essa iniciativa promove uma aproximação desejada, mas nem sempre efetivada, entre as universidades e os serviços. Constatamos que quase não temos, nas graduações da saúde e de humanas, disciplinas que promovam a discussão sobre a questão do uso e abuso de álcool e outras drogas. Este livro mostra a importância de suprir essa lacuna. Ter como base teórica as ideias, de educação para libertação e para autonomia, de Paulo Freire, nos aponta em que direção os diversos profissionais envolvidos no projeto deste livro apresentam o que foi executado. E aliás, na atenção ao usuário de álcool e outras drogas, do que se trata é do incentivo à autonomia e à responsabilização. Os leitores terão ótimas contribuições de como podem promover a educação permanente em suas regiões e contribuir para uma real assistência ao público-alvo historicamente negligenciado: os usuários de álcool e outras drogas e seus familiares. Esperamos que a leitura promova as reflexões necessárias aos profissionais e aos gestores e ao lê-lo, valorizem e incentivem a Senad/MJ a dar continuidade às atividades dos CRRs em todo país. (Raquel Martins Pinheiro)
LanguagePortuguês
Release dateJun 19, 2018
ISBN9788546210572
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    Entrelaçando Redes - Cristiane Miryam Drumond de Brito

    PREFÁCIO

    Primeiramente, divido com todos os leitores a satisfação em prefaciar este livro, Entrelaçando Redes: Reflexões sobre a atenção a usuários de álcool, crack e outras drogas, organizado pelos colegas Cristiane Miryam Drumond de Brito, Leonardo Zenha Cordeiro, Lívia Napoli Afonso e Ricardo Alexandre Souza, do Centro Regional de Referência da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (CRR-EEFFTO-UFMG). Os Centros Regionais de Referência ocuparam uma importante lacuna nos processos formativos em álcool e outras drogas no Brasil, além de possibilitar, através de um coletivo, trocas de experiências e debates sobre a política de drogas no país e a produção de vários artigos e livros com relatos bastante ricos das experiências.

    Este livro é fruto de uma destas experiências no estado de Minas Gerais. O mérito desta obra, dividida em três módulos distribuídos em catorze CAPÍTULOs, está em relatar, de forma atualizada, a importância do trabalho desenvolvido no campo formativo sob a perspectiva integrativa das diversas redes na atenção a usuários de álcool e outras drogas. Além disso, a questão clara que perpassa a maioria dos CAPÍTULOs deste livro é a desconstrução da visão dualista da dependência de drogas sob perspectiva médica ou da segurança, em favor da atenção humanizada e plural sobre o tema, incluindo a redução de danos. Fica patente também a preocupação dos organizadores em propor e aceitar o desafio com a integralidade das ações formativas, propondo uma mudança de paradigmas para o enfrentamento da questão do uso de drogas no Brasil.

    Os organizadores do livro e executores da implantação do processo formativo do CRR da UFMG tiveram ainda a preocupação cuidadosa em fundamentar as bases teóricas nas quais as experiências formativas foram desenvolvidas. Estas seguiram os pressupostos freireanos da educação como prática da liberdade, a teoria da complexidade de Edgar Morin, as análises de sentido, subjetividade e significados de Fernando Rey, juntamente com da teoria de redes. Esta intersecção teórica certamente repercutiu nas práticas estabelecidas entre a equipe formativa (professores), trabalhadores e gestores no processo de aprendizagem circular, participativos e horizontalizados, contribuindo para construção de saberes coletivos e críticos, evidenciados nos três módulos do livro.

