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SEMIÓTICAS
Lázaro Barbosa1
(Departamento de Filosofia/UFRN)
Resumo: Este trabalho explora alguns dos eixos teóricos envolvidos na relação estética
e semiótica no contexto do cinema e da literatura, na intenção de examinar a tradução e
releitura cinematográficas de obras literárias. Recorro a cineastas e teóricos do cinema
variados para o apoio conceitual e, a título de exemplo, ofereço um breve comentário
comparativo entre o romance Cidade de Deus (LINS, 2002) e o filme Cidade de Deus
(Fernando Meirelles, 2002). Por fim, ressalto a importância da renovação contínua nas
relações entre as linguagens cinematográfica e literária e os desafios envolvidos na
tarefa de tradução e releitura de textos literários para o cinema.
II
1
Graduando em filosofia (bacharelado) e bolsista PIBIC sob orientação da Profa. Dra. Maria Helena
Braga e Vaz da Costa (DEART/UFRN). E-mail: lazaras.ufrn@gmail.com
2
“Levyi Front Iskusstv”, ou “Frente Esquerdista das Artes”, foi uma associação de artistas na União
Soviética que existiu em duas fases: de 1923 a 1925 como LEF, e de 1927 a 1929 como Novyi LEF (Nova
Frente Esquerdista das Artes). Foi fundada por Osip Brik e Vladimir Maiakóvski, o qual dirigiu e editou a
revista da associação nos dois períodos mencionados.
consiste na montagem de “ações (atrações) arbitrariamente escolhidas e independentes
(também exteriores à composição e ao enredo vivido pelos atores), porém com o
objetivo preciso de atingir um certo efeito temático final” (EISENSTEIN, 2003a:191).
Eisenstein se preocupou também com a literatura. Analisando a adaptação
para o cinema do romance Uma Tragédia Americana, lamentou as escolhas feitas pelo
estúdio Paramount, alegando que elas retiraram o conteúdo trágico da trama original
(EISENSTEIN, 2003b); Além disso, foram excluídos da versão definitiva cenas nas
quais tenha sido empregado o recurso do monólogo interior3. Já em um texto da
maturidade, sua concepção de montagem foi ampliada de forma a abarcar artes tão
distintas quanto o cinema, a música, a pintura e a poesia; Eisenstein defendia que, a
despeito dos elementos formais inerentes a cada uma delas, a montagem se sobressaía
como instrumento organizador. Para exemplificar seus argumentos, o cineasta esboçou
adaptações de algumas estrofes de poemas (de Púchkin a Blake), apontando como os
versos poderiam ser transformados em planos cinematográficos (EISENSTEIN, 1990).
Outros cineastas se ocuparam das relações entre cinema e literatura,
buscando conciliar o poder estético da película e a apropriação (ou mesmo
aproximação) de elementos poéticos do romance, do conto e do poema. Jean Epstein,
por exemplo, acentuou a proximidade entre a literatura moderna e o cinema. O cineasta
francês defendeu superposição de estéticas literárias e cinemáticas como prerrogativa
para sua sobrevivência mútua, elencando sete aspectos. Dentre eles se destacam a
estética de sugestão – “Não se conta mais nada, indica-se. O que permite o prazer de
uma descoberta e de uma construção” (EPSTEIN, 2003:271) –, rejeitando assim a
narrativa linear e de compreensão fácil; e a estética momentânea, ancorando a produção
do romance e do filme no tempo e evitando metáforas de eternidade: “Sempre a escrita
envelhece, mais ou menos rapidamente. A escrita atual envelhecerá muito depressa. (...)
O filme, como a literatura contemporânea, acelera metamorfoses instáveis” (EPSTEIN,
2003:274-275).
Pier Paolo Pasolini escreveu sobre o cinema de poesia, ancorado no discurso
indireto livre. Discurso indireto livre, lembra Pasolini, é “a imersão do autor no âmago
de seu personagem e, por conseguinte, a apropriação, por parte do autor, não somente da
psicologia de seu personagem mas também de sua língua”4. Distingue-se do monólogo
interior por este representar os pensamentos e tensões interiores na consciência do
personagem; o discurso indireto livre funde a narrativa direta com os discursos
interiores do personagem, borrando as fronteiras entre narrativa e narrador. Na tela do
cinema, o discurso indireto livre corresponde à câmera subjetiva indireta livre, na qual
um personagem narra a história. Tal procedimento, no entanto, é de ordem estilística e
não lingüística, dada a ausência de uma linguagem cinematográfica equivalente à
linguagem verbal humana. O escritor, empregando o discurso indireto livre, deve ter
consciência das diversas variações sociais de sua língua. No entanto, o cineasta não
pode fazer o mesmo porque, para Pasolini, não há uma língua institucional
cinematográfica; ou, ao contrário, existem várias, condicionadas à escolha individual de
cada cineasta, que elabora um vocabulário particular. Contudo,
3
O monólogo interior ficou famoso no mundo literário por escritores como James Joyce (que o próprio
Eisenstein conheceu e com o qual debateu algumas de suas idéias). Eisenstein afirmou, aliás, que o
emprego do monólogo interior no cinema teria mais efeitos estéticos em um filme do que na literatura
(ibidem).
