Você está na página 1de 14

Liberdade e liberdades

A perspectiva socioeconômica da cidadania e dos


direitos humanos

Jailton Macena de Araújo

Sumário
Considerações introdutórias. 1. A imple-
mentação das liberdades como promoção dos
direitos humanos. 2. Liberdade econômica e
cidadania: a (des)igualdade como elemento
definidor das liberdades. 3. A liberdade econô-
mica e o desenvolvimento das perspectivas de
participação da pessoa humana na sociedade.
Considerações finais.

Considerações introdutórias
Ao longo da história do Estado, as lutas
sociais levaram ao surgimento e ao refor-
ço da noção de responsabilidade pública
quanto às questões sociais. Consoante asse-
vera Gheventer (2005, p. 134), a intervenção
do Estado nas relações de mercado remonta
à época colonial, mas é apenas a partir da
década de 1930 que a liberdade econômica
é colocada no centro das atenções, desde
já associada à preocupação com o desen-
volvimento.
É interessante asseverar que na realida-
de, consoante observa Seelaender (2006, p.
13-14), o pensamento intervencionista do
Jailton Macena de Araújo é aluno do Pro- Estado no Brasil começa a ganhar corpo
grama de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas bem antes de 1930. Desde os fins do Império
da Universidade Federal da Paraíba (Mestrado
e após 1889, o Estado brasileiro já subsidia-
em Direito Econômico da UFPB); professor do
curso de Ciências Jurídicas da Universidade
va uma política pesada de imigração. Na
Federal de Campina Grande (UFCG); bolsista Primeira República, a intervenção ainda
de mestrado do CNPq; integrante do grupo de era mais precisa nos setores sociais e eco-
pesquisa “Direitos Humanos e Políticas Públi- nômicos. Podem-se mencionar as políticas
cas”; advogado. de combate a epidemias para a proteção da

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 205


saúde pública, de molde a proteger a saúde 1. A implementação das liberdades
das elites e a produção de café. como promoção dos direitos humanos
Além do que foi mencionado, a atuação
do Estado era necessária tendo em conta É importante estabelecer que os direitos
o estabelecimento das populações mais humanos, para serem reconhecidos como
pobres nos centros urbanos que se forma- elementos fundamentais à emancipação
vam, o que dificultava a obtenção direta da pessoa humana, devem ser exercitados
daquilo de que se necessitava. Nesse breve e defendidos, o que demanda informação,
apanhado, vê-se como foram essenciais no conhecimento, ética, atitudes, legislação,
processo histórico brasileiro as intervenções práticas, lutas sociais e, em especial, liber-
estatais para a tentativa de proteção socio- dade, em todas as suas acepções e sentidos,
econômica, embora se visualize que ela era de modo a possibilitar o exercício pleno da
feita de modo desigual, privilegiando as cidadania social.
elites, o que justifica, em parte, o grande A nova compreensão da cidadania deve
abismo social que persiste até esta data. levar em conta a assimetria existente entre
A liberdade, conformada com os postu- os “(sobre)cidadãos” e os “(sub)cidadãos”,
lados da igualdade, pressupõe os inúmeros bem como o fato de que os desnivelamentos
sujeitos sociais em condições idênticas não figuram apenas no plano das relações
(igualdade de oportunidades) e, caso se sociais, mas são, muitas vezes, consignados e
paute por essa identidade, conduz inevita- aceitos pelo próprio Estado, inclusive no âm-
velmente a transgressões à justiça, embora bito da legislação vigente (RABENHORST,
se possa mencionar que tradicionalmente, 2001, p. 39). Em vista disso, deve-se exigir
na doutrina liberal, liberdade econômica que o direito, que se pretende democrático,
signifique unicamente a ideia de que, elimine tais desigualdades, seja no plano
em sociedades economicamente livres, a social, seja no econômico, seja no jurídico.
principal função do Estado seja proteger A forma como os sujeitos mais vulnerá-
os direitos de propriedade e permitir a veis economicamente são vistos no meio so-
livre confluência das forças de mercado cial reverte-se em práticas que corroboram
(GHENVENTER, 2005, p. 123). Entretanto, a imagem do “pobre coitado”, “malandro”
tal concepção encontra-se destoante da e objeto descartável, a qual impregna o
atual realidade social. modo de ser e agir das pessoas, grupos, ins-
Muitos dos problemas do desenvolvi- tituições e organizações em relação a eles,
mento devem-se a esse tipo de postura do fazendo com que se perpetuem as diferen-
Estado, que permite, negligentemente, que ciações negativas (ZENAIDE, 2001, p. 41).
pessoas morram de fome, crianças perma- Exige-se o reconhecimento da liberdade
neçam fora da escola, seja negado acesso como direito universal efetivamente posto
à saúde de qualidade e que os mercados ao alcance de todos para que se possa fi-
possam manejar a seu bel-prazer a vida nalmente falar em efetivação da cidadania
das populações. plena, inclusive sendo tomada sob o viés
Em virtude disso, o Estado (por meio do democrático, desde que se promovam os
ordenamento jurídico) corrige as desigual- direitos sociais em favor de todos os mar-
dades de direito na tentativa de atenuar ginalizados, mortificados e anulados na so-
as desigualdades de fato (o que justifica a ciedade brasileira (PINHEIRO, 1993, p. 27).
adequação da atuação do Estado no caso O fato de se compreenderem, muitas
concreto, para promover ações afirmativas vezes, os direitos econômicos, sociais e
– implementação de políticas públicas), culturais de um lado e os direitos civis e
com o intuito de alcançar a justiça social políticos de outro, restando forçosamente
(MORAND-DEVILLER, 2010, p. 66). albergados em perspectivas de direitos di-

