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CADERNO DOS

GRUPOS DE
ESTUDOS

SERVIÇO SOCIAL
E
PSICOLOGIA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em caso de reprodução total ou


parcial do conteúdo deste Caderno, a
fonte deverá ser citada.
Os artigos representam o
posicionamento de seus autores, não
o do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo nem o da Escola Judicial
dos Servidores.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Presidente
Desembargador PAULO DIMAS DE BELLIS MASCARETTI

ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES – EJUS


Diretor
Desembargador ANTONIO CARLOS VILLEN

CADERNO DOS GRUPOS DE ESTUDOS


Serviço Social e Psicologia Judiciários

Número 14

SÃO PAULO
2017
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Sumário

POLÍTICA DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E O ADOLESCENTE ACOLHIDO: DESAFIOS DA


ATUAÇÃO PROFISSIONAL ..................................................................................................................... 13
Introdução ........................................................................................................................................ 15
1 - Sobre a história e legislação do acolhimento institucional no Brasil .......................................... 15
2 - Questões contemporâneas em relação ao acolhimento institucional ....................................... 22
3 - O adolescente acolhido: desafios comuns às instituições de acolhimento ................................ 24
4 - Conclusão .................................................................................................................................... 28
Referências ....................................................................................................................................... 30

REFLEXÕES SOBRE A BUSCA ATIVA ................................................................................................. 33


Introdução ........................................................................................................................................ 35
1 - Definição de “busca ativa” .......................................................................................................... 36
2 - Palestrantes convidadas ............................................................................................................. 36
3 - Busca ativa e o Poder Judiciário .................................................................................................. 39
4 - Reflexões ..................................................................................................................................... 43
5 - Conclusão .................................................................................................................................... 47
Referências ....................................................................................................................................... 50

OS DESAFIOS DA COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA: A ESCUTA DE CRIANÇAS E


ADOLESCENTES ..................................................................................................................................... 51
Introdução ........................................................................................................................................ 54
1 - Os desafios da colocação em família substituta ......................................................................... 55
2 - A importância da escuta da criança e do adolescente ............................................................... 59
3 - O serviço de acolhimento institucional de crianças e adolescentes enquanto espaço de real
acolhida ............................................................................................................................................... 65
4 - Considerações finais.................................................................................................................... 68
Referências ....................................................................................................................................... 69

EXPERIÊNCIAS EXITOSAS NO ATENDIMENTO AO ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI NA


EXECUÇÃO DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO ............................................................................................ 71
Introdução ........................................................................................................................................ 73
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1 - A atual conjuntura brasileira e as perspectivas de políticas públicas para a juventude ............ 77


2 - Violência e juventude.................................................................................................................. 81
3 - Reflexões sobre práticas exitosas ............................................................................................... 83
4 - Considerações finais: as possibilidades das ações nas unidades de internação da Fundação Casa
na cidade de São Paulo ......................................................................................................................... 86
Referências ....................................................................................................................................... 89

GUARDA COMPARTILHADA NOS CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS, ENTRE O IDEAL E O POSSÍVEL:


UM CAMINHO EM CONSTRUÇÃO ........................................................................................................ 90
Introdução ........................................................................................................................................ 92
1 - O tempo em que vivemos: declínio do patriarcado e a guarda compartilhada ......................... 94
2 - O sentido do compartilhamento da guarda................................................................................ 97
2.1 - As representações sociais (im)possibilitando o compartilhamento da guarda ....................... 99
2.2 - A guarda compartilhada nos casos litigiosos: argumentações contrárias e favoráveis ....... 102
2.3 - A guarda compartilhada nos casos de denúncias de situações de violência ......................... 108
2.4 - Guarda compartilhada como ferramenta contra a alienação parental ................................. 110
3 - Criminalização das relações familiares: esse é o caminho de pacificação? .............................. 113
4 - Atuação dos setores técnicos ................................................................................................... 116
4.1 - A particularidade de cada caso .............................................................................................. 122
4.1.1 - Caso 01: a rigidez das representações paterna suscitando conflitos ................................. 123
4.1.2 - Caso 02: a doença como justificativa para exclusão do outro ............................................ 124
4.2 - Incentivo aos métodos alternativos de resolução de conflitos: círculos restaurativos,
mediação e oficina de parentalidade .................................................................................................. 126
5 - Considerações finais.................................................................................................................. 130
Referências ..................................................................................................................................... 135

OFENSIVA NEOLIBERAL: IMPACTOS PARA QUEM ATENDE E PARA QUEM É ATENDIDO NO SETOR
TÉCNICO DE SERVIÇO SOCIAL E PSICOLOGIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO ................ 137
Introdução ...................................................................................................................................... 140
1 - “Você olhou bem para ela?”: preconceitos .............................................................................. 142
2 - “Vocês não sabem de nada”: famílias....................................................................................... 146
3 - “É mais fácil gostar dele (...) Ele não dá trabalho”: neoliberalismo.......................................... 154
4 - Considerações finais.................................................................................................................. 161
Referências ..................................................................................................................................... 164
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A ANÁLISE DE CONJUNTURA COMO UM ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTUDO SOCIAL ....... 166


Introdução ...................................................................................................................................... 168
1 - Elementos para a análise de conjuntura................................................................................... 168
2 - Um olhar crítico sobre a realidade............................................................................................ 170
3 -A desproteção social e o discurso da culpabilização ................................................................. 176
4 - Algumas reflexões sobre o desmonte do sistema de garantia de direitos ............................... 181
5 - O estudo social numa perspectiva histórico-crítica .................................................................. 182
6 - Considerações finais.................................................................................................................. 186
Referências ..................................................................................................................................... 189

DISCUSSÃO ACERCA DE PARÂMETROS PARA SE CONSIDERAR UMA FAMÍLIA SUFICIENTEMENTE


BOA PARA CUIDAR DE SUA PROLE ..................................................................................................... 191
Introdução ...................................................................................................................................... 193
1 -A família como questão social no Brasil .................................................................................... 193
2 – Um olhar sobre as famílias brasileiras ..................................................................................... 194
2.1 - Quadro atual das famílias no brasil ....................................................................................... 196
3 – O lugar da família na política social.......................................................................................... 197
4 – Família e constitucionalidade ................................................................................................... 199
5 – Subjetividades produzidas nos processos de “adoção pronta”: a família afetuosa e a mãe
desnaturada ........................................................................................................................................ 204
6 - Família suficientemente boa segundo Winnicott ..................................................................... 206
7 - Conclusão .................................................................................................................................. 209
Referências ..................................................................................................................................... 210

JUSTIÇA RESTAURATIVA: VIVENCIANDO A METODOLOGIA DO PROCESSO CIRCULAR .............. 212


Introdução ...................................................................................................................................... 214
1 - Elementos estruturais e o fluxo do processo circular ............................................................... 216
1.1 - Cerimônia de abertura ........................................................................................................... 219
1.2 - Apresentação / check-in......................................................................................................... 219
1.3 - Construção de valores e diretrizes ......................................................................................... 220
1.4 - Contação de histórias: a importância de contar histórias ..................................................... 222
1.5 - Atividade principal do círculo / perguntas norteadoras ........................................................ 223
1.6 - Check-out e cerimônia de encerramento .............................................................................. 225
2 - Considerações finais.................................................................................................................. 226
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Referências ..................................................................................................................................... 228

PARTICULARIDADES DA REALIDADE SOCIAL DOS SUJEITOS DOS ESTUDOS SOCIAIS: A


DESIGUALDADE DAS RELAÇÕES DE GÊNERO COMO INDICATIVO PARA A FUNDAMENTAÇÃO
TEÓRICA NAS DEMANDAS DA JUSTIÇA DE FAMÍLIA ......................................................................... 229
Introdução ...................................................................................................................................... 232
1- Apresentação e análise dos dados obtidos na pesquisa de laudos/relatórios sociais realizada
pelo grupo em 2017 ............................................................................................................................ 235
Gráfico 1 ......................................................................................................................................... 237
Gráfico 2 ......................................................................................................................................... 238
2.1 - Breves apontamentos sobre a demanda de interdição e curatela ........................................ 238
2.2 - Particularidades das crianças e adolescentes sujeitos do estudo social dos processos
relacionados a guarda: no melhor interesse da primeira infância ..................................................... 240
Gráfico 3 ......................................................................................................................................... 244
2.3 - A centralidade da mulher nos cuidados das crianças e adolescentes ................................... 246
2.4 - Dados socioeconômicos dos pais e mães requerentes/requerido(a)s a guarda do(a)s filho(a)s
.................................................................................................................................................. 250
3 – Conclusão ................................................................................................................................. 253
Referências ..................................................................................................................................... 253

ASPECTOS DA EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA E SEUS REFLEXOS NOS CONFLITOS FAMILIARES


JUDICIALIZADOS ................................................................................................................................. 258
Introdução ...................................................................................................................................... 260
1 - Breve percurso histórico sobre a infância e as famílias ............................................................ 261
1.1 - Mas e a realidade brasileira? Como a família evoluiu? ......................................................... 262
2 - Os avós, os pais e suas crianças ................................................................................................ 264
2.1 - Mas por que alguns avós se conceituam mais “competentes” que seus filhos? .................. 265
2.2 - Mas e quem são as crianças de hoje que avós e pais precisam lidar, seja através do litígio ou
não? ............................................................................................................................................. 267
2.3 - Se estes adultos não estão conseguindo ser suficientemente protetivos, qual o papel do
Estado com estas famílias? ................................................................................................................. 268
3 - A prática profissional: observações e recomendações ............................................................. 268
4 - Conclusão .................................................................................................................................. 272
Referências ..................................................................................................................................... 274
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VIOLÊNCIA DE GÊNERO ................................................................................................................. 275


Introdução ....................................................................................................................... 277
1 - Violência e violência de gênero ................................................................................................ 279
2 - Conjuntura atual e as relações de gênero ................................................................................ 284
3 - Diversidade sexual e a expansão da proteção de gênero prevista na legislação ..................... 288
4 - Apontamentos psicanalíticos em casos de violência ................................................................ 291
5 - Conclusão .................................................................................................................................. 299
Referências ..................................................................................................................................... 301

ESTUDO SOCIAL E AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA NO JUDICIÁRIO NO ÂMBITO DA CURATELA ....... 304


Introdução ...................................................................................................................................... 306
1 - Normatizações das questões relativas à curatela/interdição ................................................... 306
1.1 – Evolução histórica do conceito de curatela/interdição ........................................................ 306
2 - Definições de curatela e tutela / interdição ............................................................................. 310
3 - A avaliação psicológica na atuação nos processos de curatela ................................................ 311
4 - Estudo social nos processos de interdição................................................................................ 313
5 - Conclusão .................................................................................................................................. 316
Referências ..................................................................................................................................... 318

ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE ADOLESCENTES: MEDIDAS DE PROTEÇÃO OU PUNIÇÃO? . 320


Introdução ...................................................................................................................................... 323
1 - Capítulo I – Adolescência e fatores de risco para o acolhimento institucional ........................ 325
2 - Capítulo II - Vínculos afetivos e o acolhimento institucional de crianças e adolescentes ........ 329
3 - Capítulo III - Estudo de caso ...................................................................................................... 334
Caso 1 ............................................................................................................................................. 334
Caso 2 ............................................................................................................................................. 336
Caso 3 ............................................................................................................................................. 338
Caso 4 ............................................................................................................................................. 340
Caso 5 ............................................................................................................................................. 341
Caso 6 ............................................................................................................................................. 343
Caso 7 ............................................................................................................................................. 348
3.1 - Considerações sobre os estudos de caso ............................................................................... 349
4 - Conclusão .................................................................................................................................. 351
Referências ..................................................................................................................................... 353
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O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL, OS REFLEXOS NA JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS E A


INTERFACE COM A ATUAÇÃO DOS SETORES INTERPROFISSIONAIS ................................................. 354
Introdução ...................................................................................................................................... 357
1 - O Estatuto do Idoso................................................................................................................... 358
2 - Negligência e violência contra o idoso...................................................................................... 360
3 - Política de proteção social ao idoso .......................................................................................... 362
4 - Demandas do setor técnico que envolvem o idoso .................................................................. 365
4.1 - Idosos como eequerentes de guarda de crianças e adolescentes......................................... 365
4.2 - Interdição, curatela e decisão apoiada .................................................................................. 368
5 - Conclusão .................................................................................................................................. 373
Referências ..................................................................................................................................... 375

COMPETÊNCIAS E CAPACIDADES PARENTAIS: UM OLHAR SOB EXEMPLOS VIVENCIADOS NO


COTIDIANO DO SETOR INTERPROFISSIONAL DO JUDICIÁRIO ........................................................... 378
Introdução ...................................................................................................................................... 380
1 - Um olhar para as situações moldadas no cotidiano ................................................................. 382
2 - Considerações finais.................................................................................................................. 389
Referências ..................................................................................................................................... 390

REFLEXÕES SOBRE O DIVÓRCIO DESTRUTIVO E SUAS IMPLICAÇÕES NA PRÁTICA PROFISSIONAL


DE ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO . 391
Introdução ...................................................................................................................................... 393
1 - Considerações sobre o referencial teórico ............................................................................... 395
2 - Considerações sobre o método e metodologias ...................................................................... 398
3 - Considerações sobre os conjuntos de resultados ..................................................................... 400
4 - Considerações finais.................................................................................................................. 403
Referências ..................................................................................................................................... 405

FAMÍLIAS: SIGNIFICÂNCIAS, CONFIGURAÇÕES E FUNÇÕES ......................................................... 406


Introdução ...................................................................................................................................... 408
1 - Família: conceito e linhas históricas sobre sua dinâmica e funções ......................................... 409
2 - Família: transformações econômicas e sociais ......................................................................... 414
3 - A evolução do aparato jurídico e institucional: família e legislação no Brasil .......................... 415
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4 - Marcos regulatórios da Política de Assistência Social .............................................................. 418


5 - Família e proteção: realidade socioterritorial e articulação com as redes de serviços ............ 420
6 - Considerações finais.................................................................................................................. 423
Referências ..................................................................................................................................... 424

JUSTIÇA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE: PREVENÇÃO, REDE SOCIAL E PAPEL DO JUDICIÁRIO COMO


FOMENTADOR DA REDE ..................................................................................................................... 428
Introdução ...................................................................................................................................... 430
1 - Conceituando risco e vulnerabilidade social............................................................................. 431
2 - Sistema de garantia de direitos ................................................................................................ 433
3.1 - Varas Especializadas e a Doutrina de Proteção Integral ........................................................ 435
3.2 - Conceito de território na Política de Assistência Social ......................................................... 436
4 - Conclusão .................................................................................................................................. 437
Referências ..................................................................................................................................... 438

A DISPUTA NAS VARAS DE FAMÍLIA: AS DIFICULDADES DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR E OS


PROCEDIMENTOS TÉCNICOS NA CONDUÇÃO DO ESTUDO PSICOSSOCIAL ...................................... 439
Introdução ...................................................................................................................................... 441
1 - O cenário do divórcio: a ventilação dos afetos ......................................................................... 442
2 - A desconstrução técnica de motivos frequentemente utilizados no pleito de impedimento de
convivência familiar ............................................................................................................................ 445
3 - Estratégias para garantia de convivência familiar .................................................................... 450
Referências ..................................................................................................................................... 454

A CONSTRUÇÃO DAS PRÁTICAS DO ASSISTENTE SOCIAL E DO PSICÓLOGO NO JUDICIÁRIO:


DESAFIOS E PERSPECTIVAS ................................................................................................................. 455
Introdução ...................................................................................................................................... 457
1 - Histórico da inserção do assistente social e do psicólogo no Tribunal de Justiça de São Paulo ....
............................................................................................................................................. 458
2.1- A natureza do trabalho do assistente social e psicólogo no setor técnico do Tribunal de Justiça
do estado de São Paulo ....................................................................................................................... 463
3 - O grupo e sua importância para a construção da subjetividade e autonomia do indivíduo ..........
............................................................................................................................................. 465
4 - Conclusão .................................................................................................................................. 470
Referências ..................................................................................................................................... 472
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O PERCURSO DA CONCRETIZAÇÃO DA ADOÇÃO: DA HABILITAÇÃO DOS PRETENDENTES À


CONSTRUÇÃO DOS LAÇOS DE FILIAÇÃO ADOTIVA ............................................................................ 474
Introdução ...................................................................................................................................... 476
1 - Habilitação................................................................................................................................. 478
1.1 - Avaliação .............................................................................................................................. 478
1.1.1 - Avaliação social .................................................................................................................. 478
1.1.2 - Avaliação psicológica .......................................................................................................... 481
2 - Preparação ................................................................................................................................ 484
2.1 - Em relação aos pretendentes ................................................................................................ 484
2.2 - Em relação aos adotandos ..................................................................................................... 488
3 - Aproximação ............................................................................................................................. 490
4 - Estágio de convivência .............................................................................................................. 495
5 - Considerações finais.................................................................................................................. 502
Referências ..................................................................................................................................... 505

A ÉTICA PROFISSIONAL NA RELAÇÃO ENTRE PERITO E ASSISTENTE TÉCNICO ............................ 508


Introdução ...................................................................................................................................... 510
1 - Relação perito/assistente técnico a partir do cpc: os embates éticos e as normativas das
profissões ............................................................................................................................................ 511
2 - As varas de Famílias e Sucessões como palco de litígios e o fenômeno da alienação parental 517
3 - Litígios nas varas de Família: a importância dos saberes profissionais à serviço da garantia de
direitos de crianças e adolescentes .................................................................................................... 522
4 - Saberes interdisciplinares: com a palavra o Direito.................................................................. 524
4.1 - Exercício dos direitos civis e legitimação do Poder Judiciário na ordem democrática
capitalista ............................................................................................................................................ 525
4.2 - Analogia entre garantia do exercício dos direitos civis no Poder Judiciário e do controle social
das políticas sociais ............................................................................................................................. 529
4.3 - Especificidade da perícia judicial envolvendo assistentes sociais e psicólogos..................... 530
5 - Considerações finais.................................................................................................................. 534
Referências ..................................................................................................................................... 537
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FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE: PRINCIPAIS CONCEITOS, PROBLEMÁTICAS E PERSPECTIVAS


.................................................................................................................................................. 540
Introdução ...................................................................................................................................... 543
1 - Conjugalidade, parentalidade e coparentalidade ..................................................................... 543
2 - Parentalidade nas varas de família ........................................................................................... 547
3 - Multiparentalidade e paternidade socioafetiva ....................................................................... 549
4 - Famílias negligentes e parentalidade ....................................................................................... 555
5 - Parentalidade na adoção .......................................................................................................... 559
6 - Homoparentalidade e adoção .................................................................................................. 561
7 - Considerações finais.................................................................................................................. 563
Referências ..................................................................................................................................... 565

DO DEPOIMENTO SEM DANO À LEI DA ESCUTA/DEPOIMENTO ESPECIAL (LEI Nº 13.431/2017):


IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA PROFISSIONAL DE PSICÓLOGOS E ASSISTENTES SOCIAIS
JUDICIÁRIOS ........................................................................................................................................ 569
Introdução ...................................................................................................................................... 571
1 - Breve histórico do depoimento sem dano/depoimento especial ............................................ 572
2 - Lutas das categorias .................................................................................................................. 575
2. 1 - Conselho Federal de Psicologia ............................................................................................. 575
2.2 - Conselho Federal de Serviço Social........................................................................................ 577
2.3 - Associação dos assistentes sociais e psicólogos do tj/sp (aasptj-sp) ..................................... 579
3 - A prática do depoimento especial e sua implantação no brasil ............................................... 581
4 - Considerações finais.................................................................................................................. 587
Referências ..................................................................................................................................... 592
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POLÍTICA DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E O


ADOLESCENTE ACOLHIDO:
DESAFIOS DA ATUAÇÃO PROFISSIONAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E FAMILIAR”

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2017

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COORDENAÇÃO

Haroldo Tuyoshi Sato – Psicólogo Judiciário – Comarca de Sorocaba


Alba dos Prazeres de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de Várzea
Paulista

AUTORES

Andrea dos Anjos Pereira da Silva Amantéa – Assistente Social Judiciário –


Comarca de Caçapava
Elen Tavares de Sá – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí
Jackeline Ferreira dos Santos – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Pindamonhangaba
Marina Tomé Teixeira – Assistente Social Judiciária – Comarca de Mairiporã
Milena da Silva Mano – Psicóloga Judiciário – Vara Especial da Infância e Juventude
Paula Antonia Pansa Brumatti – Assistente Social Judiciário – Foro Regional VII
Itaquera
Selma Terezinha Monteiro da Silva – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância
e Juventude Central
Sueli de Andrade Camara – Assistente Social Judiciário – Comarca de Carapicuíba
Valquíria Gomes de Moraes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tremembé

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INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos sobre Acolhimento Institucional optou, neste ano,


pela discussão de dois temas específicos, o primeiro relacionado à
história/legislação sobre o acolhimento institucional no Brasil e o segundo,
relacionado ao adolescente em acolhimento institucional, devido à importância
destes dois temas para a prática profissional. Neste sentido, a sistemática adotada
pelo Grupo de Estudos foi a de escolher textos que norteassem a discussão destes
temas. Nesta linha, optamos por fazer uma síntese das contribuições dos textos e
das discussões do grupo.

1 - SOBRE A HISTÓRIA E LEGISLAÇÃO DO ACOLHIMENTO


INSTITUCIONAL NO BRASIL

Para a reflexão sobre este tema, os seguintes textos foram lidos e


debatidos: “A roda dos expostos e a criança abandonada na história do Brasil”
(MACHADO, 2009), “O Código Mello Mattos e seus reflexos na legislação posterior”
(AZEVEDO, s. d.), “Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) ”,
“Orientações Técnicas sobre Serviços de Acolhimento” (BRASIL, 2009) “Fios da
Vida: crianças abrigadas hoje adultas diante de seus prontuários”
(SCHRITZMEYER, 2015).
O tema História do Acolhimento Institucional no Brasil fez com que
estudássemos texto de Machado (2009) que trata do acolhimento de crianças no
Brasil Colônia, realizado através de duas principais maneiras, a da recepção das
crianças pela roda dos expostos ou através do pagamento, por parte das Câmaras
Municipais de amas de leite encarregadas de criar as crianças.
A primeira forma de acolher as crianças abandonadas, a roda dos
expostos, foi um mecanismo criado na Europa Medieval, para evitar o abandono de
crianças em situações que oferecessem perigo a estas. A roda dos expostos foi
criada, durante a Idade Média, em instituições religiosas de caridade, dado que era
hábito dos pais entregarem as crianças nas rodas dos conventos e monastérios,
com o objetivo delas terem boa educação.
15
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É interessante notar a incidência, ainda na contemporaneidade, do fato dos


conventos e monastérios serem instituições totais, como apontou Goffman (1989), e de
o fato de que boa parte das instituições de acolhimento de crianças e adolescentes no
Brasil, ainda hoje, serem constituídas por instituições religiosas, preservando, também
o viés caritativo destes serviços.
O texto de Machado aponta que as grandes cidades brasileiras, como
Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, receberam as rodas de expostos. A autora
ressalta o fato de que, em comunidades menores, o abandono de crianças era em
número inferior, possivelmente por um sentimento comunitário maior nestas cidades.
Em essas localidades, geralmente, as Câmaras Municipais custeavam amas de leite
para o cuidado dos infantes. Um dos profissionais do grupo, que trabalhou com uma
população advinda da zona rural do Nordeste, constatou que em comunidades rurais
são muito fortes os laços de solidariedade, fazendo com que o instituto da adoção
ou da guarda informal seja muito frequente e considerado natural.
Nas grandes cidades, depois que as crianças atingiam certa idade,
mesmo as que tinham sido expostas, estas eram encaminhadas às amas de leite.
Outra opção, segundo Machado (2009), era que as crianças fossem encaminhadas
como aprendizes a instituições que, muitas vezes, eram criadas para sua
profissionalização. O cotidiano nestas instituições, porém, era árduo, fazendo com
que muitas crianças, principalmente os meninos, falecessem pela crueza dos
trabalhos e falta de cuidados básicos, inclusive o alimentar.
Cabe ressaltar que, naqueles tempos, culpabilizava-se as mães pelo
abandono das crianças, movimento que encontramos, inclusive, na atualidade.
Como exemplo, podemos apontar situações ainda presentes no cotidiano
profissional do Judiciário paulista em que podem ser observadas ações de
destituição do poder familiar, em algumas comarcas, onde apenas a mãe é colocada
como requerida, esquecendo-se de incluir o pai no polo passivo.
Verificamos, através das leituras dos textos, que apesar das rodas de
expostos terem existido no Brasil, até a década de 1950, sendo nosso país o último
do mundo a aboli-las, esta forma de acolhimento institucional foi sendo
gradualmente substituída por outras, como orfanatos mantidos por instituições de
caridade/filantrópicas ou por órgãos oficiais (AZEVEDO, s. d.). Este autor ressalta
que esta transição tem como marco a criação da Casa Maternal Mello Mattos, no

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ano de 1924, pelo primeiro Juiz de Menores brasileiro, José Cândido de


Albuquerque Mello Mattos, com capacidade para 200 crianças e adolescentes, em
situação que se considerava como “abandono físico ou moral”, no qual o Estado
Brasileiro começa a ter uma atuação mais determinada em relação à questão da
infância e adolescência abandonada.
Por outro lado, O Código Mello Mattos acompanhou uma tendência
mundial, surgida nos EUA e na Europa, nos fins do Século XIX, com o nascimento
do direito dos menores. Até esta época, no Ocidente, as crianças e adolescentes
eram considerados como propriedade dos pais, chefe incontestável da família,
tendência esta advinda da tradição milenar dos povos indo-europeus, portanto,
totalmente sujeitos ao seu poder, como coloca a historiadora francesa Elizabeth
Badinter (1985, p. 28-29) em seu clássico livro “Um amor conquistado: o mito do
amor materno”:

Por mais longe que remontemos na história da família ocidental,


deparamos com o poder paterno que acompanha sempre a
autoridade marital.
A acreditar nos historiadores e nos juristas, essa dupla autoridade
teria sua origem remota na índia. Nos textos sagrados dos Vedas,
Árias, Bramanas e Sutras, a família é considerada como um grupo
religioso do qual o pai é o chefe. Como tal, ele tem funções
essencialmente judiciárias: encarregado de velar pela boa conduta
dos membros do grupo familiar (mulheres e crianças), é o único
responsável pelas ações destes frente à sociedade global. Seu
poderio exprime-se portanto, em primeiro lugar, por um direito
absoluto de julgar e punir.
Os poderes do chefe de família, magistrado doméstico,
reapresentam-se quase inalterados em toda a Antiguidade, embora
atenuados na sociedade grega e acentuados entre os romanos.
Cidadã de Atenas ou de Roma, a mulher tinha durante toda a sua
vida, uma condição jurídica de menor, pouco diferente da condição
de seus filhos.