    Outra contribuição importante e desafiadora é que os autores tiveram a preocupação de incluir e reunir em um único livro as diferentes visões sobre este tema complexo, multifatorial, mas ainda tratado no senso comum com muitos estigmas, preconceitos e julgamentos. Estes tiveram ainda, o cuidado de partir do geral para o específico, ou seja, trataram de discutir desde os desafios do processo educativo para a construção do Centro Regional de Referência em Álcool e outras Drogas, passando pela Teoria de Redes e Articulação Social, algumas perspectivas para o fortalecimento das coletividades, abordando a importância de Políticas Intersetoriais e a Redução de Danos, incluindo o tema sobre as abordagens terapêuticas aos usuários, jovens e suas famílias; desconstruindo a visão moral com destaque na importância da construção de redes e vínculos de reciprocidade afetiva de pessoas em remissão do uso de drogas, até chegar aos relatos das experiências e do papel da Sumad, no município de Sete Lagoas e seu apoio aos cursos do Centro Regional de Referência em Crack, Álcool e outras Drogas (UFMG), onde o trabalho foi desenvolvido.

    Tanto os colegas mineiros, quanto dos demais estados brasileiros tem em mãos relatos de experiências ricas, diversas e críticas que em muito poderão contribuir tanto na teoria quanto na prática na construção de processos formativos baseados em Educação Permanente, que embora já instituídos pelo Ministério da Saúde, ainda carecem de aprimoramento e coragem dos formuladores das políticas, gestores e profissionais para lidar e enfrentar novos paradigmas para um problema antigo, mas ainda tratado de modo dicotômico entre justiça e saúde. É necessário avançar!

    Profa. Dra. Eroy Aparecida da Silva

    Psicóloga, psicoterapeuta familiar e comunitária, doutora em Ciências da Saúde pelo Departamento de Psicobiologia-Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pesquisadora na área de Álcool e outras Drogas – Disciplina Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas – Dimesad – Unidade de Dependência de Drogas – Uded – Departamento de Psicobiologia – Universidade Federal de São Paulo. Coordenadora clínica da Escola Uded-Unifesp. Colaboradora da Equipe equipe do Centro Regional de Referência – Disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas (Dimesad) – Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo. Coordenadora do Curso em Educação Permanente Saúde e Atenção aos Usuários de Drogas Psicoativas – Rede Sampa – Saúde Paulistana – Prefeitura Municipal de São Paulo – 2015-2016. Organizadora de vários livros com temática de Álcool e outras Drogas.

    APRESENTAÇÃO

    Este livro é fruto de uma parceria entre a Secretária Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça (Senad/MJ) e a UFMG. A Senad está inserida no Ministério da Justiça e cidadania que, a partir de 2013, subsidiou, através de editais, a implantação de 51 Centros Regionais de Referência em Drogas (CRRs), de modo a que as universidades públicas em parceria com gestores de diversos municípios formassem agentes sociais para atuarem com usuários de álcool, crack e outras drogas e seus familiares. A Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais foi contemplada no edital número 08/2014 e pode implementar o CRR-EEFFTO-UFMG. Esta obra relata o trabalho desenvolvido no campo formativo neste CRR.

    O CRR-EEFFTO-UFMG ofertou seis cursos de formação para diversos agentes sociais no município de Sete Lagoas e municípios da microrregião do Alto do Rio das Velhas no estado de Minas Gerais. A ideia do livro foi registrar a experiência dessa formação, contribuir de forma crítica e reflexiva sobre o tema álcool, crack, e outras drogas, além das impressões dos agentes sociais sobre os cursos.

    Os autores têm modos distintos de ver e lidar com o tema crack, álcool e outras drogas, bem como experiências diversificadas tanto na academia, quanto no nível da gestão e/ou diretamente como burocratas de rua. A cada texto ou mesmo dentro de um único texto se encontram as diversidades do saber. As visões de cada um foram preservadas até certa medida, porque quando se une autores que pensam distintamente para construir textos, as ideias se entrecruzam e podem gerar tensões, divergências, convergência e múltiplas possibilidades para o leitor também construir seus próprios entrelaçamentos.