206 Revista de Informação Legislativa


ferentes, forja a justificativa para o abando- evidentemente, ser dissociada do estudo
no frequente do direitos econômicos pelos dos problemas históricos, sociais, econô-
governantes. Porém, não se deve esquecer micos e jurídicos inerentes a sua realização.
que “[...] sem direitos econômicos não há Tendo tal pensamento em conta, pode-
direitos humanos” (ZENAIDE, 2001, p. 46). -se aduzir que: “[...] a filosofia, ao longo
Apenas seria compreensível e aceitável da história, tem elaborado princípios des-
a hierarquização dos direitos, colocando-se tinados a garantir que tais direitos sejam
os civis e políticos acima dos econômicos erigidos, proclamados e utilizados como
e sociais, se a sociedade tivesse atingido idéias regulativas da vida em sociedade
determinado nível de desenvolvimento [...]” (PEQUENO, 2001, p. 52).
econômico que possibilitasse satisfazer as Por outro lado, o grande problema da
necessidades materiais básicas sem detri- atualidade no que diz respeito aos direitos
mento de qualquer outro direito civil e po- humanos não é mais o de fundamentá-los,
lítico ou socioeconômico; caso contrário, a mas sim o de protegê-los. E protegê-los
noção discriminatória entraria em voga, em significa aceitar a opção de que já se con-
especial em desfavor daqueles que não têm quistou a sua implantação e que esses direi-
condições de, por seus próprios recursos, tos humanos devem ser vistos de maneira
ter acesso aos bens sociais (BIELEFELDT, indissociada em relação aos direitos sociais
2000, p. 123). e econômicos (também reconhecidos como
Para muitos Estados, a diferença entre direitos humanos).
os direitos civis garantidos constitucio- A questão então, na forma problemati-
nalmente (primeira geração) e os direitos zada por Pequeno (2001, p. 52), é: em que
sociais e econômicos (da segunda geração) sentido se pode afirmar que os direitos
consiste em dois níveis hierárquicos de humanos já adquiriram, sob o prisma da
justiça: o primeiro nível postula um sistema cidadania, seu valor e sua eficácia?
de máxima liberdade (igual para todos); A própria história da filosofia apresenta
o segundo regulamenta questões básicas inúmeras tentativas de fundamentar os
da justiça social, limitando desigualdades direitos humanos, o que é apresentado da
sociais e econômicas (só se justificam se não seguinte maneira:
impedirem a igualdade de chances na dis- “[...] nitidamente a partir do século
puta por cargos e posições e se oferecerem, XVII com o jusnaturalismo de Locke,
relativamente, ótimas vantagens aos menos para quem o homem naturalmente
favorecidos dentro da sociedade). tem direito à vida e à igualdade
Diante dessa evidência, como observa de oportunidades. Este preceito é
Seelaender (2006, p. 25), não se pode per- seguido por Rousseau ao anunciar
mitir que se evidenciem conflitos entre os que todos os homens nascem livres
próprios pobres, figurando, de um lado, e iguais por natureza. Nessa mesma
os “segmentos das classes mais baixas” perspectiva, podemos citar Kant,
e, de outro lado, “parte da população” para quem os homens têm direito à
(lembre-se de que esta parte é cerca de 2/3 liberdade, a qual deveria ser exercida
da população brasileira), de modo que se de forma autônoma e racional. Os
vislumbrem políticas públicas que ponham teóricos do direito natural recorriam
em xeque a igualdade com grau maior de freqüentemente à idéia de evidência
complexidade. para afirmar que tais direitos eram
Assim, observa Arendt (2007, p. 330), é inelutáveis e, portanto, inquestioná-
compreensível que, por razões históricas, se veis (PEQUENO, 2001, p. 52).”
permita refletir a respeito da ordem filosó- Sob esse ponto de vista, os direitos
fica dos direitos humanos, que não pode, humanos se alicerçam, na atualidade, no

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 207


valor intrínseco do princípio da dignidade impossibilita a desigualdade no usufruto
da pessoa humana. Isso é vislumbrado das liberdades. Por essa razão, a pessoa não
de maneira muito precisa por Kant (1980, pode gozar de mais dignidade do que outra,
420-421) quando, ao fazer reflexões sobre a tampouco pode ser mais ou menos livre.
segunda fórmula do imperativo categórico, É necessário fundamentar essa perspec-
anuncia “[...] agir de tal maneira que trates a tiva a respeito da liberdade considerando
humanidade, seja em sua própria pessoa ou os percalços da vida cotidiana, os quais
na pessoa do outro, sempre como um fim, impõem situações em que a dignidade é
nunca como mero meio para um fim”. Eis vulnerada e consequentemente, as liber-
por que a pessoa humana é tomada como dades. Em face dessa mesma inquietação,
fim em si mesmo. A ideia de dignidade Pequeno (2001, p. 53) questiona: “[...] O
deve, pois, instaurar uma nova forma de que fazer diante da cena dantesca de um
vida, capaz de garantir a liberdade e a corredor de hospital público repleto de pa-
autonomia do sujeito. cientes (e como são pacientes!) que almejam
Dessa forma, observa Bobbio (1984, p. atendimento e salvação?”.
117-118) que a justiça é liberdade e, com Nesse mesmo sentido, pontua Silveira
base nessa concepção, o fim último do di- (2001, p. 117): “Temos enormes massas de
reito é a liberdade (e entenda-se a liberdade analfabetos, ainda. Pessoas morrem, coti-
externa). O direito é concebido, portanto, dianamente, nos hospitais. Milhões passam
como conjunto de limites às liberdades fome e milhares morrem de epidemias
individuais, de maneira que cada um tenha tecnicamente resolvidas há décadas e, em
a segurança de não ser lesado na própria certos casos, séculos”. Entretanto, na De-
esfera de liceidade desde que também não claração Universal dos Direitos Humanos
lese a esfera de liceidade dos outros. Logo, de 1948, o reconhecimento dos direitos
não é suficiente, segundo o ideal da justiça humanos é positivado e universalizado,
como liberdade, que o ordenamento jurídi- o que confere a todos os seres humanos a
co estabeleça a ordem, nem que essa ordem prerrogativa de exercício daqueles direitos.
seja fundada na igualdade. É necessário, A liberdade econômica que se quer as-
para que a justiça permaneça no centro segurar não é aquela posta pelo marketing
das decisões, que os membros da socieda- oficial, que propõe uma “liberdade consu-
de, bem como os seus representantes na mista”, até porque esta é ainda mais utópica
direção do Estado, usufruam da liberdade. do que a liberdade conferida nas declara-
Entretanto, para que essa liberdade ções de direito. Diferentemente, a liberdade
tenha valor, muitos aspectos têm de ser to- econômica que se pretende construir com a
mados em consideração, motivo pelo qual atuação estatal é aquela que garante a todos
seria “justo” somente aquele ordenamento os bens mínimos, na mesma medida e com
em que fosse estabelecida uma “ordem” a mesma abertura de possibilidades para a
na liberdade, em que prevalecessem não fuga do estado de penúria.
apenas as liberdades civis e políticas, mas O Brasil é marcado por desigualdades e
também as liberdades sociais e econômicas, o Estado tem sido conivente com a manu-
que fundamentam e possibilitam a atuação tenção dessa situação. Tendo em conta tal
do cidadão na vida política da sociedade na situação, Figueiredo (2006, p. 25) pondera
qual está inserido (BOBBIO, 1984, p. 119). que é necessário criar programas sociais
A liberdade, como fundamento da dig- que possam suprir as carências das pesso-
nidade da pessoa humana, impõe-se como as no “vértice mais pobre da população”,
o valor incomensurável e insubstituível, assim como, discutir e ampliar os projetos
que não admite equivalente. A dignidade, que pretendem diminuir as desigualdades
por sua vez, tem acepção qualitativa, a qual e a pobreza.

