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Helvio Moraes
Universidade do Estado de Mato Grosso
Resumo
Este estudo tem o objetivo de apresentar os Diece dialoghi della Historia
de Francesco Patrizi da Cherso, publicados em Veneza em 1560. Nas primeiras
partes, fornecemos uma síntese das questões relativas ao gênero da ars historica e
da historiografia humanista até Maquiavel, e buscamos compreender o ambiente
intelectual em que os Dialoghi foram escritos: a Accademia della Fama, na Veneza
pré-contra-reformista. Tais considerações servirão como fundamento para nossa
leitura da obra, apresentada na última parte.
Palavras-chave
Ars historica, Historiografia Humanista, Filosofia da História, Neoplatonismo
Renascentista, Retórica.
I
O gênero da ars historica teve uma duração relativamente breve
no início da era moderna, difundindo-se, sobretudo, na Itália, durante
os anos do Concílio Tridentino e adentrando o século XVII, para então
exaurir-se em enunciações carentes de vigor, no momento em que a
tentativa de se determinar regras para a escrita historiográfica, assim
como a reflexão sobre a utilidade e o significado da História (próprias
do gênero), cedem lugar ao método, sendo possível aplicarmos, a partir
daí, o termo Filosofia da História, quando o conhecimento histórico
começa a ser visto como um legítimo objeto de investigação filosófica.
É também relativamente recente o interesse despertado pela ars historica,
assim como, somente após a década de 80, assistimos à proliferação de
estudos sobre a historiografia humanista ou concernentes a reflexões
sobre a História, em autores que vão de Petrarca a Campanella (para
nos limitarmos à Itália), passando por nomes como Coluccio Salutati,
Leonardo Bruni, Lorenzo Valla, Giovanni Pontano, Sperone Speroni,
entre tantos outros. Incisivo e resistente parece ter sido, portanto, o juízo
de Fueter (1911) sobre a irrelevância de tais escritos para a concepção
historiográfica moderna, primeiramente pela primazia dos artifícios
retóricos utilizados pelos humanistas, privilegiando, a seu ver, questões
de estilo em detrimento da verdade do relato historiográfico, e, em
segundo lugar, pelo nítido distanciamento, no período, entre teóricos
da historiografia e historiadores – o trabalho dos primeiros em nada
interferindo na produção destes. Cochrane procura preencher a lacuna
deixada por Fueter, em seu Historians and Historiography in the Italian
Renaissance (1981), um catálogo volumoso e exauriente de historiadores
do período e suas obras. Porém, o pequeno espaço concedido aos
tratadistas de artes historicae parece trair certa intolerância em relação às
primeiras tentativas de elaboração de uma teoria da História, parecendo
até mesmo ecoar alguns passos de Fueter, permanecendo aquém de
alguns textos pioneiros, que se propõem a investigar questões relativas à
concepção historiográfica no Renascimento, como os de Spini (1948),
Vegas (1964) e Cotroneo (1971). Uma nova direção para a abordagem
do problema será apontada por Vasoli (1992), num penetrante estudo
em que sugere a supressão desta linha que separa “a ‘narração’ histórica
e a reflexão sobre o seu caráter e sua natureza”, tendo em vista que
tais aspectos são “próprios de uma cultura que era comum tanto aos
historiadores quanto aos teóricos, se reportava às mesmas fontes e levava
em consideração os mesmos ‘modelos’” (VASOLI, 1992, p. 6). Isto lhe
permite justapor, em um mesmo exame, autores de ambos segmentos,
e lhe possibilita observar que nem é estranha ao historiador certa atitude
especulativa (mais facilmente perceptível nos prefácios de seus escritos
historiográficos), nem escapam ao teórico questões relativas à escrita da
História.
Ocupa um lugar importante nas reflexões destes estudiosos os
Diece dialoghi della Historia, do filósofo Francesco Patrizi da Cherso
270
A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI
II
Partimos da constatação mais imediata de que a inserção
dos Dialoghi no amplo debate em torno da crítica histórica, que se
intensificará na segunda metade do Cinquecento, concorre para uma
revisão dos pontos centrais da literatura concernente ao gênero da ars
historica. Ao mesmo tempo, Patrizi aponta seus limites e empreende uma
inquieta busca, não de todo conclusiva, por uma nova teoria da História,
mais abrangente e autônoma, como primeiro passo de uma “sua tão alta
empresa de toda a eloqüência” (PATRIZI, 1560, p. A2)1.