    Construir o livro, bem como os cursos, não foi tarefa simples, pois, na proposição de organizar tanto os cursos quanto o livro, já partíamos do pressuposto da coexistência dos diversos domínios existentes na forma de conhecer o tema e o cuidar das pessoas. Produzir conhecimentos significativos capazes de problematizar as diferentes formas de pensar e cuidar de problemas relativos ao álcool, crack e outras drogas e questões relacionadas, como: os usuários e seus familiares; o tráfico; a produção, o comércio e cultivo de drogas; o sistema prisional; a periferia e o centro; tratamento; as relações entre setores da sociedade; a redução de danos; a juventude; a prevenção; o trabalho; as políticas públicas; a mídia; as redes, a multiterritorialidade; o poder; as ideologias; a saúde; o local e o global; entre outros é algo dinâmico, incerto e com muitas dobras. São muitos elementos envolvidos que não é possível visualizá-los totalmente e nem colocar todos em um curso ou livro, aliás, sequer somos capazes de conhecer todos os elementos da problemática abordada.

    Assim, o livro traz percepções e interpretações sempre provisórias e incompletas do tema, as quais foram organizadas em três módulos. O primeiro módulo propôs trazer as narrativas dos formadores, facilitadores, docentes dos cursos sobre a formação proposta. Sua configuração então inicia com a proposição pedagógica dos cursos que aponta um rompimento com o sistema disciplinar e a adoção de unidades integradoras. Então, no primeiro módulo os CAPÍTULOs abordam as unidades educacionais as quais tinham a intervisão que é um elemento transversal existente em cada unidade educacional dos cursos. O segundo módulo nos convida a refletir assuntos que se inter-relacionam com o tema do livro e poderá ampliar nossa compreensão sobre os usuários de álcool, crack e outras drogas. Traz reflexões sobre o que é lícito ou ilícito; sobre a criminalização de adolescentes envolvidos com o trabalho no tráfico de drogas; a educação física no processo de prevenção e o conceito de periferia, já que o usuário muitas vezes está neste lugar periférico socialmente, está à margem. O livro propõe abrir espaços de reflexão e sentido para leitores sobre processos formativos associados a contextualizações de questões do crack, álcool e outras drogas, além de ponderações teóricas e práticas que tangenciam o tema.

    Cristiane Miryam Drumond de Brito

    Coordenadora do CRR-EEFFTO-UFMG

    MÓDULO I

    ENTRELAÇANDO REDES NO PROCESSO FORMATIVO DO CENTRO REGIONAL DE REFERÊNCIA EM ÁLCOOL, CRACK E OUTRAS DROGAS

    CAPÍTULO 1

    OS DESAFIOS DO PROCESSO EDUCATIVO PARA A CONSTRUÇÃO DO CENTRO REGIONAL DE REFERÊNCIA EM ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS DA UNIVERSIDADADE FEDERAL DE MINAS GERAIS-CRR-UFMG

    Leonardo Zenha Cordeiro; Cristiane Miryam Drumond de Brito;Livia Napoli Afonso; Luciano Campos de Siqueira

    O objetivo do CAPÍTULO é discutir o processo educativo na implementação do Centro Regional de Referência em Álcool e outras Drogas (CRR) em Sete Lagoas e região. As reflexões visam colocar em relevo as estratégias utilizadas para potencializar os processos de ensino e aprendizagem na constituição do CRR. Buscamos trazer ponderações sobre o desenvolvimento dos cursos propostos na formação do CRR e as experiências na construção de saberes e criação de redes colaborativas entre todos os envolvidos. Esse foco educativo se constituiu em algumas etapas que foram se tornando conectadas e sempre reconectadas no decorrer do curso. A primeira etapa se constituiu com o diálogo estabelecido com os gestores da região em que o curso foi ministrado. Esse momento é fundamental, pois mesmo que o projeto tenha desde seu início a participação da universidade e gestão, no momento da implementação levou o aprofundamento das reais necessidades da região. Foi diagnosticado que existem diversos setores e equipamentos buscando realizar diferentes trabalhos relativos a álcool e outras drogas, mas de forma desconectada um do outro, não há redes de cuidado ao usuário efetivas. Quando muito há uma relação de encaminhamentos entre um setor, por exemplo, o da saúde. Foi verificado um trabalho em rede com crianças e adolescentes no município de Sete Lagoas denominado: Arca (Atenção em Rede da Criança e do Adolescente). Esse trabalho é focado na família e são realizadas diversas reuniões com vários setores em diversos locais da comunidade com o objetivo de integrar a família e a escola no acompanhamento dos casos. O foco é o ambiente escolar e a família, mas com a participação de outros setores além da educação. O diagnóstico do que ocorre nos municípios é fundamental, pois tanto pode observar as dificuldades do dia a dia quanto as potencialidades, e o trabalho da Arca é um potencial de trabalho em rede que foi explorado durante os cursos e, ao mesmo tempo, repensado.