208 Revista de Informação Legislativa


Em face dessa evidência, não se pode Estados quanto ao tratamento dos direitos
deixar de mencionar que a Constituição socioeconômicos e culturais: “[...] respeitar,
Federal brasileira de 1988 garante que todos proteger, assegurar e promover – atinentes
são iguais perante a lei, sem distinções de aos direitos econômicos, sociais e culturais,
qualquer natureza; porém a própria estru- e das obrigações mínimas relativas aos
tura da sociedade brasileira, por séculos, mesmos”.
tem-se empenhado em instituir mulheres, Assim, é importante que se inicie a con-
negros, pobres e crianças como desiguais sideração do que constitui o núcleo duro de
perante os homens ricos e brancos. Aos direitos econômicos, sociais e culturais, a
primeiros, que são mais de 80% da po- ser constituído, por exemplo, pelos direitos
pulação nacional, as condições oferecidas ao trabalho, à saúde e à educação (mais
asseguram-lhes mais obrigações do que além dos chamados “direitos de subsis-
direitos; aos últimos, além de toda sorte de tência”, tais como o direito à alimentação,
privilégios, garantem-se-lhes mais direitos o direito à moradia e o direito a cuidados
do que deveres (SILVA J., 2001, p. 131). médicos) (TRINDADE, 2001, p. 14).
Com base nas afirmações de Piovesan É, desse modo, de extrema importân-
(2001, p. 2), tendo em vista a integralidade cia mencionar que tais direitos devem ser
dos direitos humanos, pode-se concluir que acompanhados de instrumentos capazes
“[...] não há verdadeira liberdade, sem que de tornar efetiva a sua realização ou a sua
a igualdade seja assegurada e nem tam- exigibilidade, para que mereçam a deno-
pouco há verdadeira igualdade sem que a minação de direitos humanos. “Esse é um
liberdade seja respeitada”. imperativo do qual não se pode fugir, sob
Os direitos econômicos, sociais e cul- pena de se ver os direitos reduzidos a meras
turais são verdadeiros direitos fundamen- normas programáticas ou a valores jusna-
tais, sindicáveis e exigíveis e demandam, turalistas” (LIMA JUNIOR, 2001, p. 95).
por parte do Estado, séria e responsável Tais instrumentos, destaca Suplicy
observância. Os direitos socioeconômicos, (2006, p. 15), têm de coadunar-se com as
portanto, incluem, como vislumbrado, a bases políticas que desejam atingir, quais
preocupação central da proteção aos gru- sejam os objetivos de erradicação da po-
pos vulneráveis, devendo ser reivindicados breza, crescimento econômico com maior
como direitos e não como assistencialismo equidade, dignidade e liberdade real para
ou generosidade do Poder Público (PIOVE- toda pessoa humana inserida na sociedade.
SAN, 2001, p. 3). É crucial que se mencione estar prova-
Os mencionados direitos socioeconômi- do pela experiência que a determinação
cos não são uma generosidade do Estado; do grau de liberdade ou de limitação
são, antes, uma obrigação jurídica, funda- subsiste, mesmo porque a aproximação
mentada nos tratados internacionais de entre liberdade e limitação se condiciona
proteção dos direitos humanos, em especial sempre às concepções políticas ou ideoló-
no Pacto Internacional dos Direitos Econô- gicas vigentes (ANDRADE D., 1987, p. 2).
micos, Sociais e Culturais, ratificado por 142 Desse modo, a liberdade que se pretende
Estados-partes (em 2001), entre eles o Brasil. construir quando se fala de um Estado de
É, pois, fundamental reafirmar que os Bem-Estar Social é aquela que garanta, na
direitos econômicos, sociais e culturais têm maior medida, esse bem-estar ao maior
plena exigibilidade, não sendo possível número de cidadãos.
tratar com firmeza de direitos humanos E esse Estado de Bem-Estar Social não
sem que eles sejam plenamente respeitados. deve ser visto pela ótica simplesmente
Em razão disso, Trindade (2001, p. solidarista, mas pela ótica da equidade
12) enumera as distintas obrigações dos (FIGUEIREDO, 2006, p. 48), porque não se