Quase a totalidade da historiografia humanista precedente, que
remonta aos escritos de Leonardo Bruni, é fortemente marcada pelos
postulados clássicos de Aristóteles e Cícero, daí sua forte relação (Patrizi
diria subordinação) com a Retórica. Grande importância é atribuída aos
exempla, e a História, desta maneira, passa a ser vista como um vasto
repertório de grandes feitos realizados por ilustres personagens, que,
manipulados de forma adequada, servem a várias finalidades, que vão
desde a glorificação de príncipes e cidades até a edificação moral do
homem. Atenção a um estilo elegante, um modo de “vestir a História
de forma a torná-la uma forma de literatura” (ULLMAN, 1973,
p. 326), em contraste com o estilo das crônicas medievais, assim como
um cuidado maior com a dispositio do discurso histórico (ausente nos
anais), são aspectos que determinam o caráter de tais escritos. De fato,
parece haver uma primazia da forma sobre o conteúdo, uma precedência
do “apelo sensual (...) sobre o método racional” (REYNOLDS, 1992,
p. 115), característico do discurso de persuasão, que tende a fornecer ao
relato uma combinação de voluptas e utilitas (KELLEY, 2000, p. 748). 1
De fato, Patrizi leva a cabo
Quanto à reflexão do primeiro humanismo sobre a História, tal “impresa”, a seguir, com a
podemos dizer que é também amplamente inspirada nos cânones da publicação dos Dieci Dialoghi
della Retorica, em 1562, e,
Antigüidade e que passou por muito tempo despercebida justamente por fim, dos diálogos Della
por não encontrar-se compilada em escritos exclusivamente dedicados Poetica, cujas primeiras partes
ao assunto, mas, sim, dispersa nos prefácios e dedicatórias das obras (Deca istoriale e Deca disputata)
são publicadas em 1586,
historiográficas, ou em cartas, discursos, invectivas, sendo que, somente ainda que leve mais dois anos
no fim do Quattrocento, será publicada a primeira ars historica tout court, o para terminar o conjunto de
diálogo Actius de Giovanni Pontano, síntese das discussões humanistas diálogos, que permaneceram
inéditos até 1969, quando
precedentes sobre o tema, em que se estabelece um forte vínculo entre
então receberam uma edição
História, Poesia e Retórica, seguindo, principalmente, os preceitos de organizada por Danilo Aguzzi
Cícero, Quintiliano e Luciano de Samósata. De forma geral, embora Barbagli.
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HELVIO MORAES
III
Um procedimento diferente começa a se operar em Florença, com
os escritos de Maquiavel, embora sejam, em grande medida, influenciados
pela historiografia humanista que os precedera. Como seus antecessores,
Maquiavel acredita numa utilidade da História, na sua capacidade de
ensinar algo. Porém, “trata-se de evocar o passado, não mais com fins
genéricos, mas específicos, em função de uma explicação do presente e,
sobretudo, de um aconselhamento à ação política” (PLASTINA, 1992,
p. 51). O próprio autor explicita tal convicção no início dos Discorsi,
que podem ser vistos como uma aplicação desta idéia:
272
A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI
273
HELVIO MORAES
4
Talvez o exemplo maior seja Somente na segunda metade do Cinquecento (à distância de
o de Gasparo Contarini, que
aproximadamente quatro décadas de Maquiavel), percebe-se, no Vêneto,
promovera a reelaboração,
em moldes humanistas, do uma tendência à abordagem histórica em termos análogos ao do pensador
que comumente chamamos florentino. A historiografia anterior, assentada sobre os fundamentos
“Mito de Veneza”, destinada aristotélicos do Studio de Pádua, caracteriza-se por uma repetição de
a ter uma ampla difusão não
só na Itália como em várias temas relacionados à defesa dos ideais aristocráticos da Serenissima,
partes da Europa e pela qual propostos na forma convencional da ars historica4, vista acima. Segundo
a imagem da Sereníssima Bouwsma (1984, p. 164-8), esta nova tendência está ligada ao círculo
torna-se o paradigma da
melhor efetivação dos
de Patrizi – para o qual “Veneza certamente está começando a parecer
ideais republicanos. O De parte do mundo temporal” –, e se torna evidente com a publicação de
magistratibus et republica seus Dialoghi della historia, que discutiremos a seguir.
Venetorum configura-se como
uma grande sistematização
dos elementos mais caros
ao patriciado veneziano,
uma renovada confiança na
IV
extraordinária durabilidade
da república e na solidez de Os Dialoghi della historia5 marcam o início de uma “segunda fase”
suas instituições, que não da vida intelectual de Patrizi, quando, após a conclusão de seus estudos
sucumbiram mesmo após uma em Pádua, por volta de 1553, se estabelece em Veneza, em 1556. Neste
experiência tão traumática
quanto a da derrota de ínterim, um retorno à sua cidade natal, Cherso, e uma viagem a Roma,
seu exército contra a Liga para resolver uma questão litigiosa impetrada contra um tio, é tudo o
de Cambrai, na batalha que se sabe da vida do filósofo (p. 54v-55r). De volta ao Vêneto, Patrizi
de Agnadello, em 1509.