Verificamos que, em Roma, as 12 tábuas, precursoras do direito romano,


concediam ao pai, chefe absoluto da família o direito de decidir pela vida ou morte
do filho, inclusive podendo matá-lo, caso assim sentisse necessário, conforme
coloca Madeira (2007, p. 135):

Quanto ao célebre ius vitae aec necis (IV.2), admitia-se que o


paterfamilias tivesse a oportunidade de matar seus filii se
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considerasse oportuno. É bem verdade que tal poder foi, na prática,


limitado pelo sentimento religioso e pela consciência social.
A lei romana coloca, então, o poder quase absoluto do pai, único
representante do pátrio poder, patria potestas, que tem o direito sobre a vida e
morte, ius vitae aec necis, de seus filhos, filii. Apesar, de que com o advento do
Cristianismo e sua mensagem de amor, os atos de violência contra os filhos, que já
vinham ser moderados pela lei romana, passassem a ser mais condenados
socialmente, como coloca Badinter (1985, p. 30).

Nessa alta Idade Média, o poder paterno atenuou-se


progressivamente, com maior ou menor rapidez, segundo
consideremos o Norte (direito consuetudinário) ou o Sul da França
(direito romano). E se, no século XIII, no Sul da França, o pai ainda
pode matar o filho sem sofrer consequências sérias, o poder paterno
é no entanto moderado pela mãe e pelas instituições, que se
imiscuem cada vez mais no governo da família.

Badinter (1985) coloca que, mesmo na França da Idade Moderna, o pátrio


poder continuava a ser quase que absoluto, pela razão da autoridade ser o princípio
que fundamentava o Estado e a Sociedade, lembrando que esta foi a época do
absolutismo político. A autora aponta que o tratamento da criança começa a ser
melhorado em algumas esferas da sociedade a partir da publicação do “Emílio”, do
filósofo Jean Jacques Rousseau, obra que contraria o pensamento vigente até
então, dando certo status à criança, como portadora de virtudes.
O descaso e o uso da criança como propriedade, contudo, continuaram a
ser norma em vários grupos sociais, como o conhecido caso da criança nova-
iorquina, Mary Ann, de 9 anos, ocorrido nos fins do século XIX, a qual era
regularmente explorada e espancada pelos pais.
Os exagerados maus tratos que a criança recebeu de seus pais motivou a
Sociedade Protetora dos Animais de Nova Iorque a interferir judicialmente em favor
da menina, alegando que ela deveria ser protegida, a partir das leis de defesa dos
animais, pois se tratava também de um, como coloca Saraiva (apud AZEVEDO, s.d.,
pp. 5-6):

(...) O fato é que chegou-se ao consenso de que se aquela


sociedade podia defender um cavalo, um cachorro, um gato ou uma
vaca, evidentemente poderia defender uma criança. Pois bem. Um
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grupo da sociedade protetora dos animais de Nova York entrou na


Justiça com ação de defesa da criança. A partir daí surgiu uma
entidade até hoje existente chamada Save The Children of World.
Essa ONG criada no final do século XIX teve grande influência no
surgimento do Direito de Menores, no início do século XX, ou seja, o
Direito Tutelar. Os menores, considerados bens de família, passaram
a ser objeto de proteção do Estado. Com isso, surgiram as grandes
legislações para menores. Nos primeiros 20 anos do século XX
apareceram códigos de menores em todo o mundo.

Frente a esta tradição que colocava a criança e o adolescente como uma


propriedade parental, a qual o Estado e a Justiça não poderiam intervir, surgiram as
modernas legislações que romperam com tais costumes. No Brasil, a primeira
legislação específica, que trata do Direito das Crianças, surge em 1927, com o
Código Mello Mattos (SARAIVA, apud AZEVEDO, s. d.).
O Código Mello Mattos surgiu como uma forma do Estado e da Justiça
intervir em relação às crianças e aos adolescentes em situação de exposição,
abandono ou infração, ou seja, em situação irregular perante ao Código. Ele não
previa intervenções em relação a crianças e adolescentes que estivessem em
situação regular junto a seus pais.
Para estas crianças e adolescentes em situação irregular, a lei facultava o
Juiz de Menores que as acolhesse institucionalmente, visando à recolocação em
novas famílias, principalmente das crianças e adolescentes expostos e
abandonados, mas esta política fracassou. Os menores expostos e abandonados
acabaram sendo colocados junto com menores infratores (que na época eram
adolescentes maiores de 14 anos que cometiam crimes e contravenções) e, muitas
vezes, saiam dessas instituições somente ao completarem a maioridade. Esta
situação perdurou no Código de Menores de 1979, com as crianças e adolescentes
acolhidos nas FEBEM’s.
Azevedo (s. d.) aponta que o Código Mello Mattos atribuía amplos
poderes aos Juízes de Menores para internarem crianças e adolescentes em
situação irregular, a partir de suas convicções, sem a devida proteção legal dos
mesmos. Os Juízes de Menores também detinham o poder de, a partir de suas
convicções, designar quaisquer pessoas para serem guardiões das crianças e
adolescentes.

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Azevedo (s. d.) relata que o Código Mello Mattos perdurou por 42 anos,
entre 1927 e 1979, sendo substituído pelo Código de Menores, gestado no período
final da Ditadura Militar. Este Código manteve, em grande parte o poder normativo
do Juiz, além de retirar alguns direitos do adolescente infrator, podendo estender,
automaticamente, a pena por crime cometido na adolescência para a idade adulta.
O acolhimento de menores ficou pautado nos Códigos Mello Mattos e de
Menores na proteção da sociedade do risco dos adolescentes infratores e das
crianças expostas e abandonadas que eram consideradas, potencialmente, futuras
infratoras.
O texto “Fios da Vida” (SCHRITZMEYER, 2015) aponta para esta
realidade, que é muito recente em nossa História, em que, no Regime Militar foram
criadas as FEBEM’s, nas quais as crianças abandonadas conviviam com
adolescentes infratores. A autora descreve sua pesquisa realizada por meio de
acesso a prontuários de pessoas que moraram nas FEBEM´S e buscaram por algum
motivo esses documentos. A antropóloga percebe que os profissionais que atuavam
nos casos costumavam ressaltar as dificuldades das crianças/adolescentes
rotulando-as de forma negativa, consequentemente estigmatizando-as para a vida
social.
Em discussão no Grupo de Estudos, refletimos sobre nossa atuação
profissional e, entendemos que, quando vislumbramos apenas as fragilidades tanto
dos sujeitos como de suas famílias, tendemos a manter a institucionalização como a
única saída para essas crianças e adolescentes.
Em contraponto, em 1990, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente,
pautado na Doutrina de Proteção Integral da Criança e do Adolescente. Pela
primeira vez, a criança passa a não ser simples objeto do direito, mas sim um sujeito
de direitos. Esta legislação, por sua vez, retira o poder normativo dos Juízes das
Varas de Infância e Juventude, obrigando, a seguirem os procedimentos legais tanto
para o acolhimento institucional como para recolocação da criança/adolescente na
família de origem ou em família substituta.
O Estatuto da Criança e do Adolescente também contraria os Códigos
anteriores, apontando o acolhimento, no caso da criança e adolescente a serem
protegidos, como medida emergencial, excepcional e provisória, não devendo durar
mais de dois anos, e realizado em instituições que seguem um ordenamento que

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tenta reproduzir condições mais próximas de uma convivência familiar e comunitária.


No caso do adolescente infrator a medida socioeducativa de internação deve ser a
última a ser aplicada.

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2 - QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS EM RELAÇÃO AO


ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

Mediante a trajetória para alcance dos direitos da criança e do


adolescente, entendemos ser relevante apontar algumas questões contemporâneas
quanto ao acolhimento institucional que adquiriu normativas específicas a partir do
ECA (BRASIL, 1990). Para debate e reflexão do grupo de estudos, sobre este tema
foram lidos os textos “Acolhimento de crianças em situação de abandono, violência e
rupturas”, de Rossetti-Ferreira et al. (2012) e Famílias e medida de proteção abrigo -
realidade social, sentimentos, anseios e perspectivas, de Fávero, Clemente e
Giacomini (2009).
Rossetti-Ferreira et al. (2012) apontam para a tendência de invisibilidade
da questão de dificuldade da aprendizagem escolar de crianças e adolescentes
acolhidos. Evidencia o silenciamento das crianças quanto à impossibilidade de se
manifestarem ou de serem ouvidas no contexto da instituição de acolhimento e na
instituição escolar. Assim, destaca a necessidade de que os profissionais da equipe
do serviço de acolhimento tenham preparo adequado para acolher as necessidades
das crianças.
Outra questão que merece ênfase é a presença de indícios de que a
rotina institucional não privilegia a manutenção ou desenvolvimento de vínculos
afetivos entre os grupos de irmãos, o que indica a necessidade de revisão das
concepções e práticas relacionadas ao acolhimento de grupo de irmãos. Ainda há
cidades do interior do Estado em que o acolhimento ocorre em casas divididas por
sexo (feminino e masculino) desconsiderando o vínculo familiar.
É evidente também que a rede social das crianças e adolescentes é
composta, principalmente, por pessoas do serviço de acolhimento, insinuando que
conseguem estabelecer relações neste contexto: apoio emocional, brincadeira e
proteção, pelas crianças e, cuidados, atividades diárias e educação, pelos adultos.
Para Rossetti-Ferreira et al. (2012) a questão da “invisibilidade” da família
de origem se salienta na medida em que se percebe a ausência de informações
sobre as famílias biológicas, mostrando “a fragilidade da posição desses
protagonistas nos processos, e uma ‘generalização’ dos problemas por elas
apresentados sob categorias nebulosas como ‘negligência’, ‘pobreza, ‘drogadição’,

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‘doença mental’” (p.395). Tal situação remete a necessidade de uma percepção


mais crítica quanto à ausência, insuficiência ou dificuldade de acesso a políticas
públicas de trabalho, moradia, saúde e educação, que alcancem as famílias nos
momentos de dificuldade.
Fávero, Vitalle e Baptista (2008) elucidam que é presente uma
insuficiência de conhecimentos atualizados a respeito dessas famílias. Tal fato tem
provocado um discurso que tende a homogeneizar a realidade, sem considerar as
tensões presentes nos vários planos de suas relações.
No plano do acolhimento institucional, deve-se refletir sobre a
possibilidade de “(re)violação” dos direitos da criança quando acolhidas, pois como
alerta Rossetti-Ferreira et al. (2012), há a tendência de negligenciar a escuta de
crianças e adolescentes acolhidos. Assim, o destino “vai sendo traçado,
frequentemente, sem o seu conhecimento e participação. Desta forma, a criança
desconhece as razões de estar onde está, por quanto tempo permanecerá naquela
situação e o que irá acontecer com ela” (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2012, p.396).
Além disto, as crianças têm seus vínculos afetivos fragilizados de
diferentes formas, como a ausência de ações que estimulem a manutenção e
reconstrução de vínculos afetivos com as famílias, uma vez que em razão do
acolhimento muitas das crianças e adolescentes desvinculam-se de suas famílias de
origem e, em virtude da idade ou longo tempo de acolhimento, as quais, geralmente,
não são inseridos em famílias substitutas. Nesta conjuntura, consequentemente, vão
permanecendo sem referências socioemocionais, imprescindíveis para apoio e
conquista de autonomia.
Outro fator, discutido pelo grupo, que piora este quadro é o reduzido
número de educadores qualificados, a sobrecarga de funções, que acarreta prejuízo
na qualidade da relação entre trabalhadores e crianças. Ressalta-se também, a
dificuldade em incluir as crianças e adolescentes na comunidade, em especial na
escola, em virtude do preconceito e isolamento a que estão sujeitos.

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3 - O ADOLESCENTE ACOLHIDO: DESAFIOS COMUNS ÀS


INSTITUIÇÕES DE ACOLHIMENTO

Após a discussão sobre a história/legislação do Acolhimento Institucional


no país, focamos em questões relativas à aplicação dessa medida de proteção a
adolescentes devido à percepção comum de ser este um assunto desafiador. Como
subsídio para reflexão e discussão do tema pelo Grupo de Estudos, foram lidos os
textos “Adolescência: da cena familiar à cena social’ (ROSA, 2002) e “Os Intratáveis:
o exílio do adolescente do laço social pelas noções de periculosidade e
irrecuperalidade (ROSA e VICENTIM, 2010)
O Estatuto da Criança e do Adolescente prioriza o acolhimento familiar ao
institucional quando se faz necessário o afastamento da família de origem.
Entretanto, constatamos que são raros os municípios que o implantaram.
Registramos que, entre os participantes desse grupo de estudos, houve o
relato de apenas uma Comarca em que o Executivo Municipal implantou programa
de Acolhimento Familiar incluindo adolescentes no mesmo. Isto marcou uma grande
diferenciação deste Programa de Acolhimento Familiar, pois, no pequeno universo
de municípios brasileiros que implantaram este tipo de programa, o acolhimento é
direcionado principalmente para bebês e crianças entre 0 a 3 anos de idade.
Em que pese à importância deste tipo de acolhimento para a primeira
infância, haja vista que, em alguns serviços de acolhimento, os bebês ficam
subestimulados e recebem poucos cuidados, o ECA preconiza o acolhimento
familiar para todas as faixas etárias, como é regra em outros países. Neste sentido,
o programa deste Executivo Municipal, que estimulou o cuidado de famílias
acolhedoras mesmo para o caso de adolescentes, mostra um diferencial que pode
se tornar possível na realidade de outros municípios.
Mesmo diante do subinvestimento financeiro da prefeitura em relação a
estas famílias, bastante inferior ao custo de uma criança ou adolescente em
instituição, a experiência de acolhimento familiar com adolescentes foi exitoso em
muitos sentidos.
Vale esclarecer que no Brasil, as famílias acolhedoras são pessoas
voluntárias (recebem somente uma ajuda de custo), e que, mesmo quando no

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serviço não há um limitador de idade, são as próprias famílias que estabelecem a


faixa etária daquele que aceitam acolher em sua residência. Curiosamente, esses
perfis de idade se assemelham com o preferido de pretendentes a adoção, o que
compreendemos ser em decorrência do senso comum de que a criança “pequena”
(até 06 anos de idade) requer manejo menos complicado.
Ainda com base na experiência dos participantes do grupo, verificamos
que, há alguns anos, os adolescentes acolhidos em instituições eram principalmente
aqueles que foram acolhidos quando crianças e cresceram naquele lugar. Estes,
como quaisquer outros adolescentes, questionam regras e quebram acordos,
contudo, entendemos que, por serem conhecidos e já vinculados à instituição,
conseguem alcançar maior compreensão das equipes e auxílio em suas demandas,
o que eventualmente pode não ocorrer com um adolescente que acabou de chegar
ao serviço.
Podemos dizer que dificilmente acontecia o acolhimento de adolescentes
na faixa etária dos 15 aos 17 anos, salvo quando acompanhado de irmãos menores.
E, mesmo quando em grupo de irmãos, seus hábitos e comportamentos eram
questionados e, havendo relatos de uso de qualquer droga ilícita, sob a alegação de
que um usuário de drogas poderia colocar em risco os demais acolhidos, o acesso à
medida de proteção era frequentemente negado.
Observamos que este quadro vem mudando lentamente em meio de
incertezas e conflitos. Não sabemos ao certo a que se deve tal mudança, mas
pensamos que, talvez, seja reflexo de uma possível assimilação tardia dos preceitos
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de que o adolescente também
necessita de proteção – não apenas a criança – mesmo quando eles estão prestes a
completar a maioridade, trazem à tona o já conhecido abandono que vivem os
adolescentes na periferia. Salientamos aqui que a experiência e estudos revelam
que, quando tratamos de acolhimento institucional, estamos falando principalmente
de adolescentes advindos de famílias pobres, abandonadas pelo Poder Estatal no
suprimento de suas necessidades básicas em suas comunidades.
Outro ponto a se considerar é a fragilização da instituição familiar, que
vem perdendo poder em relação aos seus membros, em especial aos adolescentes,
fazendo com que estes se coloquem em constantes situações de vulnerabilidade e
risco. Tal fragilização não acontece por acaso, mas é oriunda de um perverso

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mecanismo social que impele os pais ou responsáveis a buscarem colocação no


mercado de trabalho e outras estratégias de sobrevivência sem o devido acesso as
políticas públicas de qualidade, como educação em período integral, entre outros
direitos.
Como Rosa (2002, p. 4) afirma

(...) a diferença nas classes sociais significa diferentes direitos


quanto à saúde, educação, direitos, profissão etc (...). Sem suportar
a suspensão de um lugar de gozo viável, o jovem pode colar-se a
identidades imaginárias que podem incluí-lo, buscando um modo de
existência no desejo do Outro para, a partir dela, agir – questão
central da adolescência.”

Tanto na capital, quanto no interior e no litoral ouvimos sobre bairros


inteiros tomados pelo crime organizado que coopta crianças e adolescentes para
serem seus trabalhadores. Acompanhado disso estão: a disseminação do uso de
drogas lícitas e ilícitas, a banalização da violência, a erotização precoce, o
consumismo exacerbado, a descontinuidade nos estudos, entre outros fenômenos,
presentes na sociedade atual, porém fortemente atuantes nesses recantos,
decorrentes da omissão do Estado frente a essas populações.
Há Comarcas vivenciando pedidos de acolhimento institucional por parte
dos próprios adolescentes que, por medo das possíveis consequências do
envolvimento no meio ilícito (cerceamento da liberdade, agressões físicas por parte
de traficantes e policiais, cobrança de dívidas e risco de morte) e também em alguns
casos por estarem em situação de rua, alegam conhecerem seu direito a moradia e
proteção, acessando o Conselho Tutelar.
Todavia, ao serem acolhidos, iniciam-se os conflitos com a instituição que
geralmente englobam a convivência com os outros acolhidos, além do
descumprimento de regras/horários, e, em algumas situações, porte e uso de drogas
dentro e fora da instituição, desrespeito ao corpo e aos pertences dos outros e
reivindicação por mais autonomia.
O trabalho dos técnicos dos Serviços de Acolhimento junto a um
adolescente recém-chegado deve considerar as especificidades do período da
adolescência, porém, não se ater a apenas isso, evitando o risco da generalização.
É importante conhecer sua história de vida e suas aspirações, dando voz a ele e
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ofertando um trabalho individualizado, buscando formar o vínculo de confiança e


respeito com os educadores e técnicos.
Sem dúvidas, este não é um trabalho fácil e exige envolvimento de toda a
rede. Quando falamos de rede, incluímos o Poder Judiciário, Ministério Público,
Defensoria Pública, Sistema de Saúde, Educação, representantes das
Comunidades, entre outros atores.

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4 - CONCLUSÃO

Diante das discussões, notamos os avanços em termos de legislação e


normativas e também quanto às práticas nos serviços de acolhimento, porém, ainda
é possível perceber a incidência de ações desvinculadas da proposta legal, as quais,
por vezes, espelham padrões históricos, como o predomínio massivo do acolhimento
institucional ao invés do acolhimento familiar e a continuidade de práticas
institucionais que levam ao desempoderamento e dependência das crianças e dos
adolescentes às instituições.
Vimos que, passamos do paradigma da autoridade absoluta da família
sobre as crianças/adolescentes para a fragilização desta, prejudicando sua
autonomia e o cumprimento das responsabilidades inerentes ao Poder Familiar.
O posicionamento dos técnicos do judiciário é sempre delicado, já que, é
construído a partir do histórico das demandas sociais e psicológicas que ressaltam a
impotência e a dificuldade do núcleo familiar, porém, este está arraigado na questão
social e, olhando para ele precisamos visualizar não apenas o que está aparente,
mas desvelar as possibilidades de superação, o que só é possível com o trabalho
em rede.
Ainda convivemos com a incompletude dos órgãos, instituições e
serviços, principalmente para atender o público adolescente, seja ele acolhido ou em
conflito com a lei. Observamos poucas alternativas de incentivo e a oferta poucas
vezes considera as aspirações específicas desse adolescente, priorizando práticas
muito mais voltadas ao público infantil ou ao público adulto.
A questão se agrava quando falamos de adolescentes que não tiveram
uma educação efetiva. A desistência escolar é recorrente, o que pode ser resultado
de não satisfação de necessidades essenciais tais como alimentação e vestimenta,
problemas familiares, deficiência intelectual, violências, falta de atrativos no
ambiente escolar entre outros aspectos, prejudicando suas perspectivas futuras.
É preciso que se criem alternativas a educação formal, ampliar espaços
culturais, de esportes, lazer, programas de acesso à cidade, atendimento terapêutico
individual e familiar, dentre outros. Embora, constatamos que a atual conjuntura
social e política do país tem caminhado contrária a esse tipo de oferta. Entendemos,
assim, ser este um momento delicado para nossa atuação, uma vez que a rede está

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cada vez mais enxuta e vemos que o “poder paralelo” vem ganhando mais espaço,
atuando no lugar do Estado.
À guisa de conclusão, notamos que o percurso de estudo sobre a história
dos direitos de crianças e adolescentes e de seu acolhimento familiar ou
institucional, forneceram subsídios para a discussão do atendimento atual em
instituições de acolhimento, além da discussão sobre a temática cada vez mais
urgente do acolhimento de adolescentes. Notamos que esta discussão trouxe novos
fundamentos para a prática dos profissionais que participaram do Grupo de Estudos,
além de que desejamos que esta reflexão possa ser aproveitada por outros técnicos
do Judiciário.

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REFLEXÕES SOBRE A BUSCA ATIVA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOÇÃO I”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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COORDENAÇÃO

Simone Trevisan de Góes – Psicóloga Judiciário – FR. I Santana


Marina Corcovia – Assistente Social Judiciário – Vara Central

AUTORES

Aline Cristina Carta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santa Fé do Sul


Ana Cláudia Sarpi Chiodo – Psicóloga Judiciário – FR. IV Lapa
Ana Paula Duarte Xavier Tutia – Psicóloga Judiciário – Comarca de Santo André
Aparecida Regina Signori Dantas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa
Fé do Sul
Daize Pereira dos Santos Oliveira – Assistente Social Judiciário – Vara Central
Elizangela Sanches Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales
Fabiana Aparecida de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Miracatu
Gessylea Matiole – Assistente Social Judiciário – Comarca de Aparecida
Giovani Diniz Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Gisele Xavier Marques Verniz – Assistente Social Judiciário – Comarca de São
Carlos
Leila Zanella – Assistente Social Judiciário – FR Ipiranga
Márcia Domingues Moraes Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Meire Obata Matsuo – Psicóloga Judiciário – Vara Central
Mônica Aparecida Mota Vale – Assistente Social Judiciário – FD Arujá
Patricia Martin Beraldo – Assistente Social Judiciário – FD de Louveira
Roberta Bechelli Duarte Migliaresi – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itanhaém
Sarita Erika Yamazaki – Psicóloga Judiciário – FR. VI Penha de França
Silvia Vilela da Costa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Fé do Sul
Simone Aparecida dos Santos- Psicóloga Judiciário – Comarca de Caraguatatuba
Vanessa Teixeira de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
dos Campos
Viviane Cristina de Souza Caroli – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba

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INTRODUÇÃO

O GEA I começou o ano com uma inquietação: o uso das redes


sociais/internet nas questões relacionadas à adoção.
Observamos que são cada vez mais frequentes as publicações
referentes ao tema, desde grupos de apoio on line, oferta de crianças/adolescentes,
os próprios adolescentes que procuram uma família. Verificamos muitas ações
positivas, como a divulgação e troca de experiências, contudo, questionamos os
limites para o uso desta ferramenta.
Quando começamos discutir essas questões, abriu-se um leque de
possibilidades de discussão, com uma abrangência enorme do que poderíamos
relacionar entre as redes sociais/internet e a adoção.
Desta forma, a partir das nossas conversas iniciais, buscamos focar em
um tema, extraído desta gama de possibilidades e também bastante polêmico: a
busca ativa. Termo bastante utilizado atualmente para as pesquisas fora do
Cadastro Nacional de adoção, mas que ainda não existe como um dispositivo legal.
Uma vez definido o tema, verificamos a pouca literatura a respeito, tendo
em vista ser algo ainda recente no panorama nacional. Assim, inicialmente
buscamos contatar pessoas que atuam diretamente na área para ampliarmos a
discussão. Participaram como palestrantes em nossos encontros a Dra. Dora
Martins, Juíza de Segundo Grau do Tribunal de Justiça de São Paulo, a Dra. Mônica
Gonzaga Arnoni, Juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo e a Sra. Monica Natale,
presidente do “Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo”. Cada uma com uma visão
sobre o tema como veremos ao longo de nosso trabalho.
Procuramos entender o significado de Busca Ativa e as razões da sua
utilização em detrimento dos cadastros já existentes, estudar os aspectos legais e
apresentar sugestões.

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1 - DEFINIÇÃO DE “BUSCA ATIVA”

Busca Ativa é todo tipo de ação que proporcione à criança e ao


adolescente institucionalizados uma possível família e a posterior concretização da
adoção, para aqueles com características específicas que usualmente gerem maior
dificuldade para encontrar pretendentes no Cadastro Nacional de Adoção, por
exemplo: idade, irmãos, problemas de saúde e deficiências.

A procura incessante por pretendentes faz com que a busca ativa possa
ter várias formas de acontecer, inclusive formas nada convencionais de se encontrar
possíveis adotantes, como por exemplo, a apresentação de crianças e adolescentes
em jogos de futebol. As mais comuns envolvem exposição dos acolhidos nos
diversos tipos de mídia existentes. A exposição da história de vida é justificada com
o argumento de que é necessário proporcionar a visibilidade para essas crianças e
adolescentes.

Em que pese as inúmeras dificuldades enfrentadas no atendimento à


criança e ao adolescente nas instituições de acolhimento, a justificativa para a Busca
Ativa é garantir o direito à convivência familiar.

2 - PALESTRANTES CONVIDADAS

Durante o ano, o Grupo de Estudos - Adoção I contou com a presença de


palestrantes com conhecimento teórico e atuação profissional no tema escolhido,
dentre elas as Juízas de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, Dra. Dora
Martins, Juíza auxiliar em 2º grau e Dra. Mônica Gonzaga Arnoni, Juíza de Direito
secretária da CEJAI.
Seguem abaixo as contribuições que se destacaram.
Os discursos de ambas as palestrantes foram uníssonos em diversos
pontos, como ao afirmarem que a Busca Ativa é uma realidade nova que deve ser
tratada com cautela, a fim de não reforçar seu lado “não técnico”.