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 209


pode admitir que, em pleno século XXI, ao mesma sociedade, sofrem com o inverso,
se tratar da liberdade, seja ela vislumbrada a limitação ou coação que se impõe.
sob uma perspectiva puramente liberal, na Por omissão ou pela “liberdade de
qual a liberdade econômica seria apenas indiferença” – expressão de Darcy An-
véu para a ditadura do consumo e dos drade (1987, p. 7) que significa, no seu
mercados. Em outras palavras, ter-se-ia entendimento, a indiferença pela verdade,
como “liberdade” a dominação de uma con- moralidade, justiça e bem-estar social das
dição de mercado, colocando-se o Estado, pessoas na sua totalidade, o que impede o
em nome de princípios liberais, a serviço desenvolvimento dos sujeitos sociais e limi-
da opressão socioeconômica, situação em ta, de forma real, a vivência da cidadania e
que grande parcela da população não teria da dignidade da pessoa humana –, o Estado
liberdade, nem econômica, nem civil, muito permite que sejam intentadas violações às
menos política. pessoas que não dispõem de recursos (aos
seus direitos humanos econômicos, sociais
2. Liberdade econômica e cidadania: e culturais) e que a pessoa humana se sujei-
a (des)igualdade como elemento te à privação de direitos sociais essenciais
à construção da cidadania e da dignidade.
definidor das liberdades
Economicamente, a desigualdade de
É improvável o exercício pleno da cida- oportunidades é visualizada sem maiores
dania (cidadania política e social) quando preocupações pelo Poder Público. O poder
se depreende de uma realidade que as pes- e a riqueza ficam concentrados nas mãos
soas, dada a sua posição na estrutura eco- de poucos, enquanto a grande maioria dos
nômica da sociedade, são muito desiguais. cidadãos fica reduzida ao status de priva-
A igualdade jurídica esposada na lei não ção em que nem direitos mínimos como
corresponde aos fatos reais – a liberdade de alimentação, saúde, educação, habitação,
cada um varia em função da desigualdade vestuário são assegurados.
real existente à margem da esfera jurídica. A liberdade apenas significaria: “[...]
Logo, essa igualdade posta abstratamente o direito de os ricos se tornarem mais ri-
entre as pessoas, quando contraposta às cos e de os pobres ficarem mais pobres”
atuações concretas, deixa de ter sentido (ANDRADE D., 1987, p. 7). O afortunado
(ANDRADE D., 1987, p. 4-5). (ANDRADE D., 1987, p. 20) não enfrenta di-
Assim, a liberdade, calcada na igual- ficuldades financeiras, pode alimentar-se e
dade concreta entre os sujeitos, é um vestir-se bem, recebe educação e instrução,
pressuposto falso, donde se pode afirmar tem assistência médica, diverte-se, partici-
que, sem que haja uma atuação que corrija pa da política e faz negócios (a liberdade,
as distorções da realidade, a igualdade é para ele, tem um aspecto refinado e de
meramente teórica, puro princípio sem constatação, simplesmente).
aplicação prática, e a liberdade que a ela se Para a pessoa pobre, entretanto, os
liga será, do mesmo modo, utópica e sem obstáculos à realização da liberdade
correspondência com a realidade (ANDRA- acumulam-se e, muitas vezes, tornam-se
DE D., 1987, p. 5). intransponíveis: alimenta-se e veste-se de
Pode-se afirmar que é a própria estrutu- maneira insuficiente; permanece analfabeto
ra da economia que suscita as limitações e ou tem instrução mínima; não tem assistên-
coações aos vulneráveis economicamente, cia à saúde; é, no máximo, eleitor.
em benefício das elites econômicas. Certos Como se pode notar do que foi exposto,
homens (pertencentes às classes abastadas) o pobre vê-se obrigado a vencer etapas do
dispõem de larga margem de liberdade, desenvolvimento pessoal que os afortuna-
enquanto outros (a grande maioria), na dos já encontraram superadas. E, quanto