Este episódio, juntamente estreitara ou renovara as suas relações com aqueles homens de letras e de
com outras situações que
cultura que, na capital lagunar, haviam encontrado o lugar mais propício
representaram sérios riscos à
estabilidade política veneziana para a sua tumultuosa atividade poligráfica e editorial, favorecida pela
por todo o século XVI – como excepcional expansão da tipografia e das várias iniciativas acadêmicas
a crescente ameaça, por parte promotoras de uma cultura mais aderente às necessidades do patriciado
de Roma, de impor limites e da burguesia. (VASOLI, 1989, p. 26-7)
não só à sua autonomia
eclesiástica, mas também à sua
atuação política e econômica,
Vasoli se refere, especificamente, à relação de Patrizi com a
principalmente após a última Accademia della Fama. Seu nome aparece entre os signatários da Accademia
reunião do Concílio de Trento, em 1559, e tudo leva a crer que dela tenha diretamente se desvinculado
e a perda da hegemonia no
apenas para assumir o cargo de governador das terras do conde de Zaffo,
comércio de especiarias para
os portugueses – deveria em Chipre, no ano seguinte.
suscitar uma busca por uma Fundada em 1557 por Federico Badoer6, nobre veneziano que
atitude mais realista em relação ocupou cargos importantes, entre os quais o de embaixador7, a Accademia
ao conhecimento histórico.
No entanto, ao invés de uma não chegaria a ter cinco anos de existência. Contudo, abarcou um ousado
apreciação crítica de seus programa de renovação cultural, baseado na proposta de uma ampla
métodos historiográficos, o difusão, um “volgarizzamento”, de textos clássicos e contemporâneos,
que percebemos é uma postura
contrária: a exaltação de seus
de forte teor platônico8. Promovido, em grande parte, pela própria
valores de forma estática, intelectualidade aristocrática veneziana, dele não se excluem fortes
sistemática, aliada a um intenções de ação política. Segundo Bolzoni (1980, p. 26),
revigoramento do sentimento
cívico. De fato, já em 1517, A cultura elaborada e fornecida pela Accademia propunha-se, de fato, não
Veneza havia recuperado apenas genericamente, elevar o prestígio da República no exterior, mas
a grande maioria de suas
possessões em terraferma,
também contribuir para a formação de seu pessoal político e diplomático.
perdidas para as diversas Os crescentes reconhecimentos oficiais concedidos à Accademia por parte
potências que compunham a das autoridades demonstram que tal projeto não era presunçoso.
Liga. Assim, o que poderia
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A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI
Além disso, num momento em que a Igreja da Contra-Reforma ser visto como prenúncio de
um colapso iminente, caso
começa a insurgir-se mais fortemente contra seus opositores, às vésperas
não houvesse uma rápida
da primeira lista do Index (1559) e pouco antes da decisiva reunião do adaptação da República às
Concílio de Trento (1562-3), a Accademia conserva uma atmosfera de vicissitudes do momento, foi
significativa tolerância religiosa, abrigando ou mantendo vínculos com sentido como uma horrenda
prova a que, após certos
vários intelectuais de pensamento não ortodoxo9. percalços, triunfou. Trata-se
Junto à Accademia, Patrizi faz alguns trabalhos de editoração de algo muito mais próximo
(prepara e comenta as Rime de Luca Contile e parte das Opere de Giulio de uma convicção religiosa,
o que fortalece a crença no
Camillo Delminio). O mais importante, porém, é ressaltar a influência mito e a necessidade de sua
deste ambiente e das discussões ocorridas ali, na gênese de sua “empresa conservação. É neste clima que
de toda a eloqüência”10. A maior parte dos Dialoghi della historia se passa Contarini escreve o grosso de
sua obra capital em 1523-4,
em Veneza, e seus protagonistas são, na maioria, jovens intelectuais,
com a intenção de codificar,
pertencentes ao patriciado, relacionados, direta ou indiretamente, à em moldes humanistas, os
Accademia11. Também não é estranha aos Dialoghi uma atitude de ideais de equilíbrio e harmonia
inconformismo em relação aos métodos humanísticos de abordagem da correspondentes ao espírito
conservador da sociedade a que
história, de base aristotélica, que haviam sido elaborados em Pádua, há pertence (ver BOUWSMA,
menos de duas décadas, por Sperone Speroni e Francesco Robortello. 1984, p. 144-153).