    Após a decisão do caminho via construção e fortalecimento de redes, ocorreu a etapa da formação da equipe de professores e coordenadores dos cursos. Essa etapa foi dinâmica e vivemos experiências de metodologias ativas de aprendizagem ora como alunos, ora como professores. A partir dessas dinâmicas, foram constituídos grupos de professores para cada unidade integrativa educacional que tinham que elaborar o processo ensino-aprendizagem de suas unidades integrativas educacionais e retomar o diálogo com todos os docentes e coordenadores. A construção do processo pedagógico foi coletiva.

    Coletivamente, então, definiu que os seis cursos a serem realizados pelo CRR não seriam compostos de disciplinas, mas de unidades educacionais, as quais os diversos saberes dos docentes e coordenadores iriam se constituir em rede, em diálogo e com uso de linguagens comunicacionais. Os participantes dos cursos seriam: profissionais de diversos setores ao mesmo tempo junto com cidadãos envolvidos direta e indiretamente no cuidado de pessoas e familiares envolvidos com álcool, crack e outras drogas em 23 municípios da região supracitada. Essa formação foi realizada em seis cursos, cada turma tendo em média 55 agentes sociais. Com o desenvolvimento das turmas, o processo de formação foi engendrando formas próprias em cada turma com a participação efetiva dos participantes que traziam para cena seus cotidianos de trabalho sendo sempre repensados e reconstruídos.

    A realidade cotidiana era ressignificada por questões teóricas da complexidade e da teoria de redes, ao mesmo tempo a teoria também ganhava novos sentidos advindos da prática. Os cursos foram pensados a partir da premissa de uma complexidade preexistente: o dia a dia dos agentes na diversidade de suas relações sociais e o próprio processo educativo baseado em metodologias ativas que considera a emergência de multiplicidades de contextos e ideias inerentes a qualquer ação formativa.

    As teorias utilizadas como um dos pontos das estratégias

    Como perspectivas teóricas iniciais trabalhamos com autores como Paulo Freire, com a educação como prática da liberdade; Jorge Larrosa, com as questões da experiência; a teoria da complexidade discutida por Edgar Morin; e as análises de sentidos, significado e subjetividades trazidas por Fernando Rey. Esse arcabouço teórico fazia sentido a partir das relações estabelecidas entre todos os envolvidos: professor, agentes sociais e gestores, na qual conteúdos de diversas naturezas eram considerados no processo de aprendizagem: teoria, emoção, práticas, vida pessoal, profissional, entre outros. Os processos de aprendizagem ocorriam com tensões entre o incentivo à aparição de elementos da educação informal presente no cotidiano de cada um de nós e a exigência de uma educação formal advindas dos processos de escolarização vivenciadas ou não pela própria história de todos.

    Aprender é uma atividade que precisamos desempenhar, pois sem ela não conseguiremos sobreviver. Ao chegar ao mundo, essa necessidade da vida humana começa a se impor sem que haja um ponto de chegada. As pessoas se precipitam para experiências e experimentações diversas durante a vida, e todas elas resultam em algo aprendido. Isso nos caracteriza enquanto seres humanos de forma bastante diferenciada em relação aos animais. Se aprendemos no nosso dia a dia, nós o fazemos sempre nas relações sociais, em diferentes grupos sociais e com propostas e objetivos diferentes. No entanto, além de aprender para sobreviver, ou melhor, para viver, devemos também aprender para ser, pois essa atividade nos constitui enquanto pessoas, nas nossas trocas constantes, ou seja, no âmago dos processos de socialização. (Tacca; Rey, 2008, p. 139)

