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Parte científica sem cortes – Sinantrópicos e columbófilos – Paula Scarpin

Além da costumeira apalpada que os columbófilos dão para avaliar a qualidade dos
pombos, há sempre o momento do exame do olho. Muitos se dizem capazes de avaliar
se um pombo é bom ou não a partir do olho, e revistas especializadas costumam trazer
fotos da íris de pombos de leilões. “Tem a teoria do olho, a teoria da asa... todas são
frutos da fantasia de amadores dedicados. Eles olham seus pombos favoritos e tentam
encontrar uma razão para entender por que eles são vencedores”, desmistifica o Ronald
Ranvaud, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.

Físico italiano graduado em Oxford e pós-graduado em Brown, Ranvaud veio parar no


Brasil justamente por causa dos pombos. Disposto a testar uma teoria de que os
pombos-correio se guiavam pelo magnetismo terrestre, o professor escolheu a cidade de
Camocim, no Ceará, como cenário para a sua experiência por causa da proximidade da
linha do equador. Logo na primeira tentativa, os resultados seguiram exatamente como
o esperado. Rigoroso, Ronald repetiu a experiência no ano seguinte. Os resultados não
bateram. Nem no próximo ano. Ele fez, ao todo, dez tentativas, e apenas a primeira
seguiu a teoria. A frustrante conclusão era a de que a teoria não procedia, era necessário
voltar à estaca zero.

A razão pela qual os pombos-correio conseguem encontrar seu pombal de origem apesar
das longas distâncias ainda é um mistério para a ciência. Mas eles não são os únicos.
Há, grosso modo, três tipos básicos de deslocamento animal: o migratório, de aves
como a andorinha, que sempre vão em direção ao verão; o nômade, típico de herbívoros
que permanecem em um lugar enquanto dura a comida; e o do retorno ao lar, que é o
caso do pombo, mas também o de tartarugas marinhas, por exemplo. Em 1958, Karl
Kenyon e Dale Rice conduziram uma experiência com os albatrozes do Atol de Midway
– cujo nome sugestivo, meio do caminho, se deve à proximidade da linha de mudança
de data, a 180º do meridiano de Greenwich. A experiência consistia em deslocar as
grandes aves que habitavam aquelas ilhas para outros pontos pelo Pacífico, como o
Japão e o Havaí, e registraram o seu retorno de até 4 mil quilômetros de distância.
Agora, em setembro de 2007, três crocodilos australianos que haviam sido transferidos
de praias populares para áreas mais remotas há 400 km dali, voltaram para casa em
menos de três semanas, surpreendendo as autoridades locais.

O que faz do pombo-correio um ícone no estudo do comportamento do retorno ao lar é


toda a seleção artificial pela que ele vem passando desde o princípio da civilização, e,
conseqüência disso, a sua importância histórica. “Levando em conta a qualidade do vôo,
marrecos-correio seriam os substitutos mais próximos. Mas eles são muito maiores,
põem ovos maiores, trariam mais transtornos”, pondera Ranvaud. “Além disso, para que
eles alcançassem o mesmo desempenho e velocidade, seriam necessários muitos anos de
seleção e treinamento”. No clássico A origem das espécies, o pombo doméstico recebeu
um capítulo de destaque no começo da linha de raciocínio que Charles Darwin
estabeleceu entre o refinamento do pedigree pelos criadores de pombos e a seleção
natural.

As primeiras tentativas de solucionar o misterioso radar dos pombos foram conduzidas


pelo cientista alemão Klaus Schmidt-Koenig nos anos 70. Influenciado pela pesquisa do
colega Gustav Kramer, que havia comprovado a orientação de aves migratórias pela
chamada bússola solar (a utilização do sol como referencial), Schmidt-Koenig resolveu
testar esta habilidade nos pombos. Em sua experiência mais famosa, ele desenvolveu
uma espécie de óculos de lentes embaçadas e fixou nos olhos dos pombos com velcro.
O objetivo era verificar o quanto a visão comprometida atrapalhava a sua orientação. Os
pombos de Klaus tiveram pouca dificuldade na orientação inicial e no caminho, mas
alguns não conseguiram identificar o pombal exatamente ou a entrada da gaiola. Em seu
artigo publicado na época, a conclusão central é a de que a visão não exerce um papel
central na orientação dos pombos. Mas ele levanta ainda a hipótese de a identificação do
sol também ter sido prejudicada pelo embaçamento, o que diminuiria os efeitos da
bússola solar. Logo, outros fatores estariam influenciando.