Speroni foi a figura central da academia dos Infiammati, que teve
5
Serão publicados em Veneza,
grande relevância na difusão do pensamento aristotélico em “volgare”,
por Andrea Arrivabene,
nos moldes propostos por Pomponazzi, a que a Accademia della Fama em 1560, sob a seguinte
pode ser vista como uma contra-imagem. Em resumo, percebemos que, denominação: Della historia
para o jovem filósofo, a Accademia serviu como meio de corroboração diece dialoghi di M. Francesco
Patritio ne’ quali si ragiona
de seu pensamento ainda em formação e nada ortodoxo, e seu ambiente di tutte le cose appartenenti
intelectual, um estímulo ao amadurecimento destas idéias. all’historia, & allo scriverla, &
Assim, dentro da mais atuante linha do neoplatonismo all’osservarla. A partir deste
ponto, citaremos apenas a
renascentista, Patrizi dirigirá sua crítica corrosiva às auctoritates e, por página em que se encontra o
meio delas, aos métodos historiográficos nos moldes dos humanistas do trecho citado.
Quattrocento, na tentativa de elaborar uma completa teoria da História,
não mais “por meio da observância dos três únicos gêneros, mas por via 6
Patrizi dedica um poema a
Badoer. Escrito entre 14 de
da ciência, das causas e dos princípios primeiros do falar (p. A2r). Surge,
setembro e 1º de outubro de
então, a necessidade de uma nova definição da História, assim como de 1558, o poema testifica a data
seu objeto, sua finalidade, seu registro e sua utilidade. de inscrição de Patrizi junto à
Accademia.
7
Cf. CASTELLI (2002, p. 30).
V 8
Patrizi demonstra interesse
O primeiro diálogo, Il Gigante overo della historia, se passa em (e predileção) pela filosofia
platônica quando ainda era
Veneza e, ironicamente, começa com um elogio da História, feito por estudante em Pádua. Na
Alfonso Bidernuccio, que terá um papel semelhante ao de Fedro, no famosa carta autobiográfica,
diálogo homônimo de Platão. O elogio, uma espécie de súmula dos loci escrita ao florentino Baccio
Valori, afirma que, depois
communes da historiografia humanista, traz a imagem da História como de certas frustrações com os
ensinamentos aristotélicos dos
coisa sobremodo bela e útil (...) com que todo homem civil, todo senador mestres do Studio, que não “lhe
e todo príncipe deveria, com grande estudo, deleitar-se e se familiarizar, causaram prazer, (...) ouvindo
pois que é repleta de toda forma de vida, boa ou má (...) e nela, como num um frade de S. Francisco
espelho ou, mais verdadeiramente, num teatro, pode-se ver todas as coisas sustentar conclusões platônicas,
delas se enamorou, e após
humanas, e todos os seus felizes e desventurados acontecimentos (p. 1r).
ter feito amizade com ele,
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pediu-lhe que o encaminhasse A tão “belo elogio” (p. 1v) da História, Patrizi contrasta sua ironia
pela via de Platão. [O frade]
socrática, primeiramente, afirmando não saber “ainda, nem jamais [ter
lhe propôs como ótima via
a Teologia de Ficino, a que podido] saber, que coisa seja a História” e, logo em seguida, recorrendo
se deu com grande avidez. E aos amigos, por meio dos quais poderia “ser, tanto na História como em
tal foi o princípio do estudo muitas outras coisas belas, doutrinado” (p. 1v). A partir deste ponto, num
que depois sempre seguiu.”
(PATRIZI, 1975, hábil manejo inspirado na forma dos primeiros diálogos platônicos12,
p. 47). La città felice, de 1551, através do procedimento elenquístico, Patrizi demora-se na crítica e no
denota uma fase concordista “desmantelamento” daquelas concepções de História que têm certos
do pensamento patriziano,
certamente influenciada
débitos para com os preceitos da retórica tradicional, principalmente
pelas leituras de Pico. Mas as que seguem as linhas de autoridades como Cícero, Luciano13 e,
a tentativa de uma concordia implicitamente citado no diálogo, Quintiliano. Giovani Pontano, o
philosophae será rapidamente
famoso humanista napolitano, que no Actius expressava a idéia de uma
abandonada, como veremos na
apresentação dos Dialoghi. forte ligação entre Poesia e História, e que legava ao historiador a função
de explicar e adornar a verdade, é também alvo direto das confutações de
9
Cf. RINALDI (2001, Patrizi. Seus escritos influenciaram toda uma geração de historiadores,
p. 13), “A orientação religiosa
dos intelectuais vênetos que
e isto torna mais compreensível a forma como Patrizi desenvolve sua
se reuniam em torno desta crítica: indo diretamente nas fontes e quase exclusivamente a elas
Accademia era aberta às idéias dispensando sua atenção, o filósofo abala todo o quadro da historiografia
da Reforma: entre os seus
humanista que o precede.