210 Revista de Informação Legislativa


àqueles que não têm condições mínimas não teria qualquer valor. Isso se deve ao
de, por seu esforço pessoal, vencê-las, as fato de que, se é o Estado o responsável por
liberdades econômicas, que devem ser uma sociedade em que se institucionalizou
facultadas a todos pelo Estado, têm por uma ordem econômica iníqua, apenas ao
objetivo a criação das condições para que Estado cabe modificar as bases dessa or-
se possam superar as dificuldades. Dessa dem econômica, de modo a criar condições
maneira, apenas a atuação positiva do de segurança, em proveito do exercício
Estado é que pode permitir a realização de da liberdade eficaz e condizente com os
um mínimo de liberdade. anseios de justiça social (ANDRADE D.,
Nessa medida, pode-se definir, como 1987, p. 27).
conclui Darcy Andrade (1987, p. 25), que A democracia, proposta na ordem eco-
a liberdade é “[...] o conjunto de condições nômica que garante, protege e promove
ou circunstâncias em que a pessoa, com a justiça social, não deve ser concebida
conveniente segurança e sem temor de mal apenas como um governo do povo e para
maior, pode agir, mediante sua escolha, o povo. A democracia, nessa perspectiva,
como lhe aprouver”. E essa condição de deve ser fixada na igualdade de opor-
escolha apenas é possível com a garantia tunidades, que nada significará se essas
mínima de subsistência. oportunidades forem ofertadas da mesma
Berlin (2009, p. 249) acrescenta que a maneira ao mais forte e ao mais fraco, ao
liberdade pode ser vista como a liberdade mais rico e ao mais pobre, dispensando-se
de escolher entre, pelo menos, duas alter- tratamento igual aos desiguais. Propõe-se,
nativas; mas, se a própria noção de alterna- pois, a substituição dessa concepção (clássi-
tiva é uma ilusão, então a liberdade nesse ca) pela compreensão de democracia social
sentido é uma ilusão. Ou tratando melhor (ANDRADE D., 1987, p. 48-50).
o argumento: se a possibilidade de acesso Chega-se, em consequência, à conclusão
aos bens para o suprimento de necessida- seguinte: o bem-estar social e a elevação do
des é uma ilusão (não há alternativa para padrão de vida têm como pressuposto o
os pobres), então a liberdade econômica é desenvolvimento econômico (ANDRADE
uma ilusão. D., 1987, p. 290). O esforço da ordem eco-
“[...] o homem [...] procura ser consi- nômica não é apenas o controle de um setor
derado, a seus próprios olhos e aos dos da vida humana que possa ser separado dos
outros, como igual aos outros em valor, inúmeros aspectos indispensáveis à realiza-
dignidade e oportunidade. Igualdade [...] ção da dignidade da pessoa humana; deve
é não apenas um valor moral, mas uma haver o controle e a promoção de todos os
necessidade inerente ao homem. [...] o fins, objetivos e anseios indispensáveis à
homem necessita de auto-realização, plena realização da pessoa humana.
isto é, procurar felicidade através de Em suma, é necessário nível mínimo de
atividade inerentemente satisfató- consenso ideológico para a estabilidade e
ria. Portanto, procurando ordenar a sobrevivência da sociedade e de sua or-
sua sociedade e sua vida de modo dem política, visto que aqueles objetivos
a atender a essas necessidades, os do Estado devem ser efetivados, sob pena
homens criam e adotam ideologias de serem considerados ilegítimos e serem
para ajudá-los a atingir tal fim” causa até mesmo de uma revolução que
(CHRISTENSON et al., 1974, p. 42-43, ponha abaixo o sistema vigente.
grifo nosso). Na ausência desse consenso ou mesmo
A liberdade política seria apenas o passo da congruência entre os objetivos firmados
inicial para a efetivação das outras liberda- pelo Estado e a realidade social, o apoio
des e, sem a implementação de todas elas, ao sistema exige métodos mais onerosos

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 211


de recompensas materiais ou força; e, ca que se apregoa é aquele voltado para a
em longo prazo, essas são bases fracas e efetivação da justiça social, que favorece a
talvez impossíveis para a manutenção da distribuição de riqueza que permita apenas
sociedade. Então cabe ao Estado buscar os modestas diferenças de renda entre os mais
objetivos sociais propostos e zelar por tais prósperos e os menos prósperos, desejando
objetivos, que se traduzem na implementa- extinguir privilégios especiais e criando
ção de maior liberdade para a participação mais oportunidades iguais para todos.
da comunidade. Note-se que o problema da ausência
Portanto, na exposição de Christenson et de liberdade em sua plenitude tende a ser
al (1974, p. 45), quando a sociedade percebe encarado como se fosse um vício daqueles
que a ideologia tem pouca ou nenhuma a que se atribui a árdua tarefa da liberação
relação com condições reais, há ameaça de da sociedade, porque, como pondera Chaui
desordem social. Isso se dá porque, se a (2007, p. 56-59), não há sujeitos sociais e
estabilidade depende da congruência en- políticos, mas objetos sociopolíticos, tudo
tre ideologia e condições socioeconômicas em virtude da ausência da liberdade.
e políticas, a chave da análise da Ciência Tradicionalmente, democracia significa
Social está no estudo da substância da igualdade, soberania, preenchimento das
ideologia e de sua relação com a realidade. exigências constitucionais, reconhecimen-
Sob esse ponto de vista, pode-se con- to da maioria e dos direitos da minoria e
cluir que a democracia social mencionada liberdade, donde se pode depreender que
anteriormente é firmada no o fim da exploração e da exclusão sociais
“[...] valor da auto-realização de cada se reflete na igualdade socioeconômica
indivíduo como o propósito último (CHAUI, 2007, p. 148-149).
a ser servido pelo Estado. [...] O de- Chaui (2007, p. 223) alega que as políti-
senvolvimento das capacidades da cas de intervenção do Estado são bem-su-
personalidade, em seus membros, é o cedidas sob o ponto de vista administrativo
propósito último servido pelo Estado ou de atuação da máquina governamental,
e o valor político final. Portanto, a servindo como elemento de combate aos
sociedade democrática é organiza- custos sociais que se impõem (acentuação
da de modo a excluir barreiras ao das desigualdades na distribuição de renda,
autodesevolvimento individual” supressão de liberdades sociais que acabam
(CHRISTENSON et al., 1974, p. 223). por influenciar na supressão de liberdades
A este respeito, Christenson et al (1974, políticas).
p. 219) afirmam que as nações menos desen- Chaui (2007, p. 303) destaca que a liber-
volvidas, em razão da situação em que se dade, ora vista como perturbação à ordem
mantêm os seus cidadãos, se caracterizam histórica, naturalmente imposta, não passa,
por não ter as mínimas condições políticas, na realidade, de uma compreensão humana
econômicas e sociais, que são pré-requisitos das necessidades, ou, mais especificamente,
da democracia. Falta-lhes alfabetização a liberdade é visualizada como a conjugação
para tornar possível a discussão política e dos esforços da pessoa humana na busca da
significativa a escolha dos representantes, realização de suas necessidades (obtenção
bem como lhes falta bem-estar econômico de prazer e bem-estar, mas não apenas isso,
suficiente para atenuar os conflitos e as ne- obtenção da própria subsistência).
cessidades sociais capazes de, se satisfeitas, Se a liberdade é a consciência da neces-
criar uma organização estabilizada e pronta sidade, isso implica dizer que liberdade
para o desenvolvimento. e necessidade não são opostas, porque a
Refletem, ainda, Christenson et al (1974, liberdade é a simples (ou complexa) ex-
p. 317) que o espírito de liberdade econômi- teriorização da necessidade (que é, pois,