    Os cursos tiveram a intenção de tocar no ser das pessoas, caminhando junto com elas nas reflexões de suas ações, de suas práticas, experiências de aprendizagens ocorridas durante a vida. Os alinhamentos envolvendo quais seriam as discussões entre todos os envolvidos com o curso consideravam a vida social das pessoas em suas (in)completudes éticas, estéticas, morais, sociais e políticas de se colocarem no mundo. Partia do princípio que era necessário certo tensionamento para abrir espaços possíveis de transformações. As escolhas de como trabalhar os temas de cada encontro era um dos desafios colocados para a coordenação do curso, para os docentes e, consequentemente, os participantes, pois não se tinha a pretensão de reproduzir teorias e métodos de cuidado a usuários de álcool, crack e outras drogas. A proposta era considerar saberes existentes na vida de cada um e gerar autonomia para reflexão e ações em rede, resinificando tanto as teorias quanto as práticas. Por isso, se tornou necessário o conhecer da vida social no processo de aprendizagem, na construção da própria ciência.

    [...] Na história da organização social, na medida em que a sociedade produziu conhecimento e novas descobertas foram realizadas pelas ciências, apareceram diferentes formas de organização, significação e utilização desse conhecimento. Isso gerou a necessidade de acompanhar tanto as descobertas como as mudanças delas decorrentes e de participar de novas formas que se impuseram na organização da vida social. (Tacca; Rey, 2008, p. 139)

    A educação formal foi sendo estabelecida em um único formato para atender a todos indistintamente, uma padronização, formalização e hierarquização. A ideia de que todos são iguais e devem aprender as mesmas coisas, ao mesmo tempo e da mesma forma. Fragmentou-se o conhecimento, tentando um formato didático reducionista e simplificado. Os professores então não consideram aspectos subjetivos, emotivos e sentidos nas situações de aprendizagem (Tacca; Rey, 2008).

    Os cursos propostos pelo CRR consideram a subjetividade um aspecto importante no processo ensino-aprendizagem. A aprendizagem dá-se na interdependência de aspectos cognitivos-simbólicos-emocionais reconfigurados e explorados pelos atores envolvidos que significam e dão sentido a todas as suas experiências (Tacca; Rey, 2008). Aspirávamos a multidimensionalidade, o pensamento complexo que tem como princípio a incompletude e a incerteza no próprio desenvolvimento do conhecimento.

    Mizukani, em sua pesquisa sobre as teorias de aprendizagem, chama atenção sobre a multiplicidade do ato educativo e a necessidade de entender esse processo de forma múltipla e na percepção da incompletude.

    Há muitas formas de se conceber o fenômeno educativo. Por sua própria natureza, não é uma realidade acabada que se dá a conhecer de forma única e precisa em seus múltiplos aspectos. É um fenômeno humano, histórico e multidimensional. Nele estão presentes tanto a dimensão humana quanto a técnica, a cognitiva, a emocional, a social, política e cultural. Não se trata de mera justaposição das referidas dimensões, mas sim, da aceitação de suas múltiplas implicações e relações. (Mizukami, 1986, p. 10)

    Paulo Freire (1969) reafirma a necessidade de entender o homem no mundo, suas relações e capacidade de inferências e transformações nesse mundo complexo. As relações que o homem trava no mundo (pessoais, impessoais, corpóreas e incorpóreas) apresentam uma ordem tal de características que as distinguem totalmente dos puros contatos típicos da outra esfera animal. É fundamental partirmos do princípio de que o homem é um ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo aberto à realidade que o faz ser o ente de relações que é.

    Os cursos priorizaram as relações humanas na construção de redes significativas fundamentais para o trabalho com questões sobre álcool, crack e outras drogas. No entanto, existiam várias outras questões postas que escapavam o tema proposto. O processo ensino-aprendizagem estava além da aquisição de conhecimentos, proporcionava encontros e tensões com crenças na interseção com a cultura (dinâmica de representações), com a sociedade (os indivíduos, os compartilhamentos, a comunicação, as relações, entre outros), as tecnologias (artefatos), e todos os elementos do cotidiano de forma indissociadas. Propomo-nos a estabelecer um processo de ensino-aprendizagem no tripé cultura/sociedade/comunicação. Todo ser humano apreende algo a partir de sua experiência social, cultural e comunicacional e de diferentes formas inventa todos os dias funções e práticas abundantes.