membros figuravam, de fato,
Bernardo Tasso, uma vez Dos escritos que compõem tal conjunto, talvez o que Patrizi tenha
secretário de Renata da França mais em mente seja o Dialogo della Istoria de Sperone Speroni. Embora
quando de sua permanência na nenhuma alusão seja feita ao mestre dos Infiammati, percebe-se que seu
corte estense; Francesco Patrizi,
que trazia consigo a suspeita de diálogo constitui “muitas vezes, a secreta “filigrana” de muitas páginas
heterodoxia que circundava sua patrizianas” (VASOLI, 1989, p. 30). Speroni tenta propor uma autonomia
família; Ludovico Castelvetro, da História em relação à Retórica, por meio de Ieronimo Zabarella, um dos
o célebre expositor da poética
aristotélica, que tinha relações
protagonistas do diálogo: “tenho por certo que o orador, quanto melhor e
com a cultura protestante.” mais exercitado seja na eloqüência, pior historiador deva ser se, de orador
Em relação à heterodoxia de que fosse, quisesse tornar-se historiador” (SPERONI, 1996, p. 312).
Patrizi, à parte sua relação
A principal condição do historiador não é a eloqüência, mas a verdade,
de simpatia com o clima
intelectual da Basiléia, algumas que “distingue a História da Poesia e da Retórica, e das outras artes
breves considerações: desde sermocinais” (ibid., p. 312). Assim, a incumbência da escrita da História
seus primeiros escritos, o deve ser dada a quem “possui a verdade (...) ou a quem a ama” (ibid., p. 315),
filósofo elabora uma linha
de pensamento pontilhada o sacerdote ou o filósofo. Em relação a estes pontos, veremos que Patrizi
de elementos não ortodoxos, não apresentaria objeções. No entanto, tais idéias não são desenvolvidas
embora muito mais contidos e o próprio diálogo insere-se no âmbito das questões retóricas, desde o
no âmbito da filosofia que
no da religião. Tal idéia, ele
início, em que Paolo Manuzio encontra-se preocupado em aconselhar
mesmo a explicita numa carta um amigo sobre “qual historiador antigo, grego ou latino que seja, deve
de 1562: “Quanto à fé cristã, escolher como seu guia, seguindo o modo por ele tomado, para imitá-
creio-me dela ser muito bem
lo e assemelhar-se-lhe o quanto a língua permitir, ao querer escrever em
provido, e caso fosse forçado a
errar, e se me fosse concedido italiano” (ibid., p. 213). Assim, várias páginas da segunda parte (o diálogo
poder escolher entre dois erros, é composto de duas) é dedicada ao topos renascentista do debate sobre a
escolheria sempre errar em primazia das línguas clássicas ou das vernáculas, em que Zabarella expõe
espírito filosófico e no manual
de Epiteto, que podem me certas concepções de Pomponazzi sobre o “volgarizzamento” do saber. E
tornar bom e contemplativo, o encerramento do diálogo parece trair uma indisposição a estender-se
do que com o Espírito Santo nas proposições aludidas acima, terminando abruptamente, na verdade,
de Lutero, incapaz de fazer
alguém tornar-se bom, e que
inconcluso, quando o tópico da discussão refere-se à questão do estilo do
relato histórico14. Como afirma Vasoli (1989, p. 42-3),
276
A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI
277
HELVIO MORAES
grego, nem latino, nem vulgar, histórica, que emerge dos diálogos anteriores, em um esquema que a
sendo, contudo, muito belo e
contemple inteiramente e que, necessariamente, deva sair do âmbito
cômodo.” (PATRIZI, 1553,
p. 20v-21 Apud BOLZONI, restrito da Retórica. Já estabelecera, portanto, as condições essenciais
1980, p. 90). para propor que a História seja (re)conduzida ao campo da Filosofia.