Hoje, a orientação pela bússola solar é consenso entre os cientistas, assim como também
é consenso o fato de que ela não age sozinha. O ponto de divergência é justamente qual
outro fator complementa a bússola solar ou até prepondera sobre ela. Enquanto
Ranvaud, depois dos testes em Camocim, tornou-se resistente à popular teoria do
magnetismo – “faltam dados nas pesquisas magnéticas, não sei nem como elas
chegaram a ser publicadas” – outros pesquisadores não têm dúvidas da existência de
uma bússola magnética orientando o trajeto, como o casal de pesquisadores alemães
Wolfgang e Roswita Wiltschko. Parceiros de pesquisa desde a universidade, seus
primeiros estudos com magnetismo também partiam das aves migratórias. Foi durante o
pós-doutorado de Wolfgang – quando já eram casados – que eles começaram a
pesquisar o magnetismo em pombos-correio, já na universidade americana de Cornell.

Segundo Ranvaud, suas últimas experiências têm encontrado mais evidências em uma
outra teoria de direcionamento: a do mosaico olfatório. Partindo do pressuposto de que
os pombos têm uma percepção de odores muito mais apurada do que os seres humanos,
os defensores dessa teoria acreditam que ele seria capaz de utilizar as referências de
diferentes cheiros que compõem o ambiente em que ele vive. Ele também seria capaz de
perceber a direção da origem destes cheiros, trazidos pelas correntes de vento, o que faz
com que ele consiga se localizar longe de casa. Por exemplo: o pombo identifica que em
seu pombal chega, do norte, um aroma de eucalipto. Quando solto no norte, ele é capaz
de identificar este aroma em maior intensidade e conclui que seu pombal está para o sul.
Segundo Ranvaud, a poluição não atrapalharia necessariamente a identificação dos
cheiros. Ela poderia, inclusive, funcionar como mais um referencial.

Desta vez é Roswita a cética. “Fizemos uma série de experimentos relacionados ao


olfato no nosso pombal em Frankfurt nos anos 80, mas não obtivemos resultados muito
específicos”, resume. Enquanto a dúvida persiste, outros estudos vêm sendo
conduzidos. Desconfiado de que a solução do enigma possa estar no meio do caminho,
Hugo Hirata, orientando de Ranvaud, tem testado a relação entre estímulos magnéticos
e o olfato. Hugo fez um acordo com o zoológico de São Paulo, que vinha enfrentando
problemas com os pombos que vinham comer a ração dos animais do cativeiro. Eles
fazem a captura e doam para o bem da ciência. Hugo expõe metade das aves a um
campo magnético artificial durante uma hora, e sacrifica-os uma hora depois. Na
seqüência, retira o cérebro dos animais e faz uma série de fatias da região do bulbo
olfatório dos dois grupos, para analisar no microscópio. O objetivo é verificar se existe
um receptor de magnetismo justamente na região do cérebro responsável pela
identificação dos cheiros. Se o campo magnético causa algum efeito no bulbo olfatório,
uma determinada proteína é produzida, e é justamente este resultado que Hugo avalia.
Caso seja provada a relação, é possível que todas as experiências relativas ao olfato que
obtiveram resultado positivo até hoje tenham sido causadas pela sensibilidade
magnética.

Hoje, nenhum dos três cientistas cria mais pombos para competição. Roswita Wiltschko
conta que o casal costumava participar de campeonatos na Alemanha, e inclusive
chegaram a ganhar uma ou outra prova, mas hoje não têm mais tempo para isso.
"Apesar de divertidos, os campeonatos não são um grande desafio para a navegação,
uma vez que todos os treinos e provas são feitos na mesma direção, e os pombos são
soltos sempre em grupo. Isso avalia apenas a resistência, e não a habilidade de
orientação de cada pombo", justifica. Roswita explica que em seus experimentos
científicos, os pombos são soltos sozinhos e treinados para voltar de qualquer direção.
Além disso, desde a época em que competia, costuma treiná-los em dias nublados, para
eles se acostumarem a não depender da bússola solar. "Nós sugerimos este
procedimento aos demais membros do clube e percebemos que isso ajuda a evitar
perdas".

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