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Ainda em conformidade, ponderaram que o surgimento de novos meios


para a busca de pretendentes à adoção pode ser um revelador de que as vias
tradicionais, inclusive a utilização do CNA, não estejam funcionando
apropriadamente, o que ensejaria a necessidade de modernização e revisão de
posturas com olhar técnico e cuidadoso.
Advertiram sobre a dificuldade em se controlar possíveis efeitos de uma
exposição midiática de crianças e adolescentes em situação de acolhimento
institucional, como nas campanhas promovidas por times de futebol nos estádios,
exposição em intervalos comerciais na TV, entre outras. Segundo a fala das
palestrantes, esse tipo de campanha pode trazer uma sensibilização passageira que
escape ao controle do trabalho judiciário.
Ambas mencionaram diversas problemáticas do trabalho judicial na área
da infância e juventude, considerando as diferentes realidades do estado e do país,
discorrendo sobre falta de capacitação, estrutura e outras dificuldades encontradas
pelos trabalhadores da área, o que pode refletir diretamente no trabalho com
adoção.
Dra. Dora, em especial, enfatizou a importância do trabalho em equipe
para que os objetivos sejam alcançados. A referida Juíza falou também sobre a
necessidade dos operadores da justiça da infância e juventude criarem estratégias
de trabalho in loco com os pretendentes cadastrados ao invés de utilizarem recursos
midiáticos abertos.
Dra. Dora concluiu sua fala frisando a importância de se pensar em
estratégias que promovam a busca ativa dentro dos limites legais e do judiciário.
Apresentou como sugestão começar a se pensar na criação de uma rede de
comunicação entre os técnicos a fim de se promover busca ativa dentro dos
parâmetros judiciários.
Dra. Mônica destacou que a realidade das crianças e adolescentes em
condições de serem adotadas não corresponde ao perfil comumente apresentado
pelos pretendentes, assim, a busca ativa representaria uma forma de viabilizar a
possibilidade de adoção para estas crianças e adolescentes. No entanto, em sua
visão, o procedimento só deveria ser utilizado como último recurso, depois de
esgotadas as vias previstas no âmbito legal, como consulta aos Cadastros Nacional
e Estadual e, inclusive, procedimentos para adoção Internacional.

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Nesse sentido, apontou para o fato de ainda não existir regulamentação


que defina os parâmetros e critérios para se colocar em prática a Busca Ativa,
embora existam Estados que já deliberaram a respeito e estão promovendo
encontros. Citou exemplo do Rio de Janeiro, que possui o projeto “De Braços
Abertos”, existente há 10 anos, cujo objetivo é chamar pessoas habilitadas que os
setores técnicos considerem que podem ampliar o perfil, assim promovem reuniões
verificando a possibilidade dessa alteração e depois encontros entre pretendentes e
as crianças e adolescentes. Por fim, falou sobre projetos do próprio TJSP, visando
melhorar as formas de buscas para adoções, o que em tese, tornaria desnecessária
a busca ativa fora dos parâmetros legais, como o desenvolvimento de cadastro
interno. Informou que o projeto foi criado pelo STI e seria testado e implantado até o
mês de outubro de 2017.
O grupo contou também com a participação de Mônica Natale, presidente
do GAASP (Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo), a qual teceu considerações
sobre o funcionamento dos grupos de apoio à adoção, principalmente o que ela
representa.
Informou que o GAASP tem parceria com a Vara Central de São Paulo e
que, atualmente, atende somente os habilitados do Fórum João Mendes. Segundo
ela, o referido grupo só realiza busca ativa quando esta é solicitada por equipe
técnica da Vara ou pela autoridade judiciária, por meio de ofício ou e-mail
institucional. Ressaltou que a busca ativa deve ser necessariamente para crianças e
adolescentes de difícil colocação e que cada grupo de apoio deve indicar somente
membros de seu próprio grupo que já estejam habilitados pela Vara.
Apontou que, durante a indicação, caso identifiquem mais de uma pessoa
ou casal para a criança/adolescente costumam relacionar o perfil destes
pretendentes a fim de que a própria Vara possa avaliar quem é mais indicado para
iniciar a aproximação.
Referiu que a ANGAAD (Associação Nacional dos Grupos de Apoio à
Adoção) já tem proposta de normatização dos grupos de apoio, destacando que
todos os grupos deverão realizar o acompanhamento da pré-adoção e da pós-
adoção, sendo que os que ainda não realizam deverão implementar os
procedimentos. Além disso, todos os grupos de apoio deverão estar inscritos na

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ANGAAD para poderem firmar parceria com as Varas da Infância e Juventude, e,


assim, se responsabilizarem por ações na realização das buscas ativas.
Citou que o GAASP mantém cadastro de pretendentes, facilitando a
localização de casais ou pessoas para o perfil solicitado, pois realizam o
acompanhamento dos frequentadores do grupo, os quais, por vezes, acabam
comentando a intenção de alteração do perfil pretendido.
Segundo afirmou, os grupos formados pela ANGAAD e GAASP em
aplicativos de comunicação, como “Whatsapp”, não possuem entre seus membros
pretendentes à adoção, participando somente assistentes sociais e psicólogos
judiciários, juízes, promotores e presidentes ou coordenadores de grupos de apoio.
Apresentou como preocupação, recente aumento do número de
devoluções de crianças e adolescentes, apontando que tal fato seria de
responsabilidade conjunta: equipe técnica das Varas da Infância e Juventude,
habilitados e grupos de apoio, o que ensejaria revisão de posturas e trabalho dos
diversos segmentos.

3 - BUSCA ATIVA E O PODER JUDICIÁRIO

O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) foi implantado pela Resolução n.º


54, de 29 de abril de 2008, com o objetivo de instrumentalizar as Varas da Infância e
Juventude na condução dos procedimentos de adoção em todo o país. Esse
instrumento amplia as possibilidades de consulta aos pretendentes cadastrados,
facilitando, assim, a adoção de crianças e adolescentes em qualquer Comarca.

O CNA contém informações básicas do perfil das crianças e adolescentes


a serem adotados no sistema e realiza o cruzamento dos dados cadastrados com o
dos pretendentes à adoção que seja compatível com o perfil registrado. No entanto,
as informações no sistema precisam ser alimentadas e atualizadas com frequência
pelas Comarcas e apesar de ser um instrumento muito útil encontramos dificuldades
na atualização desses dados, o que pode estar relacionado à capacitação dos seus
operadores, bem como a ausência de padronização do uso.

No CNA, a premissa é constar somente crianças com processos de


destituição familiar concluída. Algumas vezes, esta ação ocorreria apenas quando
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há pretendentes para tais, ou seja, o ajuizamento da Ação de Destituição do Poder


Familiar ocorre apenas após a consulta quanto à existência de pretendentes.

Diante desse quadro e da desatualização de dados dos habilitados, surge


a atuação dos Grupos de Apoio na busca ativa de habilitados para
crianças/adolescentes mais velhas e grupos de irmãos denominados de “difícil
colocação”. Com isso, os grupos de apoio à adoção justificariam sua atuação como
forma de auxílio ao Judiciário na efetivação da garantia do direito constitucional de
toda criança e adolescente de viver em uma família.

A busca ativa nos processos de adoção parte do pressuposto de que os


pretendentes habilitados no CNA, com o passar do tempo, mudam o perfil da criança
pretendida e em sua maioria esta alteração não é informada nos processos.
Observa-se que as Varas não são informadas do real/atual perfil dos pretendentes e
as atualizações não ocorrem no CNA.

Os grupos de Apoio à Adoção estão cada vez mais atuantes na busca


ativa de pretendentes para criança e adolescente, porém até o momento não existe
regulamentação jurídica dessa prática. Eles defendem que a busca ativa é
necessária, pois os habilitados participam de reuniões e, ao trocarem experiências,
decidem ampliar o perfil inicial. Por outro lado, existem tentativas de aprimorar as
regras relacionadas à adoção. A chamada “Nova Lei da Adoção” (12.010/09)
modificou o Estatuto da Criança e do Adolescente. Este instrumento jurídico trouxe
inovações para o instituto da adoção com o objetivo de garantir o melhor interesse
da criança e do adolescente. Apesar de estabelecer um limite de dois anos,
atualmente os tribunais não dispõem de estatísticas que contabilizem o tempo médio
de permanência nas casas de acolhimento, seja para retorno à família biológica,
seja para inserção em família substituta.

Um dos pontos de destaque é a regulamentação do tempo de


permanência das crianças e adolescentes nas instituições de acolhimento, que não
deve se prolongar por mais de 2 anos, salvo comprovada sua necessidade. A
intenção era evitar que um acolhimento extenso diminuísse as chances de
colocação em famílias substitutas, visto que a grande maioria dos pretendentes
cadastrados buscam “crianças pequenas”.

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Os dados compilados em 2016 indicam que o número de pretendentes


cadastrados é significativamente maior do que o número de crianças e adolescentes
disponíveis para adoção. Se utilizarmos um raciocínio direto, considerando o Estado
de São Paulo, teríamos em média seis (6) pretendentes para cada criança e
adolescente cadastrado. Desta forma, todas as crianças e adolescentes teriam, em
tese, seis chances de encontrar uma família. Porém, nossa realidade envolve um
intrincado conjunto de fatores que contribuem para a longa permanência de crianças
e adolescentes em situação de acolhimento.
Esses dados nos conduzem à conclusão de que as características (idade,
sexo, condições de saúde e familiares, entre outros) de nossas crianças e
adolescentes disponíveis são relativamente distantes das características desejadas
pelos pretendentes.
Os caminhos da adoção em nosso país são marcados por direções quase
opostas: de um lado, o filho idealizado pelos pretendentes; de outro, crianças e
adolescentes reais que se acumulam nas instituições de acolhimento.
A lei 12.010/09 também propõe outras ações com vistas ao incentivo à
adoção, como a preparação psicossocial e jurídica dos indivíduos que pretendem
ingressar com a adoção e a criação dos cadastros nacional e estadual. O artigo
197 do ECA prevê que tal preparação deve promover a “orientação e estímulo à
adoção inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades
específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos”.
Além disso, o ECA, em seus artigos 86 e 87, descreve as políticas de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente; particularmente, o artigo 87
aponta que deverão ser implementados:

VI - políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o


período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo
exercício do direito à convivência familiar de crianças e
adolescentes;
VII - campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de
crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção,
especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes,
com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de
grupos de irmãos.

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Todas estas ações devem estar em consonância com os direitos


previstos. Nesse sentido, o ECA propõe em seu artigo 100: “V - privacidade: a
promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no
respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada”.
A lei é bem clara sobre o direito à convivência familiar e comunitária de
crianças e adolescentes. Porém, apesar de todos esses esforços, como
anteriormente apontado, vivencia-se uma grande discrepância entre o perfil
desejado pelos adotantes e a real disponibilidade de crianças e adolescentes aptos
a serem adotados. Frente a tal contexto, vários tribunais (TJ-RJ, TJ-MG, TJ-PE, TJ-
RS) têm implementado campanhas com a intenção de dar visibilidade a essas
crianças e adolescentes.
O Tribunal de Justiça de São Paulo lançou no dia 12/10/2017 a campanha
“Adote um Boa Noite”, acompanhando um movimento recente de outros tribunais
que visam estimular as adoções tardias. Tais ações utilizam grandes meios de
comunicação a fim de possibilitar visibilidade para crianças e adolescentes de difícil
colocação. Este contexto nos conduz a uma reflexão sobre as ações que a Justiça
tem implementado com vistas a garantir o direito desses indivíduos à convivência
familiar.

Além dessas ações, vale citar o projeto de Lei da Câmara nº 101 – 2017
que foi encaminhado em 01/11/2017 para sanção presidencial. Tal projeto dispõe
sobre adoção alterando a legislação vigente sobre o tema. Dentre as propostas,
pode-se destacar a sugestão de promover a celeridade do procedimento de
destituição do poder familiar, bem como a celeridade processual. Propõe que a
reavaliação psicossocial de crianças e adolescentes acolhidos ocorra
trimestralmente; que a permanência na instituição de acolhimento não ultrapasse 18
meses (exceto nos casos de melhor interesse da criança e adolescente); que sejam
cadastrados para adoção as crianças e recém-nascidos não procurados por suas
famílias no prazo máximo de 30 dias a partir da data do acolhimento.
Este projeto propõe também a regulamentação de ações como
apadrinhamento afetivo e entrega voluntária. Apesar de prever a participação de
grupos de apoio, devidamente formalizados, em cursos preparatórios para adoção, o
projeto de lei não faz referência a possível parceria para o procedimento de busca
ativa e também não faz nenhuma referência a tal ação.
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Vale ressaltar que em 22 de novembro de 2017 houve a sanção


presidencial.

4 - REFLEXÕES

Antes de iniciarmos as explanações referentes às propostas e sugestões


do grupo de trabalho em busca de alternativas para a realização da adoção tardia,
em detrimento à realização desmedida da chamada busca ativa, temos que
considerar que o Poder Público já viabilizou através de normas e dispositivos legais
atividades de estímulo à referida adoção, também conhecida como “adoções
necessárias”.
O curso preparatório à adoção instituído pela Lei 12.010/2009 é uma das
formas de promover a reflexão dos pretendentes quanto ao real perfil das crianças e
adolescentes disponíveis à adoção no Brasil; em comparação com a expectativa dos
mesmos, que geralmente trata-se do interesse por apenas uma criança, em sua
maioria do sexo feminino, de idade até três anos, saudável e de cor branca. O curso
além de abordar aspectos jurídicos, psicológicos e sociais, visa também esclarecer
aos pretendentes sobre a divergência entre os números de habilitados no Cadastro
Nacional de Adoção, e o de crianças/adolescentes que se encontram disponíveis
para serem adotados. A reflexão sobre o porquê de “a conta não fechar” é essencial
para orientá-los quanto à expectativa e a realidade, além de promover o estímulo à
adoção inter-racial, de crianças maiores ou adolescentes, com necessidades
específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos, conforme a lei
acima referida.
A Lei 12.955/2014 é outro dispositivo legal, que trata de parte do número
de crianças/adolescentes considerados de “difícil colocação”, conferindo prioridade
na tramitação dos processos em que o adotando apresentar deficiência ou doença
crônica.
Podemos citar ainda o Provimento CG nº 36/2014, que além de abordar a
prioridade da ação de adoção e de destituição do poder familiar e fazer menção aos
cursos preparatórios à adoção, regulamenta os programas de apadrinhamento

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afetivo como meio de viabilizar a convivência familiar e comunitária às crianças e


adolescentes de difícil colocação em famílias substitutas.
Ainda no sentido de estabelecer ações que contribuam para adoção
tivemos no ano de 2015 campanhas de esclarecimento sobre a entrega voluntária,
que veio acompanhada da cartilha “Política de Atenção à Gestante – apoio
profissional para uma decisão amadurecida sobre permanecer ou não com a
criança”.
O fundamento das instituições de acolhimento é a proteção integral de
crianças/adolescentes em caráter provisório e excepcional. Contudo, parte destes
supera o tempo de permanência exigido por lei, seja pela morosidade em transitar
em julgado os processos de Destituição do Poder familiar ou pelo desencontro do
perfil escolhido pelos pretendentes à adoção. São comumente qualificados como
“inadotáveis”, em razão de estarem na fase da adolescência, ou pertencerem a
grupos de irmãos, ou serem portadores de HIV e/ou apresentarem necessidades
especiais.
Em contrapartida a maioria dos habilitados à adoção está à espera do
filho idealizado, para satisfazer todas as suas necessidades e expectativas,
características que não condizem com o perfil das crianças/adolescentes disponíveis
para adoção.
O projeto de Apadrinhamento afetivo estimulado pelo TJSP aparece como
promotor de resiliência junto aos acolhidos que estavam em situação de risco e
vulnerabilidade social, assim também como viés para uma nova configuração
familiar que representa uma ressignificação dos vínculos afetivos de origem.
Os cadastros de adoção implantados em meados do ano 2000, com a
finalidade de formar um banco de dados com informações tanto das crianças e
adolescentes disponíveis à adoção quanto dos habilitados, possibilitam a busca de
acordo com o perfil desejado, mas não têm se mostrado como ferramenta eficaz.
Faz-se necessário admitir que a falta de atualização do CNA tem tornado as buscas
ineficientes. A proposta, neste sentido, é a de que os profissionais responsáveis pela
alimentação desses possam se comprometer em realizar constantes atualizações,
para que seja uma plataforma que auxilie efetivamente o encontro de família para as
crianças e adolescentes.

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Há informações de reuniões em andamento promovidas pelo CNJ que


implantarão modificações no CNA no que concerne ao software a ser utilizado, ao
mecanismo de busca, a outros conteúdos a serem inseridos como relatórios
técnicos, fotos e desenhos. Pondera-se que seria importante a inclusão de
profissionais dos setores técnicos nessas reuniões bem como que estejam previstas
a capacitação para utilização desse novo programa a fim de se evitar, por exemplo,
múltiplos entendimentos quanto a que tipo de ocorrências devem ser incluídas.
Outra questão apontada é a importância dos habilitados providenciarem
junto as suas Varas a alteração correspondente ao perfil pretendido. Verifica-se que,
com o passar do tempo, a ansiedade da espera e a participação em grupos de apoio
à adoção amadurecem a ideia pela aceitação de um perfil diferenciado daquele que
fora inicialmente apontado ao técnico, contudo, não são orientados a informarem
esta alteração à Vara de referência, contribuindo para a desatualização do CNA,
prejudicando o cruzamento dos dados de possíveis pretendentes às “adoções
necessárias” e formando, aparentemente, um cadastro paralelo restrito aos grupos
de apoio à adoção.
A criação de mecanismos, ferramentas e novas tecnologias é um
expediente utilizado pelos grupos de apoio à adoção através do recurso chamado
“busca ativa” e também por alguns tribunais que se utilizam de vídeos, fotos, e
programas de televisão entre algumas alternativas.
Polêmicas à parte, conclui-se que a utilização de imagem ou foto de
criança ou adolescente em grupo fechado do TJSP servirá para dar visibilidade
àqueles que estão à espera de adoção, especialmente nos casos de adoção tardia
ou até mesmo grupo de irmãos. Já se encontram em andamento experiência de
apresentar as crianças e adolescentes com determinação para colocação em família
substituta aos casais habilitados que são chamados para a reavaliação bienal ou a
pretendentes que tenham perfil aproximado ao das crianças e adolescentes reais.
De forma criteriosa e respeitando o ser em desenvolvimento, essa
disponibilização da imagem de criança/adolescente aos pretendentes à adoção,
deve estar em consonância com a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º,
inciso X, e também com o Estatuto da Criança e Adolescente que protege e
resguarda a honra e imagem da pessoa e igualmente a sua identidade. Destarte, o
acesso à informação através da imagem vem carecer da manifestação dos técnicos

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(assistentes sociais e psicólogos judiciários) e de autorização judicial, além da


permissão dos principais envolvidos (crianças/adolescentes).
Outro recurso a ser utilizado é o “ telegram”, aplicativo que permitirá aos
usuários uma ágil troca de mensagens escritas, voz e imagens. A formação de um
grupo fechado com os técnicos do TJSP pode propiciar uma rede de comunicação a
fim de promover uma busca ativa dentro dos parâmetros judiciários, trazendo a
possibilidade de funcionar como um disparador na localização de pretendentes às
crianças/adolescentes considerados como de “difícil colocação”.
Por fim, considerando-se que as modalidades de efetivação da busca
ativa é tema que tem recebido grande atenção recentemente, constata-se a
ausência de estudos, publicações científicas e dados que permitam aprofundar a
discussão e melhor definir posicionamento à questão.
Assim, além de considerar de fundamental importância a realização de
pesquisas abarcando os vários aspectos relacionados ao tema da Adoção em
especial aqueles que ainda carecem de um olhar mais atento como: o
acompanhamento longitudinal das adoções, as devoluções, as adoções efetivadas
com casais que mudaram o perfil desejado inicial; entende-se ser necessário
incentivar os estudos com as adoções por busca ativa e com as novas intervenções
e modalidades facilitadoras das adoções necessárias.
Tendo conhecimento, por exemplo, que o “Projeto Família – um direito de
toda criança e adolescente” implementado pelo Tribunal de Justiça do Estado de
Pernambuco já conta com 09 anos de existência, pondera-se a necessidade de
transformar resultados dessa prática em dados de pesquisa e produção científica.
Não há publicação de estudos enfocando, por exemplo, a relação das práticas da
busca ativa previstas no projeto com a percepção no aumento de devoluções ou
com os efeitos psíquicos nas crianças/adolescentes que tiveram suas imagens
divulgadas e não foram adotados, dentre outros temas relevantes.
Nessa esteira, acredita-se ser pertinente que haja incentivo institucional
para o estabelecimento de parcerias entre as instituições judiciárias e as
acadêmicas objetivando o estímulo à produção científica neste tema de tão grande
relevância que é a Adoção e subtemas correlatos.

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5 - CONCLUSÃO

Diante da conjuntura exposta ao longo do texto e da complexidade


envolvida na colocação de algumas crianças e adolescentes, tornou-se necessária a
busca de alternativas que impeçam a violação dos direitos dos acolhidos
institucionalmente de viver em família.

Ressaltamos ainda a premissa da proteção integral detalhada no Estatuto


da Criança e do Adolescente, onde está contemplada a importância da família
natural/extensa e modalidades de colocação em família substituta.

Recentes alterações no ECA reforçaram, por meio de implantação e


implementação de políticas públicas, garantir o que preconiza o Plano Nacional de
Convivência Familiar e Comunitária PNCFC). Este traz no seu bojo o
empoderamento da família por meio do fortalecimento da rede de proteção social,
permitindo que ela seja capaz de cumprir seu papel protetivo. Contudo, esta medida
também tem novas regulamentações, garantindo atendimento mais humanizado, por
meio da construção de PIA-Plano Individual de Atendimento e redução nos prazos
processuais da Ação de Destituição do Poder Familiar e para a realização das
audiências concentradas.
Neste sentido, as famílias de origem têm sido chamadas para a
responsabilidade com seus filhos, sendo incluídas em dispositivos oficiais públicos
ou das organizações da sociedade civil, priorizando a manutenção das crianças e
adolescentes em sua família, até que se esgote esta possibilidade.

Do contrário, resta a alternativa de garantir a convivência familiar por meio


da colocação em família substituta, utilizando o cadastro de pretendentes habilitados
para a adoção. Contudo, das crianças e adolescentes disponíveis, resta um passivo
humano de difícil colocação por suas próprias características (crianças e
adolescentes com mais idade, grupo de irmãos, diferentes problemas de saúde e
deficiências, entre outros). Esta população permanece nas instituições de
acolhimento, sem perspectiva da modalidade tradicional de adoção.

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Como alternativa, encontramos diversas frentes de trabalho pautado na


“busca ativa”, que subentende uma atitude proativa prevista no PNCFC com
diferentes formatos, utilizando na maioria das vezes recursos midiático, como a
divulgação em sites de relacionamento virtual ou em jogos de futebol transmitidos
pela televisão por exemplo, para agilizar a comunicação e acelerar o processo de
adoção. Entretanto, paralelo a esta nova forma de trabalho, há dúvidas em relação à
motivação provocada pelo apelo midiático, nem sempre em consonância com a
adequada e sustentável para a adoção.
Percebemos que esta forma de mobilização para incentivo das adoções
consideradas difíceis, desperta no público sentimentos diversos, podendo incitar
uma atitude impulsiva pela adoção, comovidos pelas histórias de vida e condição de
excluídos destas crianças e adolescentes. No entanto, a ideia nem sempre se
sustenta diante da convivência diária, onde se expressam as adversidades tão
distintas e as necessidades peculiares dos envolvidos.
Para além da preparação dos pretendentes, garantida pela legislação
vigente, há que se ter disponibilidade para lidar com questões emocionais que
podem surgir também em relação aos que são adotados, o que nem sempre é
esperado ou encontra disponibilidade interna dos pretendentes para trabalhar tais
questões. A questão não é o uso da tecnologia e da mídia, tão pouco de quem é a
competência primeira, Estado ou sociedade civil. Talvez a questão seja ética, a
forma como a mídia é utilizada e a interpretação da legislação quando estes não
contemplam a proteção integral das crianças/adolescentes em detrimento de outros
interesses.
Em nome da garantia do direito à convivência familiar, não podemos
ignorar os demais direitos contemplados no artigo 4º do ECA.
Outro aspecto a ser aprofundado é a utilização do Cadastro de
Pretendentes à Adoção promovendo, por vezes, drásticas alterações no perfil inicial
dos pretendentes, motivadas pela comoção frente à situação fática destas crianças e
adolescentes, sentimentos que podem ter “prazo de validade” por serem
circunstanciais.

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Observamos que são necessárias algumas diretrizes básicas para serem


seguidas quando se trata de utilizar a Busca Ativa como instrumento para auxiliar a
adoção das crianças/adolescentes de difícil colocação, entre elas:
1) A obrigatoriedade de todos os pretendentes terem passado pelo
processo de avaliação técnica e posteriormente terem sido habilitados pelo Juízo da
sua Comarca de origem;
2) O acompanhamento cuidadoso e regular do período de aproximação
presencial e posteriormente do estágio de convivência, com tempo suficiente para
maturação e construção dessa relação filial;
3) A mediação do encontro entre os pretendentes à adoção e possível
adotando pelos técnicos da Vara da Infância e Juventude, bem como sua devida
autorização pelo Juiz da Comarca.
Concluindo, sem concluir, com mais uma provocação: para atender o
melhor interesse desta população institucionalizada, a bandeira de frente tem que
ser a da adoção? Ou podemos iluminar também os projetos de sucesso com
apadrinhamento financeiro e afetivo e guarda subsidiada com estímulo a oportunizar
que esta população construa relações de referência independente de se transformar
em futura filiação?
Tendo em vista esta lacuna, surge o questionamento quanto a insistir na
garantia do direito à convivência familiar por meio exclusivamente da adoção. Neste
sentido, encontramos amparo no artigo 87, VII do ECA, onde trata da política de
atendimento, mencionando campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de
guarda. Outras alternativas seriam intensificar os projetos de apadrinhamento afetivo
e financeiro, ou a intensificação da participação comunitária como uma forma de
possibilitar a vinculação com pessoas fora do ambiente institucional.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.

BRASIL. Lei 12010, de 03 de Agosto de 2009. Dispõe sobre adoção. Brasília, DF,
2009.

BRASILIA, DF. Camara dos Deputados. Projeto de lei nº 101 – 2017. Dispõe sobre
adoção e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº
5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código
Civil). Disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/130811

Digiácomo, Murilo José; Digiácomo, Ildeara de Amorim. Estatuto da Criança e do


Adolescente anotado e interpretado. Ministério Público do Estado do Paraná. Centro
de Apoio operacional das promotorias da criança e do adolescente. 2013. 6ª edição
Fariello, Luiza. Estratégia de adoção: pais para crianças e não crianças para os pais.
Agência CNJ de notícias, 2017. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85211-estrategia-de-adocao-pais-para-criancas-e-
nao-criancas-para-os-pais

KNOPMAN, E. B. Busca Ativa da Adoção/ Quando a Espera Passiva é Violação de


Direitos. In: Ladvocat, (org.) Guia da Adoção – No Jurídico, no Social, no
Psicológico e na Família. São Paulo: Roca, 2014, p. 231-240.