Não por acaso, todo o diálogo é construído sob o signo do delírio, com
13
Patrizi tem sempre em mente
a famosa sentença de Cícero,
claras alusões a passagens do Fedro e do Político, de Platão. Patrizi-
que define a História como protagonista, em estado febril, perscrutava “o livro da minha alma”
“testemunha dos tempos, luz (p. 12r) – para surpresa de seus amigos que, a princípio, acreditavam que
da verdade, vida da memória,
ele “delirasse”, e só depois perceberam que estava “sob efeito dos delírios
mestra da vida e mensageira
do passado”. Outras vezes, faz de Platão” –, tentando encontrar “o que fosse a História” (p. 12v). À
seus interlocutores afirmarem pergunta de Giorgio Contarini sobre a possibilidade de encontrá-la em
que a “História é uma coisa “livros alheios”, sem que fosse necessário recorrer ao da alma, Patrizi
feita, remota da memória dos
nossos tempos”. Ao longo dos (p. 12v-13r) responde que “todas as coisas que encontro nos livros
diálogos, o filósofo também faz escritos de fora (...) vou buscando também no livro da minha alma, no
alusões implícitas a trechos do qual muitas encontro e muitas, não. (...) Aquelas que encontro, estimo
Orator, como: “[A História]
envolve uma narrativa em
que sejam verdadeiras, aquelas que não, estimo serem falsas”.
estilo ornamentado, tendo aqui Extremamente significativa esta passagem em que o filósofo
e ali a descrição de uma região subordina todos os “libri di fuori” – e aí a alusão aos livros anteriormente
ou de uma batalha. Também
mencionados é evidente – ao “livro da alma”. A partir daí, as reflexões de
tem, ocasionalmente, arengas
e discursos de exortação. Mas Patrizi “tendem a “saltar” a dimensão histórica e a colocar-se sobre um
a finalidade é um estilo suave plano metafísico” (BOLZONI, 1980, p. 67). Esta busca filosófica encerra
e fluido, não a linguagem uma forte convicção na possibilidade de uma comunicação perfeita entre o
concisa e vigorosa do orador”
(CÍCERO, 1988, p. 355). homem e Deus e de uma recuperação do vínculo entre palavra e coisa, que
E, por fim: “Ser ignorante será a proposta central dos seus Dialoghi della retorica. A leitura do “livro
do que ocorreu antes de seu da alma”, sob o signo do furor, único meio de guiar a disposição intelectiva
nascimento é o mesmo que
conservar-se sempre como uma
do homem ao conhecimento da verdade, possibilita entender o modo como
criança. Pois qual é o valor da a história humana (“minore”) insere-se numa dimensão cósmica (“Historia
vida humana, a menos que del maggior mondo”). Isto Patrizi faz através do relato de um mito: o “das
ela seja entrelaçada na vida
corrupções do mundo e de seus renascimentos” (p. 15r).
de nossos ancestrais por meio
dos registros da História? Narrado a um tio de Patrizi por um velho eremita egípcio, o
Além disso, a menção da mito representa o Egito como “templo de todo o mundo e imagem do
Antigüidade e a citação de céu, (...) [que guarda] memória de duas corrupções universais e de dois
exemplos dão ao discurso
autoridade e credibilidade, universais renascimentos de toda a máquina mundana”. Tais corrupções
além de proporcionar o maior são causadas por acidentes naturais (pestes, dilúvios, incêndios,
prazer à audiência” (ibid., etc.), assim como por deliberação humana, como as guerras que, por
p. 395). Quanto ao tratado
de Luciano sobre a escrita da
sua vez, são “movidas pelos céus por meio dos astros e dos influxos
História, são principalmente das estrelas” (p. 15v). De fato, haveria no universo dois movimentos
colocadas em evidência as opostos, de ascensão e de declínio, em eterna repetição, para tudo o que
idéias expostas na segunda
nele existe. Assim, para os homens, também existiriam dois grandes
parte, que dizem respeito às
qualidades do historiador e momentos que se sucedem eternamente: um em que Deus governa o
às especificidades do relato mundo, trazendo “renovação da vida e da imortalidade” (p. 17r); e um
histórico, como dicção e momento posterior, em que este vínculo se desfaz, Deus se distancia
estilo, brevidade, disposição
das palavras, introdução de e, por um desordenamento dos astros, tais catástrofes se sucedem,
discursos, etc. Patrizi refutará a inaugurando uma era dominada pela corrupção e pelo medo. Portanto,
ambos por considerar limitadas estas revoluções, embora sejam universais, não “corrompem por inteiro
as suas noções: a de Cícero, por
estabelecer uma antiguidade
todas as linhagens dos homens, (...) [porque] é necessário que estáveis
e incorruptos restem, de todas as espécies, apenas aqueles indivíduos
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A ARS HISTORICA EM DEBATE NOS DIALOGHI DELLA HISTORIA DE FRANCESCO PATRIZI
que bastem para conservar o mundo corporal, conforme o seu exemplo” para o fato a ser relatado,
descuidando de acontecimentos
(p. 16r). Os poucos sobreviventes, coagidos a buscar refúgio nas florestas
contemporâneos ou de um
e montes, lentamente vão se unindo em pequenos grupos. O abrigo passado recente; e a do
encontrado no interior da pequena comunidade causa uma sensação de “burlesco” Luciano, por não
conforto que, a todo o custo, buscam manter e até mesmo aumentar. definir o que seja a História,
discorrendo apenas sobre
Daí começam a surgir todos os elementos constitutivos de uma civilização, como escrevê-la, o que pode
como as técnicas, a arte, a religião e as formas de convívio social, ser aplicado a qualquer tipo de
que se prolongarão por um tempo, até que, novamente corrompidos os escrito.