    A proposta nos cursos convidou os participantes a fazerem uma releitura de suas próprias vivências. A proposição era reler as próprias experiências com sentido de forma coletiva, quer dizer experimentar o que passou/passa, o que aconteceu/acontece e o que tocou/toca (Larrosa, 2011), quer dizer, deve trazer dimensões de exterioridade e alteridade no fluxo do tempo. As cenas cotidianas relidas têm que ter algo de ilegível, algo que nos causa estranhamento e surpresa, não devemos compreender tudo de maneira exata, senão não estamos lendo de fato. Ousamos pensar em cursos que repensassem a própria experiência de maneira aberta. Denominamos de experiência,

    [...] a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (Bondia, 2002, p. 19)

    Os cursos tinham como meta potencializar pessoas a se colocarem em relação ao que dizem, ao que fazem e ao que pensam. Quando estamos pensando e vivenciando a sociedade atual, não podemos pensar os usos comunicativos, das trocas estéticas e simbólicas e das tecnologias separados das práticas cotidianas dos sujeitos como a ciência moderna que propõe a fragmentação do conhecimento e dos saberes. Essa forma de raciocínio gera hierarquização de saberes melhores e piores, o bom e o ruim, entre outros, e que vem sendo utilizada como forma de dominação. A proposição dos cursos vinha contrapor a fragmentação da ciência moderna e buscou trabalhar o processo ensino-aprendizagem de forma complexa e em relação com a própria vivência de cada participante. Houve o reconhecimento das diversidades de saberes de todos, que eram diferenciados, distintos, mas não hierarquizados. Por exemplo, um saber de um promotor de justiça com uma pessoa que era cantineira de uma escola pública era trabalhado em relação. São saberes distintos, mas não separados, portanto, as diferenças eram reconhecidas e buscavam as conexões entre os mesmos. Cada um afirmava sua presença e pensava nas possibilidades de construção de conhecimento e solução de problemas reais da prática cotidiana. Essa perspectiva diferencia dos processos massificadores ou apenas técnicos.

    As linguagens comunicacionais (documentário, filmes, casos clínicos, poemas, teatro do oprimido, dinâmicas, entre outros) foram utilizadas como disparadores do processo ensino-aprendizagem com o sentido de criar atmosferas relacionais de envolvimento que não dissociavam a emoção da cognição. Os educadores tinham uma função diferenciada de um professor tradicional, o mesmo era também envolvido no processo e exercia o papel de facilitador na construção de conhecimentos em grupo e individual. Facilitava o desencadeamento de realidades locais em contraposição e diálogo com realidades globais. Sua função, além de facilitar as conexões entre os diversos saberes existentes no grupo, era facilitar o diálogo indissociado entre teoria e prática e possibilitar a criação e recriação de novas abordagens para determinadas situações. A proposição era retirar os participantes da passividade e convidá-lo a se posicionar, a ser ator do processo. Esses aspectos alinham-se com as ideias de Freire (2005, p. 42).

    Na verdade, já é quase um lugar comum afirmar-se que a posição normal do homem no mundo, visto como não está apenas nele, mas com ele, não se esgota em mera passividade. Não se reduzindo tão somente a uma das dimensões de que participa – a natural e a cultural – da primeira, pelo seu aspecto biológico, da segunda, pelo seu poder criador, o homem pode ser eminentemente interferidor. Sua ingerência, senão quando destorcida e acidentalmente, não lhe permite ser um simples espectador, a quem não fosse lícito interferir sobre a realidade para modificá-la. Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo.

    Dentro dessa mesma compreensão e ampliando para questões do cotidiano, consideramos as práticas associadas aos fazeres em vários espaços, como, por exemplo, as cidades, ou nas práticas dos sujeitos em uma

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