MDS/SAS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria


Especial dos Direitos Humanos. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa
dos Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária.
Brasília, 2006.

Tribunal de Justiça do Pernambuco. Coordenadoria da Infância e Juventude.


Infância e Juventude. Cadastros do CNJ: A experiência prática do TJ – PE.
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/cnanovo/publico/ManualCNA.pdf
50
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

OS DESAFIOS DA COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA


SUBSTITUTA: A ESCUTA DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOÇÃO II”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2017

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COORDENAÇÃO

Paula Puertas Beltrame – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Thabata Dapena Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jacareí

AUTORES

Alberta Emília Dolores de Góes – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Itapecerica da Serra
Ana Paula Hachich de Souza - Psicóloga Judiciário – Comarca de São Vicente
Ana Roberta Prado Montanher – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru
Andrea de Carvalho – Psicóloga Judiciário – Comarca de Miracatu
Cristiane Calvo – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto
Cristina Rodrigues Rosa Bento Augusto – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional do
Ipiranga
Débora Nunes de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Embu das
Artes
Elaine de Camargo Meira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Miguel
Paulista
Elisângela Fraga Ferreira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jundiaí
Gracielle Feitosa de Loiola Cardoso – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Vargem Grande Paulista
Graziele Galindo do Vale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Indaiatuba
Jéssica de Moura Peixoto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão
Preto
Juliana da Conceição Velloso – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Kátia Aparecida Cordeiro dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
São José do Rio Preto
Luiza Gabriella Dias de Araújo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Mogi das
Cruzes

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Maria Rosa Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional VII -


Itaquera
Renata Dias Galan Sommerman – Psicóloga Judiciário – Foro Regional Penha de
França
Rodrigo Gonzales de Oliveira – Psicólogo Judiciário – Comarca de Itanhaém
Rute de Toledo Moraes – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos Campos
Sabrina Renata de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Silvia Videira Zaparoli – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sorocaba

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

Durante o ano de 2017 dedicamo-nos a estudar os “desafios da


colocação em família substituta”, elegendo como subtema central a escuta de
crianças e adolescentes. Importante esclarecer que a eleição desse tema ocorreu
mediante uma caminhada de reflexão e discussão.
Inicialmente eram muitas as propostas sobre o assunto a ser
aprofundado, fato compreensível e justificável em razão da significativa diversidade
de questões relevantes e inquietantes que permeiam a adoção.
No segundo encontro optamos por aprofundar a discussão acerca dos
desafios da colocação de criança e adolescente em família substituta. Nesse
momento, deparamo-nos com a multiplicidade do tema, constatando, a priori, que o
assunto poderia ser abordado sob vários ângulos. Isso porque os desafios
existentes se relacionam tanto a aspectos objetivos quanto subjetivos: a avaliação e
preparação dos pretendentes, o perfil da criança ou adolescente desejado, a escuta
e preparação das crianças e adolescentes, o trabalho dos serviços de acolhimento
com as crianças e adolescentes disponíveis à adoção, as devoluções, a
aproximação (o momento do encontro), as orientações e o acompanhamento do
estágio de convivência, as facilidades e dificuldades com as ferramentas e sistemas
(Cadastro Nacional de Adoção), etc.
Observamos, também, que os desafios para a colocação em família
substituta são constitutivos da própria complexidade da demanda, uma vez que o
sucesso da integração familiar perpassa por momentos de encontros e desencontros
entre adotados e adotantes. Não obstante, consideramos que o momento da
colocação é precedido por uma fase de preparação e avaliação importantes para
todos os sujeitos envolvidos, tendo em vista que é dotada de um universo singular
de significados objetivos e subjetivos que permeiam suas expectativas, seus medos,
fantasias, preconceitos, experiências, conhecimento, os quais não são integralmente
perceptíveis num primeiro momento, mas que são gradativamente apresentados e
compreendidos por meio da definição de papéis e construção dos vínculos de
afinidade e afetividade.
Após a leitura de textos que tratavam da temática eleita, entendemos
conveniente afunilar ainda mais o objeto de estudo, quando então elegemos a

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“escuta da criança e do adolescente” como subtema, assunto que merece reflexão


dada a sua recorrência em nosso cotidiano e sua importância vital no que se refere a
uma atuação que pretende garantir direitos.
Partimos, assim, em busca de subsídios literários para nosso debate e
reflexão. Vale esclarecer que a metodologia utilizada ficou restrita à leitura e
discussão. Isso porque durante o ano corrente nosso Grupo de Estudos não
conseguiu cumprir o cronograma original: duas reuniões não puderam ser realizadas
em razão da ocorrência da “Greve Geral”. Apesar da compreensão e da
solidariedade ao movimento que se justifica em razão do contexto de desmonte de
direitos que vivenciamos, é fato que essas duas ausências impactaram o
desempenho do Grupo, tornando-se necessário adequar as atividades à quantidade
diminuída de encontros que efetivamente foram realizados. Ademais, restou inviável
a utilização de metodologia diferenciada, como a participação de um convidado para
debater conosco o assunto, face à inexistência de tempo hábil para os
procedimentos necessários.
Nesse sentido, vale destacar o compromisso e engajamento dos
participantes, que se valeram da criatividade para superar as adversidades. Diante
do contexto apresentado, buscamos produzir um material que traduzisse nosso
esforço e que pudesse contribuir para a reflexão sobre o tema escolhido.
O texto que segue está dividido em três partes que apareceram com
recorrência na bibliografia consultada e em nossas discussões. Iniciaremos
abordando os desafios da colocação em família substituta. No segundo item,
traremos considerações a respeito da escuta da criança e do adolescente. Já no
terceiro, serão feitas considerações a respeito do Serviço de Acolhimento enquanto
espaço de real acolhida, encerrando com as considerações finais.

1 - OS DESAFIOS DA COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA

A convivência familiar e comunitária é um direito fundamental de crianças e


adolescentes garantido pela Constituição Federal (artigo 227) e pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). Em seu artigo 19, o ECA estabelece que toda

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criança e adolescente tem direito a ser criado e educado por sua família e, na falta
desta, por família substituta.
Lembramos que a colocação em família substituta é uma medida jurídica
aplicada nos casos em que não é possível o retorno de crianças e adolescentes à
sua família natural. Das modalidades de colocação em família substituta, a adoção é
o último recurso e, conforme prevê o ECA no artigo 39, § 1º, constitui medida
excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotadas as
possibilidades de manutenção de crianças e adolescentes na família natural ou
extensa, visto que representa a ruptura definitiva de vínculos construídos entre
crianças e adolescentes e sua família biológica.
Neste contexto, constituir vínculos numa nova configuração forma a base
dos desafios inerentes à colocação de crianças e adolescentes em família substituta,
na modalidade de adoção, apresentados cotidianamente na prática profissional das
equipes técnicas das Varas da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São
Paulo.
Dentre as diferentes percepções acerca do tema, destacamos aspectos
objetivos e subjetivos que envolvem o trabalho profissional na adoção: a avaliação
psicológica e social, a preparação dos pretendentes, o perfil da criança ou
adolescente pretendido, a escuta e preparação das crianças e adolescentes, o
trabalho dos serviços de acolhimento com crianças e adolescentes disponíveis à
adoção, a aproximação entre adotantes e adotados, as orientações e
acompanhamento no estágio de convivência e até mesmo os casos que envolvem a
“devolução” de crianças e adolescentes.
Consideramos de extrema importância a fase que precede o momento da
colocação da criança ou adolescente em família substituta; é nessa etapa de
preparação e avaliação que podem ser observados diversos aspectos objetivos e
subjetivos relacionados às fantasias, preconceitos, medos e expectativas, sendo
fundamental que sejam aprofundados à medida em que os vínculos e os papéis vão
se construindo e sendo definidos.
Segundo Faleiros e Moraes (2014, p. 30), o vínculo é uma relação
particular com o objeto desejado.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Falar de vínculo afetivo é falar de um tipo particular de relação com


outrem. De uma dinâmica em contínuo movimento que funciona
acionada ou movida por emoções, sentimentos, motivações
psicológicas, envolvendo o desejante e o desejado e o
reconhecimento do querer-se.

Diante da subjetividade que envolve a vinculação afetiva, identificamos no


processo de avaliação dos pretendentes, tanto no âmbito do Serviço Social quanto
Psicologia, a manifestação de um discurso racionalizado, ou seja, pouco reflexivo
quanto aos aspectos que envolvem as reais motivações da adoção, condições estas
que vão sendo acessadas e abordadas ao longo da avaliação.
Consideramos um avanço no processo de adoção a inclusão de etapa de
preparação psicossocial e jurídica, conforme o art. 50 do ECA. Tal normativa, cuja
nova redação foi dada pela Lei n.º 12.010/09, favorece o contato com a realidade
das crianças e adolescentes disponíveis à adoção, contribuindo para o rompimento
dos mitos que envolvem esse cenário.
Destacamos que os desafios da colocação em família substituta são
constitutivos da própria complexidade da demanda, visto que o êxito da integração
familiar depende de diversificados aspectos, característicos da vinculação
socioafetiva, ou seja, de momentos de encontros e desencontros entre adotantes e
adotados numa fase delicada de aproximação.
Outro aspecto importante está relacionado à idealização da criança
desejada. Se, por um lado, a idealização é inerente ao processo da adoção, por
outro, precisa ser elaborada para a aceitação da criança real, tal como ela se
apresenta.
Faz-se necessário estar atento às demandas trazidas pelos pretendentes
para que a avaliação potencialize espaço de reflexão sobre as motivações para a
concretização da adoção, tais como: tentativas sem êxito de técnicas de reprodução
assistida, sensação de fracasso, motivação altruísta, indiferenciação da filiação
biológica e adotiva, entre outros.
É importante considerar que todos os envolvidos (criança ou adolescente,
pretendentes e técnicos) trazem suas histórias e experiências, cada um com sua
perspectiva do processo da adoção.
Neste contexto, um desafio emergente a ser enfrentado se refere às
campanhas de incentivos à adoção tardia promovidas com apoio do CNJ em

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

diferentes estados da federação. Acreditamos que tais práticas precisam ser vistas
com criticidade e ressalvas, considerando que a adoção deve ser fruto de uma
decisão amadurecida, e não resultado de sensibilização e apelo emocional. Nestas
situações, onde não se prevê um período de preparação dos postulantes, as
consequências, de eventual dano, serão apresentadas durante a evolução de uma
tentativa de aproximação, o que poderá gerar frustação na constituição de novos
laços socioafetivos, responsabilizando crianças e adolescentes pelo fracasso.
Salientamos que a promoção de adoção nestes moldes poderá trazer
sérios prejuízos às crianças e adolescentes (principais interessados). Isso não
significa que as adoções tardias não devam ser incentivadas, porém deve-se ter
cautela e buscar estratégias que não exponham as crianças e adolescentes,
respeitando-as enquanto sujeitos de direitos.
Outra questão premente se refere ao lugar de relevância que a escuta de
crianças e adolescentes ocupa neste processo de colocação em família substituta,
bem como na indefinição a respeito de quem seria essa atribuição: do serviço de
acolhimento, do judiciário ou dos demais atores da rede. Quanto a este aspecto, não
existe consenso nas diversas comarcas do estado.
Em contrapartida aos desafios encontrados, existem indicadores que
podem contribuir para a efetivação da adoção de forma exitosa. Um deles é o apoio
da família extensa dos pretendentes no processo da adoção. Outro seria a rede de
atendimento, tanto na preparação da criança como no acompanhamento pós-
adoção. A recepção e acolhimento pelos familiares em relação à criança ou
adolescente e aos adotantes podem ser fundamentais em alguns casos e a rede de
serviços também contribui, principalmente na atenção psicológica mais direcionada
às crianças e adolescentes sob medida de acolhimento e em processo de adoção.
A preparação psicossocial e jurídica dos pretendentes, se realizada com
qualidade e de forma a proporcionar reflexão, também é um espaço que pode
favorecer o processo de adoção, que se caracteriza por ser um ato cercado de
incompreensões que, se não trabalhadas, poderão se revelar negativamente nas
relações cotidianas entre adotantes e adotados. É de conhecimento que, em
algumas comarcas, tal procedimento ainda não foi sequer implementado.

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2 - A IMPORTÂNCIA DA ESCUTA DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE

Apenas em 1990, a partir da aprovação do Estatuto da Criança e do


Adolescente (ECA), previu-se alguma possibilidade de ouvir crianças e adolescentes
acerca dos seus interesses e das decisões a seu respeito. Posteriormente, com as
alterações ocorridas no ECA a partir da Lei n.º 12.010/09, houve uma especificação
dessa escuta considerando as peculiaridades do desenvolvimento infanto-juvenil e a
participação de especialistas que atuam nessa área.

O §1º do art. 28 do Estatuto sempre determinou que, havendo


possibilidade, a criança ou o adolescente deve ser ouvido e sua
opinião considerada, nos procedimentos de colocação em família
substituta. Contudo, a alteração legislativa detalhou essa prerrogativa
conferida à criança ou adolescente, explicando que a colheita de sua
opinião deve ser feita por equipe interprofissional, e sempre
respeitando seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão
sobre as implicações da medida de colocação em família substituta.
(ROSSATO et al, 2014, p. 179)

Convém esclarecermos que a escuta de crianças e adolescentes é


também uma diretriz preconizada por normativa internacional:

[...] impende ressaltar que o Estatuto alinha-se perfeitamente ao art.


12 da Convenção dos Direitos da Criança. No dispositivo da norma
internacional de direitos humanos fica determinado que os Estados
devem assegurar à criança que estiver capacitada a formular seus
próprios juízos, o direito de expressar suas opiniões livremente sobre
todos os assuntos relacionados a si, levando-se devidamente em
consideração essas opiniões, em função de sua idade e maturidade.
(ROSSATO et al, 2014, p. 179 )

A redação atual do artigo 28 do ECA, § 1º, dispõe que:

Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente


ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de
desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da
medida, e terá sua opinião devidamente considerada. (BRASIL,
1990)

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Dessa forma, tem-se que crianças e adolescentes devem ser ouvidos


sempre que decisões a seu respeito tiverem de ser empreendidas, sendo
imprescindível a escuta, tanto no que se refere ao acolhimento institucional (ao
longo da processualidade da institucionalização), quanto ao seu desejo, preparo,
aproximação e colocação em família substituta. Ressalta-se, assim, a importância de
crianças e adolescentes serem ouvidos, opinarem sobre a sua situação e terem sua
opinião considerada. Nesse processo, é fundamental que a criança possa
compreender desde o início a finalidade da medida protetiva, que pode ser sentida,
em muitos casos, como uma violência. Segundo Bernardi (2014, p. 204):

É com a manutenção de um diálogo permanente com a criança e o


adolescente acolhidos, considerando suas particularidades,
potencialidades, facilidades e dificuldades, que, juntos, podem
recuperar a história de vida deles, ressignificar suas experiências e
possibilitar sua participação em decisões que dizem respeito a seu
destino, considerando a linguagem apropriada para sua idade e
maturidade.

Textos legais, como o ECA e o Plano Nacional de Proteção, Promoção e


Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), preconizam que
todas as decisões a respeito de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento
devem ser compartilhadas com estes.

Sendo a criança e o adolescente sujeito de direitos, é necessário


reconhecer suas habilidades, competências, interesses e
necessidades específicas, ouvindo-os e incentivando-os – inclusive
por meio de espaços de participação nas políticas públicas – à busca
compartilhada de soluções para as questões que lhes são próprias.
(BRASIL, 2006, p.66)

Neste sentido, o Plano Individual de Atendimento (PIA) é o instrumento


que tem a função de garantir a direcionalidade do projeto a ser desenvolvido a partir
principalmente da escuta do acolhido e também de sua família.

A elaboração do Plano de Atendimento Individual e Familiar deve


envolver uma escuta qualificada da criança, do adolescente e de sua
família, bem como de pessoas que lhes sejam significativas em seu
convívio, de modo a compreender a dinâmica familiar e as relações
60
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

estabelecidas com o contexto. É necessário que a criança, o


adolescente e as famílias tenham papel ativo nesse processo e
possam, junto aos técnicos e demais integrantes da rede, pensar nos
caminhos possíveis para a superação das situações de risco e de
violação de direitos, participando da definição dos encaminhamentos,
intervenções e procedimentos que possam contribuir para o
atendimento de suas demandas. Orientações técnicas: Serviços de
Acolhimento para Crianças e Adolescentes (CONANDA,CNAS, 2009,
p. 29)

Assim, é imprescindível escutar as crianças e adolescentes, pois a


colocação em família substituta é uma medida que resultará em profundas
mudanças em suas vidas.
Importante demarcar que falamos de um tipo específico de escuta: aquela
que considera e reitera a criança e o adolescente enquanto sujeitos de direitos.
Nessa perspectiva, conveniente a reflexão trazida por Lewgoy e Silveira (2007, p.
240):

Escutar implica ouvir; contudo, a recíproca não é verdadeira. Quem


escuta ouve; mas quem ouve não necessariamente escuta. Daí o
dito popular: “Entrou por um ouvido e saiu pelo outro”. Ouvir é uma
capacidade biológica que não exige esforço do nosso cérebro,
enquanto escutar decreta trabalho intelectual, pois após ouvir há que
se interpretar, avaliar, analisar e ter uma atitude ativa.

Especificamente sobre a escuta de crianças e adolescentes que serão


encaminhados à adoção, Bernardi (2015, p. 226) alerta que:

Trabalhar com crianças e adolescentes disponíveis para a adoção


diz respeito a ouvi-los sobre si mesmos, sobre sua história pessoal e
familiar; implica uma postura de escuta respeitosa, cuidadosa,
atenta, que permita à criança e ao adolescente a livre expressão de
suas visões para um projeto de vida pessoal e único; visa ouvi-los
sobre seus desejos, seus medos, fantasias e questões sobre a
possibilidade de viverem a experiência da adoção; buscar com eles
como lidam com os rompimentos de vínculos vividos com sua família
de origem, da possível separação dos companheiros do abrigo e,
principalmente, suas possibilidades para construção de novos laços
parentais; mais do que buscar o que lhes falta, urge encontrar com
eles a possibilidade que têm de efetivar seus talentos e anseios de
vida.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A autora traz ainda importante reflexão sobre a escuta de crianças


pequenas, pontuando que:

Para respeitar o direito das crianças pequenas de serem ouvidas é


necessário que os adultos estejam preparados para escutar as suas
opiniões da maneira mais adequada: mediante a música, o
movimento, a dança, a narração de contos, os jogos de regras, a
pintura e a fotografia, assim como através do diálogo convencional.
(BERNARDI, 2015, p. 226)

A história de vida e a carga cultural das crianças e adolescentes precisam


ser respeitadas. Escutar uma criança é também estar atento às expressões não
verbais de modo a garantir seus direitos. Segundo Bernardi, há um espaço reduzido
de expressão dos desejos das crianças e adolescentes nas Varas da Infância e
Juventude.
Embora exista previsão legal, observamos que, no cotidiano, o trabalho
desenvolvido junto às crianças e adolescentes institucionalizados não lhes garante
necessariamente o direito de serem escutados. Por exemplo: na processualidade da
adoção, enquanto os pretendentes possuem uma série de quesitos para escolher o
perfil em relação ao filho desejado, nem sempre a criança ou adolescente pode, ou é
chamado, a se manifestar acerca da família que gostaria de ter. Assim, temos que a
escuta, em geral, privilegia o adulto adotante e não a criança e adolescente.
Em uma cultura adultocêntrica, torna-se relevante pontuarmos que a
importância investida na fala da criança e do adolescente está relacionada à
concepção que os profissionais têm a respeito de infância. Nesse sentido, não é
incomum a criança e o adolescente serem considerados imaturos e incapazes, sem
autorização para expressarem sua opinião, sendo hierarquizado o lugar do adulto
como o detentor do poder.

Muitas são as maneiras de se trabalhar com a criança, visando à sua


colocação em família substituta para fins de adoção. Contudo, como
um adulto aborda e se relaciona com as crianças de seu convívio e a
opção dos profissionais por este ou aquele modelo de intervenção
são determinados, de um jeito ou de outro, pelas representações
conscientes e inconscientes acerca da infância e da subjetividade
infantil. (PAIVA, 2014, p. 333)

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Não obstante, é difícil para os técnicos lidarem com a expressão dos


sentimentos das crianças e adolescentes, por exemplo, quando esses últimos
manifestam o desejo de não serem adotados. Até mesmo o luto vivenciado pela
criança ou adolescente em decorrência da separação de sua família de origem não
é valorizado, havendo uma desconsideração quanto ao tempo necessário para a
elaboração das perdas e rompimento de vínculos.
Os próprios profissionais da Psicologia e Serviço Social, tanto das Varas
da Infância e Juventude como dos Serviços de Acolhimento, de certa maneira
compartilham da impotência vivida pelas crianças e adolescentes, vez que a voz dos
profissionais também não é ouvida em muitas situações. As tênues fronteiras entre o
tempo da lei e o tempo de cada pessoa envolvida nos processos nos levam a
conviver com a angústia de acolhidos que não conseguem compreender ou suportar
a espera por definições para suas vidas.
A escuta das crianças e adolescentes pode assumir diferentes
direcionamentos dependendo do tipo de processo judicial. No que se refere às
situações que envolvem disputas de guarda, a fala das crianças e adolescentes vem
sendo bastante solicitada e valorizada. No entanto, aqueles que cumprem medidas
socioeducativas e os que se encontram acolhidos institucionalmente não parecem
ter sua voz tão requisitada e considerada.

Com essa prática, entendemos que é mantida a dicotomia da


infância que aporta ao judiciário, ou seja, a “infância em perigo”, que
deve indicar quem são seus algozes, e a “infância perigosa” que, por
se constituir em uma ameaça social, não deve se expressar
(Donzelot, 1986, p.92). No primeiro caso, temos pais calados e
crianças que falam, ou cujos desejos devem decidir questões
jurídicas em nome de seus direitos. No segundo grupo, vozes
caladas, sem eco, cujos pais, na maior parte das vezes, também já
foram calados pelo aparelho de Estado, no qual o som de suas vozes
não possui volume suficiente para se fazer valer, ou quem sabe,
argüir sobre os direitos de suas crianças, retirando-as das amarras
do Estado. (BRITO et al, 2006, p. 72)

Também é notória a valorização da fala das crianças e adolescentes em


situações referentes à violência sexual. Assunto em pauta e que recentemente
recebeu disciplinamento legal foi a Escuta Especializada e Depoimento Especial,
onde a fala está ligada diretamente à produção de provas. Trata-se de metodologia

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que não se propõe a escutar o que aquela criança tem a dizer, mas apenas a ouvi-
la, buscando conduzi-la a falar sobre determinado assunto.
Observamos que no âmbito das Varas da Infância e Juventude a escuta
da criança e adolescente ainda está em processo de construção e consideramos
que deve envolver todos os atores que atuam com esse público, especialmente
quando se trata de crianças e adolescentes que estão em medida protetiva.
Ademais, as famílias de origem também devem ser escutadas, o que nem sempre
ocorre: vários são os fatores que concorrem para essa situação. Um deles se
relaciona à perspectiva sob a qual família é vista: tal como na lida com crianças e
adolescentes, a concepção do profissional (leia-se especificidade técnica e
consequentes compromissos éticos-políticos) também influencia a visão sobre o
tema.
Outrossim, além de questões subjetivas, é importante pontuarmos os
entraves objetivos, como a insuficiência e precariedade dos serviços públicos. É
realidade majoritária que os equipamentos de saúde, educação, assistência social e
demais políticas públicas não estão estruturados conforme previsto na legislação
correlata. Nessa esteira, nós, assistentes sociais e psicólogos do judiciário, também
enfrentamos precariedades cotidianas e de várias modalidades para o desempenho
da função.
Compreendemos que, para que crianças e adolescentes ocupem o lugar
de sujeito diante da situação vivenciada e possam ter um espaço de escuta e
acolhida para expressar seus desejos, medos e fantasias, é necessário que o
profissional reflita sobre suas concepções de infância e que esteja preparado –
técnica e eticamente – para verdadeiramente escutar aquela criança ou adolescente.

[...] consideramos importante estarmos atentos às sinalizações da


criança do que ela pode ou deseja fazer com sua história, de que
maneira se relaciona com ela. Deseja falar, se calar, esquecer,
fabular? Só podemos nos relacionar de forma respeitosa e não
invasiva se somos capazes de escutar a criança. (SOUZA et al,
2016)

Não obstante, para que o trabalho seja efetivo, é necessário que todos os
envolvidos estejam alinhados a essa concepção, destacando-se a necessária

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

articulação entre a equipe do serviço de acolhimento e a do Judiciário desde o início


do acolhimento, o que implica em uma postura ética.

3 - O SERVIÇO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE CRIANÇAS


E ADOLESCENTES ENQUANTO ESPAÇO DE REAL ACOLHIDA

A colocação em família substituta engloba vários elementos que são


intrínsecos, dentre eles o acolhimento institucional.
Bernardi (2014) faz um retrospecto bastante rico sobre acolhimento
institucional e familiar, trazendo dados de pesquisas de crianças e adolescentes
acolhidos institucionalmente no Brasil, contextualizando esta realidade.
A autora pontua que as mudanças implementadas desde a criação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) até a Lei Nacional da Adoção de 2009
buscaram direcionar as ações de proteção da infância e da família, redefinindo
prioridades. Na teoria, os serviços de acolhimento passaram a ter a reintegração
familiar como um de seus objetivos, preservando os vínculos existentes.
Embora a legislação indique que questões socioeconômicas não devem
motivar o acolhimento institucional, o que se observa na prática é que as famílias
atendidas pelos serviços de acolhimento acabam sendo responsabilizadas por suas
dificuldades e são vistas com descrédito, não sendo devidamente levada em
consideração a precariedade das políticas públicas.
Em alguns casos, famílias que se encontram em situação de
vulnerabilidade social podem compreender a medida de acolhimento institucional
como uma forma de garantir a subsistência básica dos filhos, bem como de resolver
dificuldades de relacionamento e conflitos familiares. Isso pode ser explicado
considerando resquícios históricos de uma época na qual a institucionalização era
tida como alternativa melhor que a própria família.
Durante longos períodos da história brasileira a institucionalização foi tida
como principal meio de educar e proteger, sobretudo, para as crianças e
adolescentes oriundos de famílias pobres. Havia uma cultura de institucionalização
com grandes instituições totais, atendimento massificado e de longa permanência.
Espaços isolados da sociedade, onde realizavam todas as atividades coletivamente,
sem respeito às necessidades e individualidades. A instituição era o lugar para onde
65
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

se levava o filho na perspectiva de que ele tivesse uma realidade futura diferente da
que teria caso permanecesse sob os cuidados de sua família de origem (Cardoso,
2017).
Foi com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente que a cultura
da institucionalização começou a ser combatida, priorizando a convivência familiar e
comunitária e reconhecendo a família enquanto grupo fundamental e ambiente mais
propício ao desenvolvimento de seus membros. No entanto, a realidade atual aponta
um grande número de acolhimentos de crianças e adolescentes realizados devido à
situação de “negligência familiar”. Diante do fato, é necessário refletir a respeito
deste conceito, visto que engloba visões subjetivas e culturais.
O último levantamento nacional de Crianças e Adolescentes em Serviço
de Acolhimento - 2010, realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
apontou a negligência como a causa mais frequente de acolhimento. Dentre os
acolhidos, observou-se a predominância de meninos pardos e negros e com idades
entre 6 a 11 anos - perfil este que dificilmente é aceito pelos pretendentes à adoção,
dos quais 92,7% desejam crianças de até 5 anos (CNJ, 2013).
Diante da ausência de políticas públicas efetivas, muitas vezes a adoção é
vista como uma resolução mágica de todos os problemas, enquanto deveria ser uma
medida excepcional, destinada a situações muito específicas. Além disso,
analisando os dados mencionados, constatamos que as chances de adoção são
remotas para muitas das crianças e adolescentes acolhidos. Assim,
independentemente do encaminhamento tomado, no serviço de acolhimento os
potenciais das crianças e adolescentes podem e devem ser desenvolvidos.
Neste sentido, deve-se estar atento para não se assumir um discurso
extremista, seja pela supervalorização da adoção seja pela desvalorização do
acolhimento, podendo este último, do nosso ponto de vista, ser entendido como um
lugar de promoção de autonomia, reparação e desenvolvimento, ainda que possua
caráter provisório. O serviço de acolhimento deve ser o local onde as crianças e os
adolescentes conseguem se sentir fortalecidos, sendo, muitas vezes, o único espaço
em que podem receber cuidados e afeto.
Souza et al (2016, p. 42), fundamentada nos apontamentos de Winnicott,
concebe o serviço de acolhimento como:

66
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Um lugar de cuidado e não de abandono, capaz de promover


experiências fundantes e reparatórias no psiquismo da criança.
Quando a família, por algum motivo, não pode oferecer estas
condições, outros adultos podem ocupar o lugar de atenção e
cuidado, desde que possam investir e envolver-se com a criança.