costumes, “do tudo no nada se desfaçam”16.
14
No Tomo I das obras
O Egito manteve-se incólume ao fim das duas últimas
completas de Speroni,
revoluções, porque “no incêndio somos defendidos pelo Nilo; e dilúvios, encontra-se um fragmento
não chovendo nunca aqui, não temos” (p. 16v). A memória de tais muito interessante, de um
“corrupções” foi inscrita num dos lados de uma coluna sagrada, que Dialogo della istoria, com
outros interlocutores. Consta
trazia, noutro lado, marcas, ainda mais antigas, das inundações do Nilo. de apenas cinco páginas,
Estas marcas serviam para a previsão de anos de fartura ou privação, mas cremos que ali estejam
conforme “o aumento das águas” (p. 14v). elencados os principais pontos
Com claras referências herméticas, Patrizi conclui que “a História do diálogo maior.
começou a ser escrita no Egito, não das ações dos homens, mas das cheias 15
Em outra passagem, o
e das inundações do Nilo (...) [como] memória dos efeitos daquela água” filósofo sintetiza esta idéia:
(p. 14v). Portanto, a primeira História que foi escrita versava sobre coisas “Mas se a memória pode
futuras, o que leva o filósofo a incluir a profecia no campo da História, constituir-se (...) – sem que
haja narração por palavras –,
alargando-o ao extremo, assim como havia feito com seu objeto, como somente com as imagens dos
vimos anteriormente. E o diálogo se conclui com a definição de que “a fatos, ou com outros signos
História é memória das coisas humanas” (p. 18v). materiais, ou com diversas
A visão cíclica decorrente do mito, embora permeada de formas de coisas, no modo que
ela foi, talvez, no princípio
elementos platônicos – podemos, de fato, dizer, fundada nos pressupostos escrita, não nos importa
do neoplatonismo –, permite uma aproximação do pensamento de que ela seja antes [feita] de
Maquiavel. Vasoli (1989, p. 229), em seu estudo sobre os escritos palavras do que por qualquer
outra forma de manifestação,
militares de Patrizi, o denomina “Il platonico machiavellico”, mas
contanto que seja memória”
não seria descabido estendermos a mesma designação ao autor dos (p. 14v).
Dialoghi. A partir do quarto diálogo, pari passo ao desdobramento de
uma argumentação de forte filiação platônica, caminha uma concepção 16
PATRIZI (1560, p. 17r).
desencantada da natureza humana, uma convicção de que os homens Patrizi enfatiza a corrupção
dos costumes como signo de
agem por interesse próprio, açulados pela necessidade ou pelo medo. Mas, um iminente colapso universal,
como em Maquiavel, isso não tolhe a possibilidade de uma intervenção que purgará a humanidade,
positiva do conhecimento histórico como regulador destas disposições, o no sentido de uma renovação.
Neste ponto, há uma
que imediatamente ressalta o caráter público da utilidade da História17.
grande consonância com o
Patrizi o elabora da seguinte forma: pensamento de Maquiavel,
que, nos Discorsi (...), afirma
Todos os desejos dos homens se restringem a três apenas, e não mais, os que “a natureza, assim como
quais são naturais e comuns a todos . Eles são o desejo de ser, de bem ser ocorre com os corpos simples,
e de sempre ser, (...) em que consiste toda a humana felicidade. E se cada ao reunir suficiente matéria
supérflua, muitas vezes se
homem tem estes três desejos no espírito por natureza, é razoável que os
move por si mesma e realiza
tenham todos os homens juntos em suas congregações e comunidades, uma purgação, que é a saúde
que são as famílias e as cidades. Donde, uma e outra devem ter por meta daquele corpo; o mesmo ocorre
e por fim a felicidade e este estar bem perpetuamente, o que deve ser nesse corpo misto da raça
o principal cuidado daqueles que estão no governo de uma e de outra humana, que (...) quando a
astúcia e a maldade humana
congregação. (...) Os modos de alcançar este fim são dois e não mais: a
chegam até onde podem
formação dos cidadãos e as leis. (p. 23v-24r) (grifos nossos)
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chegar, é necessário que o Portanto, o fim da história é a felicidade humana, que, por sua
mundo se purgue (...) para
vez, só é alcançável dentro de uma “comunidade de homens felizes”
que os homens, passando a ser
poucos e tendo sido derrotados, (p. 24r), pois somente “onde todos os cidadãos são felizes, cada um é
vivam mais comodamente também feliz” (p. 51v). Para atingir este fim, três modos são possíveis:
e se tornem melhores” “as contemplações universais”, incumbência do filósofo; “a cognição
(grifos nossos). Conforme
PLASTINA (1992, p. 40),
dos casos particulares”, ocupação do historiador; ou, “uma e outra
outro ponto a ser salientado, juntamente” (p. 24r).