212 Revista de Informação Legislativa


compreendida como algo interior), o que Federal (Poder Legislativo, Poder Execu-
rechaça qualquer tipo de argumento no tivo e Poder Judiciário), mas por políticas
que se refere à oposição entre necessidade públicas – mecanismos construídos em
e liberdade (CHAUI, 2007, p. 304-305). especial pelo Poder Legislativo e colocados
A pessoa humana deve ser colocada em prática pelo Poder Executivo – que se
no centro do processo de desenvolvimen- voltam exclusivamente para esse objetivo.
to, sendo imprescindível que se apodere É evidente que, ao se tratar de políticas
do entendimento de que os direitos de públicas, o elemento “público” aí referido
solidariedade são indispensáveis para a não tem a intenção de estabelecer uma dis-
compreensão do que se propõe quando se tinção absoluta em relação ao “privado”. O
fala de uma sociedade justa e solidária. O sentido de “público”, nos nossos dias, está
desenvolvimento de cada um (em especial relacionado a uma compreensão de vida
daqueles mais vulneráveis social e econo- em sociedade, ao bem comum, indepen-
micamente) está inexoravelmente ligado dentemente de serem o Estado ou outros
ao desenvolvimento de todos os demais. É organismos sociais os agentes envolvidos
essa a compreensão de igualdade consen- na consecução do bem social. O desenvolvi-
tânea à liberdade plena. mento de políticas sociais não está restrito,
portanto, ao Estado – embora seja este (e
3. A liberdade econômica e o assim deve continuar sendo) seu principal
desenvolvimento das perspectivas executor. Também as organizações não
governamentais e as empresas são capazes
de participação da pessoa humana
de desenvolvê-las, em muitos casos com
na sociedade resultados até mais satisfatórios.
O desenvolvimento das forças de É interessante a metáfora trazida por
produção que possibilitam o crescimento Nunes (2003, p. 58), ao criticar a equivalên-
econômico e social apenas se manifesta cia que pretendem fazer entre a liberdade
concretamente por meio de novas relações civil e a liberdade econômica nos termos
sociais quando, a partir de um novo modo apresentados anteriormente. É estabelecido
de organizar a vida coletiva, se faculta à o comparativo entre a capacidade de votar
humanidade (à sociedade como um todo, e a capacidade de comprar, no qual alguns
inclusive aos mais pobres, sem dotação de eleitores podem votar mais de uma vez
recursos) a possibilidade de sair do reino da porque, no mercado livre, aquele que pos-
simples satisfação das necessidades para o sui mais bens e riquezas pode influenciar
reino da liberdade (NUNES, 2003, p. 122). mais a economia e usufruir mais e melhor
Nesse mesmo sentido, observa-se que a da liberdade econômica da sociedade.
cultura democrática e igualitária da época Aqueles que não possuem capacidade
contemporânea é caracterizada não só pela econômica não vivenciam a liberdade. São
afirmação da igualdade civil e política para dependentes e têm o seu desenvolvimento
todos, mas também pela consciência de que civil, político, social e econômico impedido
a igualdade civil e política está em consonân- permanecendo incapazes de atuar nas deci-
cia com a redução das desigualdades entre sões sociais, impossibilitados de desfrutar
as pessoas nos planos social e econômico, dos bens e serviços desenvolvidos pela
entendida como meio essencial para pos- tecnologia e vulneráveis às violações dos
sibilitar a libertação da sociedade das ne- seus direitos mínimos. Seria o que Nunes
cessidades e do risco (NUNES, 2003, p. 42). (2003, p. 69) proclama como a “civilização
Isso é facultado, evidentemente, não das desigualdades”.
pelos poderes constituídos, na sua acepção A liberdade é, portanto, regra máxima
clássica, como desenhado na Constituição da concepção de desenvolvimento da so-