Entretanto, ainda hoje, o serviço de acolhimento é considerado como um


lugar de desamparo e insegurança. Tal fato, além de motivar desligamentos
equivocados e precipitados, pois há falta de profissionais com qualificação e em
número suficiente para atender à demanda, acrescido à pressão pelo cumprimento
de prazos, dificulta a realização de uma avaliação aprofundada. Em muitas ocasiões
a atuação dos envolvidos tem como foco o desacolhimento e não as reais
necessidades da criança e da família da qual faz parte.
Nesse contexto, consideramos importante valorizar o educador do serviço
de acolhimento, profissional que raramente é ouvido, por vezes até negligenciado
pelos diferentes atores da rede de proteção, incluindo-se o Poder Judiciário.
Há mais investimento na adoção do que nos serviços ofertados. Fato
contraditório, considerando que o Brasil conta com um aparato legal que propõe
planejamento de ações integradas visando a garantir o direito à convivência familiar
e comunitária e compreende a importância da melhoria da qualidade dos serviços de
acolhimento em todo o Brasil, tais como: o Plano Nacional de Promoção, Proteção e
Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária e o documento de
Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento de Crianças e Adolescentes.
Diante disso tudo, Souza et al (2016) nos convidam a uma reflexão: até
que ponto algo que deve ser provisório (medida protetiva de acolhimento) não pode
ser de qualidade. O caráter de brevidade atribuído por vezes se mostra como uma
contradição nos cuidados oferecidos (muitas vezes por falta de esclarecimento e
conhecimento sobre vinculação e cuidados na infância).
Nesse sentido, as autoras, baseadas nas ideias de Marin (1999),
concluem que:

Os abrigos podem propiciar boas condições para as crianças se


desenvolverem. Para isso os profissionais deveriam relativizar o
modelo de família como único possível, bem como precisariam lidar
com o desamparo dessas crianças e com o deles próprios. Assim,
poderiam valorizar o seu lugar de educador e oferecer à criança

67
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

possibilidades de entrar em contato com sua história, elaborar suas


experiências e se abrir para outras perspectivas de futuro.

Ressaltamos, neste sentido, a importância do trabalho executado pela


equipe técnica do serviço de acolhimento junto às crianças, adolescentes e famílias.
Tais profissionais, muitas vezes, não conseguem efetivar um trabalho técnico de
qualidade porque se encontram sobrecarregados, realizando funções que
extrapolam suas atribuições. Há que se considerar também que tais profissionais
são submetidos a elevado índice de rotatividade em função das precárias condições
de trabalho e baixos salários.

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

São muitos os desafios encontrados na colocação de crianças e


adolescentes em família substituta, dada a complexidade intrínseca ao processo de
adoção. Muitos também são os desafios dos profissionais que lidam diariamente
com esta temática, ainda mais no contexto atual de importantes mudanças nas leis
vigentes, as quais, muitas vezes, têm se encaminhado no sentido contrário ao da
valorização da escuta de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
A compreensão da diferença entre ouvir (e suas variantes encontradas
em oitivas e depoimentos, por exemplo) e escutar (base de atuação do psicólogo e
do assistente social no contexto judiciário) se coloca como essencial para a
construção do lugar que é dado à criança e ao adolescente, bem como à sua família
de origem e aos pretendentes à adoção.
Escutar, no sentido ampliado do termo, todos os atores envolvidos na
colocação em família substituta (crianças e adolescentes, família de origem,
profissionais das instituições de acolhimento, pretendentes à adoção, entre outros)
se coloca ao mesmo tempo como desafio e condição para a realização de um
trabalho engajado e efetivo, com vistas à garantia de direitos.

68
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS:

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eles a adoção? In: LADVOCAT, C.; DIUANA, S. (org.) Guia de Adoção: no jurídico,
no social, no psicológico e na família. 1. ed. São Paulo: Roca, 2014. p. 201-229

BRASIL. Constituição (1988) Constituição da Republica Federativa do Brasil.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
Acesso em: 08 out. 2017.

BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 jul. 1990. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em: 08 out. 2017.

BRASIL. Lei nº 12.010 de 3 ago. 2009. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm. Acesso em:
12 out. 2017.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos.


Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); CONANDA
(Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). Plano Nacional de
Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência
Familiar e Comunitária. Brasília, 2006.

BRASIL. CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente);


CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social). Orientações técnicas para os
serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília, 2009

BRITO, L.; AYRES, L.; AMENDOLA, M. A escuta de crianças no sistema de Justiça.


Psicologia & Sociedade, Porto Alegre-RS, v. 18, n. 3, p. 68-73, dez. 2006.

CARDOSO, G. F. L. (Re)Produção de famílias incapazes – paradoxos à convivência


familiar de crianças e adolescentes institucionalizados. 2017. Dissertação de
Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, São Paulo.

CNJ. Encontros e desencontros da adoção no brasil: uma análise do Cadastro


Nacional. Brasília, 2013.

FALEIROS, V. P.; MORAES, P. J. F. S. Desafios e possibilidades na adoção. In:


Serv. Soc. & Saúde. Campinas-SP, v.13, n.1, p. 29-46, jan./jun. 2014.

LEWGOY, A. B.; SILVEIRA, E. M. C. A entrevista nos processos de trabalho do


assistente social. Textos & Contextos, Porto Alegre-RS, v. 06, n. 2, p. 233-251,
2007.
69
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

PAIVA, L. D. Escuta e preparação da criança para construção de uma nova família


na adoção internacional. In: LADVOCAT, C.; DIUANA, S. (org.) Guia de Adoção: no
jurídico, no social, no psicológico e na família. 1. ed. São Paulo: Roca, 2014. p. 331-
341

ROSSATO, L. A.; LEÓRE, P. E.; CUNHA, R. S. Estatuto da Criança e do


Adolescente comentado artigo por artigo. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014.

SOUZA, C. A. et al. O direito de construir a própria história: contribuições


psicanalíticas na clínica e no abrigo. In GHIRARDI, M. L. A. M. (org). Laços e
rupturas: leituras psicanalíticas e o acolhimento institucional. 1. ed. São Paulo:
Escuta, 2016.

SOUZA, C. A. et al. Provisoriedade e vínculo nas instituições – abrigo: a


potencialidade dos encontros. In GHIRARDI, M. L. A. M. (org). Laços e rupturas:
leituras psicanalíticas e o acolhimento institucional. 1. ed. São Paulo: Escuta, 2016.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

EXPERIÊNCIAS EXITOSAS NO ATENDIMENTO AO


ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI NA EXECUÇÃO
DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017
71
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Elaine Cristina Major Pavanelo – Assistente Social Judiciário – Varas Especiais da


Infância e Juventude

AUTORAS

Fernanda Caldas de Azevedo – Assistente Social Judiciário – Varas Especiais da


Infância e Juventude
Iara Dourado Nogueira Giotto – Assistente Social Judiciário – Comarca de Amparo
Inês Aparecida do Nascimento Sztybe – Assistente Social Judiciário da Vara da
Infância e Juventude do Fórum Regional de São Miguel
Josiane Biondo – Assistente Social Judiciário – Varas Especiais da Infância e
Juventude
Maria Gorette Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itariri
Natália Teodoro Pimentel – Assistente Social Judiciário – Varas Especiais da
Infância e Juventude
Nêmora Suely Melo Fernandes – Psicóloga Judiciário – Comarca de Casa Branca

72
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos Adolescente em Conflito com a Lei objetiva a partir


de encontros mensais, com temas anuais, debater assuntos correlatos ao seu nome.
No ano de 2017 o Grupo foi composto por assistentes sociais e psicóloga 1
das seguintes comarcas: Amparo, Itariri, Caconde, Casa Branca, São Caetano do
Sul e Capital. No caso da Capital, que possui 12 Fóruns Regionais 2, temos
representantes do Fórum de São Miguel e do Fórum das Varas Especiais da
Infância e da Juventude/Brás.
Este último centraliza todos os processos de apuração de ato infracional e
execução de medidas socioeducativas na cidade de São Paulo, bem como de outros
municípios, no caso de adolescentes internados(as) em Unidades da Fundação
Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA)
localizadas na capital.
Pertinente esclarecer que a Fundação CASA em São Paulo é de gestão
pública estadual e responsável pelo desenvolvimento das medidas socioeducativas
restritivas de liberdade3, enquanto as medidas de meio aberto4 são de
responsabilidade do município5.
Na proposta de estudo do presente ano, o grupo refletiu e debateu sobre
práticas exitosas na socioeducação. Para tanto, dedicou-se a leituras de artigos

1
Cabe salientar que algumas dessas trabalhadoras, anterior a vinculação ao Tribunal de
Justiça, tiveram experiência profissional vinculada à Fundação CASA e que no decorrer da discussão
anual, pontuaram a diferença de olhares quando, como trabalhadora, encontram-se no Executivo e
em outro momento no Judiciário e o quanto essas discussões se complementam, salientando a
importância da relação entre os Poderes Públicos.
2
Disponível em:
http://www.tjsp.jus.br/Download/PrimeiraInstancia/FolhetosInformativos/Capital/FolhetoForunsCentrais
eRegionais.pdf. Acesso: 12/10/2017.
3
Medidas de Semiliberdade (Artigo 120 do ECA) e Internação (Artigos 121 ao 125 do ECA).
4
Medidas de liberdade assistida (Artigo 118 e 119 do ECA) e Prestação de Serviços à
Comunidade (Artigo 117 do ECA).
5
O Decreto-Lei nº 200 de 25 de Fevereiro de 1967 que implantou a Reforma Administrativa
Federal traz a diferença entre Administração Direta (artigo 4º - I) e Administração Indireta (artigo 4º - II
– a – d). A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 175 reafirma a possibilidade da gestão indireta
através de licitação. Ainda determina que a competência da União se restrinja à coordenação
nacional e à formulação de regras gerais do atendimento, enquanto os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios deverão gerenciar, coordenar e executar programas de atendimento no âmbito de suas
competências. Aproximando-se do nosso objeto de estudo, o ECA traz em seu artigo 88 a
municipalização do atendimento como uma das diretrizes da política de atendimento.
73
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

científicos que compartilhassem diferentes experiências de trabalho, mas sempre


alinhadas ao Paradigma da Proteção Integral6.
A relevância do tema do ano de 2017 se coloca na percepção de que “a
abundância de experiências negativas em relação às exitosas no contexto
socioeducativo, (...) pode reforçar algumas concepções que relacionam o
comportamento infrator a um alto padrão de repetição e estabilidade” (COSTA,
2005), o que nos convida à análise crítica da realidade.
Da mesma forma, esta construção mobilizou o grupo especialmente por dois
aspectos.
O primeiro, o atual contexto de retração dos direitos que ao se alinhar a já
falha percepção de abandono da fase da adolescência, se comparada com a
infância, aponta desafios e mais, nos incitam à criação de alternativas críticas e
garantistas.
Secundariamente, mas não menos importante, por este grupo tratar-se de
sujeitos-trabalhadoras que se percebem comprometidas com a contínua
necessidade da qualificação profissional a partir das demandas identificadas no
cotidiano de trabalho.
Assim, para conceituar o que vem a ser uma prática exitosa partimos de dois
procedimentos metodológicos.
O primeiro, tendo em vista que algumas integrantes do Grupo trabalham
diretamente com adolescentes que cometeram ato infracional, estas puderam
observar empiricamente no decorrer das entrevistas realizadas, as referências
positivas realizadas pelos (as) adolescentes a projetos desenvolvidos na Fundação
CASA.
Este movimento permitiu tanto a identificação destes Projetos quanto
vislumbrou a possibilidade de estabelecer contato com a instituição a fim de acessar
maiores informações.

6
É a segunda fase de tratamento destinado às crianças e adolescentes no Brasil, de forma
tardia a partir da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 227, que é complementado pelo ECA
em seu artigo 4º que traz o dever da família, da sociedade e do Estado no assegurar à criança, ao
adolescente e ao(a) jovem direitos por meio de políticas de promoção e de defesa. Importante
salientar que há uma diferença temporal entre a visão normativa e a visão sociocultural, que não
caminham na mesma velocidade levando às mudanças de paradigma.
74
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesta tentativa, enfrentamos a questão burocrática que não permitiu o


acesso a informações tanto via telefone quanto por meio de ofício, autorizado pelo
Tribunal de Justiça/SP, com identificação e intenções do Grupo.
Diante do insucesso, houve motivação à busca por meio de sítios públicos
destes Projetos. Assim, nos detivemos especialmente em três atividades – Projeto
Guri, Projeto Yam e Associação Águia, que serão abordados no decorrer desta
produção.
Trata-se de ações que possuem cunho pedagógico não exigidas pelos
parâmetros legais e, normalmente, realizadas por organizações da sociedade civil,
remuneradas ou não, externas à instituição.
Essa percepção não se coloca como um estímulo à desresponsabilização
estatal, mas ao contrário, aponta a possibilidade, a partir da identificação de
necessidades que configuram demandas para ampliação e/ou novas políticas
públicas que alcancem os (as) adolescentes, colaborando diretamente com seus
processos de reflexão e responsabilização retrospectiva (atos praticados) e
prospectiva (planos de vida). O (a) adolescente, portanto, é reconhecido também por
sua potência. O conceito de responsabilização abordado no artigo encontra-se
fundamentado em Souza (2016).
Aliado a isso, como segundo procedimento metodológico, realizamos uma
dinâmica grupal na qual cada profissional pôde refletir sobre a questão disparadora -
Quais aspectos envolvem uma condução ideal de medida socioeducativa?
Os aspectos mais abordados são a seguir apresentados estatisticamente:
32% políticas públicas fortalecidas incluindo aqui Programa de Egresso e
Envolvimento do (a) adolescente e de sua família no decorrer do cumprimento da
medida socioeducativa compreendendo seus protagonismos;
12% envolvimento do (a) adolescente, da família, da equipe técnica e dos
serviços da rede;
24% traz a escuta do (a) adolescente abarcando a sua narrativa ao
apresentar e reconstruir sua história de vida e este aspecto se relaciona com
acolhimento e escuta de qualidade; permitir que o (a) adolescente não reflita
somente sobre o ato, mas também sobre seus planos futuros e a importância de
uma equipe técnica qualificada e comprometida com o paradigma da Proteção
Integral e por fim, em menor proporção, com

75
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4% aparece a construção coletiva das regras no decorrer do cumprimento da


medida de internação; colaboração na construção da compreensão crítica da
sociedade por parte do (a) adolescente; identificar as dificuldades e as
potencialidades do (a) adolescente; desenvolver a confiança do (a) adolescente nos
atores/instituições envolvidos no processo de socioeducação; ambiente físico
adequado; criatividade; respeitar o (a) adolescente desconstruindo o estigma do (a)
infrator (a) e reavaliar a própria concepção de medida socioeducativa.
A partir desse levantamento, o grupo se debruçou sobre discussões de
artigos que conceituassem práticas exitosas. Assim, para fins desta produção,
conceitua-se práticas exitosas a partir de Teixeira (2003 apud Costa, 2007).
Assim, o artigo em questão, foi organizado em quatro etapas que dialogam
entre si.
O primeiro – “Análise da atual conjuntura brasileira e perspectivas de
políticas públicas para a juventude” referencia o panorama sócio-político brasileiro
determinando a realidade e as possibilidades para o(s)(a)(s) adolescente(s) em
conflito com a lei e suas famílias.
O segundo – “Violência e Juventude” aborda a questão da violência de
forma histórica e estrutural, relacionando-se com a institucionalização do(a)
adolescente e seu processo de responsabilização.
O terceiro – “Reflexões sobre práticas exitosas” discute à luz dos elementos
como autonomia, fortalecimento de vínculos e projeto de vida, aspectos primordiais
nas medidas socioeducativas para o fomento de ações de proteção com redução de
fatores de risco.
O quarto – “Considerações Finais: As possibilidades das ações nas
unidades de internação da Fundação CASA na cidade de São Paulo” abordará os
três projetos acima citados, identificados pelos(as) próprios(as) adolescentes
atendidos no espaço sociocupacional do Judiciário.
Cabe salientar que essa produção trata-se de um “aperitivo” sobre a
temática, na tentativa de angariação de forças e parceiros de luta para o cotidiano
de trabalho que se enfrenta, exercitando a cidadania de todos os atores envolvidos.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - A ATUAL CONJUNTURA BRASILEIRA E AS PERSPECTIVAS DE


POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A JUVENTUDE

A análise conjuntural torna-se relevante para a particularização do recorte


deste estudo, pois relaciona aspectos micro ao contexto macrossocial, reafirmando
que para se entender a totalidade, todas as partes, em constante movimento de
reconstrução, conformam a realidade social.
Entende-se por conjuntura as relações postas a partir da constituição da
estrutura, esta última, determinante para o entendimento da lógica dos
acontecimentos sociais permeados pelas alianças políticas pensadas para um
projeto societário específico que atenda aos interesses dos grupos dominantes e
que serão parâmetros para as relações sociais. Assim, a conjuntura política
influencia diretamente na garantia dos direitos, na continuidade ou retrocesso das
conquistas históricas, fruto de lutas da classe trabalhadora.
O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) manifesta publicamente 7
uma importante análise da atual conjuntura brasileira e o posicionamento desta
categoria profissional que vem resistindo aos desmando do atual governo neoliberal
que demonstra uma direção política em defesa de interesses distintos daqueles da
classe trabalhadora. O Conselho reconhece os retrocessos sociais em curso de uma
política perversa que aprofunda os processos de exploração da classe trabalhadora
com o apoio do Estado.
Os pacotes e medidas provisórias que vêm sendo adotados em especial
os de caráter social, ampliando a parceria do Estado com a iniciativa privada, sob os
pretextos tecnicistas e economicistas de equilíbrio das contas públicas, subtrai
direitos político-sociais e precariza as condições de vida da classe trabalhadora
impondo gritantes retrocessos.
O aprofundamento da dilapidação da Seguridade Social, a destruição da
lógica do direito social, os quais estão se materializando ao longo do atual governo
com o aval do Poder Executivo em um Congresso cuja corrupção vem sendo
denunciada e mostrada à sociedade, repleto de aparatos repressores e por um

7
Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1268 - Em tempos desiguais, não
temeremos! O Serviço Social brasileiro e o contexto de Retrocessos. Acesso em 28/09/2017 às
10h15 min.
77
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

legado clientelista aristocrático da sociedade brasileira, ameaçando direitos sociais e


humanos conquistados historicamente pelo povo brasileiro.
Na mesma direção, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) divulgou
nota8 acerca do momento da conjuntura política e social brasileira, reconhecendo
violações e desrespeitos às instituições democráticas, se posicionando em defesa
do Estado Democrático de Direito para a promoção da dignidade dos cidadãos
brasileiros, em uma sociedade pautada em valores éticos que promovam a justiça
social.
Trata-se de um contexto que acirra as desigualdades sociais e explora a
população economicamente desfavorecida. Um sistema que criminaliza e
desconsidera direitos civis básicos, julgando pública e prematuramente a população
empobrecida, mostrando a face de um Estado policialesco, apoiado por uma mídia
tendenciosa e ligada a interesses políticos sensacionalistas e distantes de projetos
democráticos que engendram comportamentos de rivalidade, animosidade e ódio
entre segmentos da sociedade.
Por fim, defendem a necessidade de solidariedade aos direitos dos atores
sociais que sofrem discriminações de variadas formas em prol da construção de uma
sociedade que consolide e respeite os Direitos Humanos.
Segundo Leonardo Isaac Yarochewsky9, jurista brasileiro, “estamos
vivendo um período de crise entre os poderes da República” com inúmeras
desavenças internas, incertezas quanto ao futuro da “democracia” brasileira, haja
vista que a teia de escândalos políticos e as ações neoliberais de governo remetem-
nos a um tempo de Estado de exceção a fundamentais direitos constitucionais,
ferindo a credibilidade dos três Poderes constituídos.
Nesse contexto reafirmamos que o Estado de exceção sempre foi imposto
e vivenciado pelas minorias e ainda mais, pelas minorias periféricas brasileiras.
Mesmo não sendo objeto deste artigo, essa passagem nos leva a refletir sobre qual
Democracia a história do Brasil se assentou.

8
Disponível em: http://site.cfp.org.br/nota-do-cfp-sobre-o-atual-momento-da-conjuntura-politica-e-
social-brasileira/. Acesso: 28/09/17 às 09h47.
9
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2016/12/15/juristas-comentam-atual-conjuntura-
politica-no-brasil/ Acesso em: 27/07/2017 às 17h30 min.
78
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nessa direção, Rocha (2016)10 aponta que há uma preocupação de


diversos segmentos da sociedade, para que os direitos fundamentais conquistados
em 1988, não sejam esquecidos a pretexto de se enfrentar um grave problema como
a corrupção.
Considerando este contexto e aproximando do objeto de estudo posto
neste artigo, constatamos que há um ambiente propício para a retomada da
aprovação da proposta da redução da maioridade penal. Realizando uma breve
retomada histórica, no ano de 2003, o tema da redução da maioridade penal voltou
com força devido à conjuntura de crimes com alto índice de violência praticados por
adolescentes (a mídia deu destaque ao "caso Champinha") e de rebeliões
recorrentes na antiga FEBEM (principalmente no ano de 2005). Já em 2015, a
Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional nº 171/1993,
que defende a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, no caso de crimes
hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. A votação ocorreu
entre os dias 1º e 2 de julho. A Câmara primeiro rejeitou essa emenda; em nova
sessão, aprovou-a em primeira votação. O texto ainda será votado em segundo
turno na Câmara e, caso aprovado, no Senado.
Essa discussão reafirma o hiato que existe entre a Justiça dos
inimputáveis e imputáveis na sociedade brasileira, confirmando a importância da
discussão sobre a socioeducação e mais, das próprias políticas públicas que
subsidiam os direitos dos sujeitos em sociedade.
Desta forma, complementar à socioeducação, as políticas públicas se
colocam na direção de um contexto de proteção, que de forma ampliada pode (não
sozinha) afastar adolescentes da necessidade socioeducativa. Ao mesmo tempo a
socioeducação aliada a um trabalho de rede que articule políticas públicas setoriais,
pode colaborar na redução do índice de reincidência infracional juvenil.
Assim, a ideia de políticas públicas está associada a um conjunto de
ações articuladas com recursos próprios (financeiros e humanos), que envolve uma
dimensão temporal (duração) e alguma capacidade de impacto. É também preciso
considerar que as decisões envolvendo a implementação de políticas públicas são
amplamente produto de conflitos em torno do destino de recursos e bens públicos
limitados, ocupando um espectro amplo de negociações e de formação de
10
Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2016/12/15/juristas-comentam-atual-
conjuntura-politica-no-brasil/ Acesso em: 27/07/2017 às 17h30 min.
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consenso, mesmo que provisórios. Ela não se reduz à implantação de serviços, pois
engloba projetos de natureza ético-política e compreende níveis diversos de
relações entre o Estado e a sociedade civil na sua constituição.
No Brasil, compreendendo a adolescência a partir da própria Constituição
Federal de 1988 e os aparatos legais que na sequência se colocam como uma
conquista recente, podemos observar uma discrepância a partir da dificuldade de
implementação daquilo que as bases legais preveem, mantendo-se os olhares ainda
distantes da própria adolescência e juventude, denotando a ausência de serviços e
instituições voltadas para a demanda desta faixa etária.
Mesmo com toda esta dificuldade identificada, aponta-se que esse
cenário passa a se alterar no final dos anos de 1990 e início da década atual.
Iniciativas públicas são observadas, algumas envolvendo parcerias com instituições
da sociedade civil e as várias instâncias do Poder Executivo são mobilizadas.
No Brasil, ainda se observa ausência de estudos de como foram
concebidas as políticas públicas no século XX destinadas aos jovens, reiterando
algumas das orientações latino-americanas que foram determinadas pelos
problemas de exclusão dos (as) jovens da sociedade e os desafios de como facilitar-
lhes processos de transição e integração ao mundo adulto (Abad, 2002 apud Sposito
e Carrano, 2003).
O descaso para com os direitos essenciais ao desenvolvimento básico da
nossa juventude reafirma importante descaso com as vidas de jovens e famílias
vulnerabilizadas. Violências sucessivas se instalam em seus cotidianos e a
banalização da violência paralela ao desfoque das questões primordiais aos
avanços garantistas continua vitimizando gerações e promovendo retrocessos
históricos.
No caso das ações que envolvem a juventude, dois aspectos importantes
precisam ser levados em conta. De um lado, a ideia de que qualquer ação destinada
aos(às) jovens exprime parte das representações normativas correntes que
determinada sociedade constrói. Por outro lado, a conformação das ações e
programas públicos não sofre apenas os efeitos de concepção, mas pode, ao
contrário, provocar modulações nas imagens dominantes que a sociedade constrói
sobre seus sujeitos jovens. Assim as políticas de juventude não seriam apenas o

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retrato passivo de formas dominantes de conceber a condição juvenil, mas poderiam


agir, ativamente, na produção de novas representações.
As representações normativas, embora focadas nos jovens, não incidem
sobre eles isoladamente. Elas tratam, sobretudo, de universos relacionais: jovens e
mundo adulto, este último marcado pelo poder exercido nas instituições, nas quais
as possibilidades de interação, de conflito e de solidariedade também se destacam.
Este quadro requer que todos os atores sociais participem ativamente e
resistam de maneira representativo-coletiva, como forma de enfrentamento aos
desmandos e sucateamento das políticas públicas voltadas para a adolescência e a
juventude que entendemos ser imprescindíveis às possibilidades de garantia dos
direitos, inclusive àquelas em conflito com a lei.