é que, assim como Maquiavel, Tendo feito todo este percurso, Patrizi finalmente cumpre seu
Patrizi aponta para uma propósito de unir conhecimento histórico e filosófico, em contraste com
autonomia das conquistas
humanas: os homens “não a noção de uma pertença da História às arti del discorso, tributária do
adquirem as técnicas como um famoso postulado aristotélico de que a Poesia está contida no âmbito da
dom divino, mas as conquistam Filosofia, enquanto a História, tratando do particular, filia-se à Retórica
açulados pela necessidade.”
(ARISTÓTELES, 1993, p. 53-4). De fato, como observa LEINKAUF
17
MAQUIAVEL (1979,
(2003, p. 230-1), para Patrizi, “a história deve ser, ao lado da filosofia como
p. 31): “(...) não se pode ciência das causas e das razões, a ciência dos efeitos ou realidades que têm
esquecer que uma excelente seu fundamento em causas”. É neste sentido mais amplo que devemos
disciplina é a conseqüência interpretar a “cognição dos casos particulares”. Não mais a ação em si, mas
de leis apropriadas”; e
“é necessário que quem o que importa são as causas que levam a cabo tal ação. Isso o leva a afirmar
estabelece a forma de um que “a ação humana (...) me parece uma figura envolta em mil invólucros,
Estado, e promulga as suas em forma de cebola” (p. 39r), em que os fatos constituem apenas “as
leis, parta do princípio de que
camadas exteriores” (p. 40r). O historiador, como um “mestre anatomista
todos os homens são maus,
estando dispostos a agir com de cebolas”, deve perscrutar suas partes internas, até chegar ao “miolo”.
perversidade sempre que haja Patrizi não se engana em relação à dificuldade, ou, até mesmo,
ocasião” (ibid., p. 29). impossibilidade, deste procedimento, o que o leva a indagar se há uma
verdade histórica. Dois fatores estarão sempre presentes nas reflexões
acerca desta verdade: a intenção (ou uma possível condição) do historiador
em expressá-la e, o que é ainda mais árduo, o acesso completo aos reais
desígnios dos “atores”. Todo o quinto diálogo, Il Contile overo della verita
dell’historia, gira em torno do tema. Nestas páginas, umas das mais
céticas e irônicas da obra, a estrutura dos diálogos aporéticos de Platão é
intensamente retomada, e o método elenquístico possibilita a adoção de
certos pontos de vista que, posteriormente, serão refutados numa constante,
até que o diálogo se encerre com um sentimento de desolação: “Em suma,
a história se tornou Poesia. Ó, foi justamente este o golpe que cortou
completamente toda esperança que me podia restar de ver a História
verdadeira” (p. 30r). Isto porque Luca Contile, o protagonista do diálogo,
a princípio, nega que o historiador diga a verdade, pois, sendo “homem
do vulgo, (...) nos fará história das coisas da rua, e teremos belíssimas
novelas”, e sendo “homem de governo”, se submeterá a duas deusas: “A
adulação (...) e a paúra, uma das quais sempre engrandece com mentiras
as coisas relacionadas a seu príncipe, e a outra cala a verdade” (p. 27v).
Tendo, porém, a intenção de dizer a verdade, será obstado de participar do
conselho dos príncipes, “capitais inimigos da verdade” (p. 28r). Resta, por
fim, somente as “novelas da praça”. Por isto a alusão à poesia.
Não raro, nos diálogos seguintes, em que Patrizi trata do
objeto das histórias “universal”, “menor” e “da vida de outrem”, esta
visão melancólica surge como pano de fundo em algumas reflexões,
fazendo com que alguns estudiosos o acusem de “pirronismo histórico”,
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Bibliografia
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Editora Universidade de Brasília:
1985.
_______. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1993.
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