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 213


ciedade e base fundante da democracia, da zação desses direitos de cidadania, porque
cidadania e da plena realização dos direitos a pessoa humana é titular de direitos em
humanos (SILVA R., 1998, p. 230), o que, virtude de sua personalidade, como ser de
por óbvio, se exterioriza como mais liber- razão. Este é o fundamento da igualdade
dades (civis, políticas, sociais, econômicas que deve ser promovida, e a efetivação des-
e culturais). ses direitos depende de que haja a interven-
Com essa compreensão de proteção esta- ção, o amparo e a proteção do sistema legal
tal dos direitos de cidadania, cabe também a e coativo da sociedade política (Estado).
institucionalização dos mecanismos de pro- Para que o poder estatal se mantenha
teção contra os riscos sociais, por meio de legitimado pela igualdade entre os cida-
uma cultura política que consagre os valores dãos e pela liberdade que se propõe, é im-
e fundamentos básicos da solidariedade e perioso que se facilite o acesso de todos às
da justiça social (CARVALHO, 2005, p. 97). virtudes públicas, ou seja, é imprescindível
Salama e Destremau (1999, p. 108-129) re- universalizar a liberdade econômica. E essa
velam que, para o Banco Mundial, a pobreza liberdade econômica não pode ser conse-
traz problemas sociopolíticos que refreiam guida por meio da anarquia das multidões
a eficácia econômica. Lembram ainda que o e do mercado (CARLYLE, 1982, p. 261). O
relatório 2000 do PNUD trata das relações Estado é instrumento imprescindível para a
entre pobreza e direitos humanos socioe- condução do processo de desenvolvimento
conômicos, asseverando que se exige uma socioeconômico, devendo manter tal con-
maior integração entre os direitos civis e trole com razoabilidade.
políticos e os direitos socioeconômicos, com É contraditório, entretanto, do ponto de
menos discriminação, mediante o fomento vista socioeconômico, afirmar que apenas
de uma democracia inclusiva, baseada, es- com a ação estatal, limitando em determi-
pecialmente, nos conceitos de governança e nadas situações a liberdade individual, se
atuação estatal. Para Sen (2002, p. 71), na sua pode atingir a verdadeira concepção de
crítica ao utilitarismo, o desenvolvimento cidadania.
como corolário da liberdade indica que a Nessa medida, pode-se ponderar que
liberdade constitui tanto o fim como o prin- a eliminação das restrições (liberdade for-
cipal meio para atingir o desenvolvimento. mal) não é suficiente para que se alcance
O Estado assume então responsabilida- a liberdade material que proporcione a
de importante quando da transição do Esta- todos iguais condições de acesso ao de-
do Liberal para o Estado Social, passando a senvolvimento (CARLYLE, 1982, p. 261).
definir as políticas públicas, seu direciona- Se o cidadão se encontra desamparado
mento e sua implementação; assim, há, sem pelo Estado, não é cidadão (é indivíduo
dúvidas, uma transformação profunda na que está excluído dos processos e ações da
compreensão de liberdade, que passa a ter sociedade).
uma conotação mais construtiva (RISTER, A liberdade econômica é concebida,
2007, p. 307). portanto, conforme defende Amaral (2005,
Segundo reforça Grau (1977, apud p. 141), como instrumento para a obtenção
RISTER, 2007), não há qualquer incompa- da liberdade política e da cidadania e a
tibilidade entre o planejamento do desen- elas deve estar atrelada, sob pena de se
volvimento e a liberdade porque o que se tornarem inócuos esses anseios. Como
pretende com a liberdade econômica não é ponderou Stuart Mill (1991, p. 158), nunca
suprimi-la, mas sim supri-la. é demasiada a atuação governamental
É compreensível, conforme assevera que não impeça, mas na realidade auxilie
Carlyle (1982, p. 255), que o possuir direitos e estimule, o esforço e o desenvolvimento
não esteja ligado efetivamente à concreti- da pessoa humana.

214 Revista de Informação Legislativa


Embora defensor do neoliberalismo, Nessa senda, impõe-se como baluarte
Hayek (2006, p. 68) afirma que uma das a apreensão de que o desenvolvimento
formas pelas quais se pode diminuir o agra- não se dá naturalmente pelo livre jogo
vamento do nível das desigualdades e pro- do mercado, segundo a compreensão de
mover a liberdade, não em termos liberais, liberdade econômica nos moldes liberais.
mas um mínimo de liberdade, é mediante O desenvolvimento deve ser alcançado
a redistribuição, o que, deliberadamente, mediante diretrizes propostas e planejadas
propicia a redução das desigualdades e a pelo Poder Público, obviamente com a par-
eliminação da pobreza. Pondera ainda que, ticipação da sociedade.
havendo crescimento, há a melhoria da si- A liberdade política apenas pode ser vi-
tuação das classes mais baixas e a satisfação vida em sua plenitude quando da constru-
de algumas de suas necessidades básicas. ção de direitos sociais firmes e efetivos na
A liberdade econômica que se prescreve sociedade. Não pode votar certo, não pode
é aquela determinada pela ação coletiva dos desejar cidadania aquele que passa fome.
grupos organizados ou pela ação política Este apenas se resigna ao desejo pelo pão.
do Estado, pois “o indivíduo isolado está É absurdo, pois, imaginar que a liber-
economicamente desamparado e quase dade econômica é comparável à liberdade
impotente” (CARLYLE, 1982, p. 262). moral, intelectual ou artística. Qualquer
É interessante ponderar que de nada destas pode desenvolver-se sem a par-
adianta a proteção da liberdade na órbita ticipação da comunidade ou do Estado;
estatal se não houver profundas modifica- entretanto, a liberdade econômica apenas
ções no seio da própria sociedade, ditadas se desenvolve quando há uma atuação
pelos imperativos da justiça social, para positiva. E é o desenvolvimento desta liber-
que todos possam se beneficiar do desen- dade que fomentará todas as outras formas
volvimento social. de liberdade. A liberdade econômica não
Portanto, os meios para que se possa al- pode, portanto, funcionar sem que haja
cançar a liberdade econômica são: o esforço a intervenção, o amparo e a proteção do
conjunto para o fortalecimento da posição sistema legal e coativo do Estado.
dos membros sociais mais débeis economi- Para que tais direitos sejam consagrados
camente e o controle legal da comunidade não apenas no texto da lei, muito deve ser
política sobre as condições econômicas. Em feito pelo Poder Público a fim de garantir
outras palavras, uma democracia social que ao cidadão a verdadeira liberdade (não
se volte para a efetivação dos direitos da a ausente de limitações, mas a dotada de
pessoa humana como sujeito econômico. possibilidades para todos).
O acesso à liberdade é a tônica das rei-
vindicações democráticas que ampliam a
Considerações finais
cidadania – no plano político, facultando
Dizer que o pobre é livre – porque tem o direito de se organizar politicamente, em
liberdade para prestar seus serviços a quem especial mediante o direito de participar
desejar ou ainda conseguir outras formas das decisões; e no plano social, mais am-
de sustento – é mera ilusão. A liberdade plo, por meio da defesa de certos direitos
econômica apenas pode ser facultada à ou de sua conservação, possibilitando a
parcela carente da população quando for- conquista do próprio direito à cidadania,
ças externas de controle moral e racional pelo reconhecimento de novos direitos e,
intervêm e fazem com que haja efetiva portanto, de novos sujeitos sociais. É im-
transformação social, propiciando acesso perioso reconhecer que as liberdades civil
àquilo de que mais se precisa (renda, ali- e política são necessariamente ligadas à
mentação, vestuário, habitação). liberdade econômica.