2 - VIOLÊNCIA E JUVENTUDE

A violência acompanha as relações sociais desde tempos imemoriais,


mas a cada época histórica ela se manifesta de formas e circunstâncias diferentes.
Apesar da constância das diversas formas de violência e dependendo do contexto
histórico, até certa naturalização, definir violência é um trabalho complexo.
Assim, abordar a temática em questão se colocou como um desafio ao
grupo, tendo em vista que dependendo do prisma, o (a) adolescente pode ser
aquele que produz a violência (atos infracionais), mas por outro lado, considerando o
contexto social abordado anteriormente, ele pode ser violentado por esta.
Neste sentido Oliveira (2001 apud Ferrão, Santos, Dias 2016, p. 355)
aponta que as estatísticas não corroboram com a ideia de serem os(as)
adolescentes os(as) principais responsáveis pelo aumento de violência urbana,
revelando que crianças e adolescentes são em maior número vítimas de violência do
que autores de atos infracionais.
Assis e Constantino (2003 apud COSTA, 2005, [s.p]) observam que a
década de 1990 consistiu num grande investimento da comunidade acadêmica em
trabalhos sobre violência, infância e adolescência, com especial atenção à infração
juvenil. Período que corresponde às mais significativas mudanças nacionais em
termos de normativas e leis, orientando mudanças no atendimento ao (à)
adolescente em conflito com a lei.

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Todavia o que se observa são as dificuldades de mudança de paradigmas


entre legislações e aparatos institucionais, que traduz “abundâncias de experiências
negativas em relação às exitosas no contexto socioeducativo, o que pode reforçar
algumas concepções que relacionam comportamento infrator a um alto padrão de
repetição” (COSTA, 2005 apud FERRÃO, SANTOS e DIAS, 2016, p. 355). Assim, o
progresso obtido no tocante às ações voltadas aos jovens envolvidos com a prática
infracional no Brasil é bastante restrito, o que confere à questão um tom de
prevalência e persistência de experiências negativas.
Levantamento oficial IPEA/MJ-DCA (2002) aponta que a medida
socioeducativa privativa de liberdade revela um quadro plural que traz a
concomitância tanto de dimensões baseadas na atual proposta socioeducativa
quanto na própria reprodução das antigas FEBEM’s. Nesta mesma direção, no dia
21/02/2017 foi realizada a vídeo conferência organizada pelo Grupo de Trabalho
Adolescente Infrator do Tribunal de Justiça de São Paulo na qual o juiz Dr. Reinaldo
Cintra expôs sobre a realidade impactante apurada nas visitas efetuadas para
conhecimento das Unidades de Internação no País. Como parte da pesquisa
realizada pelo Conselho Nacional de Justiça observou-se expressões de inexistência
de equipe técnica ou ausência de capacitação, uma prática baseada “tranca e couro”
(sic), inclusive apurando também a existência de “70 adolescentes sem processos”
(sic).
Esse contexto reafirma o quadro de desrespeito aos direitos humanos e a
não garantia do direito à vida, saúde, liberdade, dignidade, convivência familiar e
comunitária, educação, esporte e lazer, indo na direção contrária da Doutrina de
Proteção Integral, conforme prevê a Constituição de 1988 – Art. 227 e o ECA (Lei
8069/90). Revela-se, ainda nas discussões técnicas realizadas através das
interfaces institucionais, o sentimento de impotência que acompanha os profissionais
no desempenho de suas funções junto a socioeducação, apontando inclusive os
próprios limites institucionais que fortalecem o sofrimento ético-políticos destes.
Valemo-nos das informações públicas e consideramos importante
destacar que segundo o Boletim Estatístico Semanal da Fundação CASA, em
24/11/2017, existiam 9.229 adolescentes e jovens em programas de atendimento
dessa instituição em todo o estado de São Paulo – sendo eles: Atendimento inicial;
Internação Provisória; Internação; Internação Sanção; Internação Sanção nas UIPs;

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Protetiva; e Semiliberdade11. Os dados apontam a importância de que os programas


voltados para a redução do envolvimento com crime e violência sejam
compreensivos e direcionados para redução dos fatores de risco e aumento dos
fatores de proteção (COSTA, 2007), contemplados pela interseção e
complementação entre as políticas públicas.
A precariedade da rede socioassistencial e das políticas públicas se
reflete no aumento exponencial da violência, as medidas socioeducativas que
deveriam ser preventivas e excepcionais quando estas não fossem suficientes
tomam uma proporção de imensidão. Dar conta de uma prática profissional que
permita uma transformação de fato prescinde de uma rede de serviços articulada e
eficiente.

3 - REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS EXITOSAS

A realidade social revela uma série de contradições, incongruências,


exclusões e violações de direitos que refletem na vida dos cidadãos, muito
especialmente dos (as) adolescentes, os (as) quais são sujeitos em condição
peculiar de desenvolvimento em um mundo permeado por valores neoliberais e de
consumo extremo.
Quando o (a) adolescente infringe as normas e o regramento jurídico
da sociedade, há uma tendência em responsabilizá-lo, sem analisar profundamente
o contexto sociocultural, político e econômico no qual está inserido. Esse é um
grande equívoco, pois, as causas que levam ao conflito com a lei são múltiplas,
complementares e históricas. Nesse cenário, devem atuar a família, a sociedade e o
Estado como corresponsáveis nesse enfrentamento.
A ocorrência de atos infracionais tem ocupado amplo espaço na mídia
e nas discussões acadêmicas, sendo importante que a sociedade de uma maneira
geral também se aproprie dessa questão e pense alternativas criativas de
intervenção e prevenção dessa problemática.
Nessa perspectiva alinhando ao estudo deste ano, serão ressaltadas as
práticas exitosas desenvolvidas junto aos (às) adolescentes em conflito com a lei,

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Ressalta-se que esse número está concentrado na medida de internação: 7.267 adolescentes e
jovens.
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conceituadas a partir do potencial que tem uma ação na promoção da proteção ao


desenvolvimento integral destes.
Ainda que raras estas práticas vêm ocorrendo em diversos estados do
país, inclusive em São Paulo. Tais ações remetem à possibilidade do contexto
socioeducativo instituir-se enquanto locus de experiências bem sucedidas e com
resultados positivos como, por exemplo, o aumento da autoestima do(a) jovem, da
sua autonomia, do seu protagonismo, da sua responsabilização individual e coletiva,
do reconhecimento de habilidades pessoais e sociais, além do fortalecimento dos
vínculos afetivos, do autocuidado e da elaboração de projetos de vida realizáveis
com o apoio da família e da rede de proteção socioassistencial.
Um dos desafios que se estabelece em relação às medidas
socioeducativas, é que as ações técnicas não sejam pontuais, isoladas, passageiras
e descoladas de um projeto transformador e educativo. É necessário, portanto, que
sejam planejadas, executadas, avaliadas e aprimoradas. Caso sejam exitosas,
devem ser divulgadas, compartilhadas, debatidas e complementadas.
Teixeira (2003 apud Costa, 2007) sinaliza que as boas experiências na
aplicação de medida socioeducativa derivam de um adequado plano de atendimento
que considere os fatores de risco presentes, os recursos disponíveis e fatores de
proteção a serem promovidos, o que sinaliza a importância da elaboração do Plano
Individual de Atendimento (PIA) do(a) adolescente.
O PIA caracteriza-se como um instrumento de planejamento, registro e
gestão das atividades pensadas e construídas com a participação do(a) jovem e da
sua família. Esse Plano só pode ser elaborado a partir do Diagnóstico
Polidimensional que defina as necessidades, dificuldades, potencialidades e
capacidades desses(as) jovens, o que particulariza esse processo. São, então,
definidas metas, ações, atividades individuais e coletivas, internas e externas, as
quais devem ser avaliadas pela equipe multiprofissional de referência, com
possibilidade de serem revistas, alteradas, complementadas e ampliadas de acordo
com a demanda dos(as) adolescentes e dos seus familiares.
O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) prevê não
só a elaboração e acompanhamento do PIA, mas a construção e execução do Plano
Político Pedagógico (PPP) das entidades e programas que executam a medida. O
PPP é uma ferramenta fundamental para assegurar o compromisso, a participação e

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a corresponsabilidade de toda comunidade socioeducativa com as práticas


desenvolvidas junto ao (à) adolescente em conflito com a lei.
Considerando o princípio da incompletude institucional, não são apenas
os profissionais da equipe de referência da Fundação CASA que devem se envolver
com o PPP, mas os atores dos diversos órgãos que compõem o Sistema de
Garantia de Direitos (Sistema Único da Assistência Social, Sistema Único de Saúde,
Sistema de Justiça, Secretarias de Educação, Cultura, Esportes e Lazer, do
Trabalho e Emprego, Conselhos de Direito etc.). Essa articulação é necessária para
pensar a proposta socioeducativa como uma construção coletiva e que também
pressupõe medidas preventivas, de proteção e de acompanhamento do egresso,
como está previsto no SINASE.
As medidas socioeducativas para além da dimensão pedagógica trazem a
dimensão da responsabilização do (a) adolescente. A partir de SOUZA (2016)
trabalha-se três dimensões da responsabilidade: 1- no âmbito jurídico, 2 – no
contexto da execução e 3 – a responsabilização subjetiva.
A primeira refere-se ao cumprimento de uma sanção na perspectiva legal,
lógica universal que rege o cumprimento da medida. A segunda traz um processo de
responsabilização referente a um discurso comportamental associado à relação com
a sociedade. A terceira marca “a possibilidade do (a) adolescente responder por seu
ato infracional de maneira única, implicando em [seu] (re)posicionamento frente a
sua vida, suas escolhas, pois, trata da sua relação do mal estar com a sociedade”
(p. 172).
Aliado a este processo de responsabilização, além do (a) adolescente e
do Estado, já abordados, identificamos a importância do fortalecimento de vínculos
com pelo menos um adulto significativo para este(a) adolescente (COSTA, 2007). A
autora aponta a importância de o processo socioeducativo auxiliar os(as)
adolescentes no estabelecimento de relações socioafetivas dotadas de mais
qualidade. Sendo a instituição muitas vezes a fonte de apoio social mais próxima e
organizada na vida do(a) jovem pode portanto, favorecer uma vinculação mais
positiva entre o(a) adolescente e seus familiares, pares e comunidade.
A partir deste debate, no próximo item apresentaremos experiências
identificadas como exitosas a partir das falas dos (as) adolescentes que cumprem

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medida socioeducativa na cidade de São Paulo e passam pelo contato com a


Equipe Técnica do Judiciário.

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS POSSIBILIDADES DAS AÇÕES


NAS UNIDADES DE INTERNAÇÃO DA FUNDAÇÃO CASA NA
CIDADE DE SÃO PAULO

Com base nos pressupostos estabelecidos pelo ECA e pelo SINASE, é


direito de toda criança e adolescente – incluído aqueles que cumprem medida
socioeducativa – o acesso à educação, cultura, esporte e lazer. Desse modo, toda e
qualquer instituição responsável pela execução de medidas socioeducativas deve
conter um Plano Político-Pedagógico (PPP), que orientará o atendimento aos (às)
adolescentes.
A partir de um diagnóstico da realidade do Centro de Atendimento, do
perfil dos (as) adolescentes, famílias e do território, o Plano deve estabelecer
diretrizes de trabalho capazes de suprir as demandas do público atendido e
promover o processo socioeducativo em conformidade com o SINASE. Dentre os
eixos de trabalho no curso da medida socioeducativa, destacamos como um dos
mais importantes o eixo pedagógico, responsável não apenas pela educação formal,
mas também pelas atividades culturais e esportivas.
Assim o que definimos até então como práticas exitosas, mencionamos
nesse tópico alguns projetos oferecidos em centros de internação da Fundação
CASA. Tais experiências são entendidas como exitosas a partir do discurso dos (as)
próprios (as) adolescentes, que verbalizam sobre as atividades realizadas ao longo
da medida internação, durante o atendimento com a Equipe Técnica Judiciária.
Podemos afirmar, então, que se trata de uma constatação empírica, uma vez que
parte da verbalização do próprio público alvo e da escuta dos técnicos (assistentes
sociais e psicólogos). O critério empírico utilizado advém dos entraves burocráticos
e da dificuldade de comunicação com a direção da Fundação CASA para o acesso
às informações, conforme já abordado.
A partir disto, os Projetos que ganham relevância são:
Projeto Guri: funciona por meio de convênio com a Fundação CASA,
compõe a grade regular da área pedagógica em todos os Centros e oferece cursos

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de musicalização (percussão, instrumental, composição de músicas etc.). Segundo


consta, é considerado o maior programa sociocultural brasileiro, sendo mantido pela
Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Tem por objetivo atender crianças e
adolescentes, entre 6 e 18 anos, oferecendo cursos de iniciação musical, luteria,
canto coral, tecnologia em música, instrumentos de cordas dedilhadas, cordas
friccionadas, sopros, teclados e percussão. Possui quase 400 polos em todo o
estado, incluindo os polos da Fundação CASA.
- Projeto Yam: é um projeto voluntário, idealizado pelo Prof. Dr. A. Cesar
Deveza Silva, que oferece aulas de yoga na Fundação CASA; as turmas são
compostas por adolescentes e até mesmo funcionários. Tem por objetivo oportunizar
aos adolescentes e funcionários participantes o “contato com os princípios e práticas
do Yoga, promovendo alívio das tensões físicas e psíquicas, melhorando a
qualidade de vida e aumentando as possibilidades de desenvolvimento do potencial
humano”. Atualmente, o projeto alcança apenas dois centros de internação, o CASA
Bela Vista e Nova Vida, localizados no complexo da Vila Maria.
- Associação Águia: é uma organização sem fins lucrativos, que iniciou
seus trabalhos em 1999, à princípio com a proposta de auxiliar crianças e
adolescentes em situação de rua. Atualmente, o projeto se dedica a atender apenas
adolescentes, com idades entre 15 e 19 anos, em cumprimento de medida
socioeducativa na Fundação CASA. O projeto visa oferecer oficinas de psicodrama
baseada nos princípios da Justiça Restaurativa. Além das oficinas (12 no total), o
projeto busca oferecer também “aconselhamento individual e acompanhamento ao
(à) adolescente e sua família por pelo menos dois anos após a desinternação para
ajudar com cursos profissionais e emprego ou em qualquer outro tipo de
acompanhamento que eles e sua família precisem”.
Os projetos citados podem ser considerados exitosos à medida que têm
uma repercussão positiva entre os (as) adolescentes que participaram e porque
contribuem significativamente no processo de socioeducação. A participação nessas
atividades – e a troca que existe entre educandos e educadores – contribui muitas
vezes para a ressignificação de experiências vividas e para a ampliação do
repertório cultural, dando novos sentidos às histórias de vida dos (as) adolescentes.
Trata-se de um trabalho realizado na contramão do viés meramente moral
e disciplinador, dando espaço a concepções críticas e progressistas acerca da

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adolescência, do ato infracional e da intervenção técnica neste contexto, evitando


práticas excludentes e aprisionantes (COSTA, 2005).
Por outro lado, as experiências exitosas não dependem apenas da
qualidade das atividades oferecidas ou do esforço individual dos educadores e
educandos. Resultados positivos são possíveis a partir do alinhamento do conjunto
dos atores envolvidos na medida socioeducativa, que perpassa os professores,
educadores, equipe técnica e de segurança, além do real envolvimento da instituição
executora, do Sistema de Justiça como um todo e da sociedade civil.
Em última instância, a contribuição e os reflexos positivos de uma medida
socioeducativa de internação – aqueles que se sobressaem à experiência
inevitavelmente negativa da privação de liberdade – podem ser melhor percebidos
no retorno à convivência familiar e comunitária, reafirmando a importância da
dimensão da liberdade para as relações sociais.
A medida socioeducativa é com frequência entendida tão somente como
uma forma de evitar que o (a) adolescente reincida em novas práticas infracionais,
no entanto, o ato de delinquir por vezes está associado a um ato de insurgência
contra a gama de violência a que esses adolescentes e suas famílias são
submetidos em seus processos de socialização. Ainda, segundo Costa (2005) deve-
se considerar que o envolvimento infracional expressa, antes de tudo, uma situação
de risco, de vulnerabilidade em diversos aspectos da vida, de modo que, para além
da responsabilização, para ser entendida como “exitosa”, a medida socioeducativa
deve oferecer condições para a superação destes riscos.
Em suma, compreender que os (as) adolescentes são pessoas em
desenvolvimento e, portanto, ofertar-lhes possibilidades de exercício de cidadania
com políticas públicas que garantam o atendimento de suas necessidades deve ser
um compromisso reconhecido por toda a sociedade.

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REFERÊNCIAS

BRASIL, IPEA/MJ-DCA. Mapeamento nacional das Unidades de Execução de


medida de privação de liberdade. 2002.

COSTA, Cláudia Regina Brandão Sampaio Fernandes da. É possível construir


novos caminhos? Da necessidade de ampliação do olhar na busca de experiências
bem-sucedidas no contexto socioeducativo. Estudos e Pesquisas em Psicologia,
UERJ, RJ, ANO 5, N. 2, 2º semestre de 2005 [digital].

SPOSITO, Marília Pontes e CARRANO, Paulo César Rodrigues. Juventude e


Políticas Públicas no Brasil. Trabalho apresentado na 26ª Reunião Anual do ANPEd
– Poços de Caldas/MG, 5 a 8/out/2003.

FERRÃO, Iara da Silva; SANTOS, Samara Silva dos e DIAS, Ana Cristina Garcia.
Psicologia e práticas restaurativas na socioeducação: relatos de experiências.
Psicologia: Ciência e Profissão, abr-jun 2016, vol. 36, nº 2, p. 354 e 363.

FUNDAÇÃO CASA. Boletim Estatístico Semanal. Disponível em:


http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=boletim-
estat%C3%ADstico&d=79, acesso 06/12/2017 às 11:35h

COSTA, Cláudia Regina Brandão Sampaio Fernandes da. Contexto Socioeducativo


e a Promoção de Proteção a Adolescentes em Cumprimento de Medida Judicial de
Internação no Amazonas. Tese apresentada com vistas à obtenção do título de
Doutor em Ciências na área de Saúde Pública. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone
Gonçalves de Assis Rio de Janeiro, Junho de 2007 [2.4 – Experiências exitosas no
atendimento ao adolescente autor de ato infracional]

TEIXEIRA, MLT. As histórias de Ana e Ivan: boas experiências em liberdade


assistida. São Paulo: Fundação Abrinq; 2003.

ASSOCIAÇÃO ÁGUIA. Página Inicial. Disponível em: http://associacaoaguia.org.br


Acesso em: 17/11/2017 às 14h.

YAM. Conheça o projeto. Disponível em: http://www.projetoyam.com.br. Acesso em:


17/11/2017 às 14h.

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GUARDA COMPARTILHADA NOS CASOS ALTAMENTE


LITIGIOSOS, ENTRE O IDEAL E O POSSÍVEL: UM
CAMINHO EM CONSTRUÇÃO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“CASOS ALTAMENTE LITIGIOSOS”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017
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COORDENAÇÃO

Glausa de Oliveira Munduruca – Psicóloga Judiciário – Comarca de Barra Bonita


Maria Isabel Strong – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional XI de Pinheiros

AUTORES

Ana Maria Iria Leite de Ávila Camargo – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Miracatu
Andreza Cristina Oliveira da Silva Calixto – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Campinas
Claudia Belardo Colatrella – Psicóloga Judiciário – Comarca de São Vicente
Egli Maria Micheski – Psicóloga Judiciário – Comarca de Registro
Erica Fragoso Pacca – Assistente Social Judiciário – Comarca de Juquiá
Jaqueline Fernanda Verônica de Jesus – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Taubaté
Kherley Dacylane Val Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José dos
Campos
Letícia Cortes de Souza – Psicóloga Judiciário – Comarca de Taubaté
Lucy Vianna Alcebíades – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guarujá
Márcia Aparecida Thomé Garcia – Psicóloga Judiciário – Comarca de Botucatu
Paula Melissa Cunha Tosta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jacareí
Rosangela Maria Lenharo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ibitinga
Rosenilda Maria da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Mogi das Cruzes
Rosibel Maria de Moraes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Agudos
Sueli Aparecida Correa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sorocaba
Talita Afonso Chaves – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guarujá

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A GUARDA COMPARTILHADA NOS CASOS ALTAMENTE


LITIGIOSOS, ENTRE O IDEAL E O POSSÍVEL: UM CAMINHO EM
CONSTRUÇÃO

Se nada for tentado, nada acontecerá; e se for


tentado, poderá dar certo ou não. Em termos
humanos, um único caso bem-sucedido há de ser
valorizado. (CEZAR-FERREIRA; MACEDO, 2016,
p.150).

INTRODUÇÃO

É ponto de concordância entre os diferentes saberes que atuam no


judiciário que o rompimento conjugal não cessa os deveres parentais. No entanto,
parece que vivemos um tempo em que as pessoas perderam as referências do que
é ser pai e ser mãe, de como devem agir e desempenhar estas funções, isso
independentemente do divórcio ou da separação.
O modelo piramidal patriarcal do passado não mais representa as
relações sociais da atualidade, a verticalidade do mundo de ontem foi substituída
pela horizontalidade do nosso mundo atual. No entanto, isso não significa ausência
de autoridade ou que pais e filhos ocupam o mesmo patamar na dinâmica familiar.
As transformações na vida social, o declínio do patriarcado, a crise de
autoridade, a passagem do sistema piramidal para o conceito de vida em rede, a
fluidez da delimitação dos papéis sociais, a dissociação entre sexo e gênero, entre
outras mudanças, desembocam na importância da Lei como instância reguladora
das relações sociais e como corretora de desigualdades e de preconceitos ao longo
da história do país.
No Direito de Família, as Leis 11.698/2008 e 13.058/2014 vêm
regulamentar a questão da guarda compartilhada. É o Estado, ou seja, o público
adentrando na vida privada dos cidadãos e estabelecendo as diretrizes das relações
familiares. O conhecimento técnico e científico, como portadores de uma verdade,
92
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

são convocados para dar fundamento às argumentações que sustentaram à criação


destas leis. Certo ou errado, é desta forma que a realidade se impõe, não cabendo
ao Juiz o questionamento das leis, mas sim a sua aplicação. Para tanto, a legislação
prevê que o magistrado poderá solicitar avaliações psicossociais como mais um
elemento para alicerçar a sua decisão.
Neste sentido, destaca-se a responsabilidade dos profissionais dos
Setores Técnicos do Judiciário que, para além de corroborarem os conceitos
fundamentais já apresentados pela Lei, devem levantar questões do caso em estudo
e trazer outros elementos à cena jurídica, ampliando o campo de visão e
contribuindo com a análise de cada caso.
Em termos teóricos, conforme a bibliografia estudada, verificamos que a
guarda compartilhada representa a melhor situação possível para o desenvolvimento
humano, tanto dos pais como dos filhos e, enquanto profissionais dos Setores
Técnicos do Judiciário, devemos atuar no sentido do favorecimento da aplicação
desse ideal.
No entanto, observamos que nos casos de divórcios altamente litigiosos,
nos quais as dificuldades de comunicação entre os ex-cônjuges são frequentes,
procura-se proteger a criança das desavenças determinando-se a guarda unilateral.
Mas, seria essa a melhor decisão? Essa pergunta nos remete a outro consenso:
depende de cada caso. Por esta razão, nosso Grupo de Estudo optou por abordar o
tema da guarda compartilhada nos casos altamente litigiosos através da discussão
de casos práticos, articulados com a literatura atual.
Várias questões emergiram, entre elas: seria possível aos técnicos do
judiciário auxiliar os pais na elaboração de seus conflitos no campo da
parentalidade? O judiciário seria a melhor instituição para tratar destas questões?
Em que os setores técnicos do judiciário podem contribuir?
Tendo essas questões como norteadores, desenvolvemos o presente
trabalho.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - O TEMPO EM QUE VIVEMOS: DECLÍNIO DO PATRIARCADO E A


GUARDA COMPARTILHADA

Inegavelmente, vivemos um tempo de mudanças sociais intensas que


requerem novos enfoques e modos de atuação. O autoritarismo, por exemplo, não
encontra mais aplicabilidade nas relações e intensifica-se a utilização de técnicas
alternativas de resolução de conflitos que visam à pacificação.
A Prof. Dra. Evani Zambon, palestrante convidada, destacou a
importância de trabalhar na área das Varas de Família com olhar ampliado para a
dinâmica e a configuração das formações grupais, habituando-se às “famílias no
plural” e realizando uma leitura das famílias em ruptura, das figuras expostas e,
principalmente, observando que nessa dinâmica as crianças tentam se organizar em
face das pressões que sofrem. Diante de tais pressões, elas podem sinalizar
referências para o sofrimento vivenciado com a divisão do casal de genitores e ela
mesma dividida entre o pai e a mãe. Nesse processo tão sofrido, as crianças podem
demonstrar suas vivências relacionadas às rupturas familiares e às dificuldades
quanto a identificação de figuras representativas.
Zambon relatou que buscou materiais em sites italianos que traziam
estudos de desenhos de crianças que vivenciaram essas experiências e ressaltou
que o conteúdo ilustra ricamente a realidade das crianças que junto com seus
genitores vivenciam os desdobramentos do rompimento entre o casal. A autora
apresentou a seguinte reflexão ao grupo: “Esses casais estão preocupados com as
crianças?”.
Considerando tal reflexão, discutiu-se sobre a problemática dessas
famílias e como as demandas emocionais dos adultos interferem na forma de
perceberem as necessidades dos filhos, os quais acabam sendo envolvidos nos
conflitos de conjugalidade muitas vezes não resolvidos entre os genitores.
Nessa dinâmica, ponderou-se também sobre as configurações das
famílias na atualidade marcadas por relações que priorizam as necessidades
individuais e que revelam pouco compromisso com os valores éticos, bem como
sobre a maior participação da mulher no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, a
realidade do desemprego estrutural, o estimulo ao consumismo, o aumento continuo

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

do número de divórcios, a redução do número de filhos, a liberação sexual e da


opção sexual.
A família foi apresentada por Zambon com um perfil em movimento,
vivendo um processo de transformação, que poderia ser caracterizada em diferentes
modalidades:
- famílias reconstituídas; recombinadas; simultâneas;
- famílias monoparentais e muitas vezes chefiadas apenas por mulheres;
- famílias homoafetivas;
- famílias adotivas.