4
“la inmersión del autor en el ánimo de su personaje, y por consiguiente la adopción, por parte del autor,
no sólo de la psicologíade su personaje, sino también de su lengua” (PASOLINI e ROHMER, 1970:23).
incluso com tal vocabulario, la lengua es forzosamente interdialectal e
internacional: porque los ojos son iguales en todo el mundo. No se
pueden tomar en consideración, porque no existen lenguas especiales,
sublenguajes, jergas; diferenciaciones sociales, em pocas palabras. O
si existen, como luego en realidad existen, están absolutamente fuera
de cualquier posibilidad de catalogación y empleo (PASOLINI e
ROHMER, 1970:27)5.
5
“mesmo com tal vocabulário, a língua é interdialetal e internacional: porque os olhos são iguais em todo
o mundo. Não podem ser levadas em consideração, porque não existem línguas especiais, sublínguas,
jargões; em poucas palavras, diferenciações sociais. Ou se existem, como o são de fato na realidade, estão
absolutamente fora de qualquer possibilidade de catalogação e uso” (tradução minha).
III
6
A trama de Cidade de Deus, como se sabe, foi baseada em fatos reais. No entanto, todas as alusões a
personagens aqui levarão em conta seus nomes conforme o romance.
Cidade de Deus, César Charlone, demonstrou a preocupação com a filmagem nos
seguintes termos:
o maior desafio era sem dúvida tentar achar uma linguagem
cinematográfica: de câmera e luz que mostrasse sem "enfeitar", sem
"afetar", sem se deter a explorar, como se o Paulo Lins operasse a
câmera e se detivesse igualmente num cachorro comendo lixo na rua
ou numa criança levando um tiro de fuzil (CHARLONE, s.d., p. de
internet).
IV
A afirmação da sétima arte enquanto tal não foi imediata. Em parte, isso se
deve à relação que mantém com outras linguagens artísticas; não poucas vezes o cinema
foi acusado de imitar pura e simplesmente o teatro e a literatura, apenas para mencionar
um fato. Além disso, as dissensões entre as vanguardas cinematográficas também
acirraram os debates em torno de como as apropriações e traduções da palavra escrita
para a imagem fílmica deveriam ser executadas – sem mencionar a diversidade de
estratégias empregadas pelos cineastas na época pós-moderna. Não é sem razão que
filmes como Cidade de Deus são objetos de perspectivas tão discrepantes. A tradução
de Meirelles se situa em uma conjuntura técnica e sociológica bastante diversa daquela
em que Bazin produziu suas idéias e orientou os cineastas da Nouvelle Vague; os
recursos e escolhas de que o cineasta se valeu multiplicam e extrapolam as
possibilidades imaginadas e/ou disponíveis por diretores de épocas ou vertentes
diferentes.
Seja qual for o ponto de partida, podemos perceber nas diversas teorias do
cinema a busca pelo filme enquanto singularidade, assim como o próprio fazer fílmico
(desde a concepção do roteiro até a distribuição e exibição do produto final). Não a
mera cópia, mas o reconhecimento, por parte do público, do talento do diretor em
coordenar os esforços para a construção de uma obra tão aprazível quanto o texto
literário em que se baseou. Avellar declarou que “a arte cria uma ordem própria, não
copia a aparência exterior da natureza, determina que aparência representa o quê. (...)”
(AVELLAR, 2007:32). Da mesma forma, o cinema não se limita a copiar a literatura, e
vice-versa.
Para finalizar: “(...) a relação entre a literatura e o cinema (como qualquer
relação viva entre duas formas vivas de arte) só se realiza quando uma estimula e
desafia a outra a se fazer por si própria” (AVELLAR, 2007:54). Essa relação agonística
entre palavra e imagem cinematográfica (incluindo aí a imagem e o som) é inevitável e
inesgotável; a tradução de Cidade de Deus empreendida por Meirelles é um dentre
inúmeros exemplos de como se dá esse embate. Está sujeita às contingências históricas,
sociais, culturais, geográficas de cada sociedade; depende do poder criativo de diretores,
roteiristas, produtores e escritores, assim como do engajamento dos espectadores, pois
estes é que, de uma forma ou de outra, cedo ou tarde, permitem àqueles granjearem ou
não os louros de seu trabalho.
REFERÊNCIAS:
FILMOGRAFIA: