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1999, pp. 2327.
INTRODUÇÃO
"O problema da cultura, ou antes, das culturas conhece
na actualidade um tempo de renovação, tanto no plano
intelectual, devido à vitalidade do culturalismo
americano, como no plano político. Em França, pelo
menos, nunca como hoje se falou tanto de cultura (a
propósito dos media, a propósito da juventude, a
propósito dos imigrados) e essa utilização do termo,
por mais ou menos sem controlo que seja, constitui por
si só um dado etnológico." MAKC AUGE (1988)
A noção de cultura é inerente à reflexão das ciências sociais. Élhes como que
necessária para pensarem a unidade na diversidade da humanidade de outro modo
que não em termos biológicos. Parece fornecer a resposta mais satisfatória à
questão da diferença entre os povos, mostrandose a resposta "racial" cada vez
mais desacreditada à medida que progride a genética das populações humanas.
O homem é essencialmente um ser de cultura. O longo processo de hominização,
iniciado há mais ou menos quinze milhões de anos, consistiu fundamentalmente na
passagem de uma adaptação genética à sua adaptação cultural à natureza do meio
ambiente. No decorrer desta evolução, que culminou no Homo sapiens sapiens, o
primeiro homem, operouse uma formidável regressão dos instintos, "substituídos"
progressivamente pela cultura, quer dizer por essa adaptação imaginada e
controlada pelo homem que se revela muito mais funcional que a adaptação
genética, porque muito mais flexível e muito mais rápida e facilmente
transmissível. A cultura permite ao homem não só adaptarse ao meio, mas
também adaptar este a si próprio, às suas necessidades e aos seus projectos, ou
seja e por outras palavras, a cultura torna possível a transformação da natureza.
Se todas as "populações" humanas possuem o mesmo património genético,
diferenciamse pelas suas escolhas culturais, inventando cada uma delas soluções
originais para os problemas que se lhes põem. No entanto, estas diferenças não são
irredutíveis entre si, porque, tendo em conta a unidade genética da humanidade,
representam aplicações de princípios culturais universais, sendo as aplicações
referidas susceptíveis de evoluções e inclusivamente de transformações.
A noção de cultura revelase, portanto, o utensílio adequado para pôr termo às
explicações naturalistas dos comportamentos humanos. A natureza, no homem, é
inteiramente interpretada pela cultura. As diferenças que poderiam parecer mais
ligadas a propriedades biológicas particulares, como, por exemplo, a diferença dos
sexos, nunca se deixam observar "em estado bruto" (natural) porque, por assim
dizer, a cultura delas se apodera "imediatamente": a divisão sexual dos papéis e
das tarefas nas sociedades humanas resulta fundamentalmente da cultura, e é por
isso que varia de uma sociedade para outra.
Nada é puramente natural no homem. Até mesmo as funções humanas que
correspondem a necessidades fisiológicas, como a fome, o sono, o desejo sexual,
etc., são informadas pela cultura: as sociedades não dão exactamente as mesmas
respostas a essas necessidades. A fortiori, nos domínios em que não existe
imposição biológica, os comportamentos são orientados pela cultura. É por isso que
a injunção: "Sê natural", muitas vezes repetida às crianças, em particular nos
meios burgueses, significa na realidade: "Sê em conformidade com o modelo da
cultura que te foi transmitida".
A noção de cultura, compreendida no sentido lato, que remete para os modos de
vida e de pensamento, é hoje amplamente admitida, ainda que por vezes não sem
certas ambiguidades. Mas nem sempre assim foi. Desde que surgiu no século XVIII,
a ideia moderna de cultura suscitou constantemente os mais vivos debates. Seja
qual for o sentido preciso que se tenha podido dar ao termo — e não faltaram
definições —, subsistiram sempre desacordos sobre a sua aplicação a esta ou
àquela realidade. E que o uso da noção de cultura leva directamente à ordem
simbólica, ao que se refere ao sentido, quer dizer àquilo a cujo propósito o
entendimento se torna mais difícil.