Ainda se deve considerar que as famílias também sofreram impacto na


dimensão relacionada ao aumento da expectativa de vida, sendo que os idosos se
tornaram figuras mais presentes e atuantes na família, inclusive nos cuidados das
crianças.

No bojo de tantas mudanças dimensionais ocorrem os conflitos e, em


consequência, as rupturas que transgridem papéis e confundem funções, assim há
uma intersecção entre a parentalidade e a conjugalidade formatada por confusão de
papéis e funções, sendo que uma das principais funções dos pais que é a proteção
fica comprometida devido à supervalorização das queixas dos adultos que têm
dificuldades para diferenciar o papel parental do conjugal e de identificar as
necessidades das crianças.

Nesse contexto de formação das famílias reconstituídas é necessário


refletir sobre os limites e os alcances para a convivência com os filhos. As
dificuldades nas passagens das diferentes etapas de desenvolvimento, mudanças
nos modos e estilos de vida humano, o enfrentamento do desconhecido, das
pressões sociais, as formas de lidar com os mitos (como, por exemplo, o mito da
juventude eterna), com as drogas (famílias mais permeáveis às drogas ditas
recreativas), com doenças, entre outros.

E os profissionais que atuam nas varas de família precisam estar atentos


para lidar com esses atores e seus papéis, bem como com os novos desafios em
contraste com a precariedade de políticas públicas em redes de atenção que
alcance as necessidades que permeiam essas famílias, além dos atrasos da
efetivação da garantia de direitos. Salta ainda nessa rotina de trabalho a

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necessidade do profissional conhecer as leis para atuar nesse contexto, pois os


operadores do Direito, assim como o juiz, necessitam de uma perspectiva
multidisciplinar diante das situações que chegam até o judiciário.

Nesse novo contexto, já não se pode mais considerar os arranjos de


guarda ou de visitação pautados em modelos familiares ou rotinas familiares
tradicionalmente conhecidas e inegavelmente ultrapassadas: a mãe no cuidado do
lar e dos filhos e o pai como provedor afastado da convivência, da familiaridade na
educação e nos cuidados da prole. As sentenças tradicionais atribuindo a guarda à
mãe e visitas quinzenais ao pai não mais se adequam ao funcionamento familiar que
antecedia a própria separação, tampouco aos interesses das crianças.
Não se mostrará benéfico qualquer arranjo que venha atribuir a qualquer
dos pais um papel secundário ou acessório, quer na convivência, quer na
participação da educação e das decisões importantes referentes aos filhos, bem
como nas responsabilidades referentes a eles.
Motta (2006) destaca que a experiência tem demonstrado a boa
aplicabilidade da guarda compartilhada tanto em situações de consenso quanto em
situações de litígio onde outras tentativas de composição não alcançaram os efeitos
desejados e necessários.

Zambon, no entanto, vislumbra restrições à aplicabilidade da guarda


compartilhada nos casos altamente litigiosos e, reportando-se aos autores que
sugerem que a guarda compartilhada seria um caminho seguro para acabar com a
alienação parental, questiona:

- Um casal que não tem um mínimo de compreensão e de comunicação


entre eles serão beneficiados com a guarda compartilhada?
- Com base no suposto superior interesse da criança nós, do judiciário,
podemos apontar o que é melhor para uma família ou como uma família deve agir?
Em relação ao superior interesse da criança, reportamo-nos ao trabalho
de Azambuja e colaboradores (2009) ao ponderarem que a criança tem direito a
continuidade dos cuidados recebidos durante a união familiar. As autoras defendem
que, caso não haja consenso inicial, a guarda unilateral seja determinada e os pais
sejam acompanhados a fim de que essa decisão possa ser revista posteriormente,
com vistas à possibilidade de compartilhamento da guarda.

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As referidas autoras enfatizam que se o real interesse dos pais fosse o


bem estar dos filhos não haveria litigio para o estabelecimento da guarda
compartilhada, pois cada um dos genitores seria capaz de reconhecer a importância
do outro na subjetividade da criança e ao saudável desenvolvimento psicológico.
Havendo litígio, observa-se que o requerimento de guarda unilateral ou
compartilhada parece representar outra cena psíquica que não o desejo de participar
ativamente da vida do filho e/ou o superior interesse da criança.

Verificamos que, diante de cada caso, surgem novos questionamentos e


argumentações que nos remetem ao sentido da guarda compartilhada e à função da
Lei nas novas configurações familiares.

2 - O SENTIDO DO COMPARTILHAMENTO DA GUARDA

De acordo com diversos autores, tais como: Miguel (2015), Azambuja


(2009) e Motta (2006), o verdadeiro sentido do compartilhamento reflete aquilo que
se entende por poder familiar. A atribuição a ambos das responsabilidades em
relação aos filhos significa possibilitar a utilização do poder familiar em igualdade de
condições e retirar aquele poder conferido pela guarda única e utilizado, muitas
vezes, com motivos que não estão na defesa dos interesses dos filhos.
Segundo Motta (2006), o compartilhamento da guarda equilibra forças e
evita comportamentos lesivos aos interesses dos filhos, tal como propiciados pela
guarda única. A flexibilidade no tempo de convivência deve estar presente nos
arranjos de guarda compartilhada buscando sempre o referencial do melhor
interesse da criança, não significando que ela deva conviver de modo
milimetricamente igual com cada um dos genitores.
Azambuja e colaboradores (2009) reforçam essa postura enfatizando tal
flexibilidade, principalmente quando se trata de crianças pequenas, considerando
que elas não devem ser expostas a constantes mudanças e garantindo, desta forma,
o melhor interesse das mesmas, possibilitando, ainda, que os pais cumpram as
cláusulas ajustadas na fixação das visitas.
A sugestão dos autores é para que os pais, sempre que possível,
flexibilizem a aplicação destas regras, através de um bom relacionamento, pois,

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quanto melhor for a relação entre os pais, melhores serão os indicadores de saúde
mental da criança.
A guarda compartilhada deve ser tomada como uma postura, como o
reflexo de uma mentalidade segundo a qual pai e mãe são igualmente importantes
para o filho de qualquer idade, devendo essas relações ser preservadas para a
garantia de que o adequado desenvolvimento integral das crianças e adolescentes
venha a ocorrer.
Outro aspecto importante é a distinção entre compartilhamento e
alternância de guarda física. Um casal pode decidir ter os mesmos direitos e deveres
decorrentes do poder familiar sobre os filhos e manter uma residência principal.
Outros podem alternar períodos na residência de um ou de outro genitor. De
qualquer modo, ambos os pais devem se responsabilizar pelo atendimento às
necessidades dos seus filhos.
Conforme salientado pela Juíza Angela Gimenez12 :

É importante que se diga que a criança não transita entre a casa do


pai e a casa da mãe, mas sim entre a casa em que mora com seu pai
e a casa em que mora com sua mãe, atentando-se para o efeito
inclusivo que essa visão traz. A convivência (viver com...) é
imprescindível para o estabelecimento e manutenção dos laços de
afeto entre as pessoas. É necessário que ambos os pais participem
ativamente do cotidiano dos filhos, para que esses possam partilhar
das dores, alegrias, ansiedades, medos e realizações e de muitos
outros sentimentos, de forma a apoiá-los e direcioná-los a uma vida
segura e feliz (IBDFAM, 2016).

No entanto, geralmente, logo após a separação, os membros familiares


encontram-se submersos por sentimentos dolorosos que impossibilitam uma postura
adequada diante da prole e, pautados em suas representações mentais, tendem a
solicitar a guarda unilateral acreditando ser impossível ou impraticável qualquer
compartilhamento com o(a) ex-parceiro(a).

12
Juíza da Primeira Vara de Família de Cuiabá em entrevista à IBDFAM, em 05/10/2016.
www.ibdfam.org.br/notícias/6151/Lei+13.058-2014. Conheça as principais características da norma
que regulamentou a guarda compartilhada no Brasil.
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2.1 - AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS (IM)POSSIBILITANDO O


COMPARTILHAMENTO DA GUARDA

Os problemas e as soluções são construídos nas


relações conforme os significados que se lhes
dão. E os significados são construídos,
socialmente, na interação com o outro por meio da
linguagem. (CEZAR-FERREIRA; MACEDO, 2016,
p. 126).

Fatores políticos, econômicos, psicossociais, bem como as


transformações dos papéis do homem e da mulher na sociedade, além da mudança
de paradigma na fixação de guarda (não apenas para a mãe) são aspectos que
contribuem para o aumento da litigiosidade entre os genitores e afetam
sobremaneira o exercício da parentalidade.
Esse exercício, por sua vez, dependerá do modo como o sujeito interpreta
as situações que vivencia. Isso quer dizer que uma mesma situação pode ser
interpretada de diferentes maneiras. Para alguns genitores, permanecer afastado do
filho um final de semana pode representar uma perda afetiva; enquanto para outros,
trata-se de uma oportunidade de realizar alguma atividade pessoal impossibilitada
pela presença da criança ou adolescente.
De modo semelhante, a guarda compartilhada pode representar alívio
para alguns na medida em que não se sentirão sobrecarregados por ser o único
responsável pelo destino da prole; para outros, pode significar perda do controle
sobre o filho e diminuição de poder.
Agregam-se a isso aspetos inconscientes relacionados à lealdade
invisível inerente aos mitos familiares, bem como aos conflitos transgeracionais
veiculados subliminarmente através da linguagem. Ou seja, a complexidade dos
casos é inegável.
Tentando traçar algumas linhas gerais, poderíamos pensar que, do lado
masculino, haveria uma espécie de luta para recuperar um lugar supostamente
perdido, por se sentir excluído da vida familiar, sem poder e sem lugar social
claramente definido. Essa luta parece ser transposta ao campo jurídico através dos
requerimentos infundados de mudança de guarda e do mau uso da Lei de Alienação
Parental.

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Atrelada à essa dinâmica, observa-se na prática cotidiana dos Setores


Técnicos que, na grande maioria dos casos atendidos, essas são formas de
expressão de um sentimento de vingança dos homens, principalmente após a
perpetração de Ação de Alimentos, instigando o litígio e pondo em xeque o suposto
“poder materno” sobre as crianças. Não se descarta, ainda, que esse modo de agir
pode representar resquícios do machismo que ainda impera na sociedade brasileira.
Do lado feminino, o apelo ao biológico e a prevalência das pulsões de
domínio observadas nas frases corriqueiras: “quem pariu fui eu... quem sentiu as
dores...”, traduzem enunciações que aparentemente camuflam profundos conflitos
em relação à feminilidade e desencadeiam fantasias de que o outro (homem) deverá
compensar de alguma forma o sofrimento sentido ao ter gerado outra vida.
Temos, também, a representação da mulher multifacetada que pode ser
algoz, batalhadora, conquistando seu lugar social e no mercado de trabalho, mas
que pode se posicionar como vítima ao assumir todos os lugares reivindicados
historicamente e, ainda, a única responsável pelos cuidados com os filhos.
Verifica-se que as representações sociais adquirem coloridos particulares
que dependem da história de vida de cada sujeito.
Pensando em termos gerais e apoiando-se em Badinter (1985), Suannes
(2011) defende a hipótese de que o instinto materno não é inato à mulher, mas que
o desejo de ser mãe pode se instalar ou não na psique feminina durante a gestação
ou após o nascimento de uma criança. Trabalhando como psicóloga nas Varas de
Família do TJSP, a autora observou em sua tese que as mulheres podem
apresentar conflitos entre feminilidade e maternidade, relacionadas às identificações
com suas próprias mães e que a perda da guarda de um filho pode atingir profundas
camadas narcísicas tornando a luta judicial uma forma de resgate de aspectos da
própria identidade. Assim, é possível perceber que muitas vezes ganhar na Justiça
se sobrepõe ao real desejo de exercer a maternagem.
Paralelo a isso, reflete-se, também, sobre a fluidez dos papéis sociais, a
imposição da teoria de gênero dos dias atuais e a maior dificuldade por parte das
mulheres em aceitar a guarda compartilhada como um meio de não perder a
soberania do suposto poder materno sobre os filhos, valor esse tão arraigado em
nossa sociedade e agregado ao mito do amor materno.

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Enfim, existem novos homens, novas mulheres, novas famílias e novas


crianças e adolescentes que geram novos conceitos que se chocam com as antigas
representações dando origem a novas demandas relacionadas às separações, aos
conflitos no convívio com os filhos, aos vínculos socioafetivos, entre outros temas,
tais como: alienação parental, abandono afetivo e guarda compartilhada.

Buscando-se refletir sobre as representações sociais relacionadas à


guarda de filhos, Schneebeli e Menandro (2014) desenvolveram pesquisa aplicada a
30 pessoas residentes em Vitória-ES que vivenciavam processo de disputa de
guarda. As autoras utilizaram a Teoria das Representações Sociais, desenvolvida
pelo psicólogo francês Serge Moscovici, como referencial teórico, e os resultados da
pesquisa convergiram para a preferência por guarda unilateral e resistência à guarda
compartilhada devido à ligação que se faz entre as representações sociais de
feminino/masculino, maternidade/paternidade com as representações sociais da
guarda dos filhos.
As autoras do texto expuseram que a literatura aponta uma
supervalorização da figura materna, e que, ao longo das últimas décadas, a ciência
desempenhou um papel importante na formação das representações sociais da
maternidade e da paternidade, dando especial valor à figura da mãe. Nos últimos
anos, surgiram estudos que destacam a importância da figura paterna no
desenvolvimento psicológico. Fator que contribui para que gradualmente algumas
representações sociais relacionadas ao tema possam sofrer transformações
positivas.
O artigo alertou para o fato de que a instituição da guarda compartilhada
foi uma evolução legislativa que não se respaldou em uma evolução cultural, e que
seria preciso que as representações sociais se modificassem para uma melhor
aceitação da guarda compartilhada.
Como aspecto positivo, as autoras observaram que, na medida em que os
participantes respondiam à pesquisa, questionaram de forma natural suas próprias
representações sociais a respeito da parentalidade, possibilitando maior
empoderamento e senso de perspectiva frente à participação nos cuidados à prole.
Isso nos fez discutir que problematizar as representações sociais que identificamos
(bem como questionarmos as nossas próprias) é uma de nossas funções no
trabalho com famílias em litígio.

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2.2 - A GUARDA COMPARTILHADA NOS CASOS LITIGIOSOS:


ARGUMENTAÇÕES CONTRÁRIAS E FAVORÁVEIS

Diante da constatação de que a imposição legal sempre esteve presente


na criação da guarda unilateral e que muitos defendem que a guarda compartilhada
deve ser fruto de consenso entre as partes, Motta (2006, p.10) posicionou-se
criticamente e fez o seguinte questionamento que nos parece muito pertinente: “se o
Judiciário pode interferir impondo uma decisão no sentido de guarda única que tem
o poder de interpor rupturas significativas, porque não poderia fazê-lo na imposição
do compartilhamento da guarda por esta espelhar muito mais fielmente o poder
familiar?
A referida autora pondera que a imposição por sentença judicial possibilita
a experiências positivas que de outro modo não aconteceriam, revelando-se, no
decorrer do tempo, apaziguadora de conflitos. Mostra-se útil e adequada para os
casos em que o diálogo entre os pais não é bom e as partes não conseguem
separar os conflitos referentes à conjugalidade desfeita, do exercício da
parentalidade responsável. Salienta, ainda, que em muitos países essa forma de
guarda opera de modo automático.
No Brasil, de 2008 à 2014, a guarda compartilhada deixou de ser a
modalidade de guarda a ser instituída sempre que possível para se tornar regra,
preconizando-se não ser necessário o consenso entre o casal parental para a
administração da guarda conjunta. Desde a sua implementação no cenário nacional,
muita polêmica surgiu sobre o assunto e a guarda compartilhada vem sofrendo
progressiva aceitação de sua aplicabilidade nos casos litigiosos.

Atualmente, juristas atualizados no tema defendem que a aplicação da


guarda compartilhada dissemina o entendimento de que a conjugalidade mal
resolvida deve ser desmembrada do papel parental.

As argumentações da Ministra Nancy Andrighi, nos Recursos Especiais nº


1.262.495-SP e Recurso Especial nº 1.251.000-MG13, reforçaram esse
posicionamento e consolidaram o entendimento de que a guarda deve ser

13
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/.../recurso-especial.../inteiro-teor-21086251
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compartilhada mesmo quando os genitores não tenham diálogo favorável, pois o


sentido da determinação legal ultrapassa o litigio entre as partes e vislumbra a
reordenação futura das relações entre os membros familiares.
No entanto, ainda observamos no cotidiano das Varas de Família
entendimentos semelhantes aos encontrados por Brito e Gonsalves (2013) ao
analisar a jurisprudência relacionada à Lei nº 11.698/08. Neste trabalho, as referidas
autoras revelaram as principais argumentações que sustentaram os acórdãos
proferidos por três tribunais brasileiros (RJ, RS e MG ) no período de 2008 a 2010.
Dentre as argumentações dos juristas que sustentaram a contraindicação da guarda
compartilhada, verificou-se que a relação litigiosa entre o ex-casal foi considerada o
principal motivo para o impedimento da aplicação da guarda compartilhada, com a
justificativa de que se não havia consenso entre eles, não deveria ser imposta tal
modalidade.

Em outras decisões, negou-se a aplicação da guarda compartilhada


quando não havia indicação de motivos ou condutas desabonadoras do guardião;
em outras, o embasamento do indeferimento estava relacionado à idade da criança,
à necessidade de preservação da rotina já estabelecida e à distância das
residências dos genitores.
Sobre essa última argumentação, Miguel (2015) pondera que muitos
juristas ainda confundem conceito de guarda com o local de pernoite e/ou com a
presença física da criança ou adolescente, questão por ele considerada
absolutamente superada com o desenvolvimento tecnológico que amplia as
possiblidades de comunicação. Preocupações em torno dos dias, horários e formas
de deslocamento das crianças e dos pais não deveriam ser os principais motivos
para a negação da alteração da modalidade de guarda (Brito e Gonsalves, 2009).
Brito e Gonsalves (2013) trouxeram à baila argumentações em torno das
decisões judiciais, buscando ampliar o entendimento sobre elas, no sentido de
oferecer-lhes criticidade, dinamismo e provisoriedade, características essenciais ao
olhar perspicaz e atento às questões de cunho social (Minayo, 1998, p. 16, citado
por).
Ressalta-se que as leis que cerceiam as relações sociais,
especificamente, as que intervêm nas organizações familiares, demandam um
tempo cronológico para a sua maturação no ideário social e na consciência dos

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operadores do Direito. Há, ainda, um período necessário para que os direitos


afirmados pelas leis sejam refletidos nas opiniões e nas atitudes das instituições e
das famílias.
Nesse sentido, Miguel (2015) pondera que a guarda compartilhada é um
conceito que tem evoluído socialmente e representa o melhor exercício do poder
familiar.
Segundo Azambuja e colaboradores (2009), o estudo da guarda
compartilhada faz-se relevante e deve ser intensificado à medida que contribui para
a recuperação de uma apreciação ética das relações de filiação de modo
absolutamente necessário e complementar ao exercício da autoridade parental.
Deste modo, inicialmente, a guarda compartilhada pode não se mostrar
favorável à criança, vez que ela estaria mais suscetível às animosidades dos pais,
considerando que a separação conjugal conduz à reorganização da vida afetiva,
social, profissional e sexual de cada um deles, modificando, às vezes,
dramaticamente, a rede de convivência e apoio das crianças e dos adolescentes.
Todavia, uma vez estabelecida a nova organização familiar, a guarda pode ser
revista, evoluindo para o sistema do compartilhamento, mesmo que judicialmente
tenha sido estabelecida a forma unilateral.
A experiência demonstra que nem sempre o que é decidido no processo
judicial, referente à guarda dos filhos, é respeitado pelos pais, pois a fixação da
guarda unilateral não impede que os genitores, na prática, vivenciem com a criança
o seu compartilhamento, ainda que diferente tenha sido estabelecido em juízo. O
mais importante, segundo Azambuja, não parece ser a forma como a guarda é
fixada por ocasião da separação ou divórcio, mas a maneira como é praticada.
É sabido que a continuidade da convivência da criança com ambos os
genitores após a separação é indispensável para que seu desenvolvimento
emocional se dê de forma saudável. Esse convívio na família modificada torna-se
complexo se a guarda for objeto de disputa entre os pais, principalmente se for
percebido que a disputa da guarda oculta outros problemas como: alimentos, visitas,
partilha de bens, disputa pelo poder, vingança entre as partes por conflitos
referentes à conjugalidade desfeita. Questões estas que nada tem a ver com o
melhor para os filhos.

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Em relação à livre visitação, Brito e Gonsales (2013) evidenciaram que


alguns operadores do direito entendiam que ela se assemelhava à guarda
compartilhada, por, teoricamente, ampliar o convívio entre pais e filhos no pós-
divórcio. Contudo, a não obrigação do contato entre pais e filhos, abre prerrogativa
para que a convivência ocorra liberalmente, podendo ser rejeitada por pais ou por
filhos.
Apesar do Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente não
preverem, de forma expressa, o regramento para as visitas, entendemos que se
deve assegurar o lugar dos pais no exercício de suas responsabilidades educativas,
não deixando a situação como uma escolha a ser feita pela prole.
Nesse sentido, impõe-se a atuação conjunta dos genitores, advogados,
juízes e Promotores de Justiça para, em cada caso concreto, buscar a opção que
mais atenda ao bom desenvolvimento da criança, lembrando-se que, a qualquer
momento, as regras poderão ser alteradas, sempre que o superior interesse da
criança recomendar.
Assim, mesmo na guarda compartilhada, sustenta-se a possibilidade de
as visitas serem estabelecidas, em especial, em benefício da criança e do genitor
com quem ela não reside. A nova modalidade de guarda afasta do genitor visitante o
velho papel de “fiscal”, que antes lhe era reservado, porquanto a responsabilidade
pelos filhos é, doravante, do pai e da mãe.
Todavia, na existência de conflitos entre os genitores, é extremamente
importante que o regime de convivência seja bem detalhado, evitando-se, assim,
dúvidas e constrangimentos capazes de gerar novos desacertos.
Nos casos de intenso litígio era comum determinar que as visitas
ocorressem sob a supervisão de alguma pessoa de confiança da criança e em um
local neutro, ou até na presença do Conselheiro Tutelar. Porém, a ineficácia de tais
mecanismos, como tem sido possível constar nos inúmeros feitos judiciais, revela
que o que mais atende aos anseios da criança é a realização das visitas em
ambiente terapêutico, permitindo que os profissionais da área social e da saúde –
assistentes sociais, psicólogos, terapeutas – possam identificar as dificuldades e
oferecer ajuda à dupla criança-genitor, evitando a reedição dos traumas da
separação.

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Azambuja e colaboradores (2009) comentam que embora a guarda


compartilhada possa conter diferentes arranjos em cada caso, dúvidas e discórdias
sobre as visitas e sobre o dever de prestar alimentos são frequentes nessa
modalidade de guarda, porém nela ambos os pais continuam responsáveis pelo
atendimento das necessidades materiais dos filhos, não diferindo em nada dos
alimentos destinados aos casos rotineiros de guarda jurídica unilateral; tanto no
plano material como no plano do direito processual.
A legislação é bastante flexível, podendo ser ajustadas combinações
diferentes que incluam a divisão de compromissos, como pagamento das despesas
de educação, saúde, lazer, vestuário ou a possibilidade de se fazer o pagamento da
pensão in natura. Neste caso, o devedor de alimentos, ao invés de fornecer um valor
mensal, contribui com hospedagem e alimentação (art. 1.701 Código Civil). Cabível,
ainda, o pagamento da prestação alimentícia com uma parte in natura e outra parte
em dinheiro, para custeio das despesas em geral. Desta forma, as dificuldades que
possam surgir serão de fato e não de direito.
O que se espera, nos casos de guarda compartilhada, é que os pais
busquem um denominador comum, de forma a envolver o mínimo possível os filhos
no debate, salientando, por fim, que se algum dos genitores tentar estabelecer o
valor da pensão segundo o critério de tempo de permanência com o filho, isso pode
servir mais aos interesses do adulto do que da criança e do adolescente.
Segundo Brito e Gonsalves (2013), a exigência de alguns juízes de
enfatizar a necessidade de bom relacionamento entre os pais para a aplicabilidade
da guarda compartilhada demonstrava a junção das questões conjugais e parentais,
sendo fundamental a percepção de que o processo judicial de regulamentação de
guarda deve abranger um pai e uma mãe, não um casal conjugal.
As autoras acima citadas também verificaram que outra característica
comum nas sentenças em disputas de guarda é a preferência pela guarda materna e
a valorização de características femininas como formas de melhor atender e oferecer
cuidados. Em sua maioria, as guardas continuam sendo atribuídas às mães e muitas
destas decisões têm como elemento norteador ideologias e mitos (como, por
exemplo, o amor materno), não preconizando o pensamento científico como
norteador das decisões.