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 215


Referências LIMA JUNIOR, Jayme Benevuto. Os direitos humanos
econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro: Renovar,
AMARAL, Maria Virgínia Borges. Discurso e relações 2001.
de trabalho. Maceió: Edufal, 2005. MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. 2. ed. Tradução
ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Idéias políticas. de Alberto da Rocha Barros. Petrópolis: Vozes, 1991.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Os territórios do
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania, direi- direito: reflexões sobre a generalidade e impessoalida-
tos humanos e democracia: reconstruindo o conceito de da regra do direito. In: MARQUES, Claudia Lima;
liberal de cidadania. In: SILVA, Reinaldo Pereira e MEDAUAR, Odete; SILVA, Solange Teles da (Org.).
(Org.). Direitos humanos como educação para justiça. São O novo direito administrativo, ambiental e urbanístico: es-
Paulo: LTr, 1998. tudos em homenagem à Jacqueline Morand-Deviller.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-
-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: NUNES, António José Avelãs. Neoliberalismo e direitos
Companhia das Letras, 2007. humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BERLIN, Isaiah. Idéias políticas na era romântica: Seu PEQUENO, Marconi Pimentel. Ética, direitos hu-
surgimento e influência no pensamento moderno. manos e cidadania. In: ZENAIDE, Maria de Nazaré
Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Com- Tavares; DIAS, Lúcia Lemos (Org.). Formação em direi-
panhia das Letras, 2009. tos humanos na universidade. João Pessoa: UFPB, 2001.

BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos: PINHEIRO, Paulo Sergio. Dialética dos direitos hu-
fundamentos de um ethos de liberdade universal. manos. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo; AGUIAR,
Tradução de Dankwart Bernsmuller. São Leopoldo: Roberto A. R. de (Org.). Introdução crítica ao direito. 4.
Unisinos, 2000. ed. Brasília: UNB, 1993.

BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de PIOVESAN, Flávia. Notas introdutórias. In: LIMA
Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. 3. ed. Bra- JUNIOR, Jayme Benevuto. Os direitos humanos econô-
sília: UNB, 1984. micos, sociais e culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

CARLYLE, A. J. La libertad politica: historia de su RABENHORST, Eduardo R. Democracia e direitos


concepto en la Edad Media y los tiempos modernos. fundamentais em torno da noção de Estado de Direito.
Tradução de Vicente Herrero. Mexico: Fondo de Cul- In: ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares; DIAS, Lúcia
tura Económica, 1982. Lemos. Formação em direitos humanos na universidade.
João Pessoa: UFPB, 2001.
CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de Carvalho. Inclu-
são social, pobreza e Cidadania. In: RUBIM, Antonio RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento:
Albino Canelas (Org.). Cultura e atualidade. Salvador: antecedentes, significados e conseqüências. Rio de
EDUFBA, 2005. Janeiro: Renovar, 2007.
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso com- SALAMA, Pierre; DESTREMAU, Blandine. O tamanho
petente e outras falas. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2007. da pobreza: economia política da distribuição da renda.
Rio de Janeiro: Garamond, 1999.
CHRISTENSON, Reo M. et al. Ideologias e política
moderna. Tradução de Aydano Arruda. São Paulo: SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. Pondo os
IBRASA, 1974. pobres no seu lugar: igualdade constitucional e in-
tervencionismo segregador na Primeira República.
FIGUEIREDO, Ivanilda. Políticas públicas e a realiza-
In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA,
ção dos direitos sociais. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Martonio Mont’Alverne Barreto (Org.). Diálogos cons-
Fabris, 2006.
titucionais: direito, neoliberalismo e desenvolvimento
GHEVENTER, Alexandre. Autonomia versus controle: em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
origens do novo marco regulatório antitruste na
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São
América Latina e seus efeitos sobre a democracia. Belo
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Horizonte: UFMG, 2005.
SILVA, José Barbosa da. Representações na comuni-
HAYEK, Friedrich August von. Los fundamentos de
cação de lutas pela construção da cidadania: os meios
la libertad. 7. ed. Tradução de José Vicente Torrente.
e comunicação no processo organizativo dos grupos
Madrid: Union, 2006.
e movimentos populares. In: ZENAIDE, Maria de
KANT, Immanuel. Fundamentação metafísica dos cos- Nazaré Tavares; DIAS, Lúcia Lemos (Org.). Forma-
tumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições ção em direitos humanos na universidade. João Pessoa:
70, 1980. UFPB, 2001.

216 Revista de Informação Legislativa


SILVA, Reinaldo Pereira e. A reforma do Estado no ção dos direitos sociais. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Brasil e o descompromisso político com os direitos Fabris, 2006.
humanos. In: ______ (Org.). Direitos humanos como
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Prefácio. In:
educação para justiça. São Paulo: LTr, 1998.
LIMA JUNIOR, Jayme Benevuto. Os direitos humanos
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. 500 anos de uma ci- econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro: Renovar,
dadania excludente. In: ZENAIDE, Maria de Nazaré 2001.
Tavares; DIAS, Lúcia Lemos (Org.). Formação em direi-
ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares. Construção
tos humanos na universidade. João Pessoa: UFPB, 2001.
conceitual dos direitos humanos. In: ______; DIAS,
SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Prefácio: possamos Lúcia Lemos (Org.). Formação em direitos humanos na
logo no Brasil aplicar os princípios de justiça. In: universidade. João Pessoa: UFPB, 2001.
FIGUEIREDO, Ivanilda. Políticas públicas e a realiza-

Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 217

Você também pode gostar