As ciências sociais, apesar das suas preocupações com a autonomia epistemológica,
nunca são por completo independentes dos contextos intelectuais e linguísticos em
que elaboram os seus esquemas teóricos e conceptuais. E por isso que o exame do
conceito científico de cultura implica o estudo da sua evolução histórica, ela própria
directamente ligada à génese social da ideia moderna de cultura. Esta génese social
revela que, por trás dos desacordos semânticos acerca da definição correcta do
termo, se escondem desacordos sociais e nacionais. As lutas de definição são, na
realidade, lutas sociais, relevando o sentido a dar aos termos de paradas sociais de
fundo (capítulo I).
Exporemos a seguir a invenção propriamente dita do conceito científico de cultura,
implicando a passagem de uma definição normativa a uma definição descritiva. Ao
contrário da noção, mais ou menos rival dentro do mesmo campo semântico, de
sociedade, a noção de cultura aplicase apenas ao que é humano. E oferece a
possibilidade de concebermos a unidade do homem na diversidade dos seus modos
de vicia e de crenças, incidindo a cónica, conforme os investigadores, ora mais na
unidade, ora mais na diversidade (capítulo II).
A partir da introdução do conceito nas ciências do homem, assistimos a um
desenvolvimento notável das investigações sobre a questão das variações culturais,
em particular no que se refere às ciências sociais americanas, por razões que não
dependem do acaso e que analisaremos aqui. Houve estudos realizados sobre
sociedades extremamente diversas que puseram em evidência a coerência
simbólica (nunca absoluta, porém) do conjunto das práticas (sociais, económicas,
políticas, religiosas, etc.) de uma colectividade particular ou de um grupo de
indivíduos (capítulo III).
O exame atento do encontro de culturas revela que este se realiza segundo
modalidades muito variadas e que desemboca em resultados extremamente
contrastados segundo as situações de contacto. As investigações sobre a
"aculturação" permitiram deixar para trás um bom número de ideias feitas sobre as
propriedades da cultura e renovar em profundidade o próprio conceito. A
aculturação surge não como um fenómeno ocasional, de efeitos devastadores, mas
como uma das modalidades habituais da evolução cultural de cada sociedade
(capítulo IV).
O encontro das culturas não ocorre apenas entre sociedades globais, mas também
entre grupos sociais pertencendo a uma mesma sociedade complexa. Sendo estes
grupos hierarquizados entre si, damonos conta de que as hierarquias sociais
determinam as hierarquias culturais, o que não significa que a cultura do grupo
dominante determine o carácter das culturas dos grupos socialmente dominados.
As culturas das classes populares não são desprovidas nem de autonomia nem de
capacidade de resistência (capítulo V).
A defesa da autonomia cultural está estreitamente ligada à preservação da
identidade colectiva. "Cultura" e "identidade" são conceitos que remetem para uma
mesma realidade, vista de dois ângulos diferentes. Uma concepção essencialista da
identidade não resiste melhor ao exame que uma concepção essencialista da
cultura. A identidade cultural de um dado grupo não pode compreenderse a não
ser pelo estudo das suas relações com os grupos vizinhos (capítulo VI).
A análise cultural conserva hoje toda a sua pertinência e continua a revelarse
capaz de dar conta das lógicas simbólicas em acção no mundo contemporâneo,
contanto que não se descurem os ensinamentos das ciências sociais. Não basta
tornarlhes de empréstimo o termo "cultura" para se impor uma leitura da
realidade, que muitas vezes esconde uma tentativa de imposição simbólica. Tanto
no domínio político ou religioso como na empresa ou por referência aos imigrados,
a cultura não se decreta, não se manipula como uma ferramenta habitual, uma vez
que releva de processos extremamente complexos e, na maior parte dos casos,
inconscientes (capítulo VII).
Não era possível no quadro deste trabalho apresentar todos os usos que as ciências
humanas e sociais puderam fazer da noção de cultura. A sociologia e a antropologia
foram aqui privilegiadas, mas há outras disciplinas que recorrem do mesmo modo
ao conceito de cultura: a psicologia, e sobretudo a psicologia social, a psicanálise, a
linguística, a história, e economia, etc. No exterior das ciências sociais, a noção é
igualmente utilizada, em particular pela filosofia. À falta de exaustividade, pareceu
nos legítimo concentrarmonos num certo número de aquisições fundamentais da
análise cultural.