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Brito e Gonsalves (2013) concluíram que as premissas dos juristas que


circunstanciaram a negação da aplicabilidade da guarda compartilhada não
acompanhavam as discussões das ciências humanas. Assim, sugeriram que haja
interlocução entre as diversas áreas de conhecimento, inclusive por meio de debates
e discussões sobre o tema da guarda compartilhada.
No cotidiano dos psicólogos e assistentes sociais do judiciário, que
estiveram presentes nas discussões de nosso Grupo de Estudos, notamos que, em
consonância com o resultado da referida pesquisa, as decisões proferidas pelos
magistrados nas comarcas que atuamos apontam para um cenário pouco inovador,
afirmando a primazia da guarda unilateral materna. Esta situação vem sendo
vagarosamente alterada com o passar dos anos, e a equipe psicossocial tem tido
papel relevante no tocante à transmissão e afirmação de um novo entendimento.
A resistência à aceitação da guarda compartilhada é substanciada por
várias queixas dos genitores, entre elas: a) o(a) genitor(a) raramente participava da
vida do filho(a) e passa a requerer a guarda compartilhada após a constituição de
nova vida amorosa pelo ex-parceiro(a), supostamente por receio de perder o lugar
de pai/mãe; b) o (a) genitor(a) sente que apenas ele se desdobra para sustentar o
filho, sem o apoio financeiro suficiente do outro; c) considerações sobre a
inadequação do comportamento do outro (por exemplo, não sabe cuidar, faz uso de
bebida alcoólica, etc.); d) não aceitação da opinião e modo de vida do outro; e)
desejar afastar o outro de sua própria vida; f) considerar que o outro tem pouco a
oferecer ao filho; entre outras racionalizações.
Diante das queixas apresentadas pelos litigantes, geralmente verifica-se a
prevalência do mecanismo de projeção e a necessária responsabilização do sujeito
por suas escolhas, sejam elas conscientes ou inconscientes. Os pontos vantajosos
relativos a esta modalidade de guarda, dentre eles: a) o fato de evitar a
desresponsabilização do genitor que não permanece com a guarda, b) a divisão de
tarefas, c) a continuidade da relação de cuidado por parte de ambos os pais, d) o
fato incontestável de que os pais continuarão existindo e exercendo influência no
psiquismo dos filhos independentemente da presença física, não são vislumbrados
pelos litigantes.
Segundo Motta (2006) para o estabelecimento do compartilhamento não
necessitamos nem de pais mutuamente cooperativos e nem de que sejam capazes

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de diálogo e entendimento. Bastaria que as partes não se desqualificassem


mutuamente na presença dos filhos para que não fossem lançados em conflitos de
lealdade dos quais as crianças não saem ilesas. Os filhos precisam ser poupados do
papel de interlocutores para as emoções relativas à conjugalidade desfeita e que
encontra nas queixas e desqualificações forma de desabafo e tentativa de trazer o
filho como coadjuvante em atitudes vingativas e retaliadoras.
A autora acima citada considera que esse tipo de comportamento parental
destrutivo é impeditivo do bom andamento de qualquer modalidade de guarda, seja
compartilhada, única ou alternada. Pondera que a garantia de convivência com
aquele que vem sendo atingido, por vezes, é a única forma de preservar o
relacionamento sadio da criança com o genitor objeto dos ataques do outro. Por
meio da convivência frequente e aprofundada é que o genitor denegrido terá como
fazer frente aos ataques proporcionando ao filho experiência emocionais corretivas
para modificar e restabelecer a realidade dos fatos e a positividade de sua imagem.
De modo contundente, Motta (2006) assevera que não é o litígio
judicialmente estabelecido que impede a guarda compartilhada ou a inviabiliza, mas
sim, o empenho em litigar em toda e qualquer circunstância desqualificando-se e
colocando a criança como receptáculo e ponte das diferenças entre os pais. É a
disposição litigante que corrói gradativa e impiedosamente a possibilidade de
diálogo e entendimento e que deve ser impedida, pois diante dela nenhuma
modalidade de guarda será adequada ou conveniente.

2.3 - A GUARDA COMPARTILHADA NOS CASOS DE DENÚNCIAS DE


SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA

Antes de mais nada, vale a pena lembrar que a disposição litigante, em si,
provoca inúmeras situações de violência no âmbito familiar, podendo referir-se a
atos de maus tratos, de agressão verbal e/ou física, abuso sexual e violência
psicológica. A inegável superioridade da força física do homem quando comparada à
força de uma mulher ou de uma criança evidencia uma situação de possível risco,
havendo necessidade do desenvolvimento de recursos protetivos.
No Brasil, a Lei n 11.340 de 07 de agosto de 2006, conhecida como lei
Maria da Penha, trouxe avanços no sentido de instrumentalizar as mulheres que
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sofrem por não conseguir desvincular-se de uma relação conjugal opressora que a
coloca numa posição de submissão e à mercê do desejo do outro. No entanto, é
comum ocorrer a denúncia sem a continuidade da representação processual e o
retorno ao relacionamento conturbado. Observamos que os casos graves de
violência doméstica, geralmente, tramitam nas Varas da Infância e Juventude e
podem ocasionar acolhimento das crianças e, até mesmo, destituição do poder
familiar.
Nos casos altamente litigiosos é comum a apresentação de Boletins de
Ocorrência para instruir o processo e comprovar violações de direitos a fim de obter-
se vantagens processuais e afastar o outro genitor. Nesses casos, verificamos o
mau uso tanto da Lei Maria da Penha como da Lei de Alienação Parental.
Johnston (2005), uma das maiores pesquisadores sobre o divórcio
litigioso e os seus desdobramentos, alerta-nos sobre a importância de avaliar todos
os fatores que estão presentes quando uma criança recusa-se a visitar um dos
genitores uma vez que isso pode ocorrer em decorrência de situações de violência e
não de alienação parental.
Neste mesmo sentido, Silva (2013) teceu considerações sobre a lei de
alienação e recomendou clareza na descrição de sinais e indícios que apontam para
esse comportamento; mas, por outro lado, sinalizou que o profissional deve
considerar se o caso refere-se a alienação ou a proteção da criança/adolescente
contra violação de direitos diante de genitores que podem expor os filhos a riscos.
Ressaltamos que a análise sobre a veracidade da denúncia (denúncias
de abuso sexual, de maus tratos, de alienação parental, etc.,) compete ao
magistrado, cabendo aos setores técnicos a elucidação da situação sobre a
perspectiva do seu campo de conhecimento.
Diante dos diferentes casos, Johnston (2005) e Silva (2013) preconizam
que os técnicos devem assumir postura neutra e não ter concepções prontas. Em
relação à guarda compartilhada, por exemplo, Silva evidencia que não é uma zona
de conforto ou ideal comum para todos, pois cada caso é um caso, não dá para
generalizar ou unificar, sendo necessária uma avaliação criteriosa que esteja atenta
as características únicas e necessidades próprias de cada caso.
Lima (2015) também explanou sobre a necessária ampliação da visão
sobre as questões emergentes e reais trazidas pelos atores que estão vivenciando

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

rompimento de vínculos e impasses em relação à guarda dos filhos. Concomitante,


alertou para a necessidade de vislumbrar a perspectiva do contexto em sua
construção sociocultural. Nessa perspectiva, surge a necessidade também de um
olhar mais apurado, pautado na lógica do trabalho interdisciplinar e em pesquisas
com base na realidade objetiva e subjetiva das famílias em conflito que buscam na
judicialização uma forma de lidar com a problemática que demonstram impotência
para enfrentamento.
A autora acima citada recordou também o artigo 5º da lei que trata da
capacitação dos profissionais para realizar perícias. Afirmou que é necessário
considerar a complexidade das relações familiares bem como o tema de alienação e
realizar muitas reflexões até chegar ao final da avaliação de pericia e afirmar que
está ocorrendo alienação parental. Nessa perspectiva os estudos para avaliação
devem estar relacionados a questões que remetem:

- às possiblidades das crianças conviverem com seus familiares;

- ao conceito que se tem sobre as relações familiares.

Diante dos casos de suspeitas violência, Lima (2015) pondera que a


perícia não está a serviço de afirmar ou não a ocorrência, mas de favorecer as
relações e propor formas de aproximação e ampliar a convivência com o genitor
que não tem a guarda da criança. Ao mesmo tempo alertou para o risco de pais
que são abusadores se apoiarem na lei de Alienação Parental para ter acesso as
crianças e se beneficiarem da situação. Mencionou parte de um artigo, intitulado
“Lei expõe crianças a abuso”, salientando que a publicação apontava um possível
efeito reverso em alguns casos onde há a aplicação da lei da Alienação Parental,
uma vez que abre brecha para que vítimas de abuso sexual sejam obrigadas a
viver com pais suspeitos da agressão.

Desta forma, conclui-se que muitos estudos ainda não necessários,


sendo imprescindível a análise de caso a caso.

2.4 - GUARDA COMPARTILHADA COMO FERRAMENTA CONTRA A


ALIENAÇÃO PARENTAL

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Segundo Azambuja e colaboradores (2009), a lei que institui a guarda


compartilhada, mais do que uma solução, pode representar uma ilusão, passando a
ideia de que se trata de instrumento hábil a diminuir o litígio, a impulsionar a
responsabilidade paterna, deixando de trazer à tona a verdadeira origem das
dificuldades enfrentadas pelos filhos, a incapacidade de os pais priorizarem os seus
interesses, porquanto perdidos estão no sentimento de abandono que os assola.
Há pais que, apesar das rupturas produzidas pelo fim do casamento,
mostram-se aptos a considerar as verdadeiras necessidades da criança,
assegurando o respeito e a consideração que sua condição de pessoa em especial
fase de desenvolvimento exige. Outros, no entanto, somente conseguem fazer
prevalecer seus interesses pessoais, desprezando as necessidades e prioridades
dos filhos, acarretando prejuízos que podem interferir no seu desenvolvimento ao
longo da vida.
Motta (2006), por sua vez, considera que o compartilhamento pode ser
solução para os litígios nos quais as crianças são utilizadas como armas de guerra,
na interferência contínua de um dos genitores na possibilidade de relacionamento
com o não guardião. Para exemplificar, a autora reporta-se aos casos de visitas
dificultadas ou impedidas, em que os contatos telefônicos são proibidos e
dificultados, além de ser o genitor não guardião excluído de comemorações e
eventos e de informações da vida social, escolar e de informações sobre a saúde do
filho. Nessas situações, a guarda compartilhada viria ao encontro deste genitor
instrumentalizando-o com o poder que a lei confere, tendo igual poder de decisão
sobre seus filhos e, portanto, estando menos sujeito às manipulações do outro.
Conforme observado por Lima (2015), a referência à alienação parental
surge com frequência nos atendimentos que envolvem disputas de guarda ou sua
modificação, divórcio, separação, união estável, regulamentações de visitas, e,
eventualmente, em processos judiciais nomeados como “alienação parental”. A
autora afirma em sua tese que através da alienação parental surge uma importante
manifestação da questão social: a violação do direito à convivência familiar presente
nas disputas judiciais que envolvem os pais, as crianças, os adolescentes e demais
familiares.
Na tentativa de minimizar os danos decorrentes e/ou provenientes da
alienação parental, faz-se necessário ressaltar que criança e/ou adolescente são

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

considerados sujeitos em desenvolvimento, sendo necessária a convivência familiar


com ambas as famílias, materna e paterna, para que possa construir-se como
sujeito social em sua integralidade.
Para tanto, ressalta-se a doutrina da proteção integral que nada mais é do
que a proteção dos interesses do menor, os quais deverão sobrepor-se a qualquer
outro bem ou interesse juridicamente tutelado, levando-se em conta a destinação
social da lei e o respeito à condição peculiar da criança e do adolescente como
pessoas em desenvolvimento.
A proteção e a garantia da convivência familiar e também comunitária da
criança e do adolescente estão previstas na Constituição Federal do Brasil
promulgada em 05 de outubro de 1988 nos artigos 226 e 227, assim como no artigo
19º do Estatuto da criança e do adolescente de 13/07/1990 e complementado pela
Lei 1210 de 03/08/2009 e ainda no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa
do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária de
dezembro de 2006.
A partir desta explanação podemos definir como sendo proteção integral
da criança e do adolescente a garantia de direitos inerentes à sua condição de
pessoa em peculiar situação de desenvolvimento em seus aspectos sociais,
psicológicos e biológicos, que devem ser assegurados pela família, pelo Estado e
pela sociedade, através de políticas públicas efetivas e previstas na Constituição
Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A promoção, a proteção e a defesa do direito das crianças e


adolescentes à convivência familiar e comunitária envolvem o
esforço de toda a sociedade e o compromisso com uma mudança
cultural que atinge as relações familiares, as relações comunitárias e
as relações do Estado com a sociedade. (PNCFC, 2006, p. 23).

Lima (2015) ponderou sobre a temática Alienação Parental começou a ser


mais difundida na sociedade brasileira a partir de diversas entidades criadas por
iniciativa de famílias que se empenharam em participar do movimento destinado a
promover uma campanha pela criação de lei que a combatesse.
A qual surge em agosto de 2010, Lei 12.318, e de acordo com o artigo
o
Art. 2 considera-se ato de alienação parental a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua
autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao
estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Apesar da Alienação Parental configurar-se como uma das expressões da
questão social, tem sido cada vez mais judicializada, sendo necessário o
desenvolvimento de estudos sobre o tema para a construção de alternativas que
garantam a efetivação dos direitos da criança e do adolescente.
Observa-se que a lei da alienação parental, assim como a lei Lei nº 11.
698, de 13 de junho de 2008, que dispõe sobre a guarda compartilhada,
complementada pela Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014, podem ser
utilizadas como ferramentas possíveis para combater-se a violência engendrada
pelos atos de alienação parental.
Hoje, o ordenamento jurídico brasileiro busca focar o melhor interesse da
criança recomendada pela Declaração Universal dos direitos da criança. Com
respaldo da leis acima citadas, pois, de acordo com a estas leis, quando não houver
acordo entre a mãe e o pai em relação à guarda do filho, será aplicada, sempre que
possível, a guarda compartilhada. Entende-se por guarda compartilhada a
responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que
não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
Estudos comprovam que para os filhos o mais importante é gerar na criança e ou
adolescente um sentimento de conforto, bem estar, independente da questão
geográfica, pois é no cenário familiar, mesmo modificado após a separação
conjugal, que ocorre e perdura o desenvolvimento psicossocial destes.

3 - CRIMINALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES: ESSE É O


CAMINHO DE PACIFICAÇÃO?

Assumindo postura crítica ao processo civil brasileiro, o cientista político


Andrei Koerner, citado por Suannes (2011), observa o quanto o modelo adversarial é
inadequado para resolução de conflitos entre pessoas que convivem no mesmo
espaço social e cujas relações são intensas, contínuas e multidimensionais; uma vez
que a decisão implica na determinação de um ganhador e um perdedor.
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Há uma carga de afetividade contida nos conflitos que são estabelecidos


entre pessoas cujas relações devem perdurar após a decisão judicial, o que
demanda, portanto, que a resolução seja dada pelas próprias partes e não
delegadas a terceiros. O referido cientista menciona inovações adotadas no campo
do Direito, por volta de 1990, visando à informalidade processual e ao
consensualismo.
Nas Varas de Família é imprescindível que se possa oportunizar às partes
uma preparação para o entendimento de sua nova realidade cotidiana pós-
separação. Realidade na qual os genitores deverão continuar exercendo as funções
parentais mesmo sem viver a conjugalidade e o poder familiar deverá ser exercido
fora da relação conflituosa, privilegiando a criação e desenvolvimento saudável dos
filhos, independente da custódia física do mesmo.
A substituição da lógica do litígio pela lógica da conciliação e o
planejamento para uma nova realidade parental, através de um trabalho de rede
favorecido pelo judiciário para o exercício saudável da guarda compartilhada, deverá
ser globalizada, entendendo-se que a rede em prol da guarda compartilhada é uma
tarefa de todos. Cabe ao juiz, mas igualmente aos advogados, ao promotor de
justiça e as partes, a possibilidade de encaminhar soluções. A ajuda pode ser
efetiva, tendo-se sempre em mente que o que se objetiva é o encaminhamento de
soluções para o melhor interesse dos filhos envolvidos na pendência judicial.
No Brasil, apesar de modernamente alguns autores terem oferecido
bons trabalhos nesse sentido demonstrando o quanto é importante a diminuição ou
extinção de conflitos nas ações de guarda, a disputa de guarda ainda faz parte do
imaginário social e os nossos legisladores parecem atuar na contramão da justiça
consensual na medida em que se busca punir os atos ao invés de compreender o
fenômeno. A exemplo disso, surgiu em fevereiro de 2016 e tramita no Congresso,
o Projeto de Lei 4.488 de autoria do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP)
propondo a criminalização da alienação parental.
O Projeto de Lei propõe que pais ou mães que denunciarem esposas ou
maridos ou ex-companheiros, genitores de crianças ou adolescentes, sem
conseguir provar alienação parental poderão ser condenadas a penas de prisão,
que devem variar de três meses a três anos.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ainda que se criminalizem as más condutas, a identificação e


consequente punição para aqueles que praticam alienação parental, em nada irá
favorecer o bom andamento do processo de mudança de realidade para aquela
família, porque ao invés de prepara-los, conscientizando e estruturando as partes
para uma convivência na nova realidade que surge a partir da separação dos
genitores, estará novamente estimulando o litígio, causando ainda mais traumas
para as crianças e adolescentes.
Não se pretende que atos irresponsáveis sejam neutralizados, mas sim
que as partes assumam a responsabilidade de refletir suas fragilidades e assumir
um diálogo civilizado em benefício dos filhos.
Poderíamos citar também as penalidades previstas ao guardião que
descumpre cláusula do acordo sobre a guarda compartilhada. De acordo com o
artigo 1.584, §4º, do Código Civil, as mesmas penalidades impostas na cláusula de
guarda unilateral devem ser aplicadas à guarda compartilhada.
Em relação à penalidade de redução do tempo de convivência, por
exemplo, Azambuja e colaboradores (2009) questionam a obediência aos princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e da doutrina da proteção integral à
criança quando se reduz o número de horas de convivência com o filho penalizando
tão somente este último.
Desta forma, importante atentar ao real destinatário da penalidade a ser
imposta pelo descumprimento de uma obrigação no âmbito familiar. A solução
apresentada pela nova lei para o enfrentamento da negligência paterna, em última
análise, serve mais ao interesse do adulto do que da criança, desprezando a
possibilidade de valer-se das Medidas Aplicadas aos Pais, previstas no artigo 129 do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em discussão com o nosso Grupo de Estudos (2017), a palestrante Edna
Rocha fez alguns questionamentos ao analisar a proposta desse projeto de lei e da
criminalização da alienação parental. Ponderou que a proposta de lei tem o objetivo
de punir, podendo inclusive, modificar a guarda da criança que não tem contato, às
vezes, por vários meses, ou há anos, com o outro genitor litigante.
Entendendo, consequentemente, que uma determinação judicial poderá
fazer com que essa criança passe a viver sob a guarda da outra parte, da qual
estava afastada e supostamente vitimizada pela alienação parental, a palestrante

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

fez alguns questionamentos, entre eles: no que isso contribuiria para o melhor
interesse da criança ou adolescente? Qual seria o benefício de uma lei sobre os
atos de Alienação Parental e de Guarda Compartilhada se não o de favorecer que
as crianças e adolescentes tenham convivência saudável com ambos os
genitores?
A palestrante citou o livro de 2014 da autora Analícia Martins de Sousa
com: Bullying, Assédio Moral e Alienação Parental - A Produção de Novos
Dispositivos de Controle Social, onde são explanadas reflexões sobre tais
questões.

Finalmente, nos deparamos com a seguinte proposta para reflexão: sendo


a vida dinâmica e as leis estáticas, sabendo-se que as relações interpessoais são
subjetivas e o mundo do Direito, objetivo, como seria possível alcançar a efetivação
de direitos ou o controle das relações familiares? Até que ponto seria possível e
viável a interferência do poder público na vida privada? Não seria mais sensato
direcionar o trabalho aceitando que cabe às pessoas, de maneira pensada e não
idealizada, resolverem suas demandas e seus conflitos com a devida preparação e
antes da sentença do juiz? Qual o papel do setor técnico que subsidia as sentenças
judiciais?

4 - ATUAÇÃO DOS SETORES TÉCNICOS

Os assistentes sociais e psicólogos que compõem o quadro de peritos


dos Setores Técnicos do Tribunal de Justiça possuem a responsabilidade de apontar
questões que estão para além do campo do Direito trazendo, a partir de suas
análises, elementos que contribuam para a compreensão do caso.
Assim, com base nos princípios e diretrizes normativas pertinentes a cada
área de atuação, os profissionais de Serviço Social e Psicologia estabelecem
metodologias próprias para intervir em ações judiciais que envolvem crianças e
adolescentes em situação de risco e/ou vulnerabilidade.
Há um reconhecimento por parte dos operadores do Direito de que litígios
de família têm uma lógica própria, o que torna a configuração do conflito complexa e
de difícil resolução em termos jurídicos. Nesse sentido, as Varas de Família
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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apresentam demandas sociais e psicológicas que muitas vezes exigem que os


profissionais, além de oferecer subsídios à autoridade judiciária, realizem
intervenções como orientações, encaminhamentos e articulações.
A psicóloga judiciária Claudia Suannes (2011) defende em sua obra “A
Sombra da Mãe” que é possível ao perito tomar uma posição para além da
elaboração do laudo que subsidiará a decisão judicial: a de engajar os sujeitos
envolvidos a buscar, através das suas verdades, a resolução para um conflito que é
de ordem subjetiva.
Segundo a autora, os envolvidos esperam que a Justiça, na figura do juiz,
possa resolver os conflitos que eles próprios estão, ainda que momentaneamente,
incapazes de pensar a respeito. Nesse contexto, a perícia seria uma ferramenta
capaz de restituir a voz aos sujeitos e aos seus processos inconscientes que
subjazem o pedido formalizado em processo.
A autora defende ainda que a possibilidade de se utilizar da escuta
psicanalítica no momento da perícia não suprime as implicações que o lugar de
perito ocupa. Assim, o trabalho interpretativo pode abrir espaço para que os
discursos sejam metaforizados e assim ganhem novos sentidos e vias de
representação.
Tendo em vista que as pessoas são representadas por seus advogados,
a primeira função da perícia seria realizar um movimento em direção contrária à
estruturação do problema em linguagem jurídica, uma vez que nas entrevistas são
as partes e não seus representantes legais que falam. Nesse sentido, a escuta não
está voltada para aspectos legais, factuais e pragmáticos, e a intervenção do perito
poderia contribuir para a conscientização de cada uma das partes para o
estabelecimento do conflito.
Na participação de uma Roda de Conversa com o nosso grupo de estudo,
Cláudia Suannes enfatizou sobre a relevância do enquadre inicial nas perícias,
quando da apresentação do profissional e do esclarecimento dos procedimentos a
serem adotados, e problematizou sobre o lugar que o Judiciário ocupa no imaginário
daqueles que buscam solucionar seus problemas subjetivos/psicológicos.
Considerando a diversidade dos casos que tramitam nas Varas de
Família, Suannes entende que o modelo pericial poderá ter diferentes alcances a
saber: ser uma forma de oportunizar um reencontro entre pais e filhos, ou servir

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

como interdição em casos complexos que envolvem relações familiares incestuosas


e violentas. Nesse sentido, as perícias sociais e psicológicas se diferem da
concepção de produção de verdade, entendida por profissionais do Direito, em que
se pretende indicar quem está certo ou errado. Sendo essa premissa considerada
como algo impossível, dentro da perspectiva de que as relações humanas não são
lineares, a perícia poderia ser compreendida, portanto, como um espaço de
intervenção.
Ao longo dos anos nos códigos do direito brasileiro, conforme pontuou
jurista Miguel (2015), procurava-se descobrir quem havia errado para então definir-
se a guarda dos filhos. Em seguida, viriam a instauração do litígio e a concessão da
guarda preferencialmente à genitora nos primeiros anos de vida da criança.
Com o tempo, o objetivo dos estudos se tornou a identificação de qual
genitor possuiria as melhores condições para exercer a guarda do(s) filho(s) e,
desde 2008, a guarda compartilhada passou a vigorar em nossa legislação,
atingindo seu ápice em 2014, quando foi estabelecida como regra.
A partir de então, evidencia-se ainda mais a importância do trabalho dos
Setores Técnicos que, além de detectar os pontos conflitivos que dificultam o acordo
entre os genitores, deverá preocupar-se com o conteúdo apresentado no laudo.
Sobre essa questão, o nosso grupo de estudo refletiu com Suannes sobre a
necessária atenção para não fornecer mais informações que as necessárias à
tomada de decisão, e a palestrante ponderou que a preocupação em não alimentar
o litígio com informações desnecessárias nos documentos elaborados poderia ser
pertinente, visto que seu destinatário final era, de fato, as partes. Quanto à
pretensão de alguns juízes de que os atendimentos realizados fossem convertidos
em sessões de mediação/conciliação, destacou a proibição dos conselhos
profissionais quanto a isso. Contudo, entende que durante os atendimentos é
possível fazer intervenções que auxiliam no diálogo entre as partes. Além disso,
diante da possibilidade de se discutir o caso com outros colegas, quando da
existência destes na comarca, que o fizessem para melhor adequação do relatório
final.
A assistente social judiciário Edna Rocha Lima, também participante de
uma Roda de Conversa com o Grupo, considera um desafio a perícia ser
interventiva devido à celeridade processual necessária e por não ser um serviço de

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acompanhamento, que seria competência do Poder Executivo. Além disso,


entende que não é unânime que sentenças efetivem os encaminhamentos
sugeridos pela Equipe Técnica Psicossocial.
Lima também compartilhou conclusões de sua tese acadêmica, intitulada
como “Alienação Parental sob o olhar do Serviço Social: limites e perspectivas da
atuação profissional nas varas de família” (2016), destacando a existência de
distintos posicionamentos profissionais dentro da própria categoria (Serviço
Social). Contudo, salienta que mesmo profissionais com uma visão mais
conservadora, podem oferecer alternativas a fim de garantir direitos, quando há
compromisso ético.
O Grupo debateu sobre o quanto os laudos são considerados como um
meio de prova e que isso tem exposto os profissionais perante os Conselhos, os
advogados das partes e até mesmo perante as partes. Assim, é importante que seja
esclarecido às pessoas entrevistadas que o relatório técnico não é o ditador da
sentença e sim uma forma de apresentar ao magistrado uma avaliação de caso com
base em um conhecimento técnico-científico, o qual poderá auxiliá-lo na tomada de
decisão.
Salientou-se também a preocupação com a possibilidade de haver receio
dos profissionais em se posicionarem de forma conclusiva nos documentos técnicos,
tendo em vista que a avaliação psicossocial corresponde a um momento, um recorte
particular da vida familiar do caso em estudo. Ao finalizar, a convidada alerta que os
profissionais considerem a realidade específica da família, não se limitando a
padrões familiares rígidos e tradicionais.
Edna Rocha Lima citou um caso em que, na elaboração do laudo, foram
consideradas possibilidades de influências familiares nas crianças. A profissional
apresentou recomendações de reaproximação gradual da genitora distanciada,
ocasião em que ela deveria procurar influenciar ou pressionar o mínimo possível a
seus filhos. Em outro caso específico, a mãe não aceitou as recomendações
técnicas e ainda fez representação contra a profissional.
A convidada enfatizou que não são em todos os casos que existe
clareza quanto à possiblidade de identificar a ocorrência de Alienação Parental e
apresentou questionamentos quanto o papel da lei vigente, no sentido de entender
se a mesma tem, realmente, o objetivo de proteger a criança. Nesse sentido, Edna

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assinalou que, com relação à atuação de peritos judiciários nos casos de alienação
parental, realizar a leitura da complexidade da dinâmica familiar, bem como
encaminhar proposições que garantam o direito à convivência familiar das crianças
e adolescentes, são contribuições dos psicólogos e assistentes sociais aos
magistrados.
A profissional indica prudência ao realizarem apontamentos categóricos
na elaboração dos laudos, visto que o conflito pode ser ainda mais acirrado diante
destes. Diante disso, questiona acerca da possibilidade de “criminalizar as relações
familiares”, ao exemplificar casos nos quais advogados usam atos e fatos isolados,
buscando o enquadre jurídico da alienação parental, por vezes, pressionando os
peritos a darem respostas em curto espaço de tempo.
A palestrante discorreu também acerca de se trabalhar em instituições
(hospitais e tribunais) onde existem profissionais de outras áreas (médicos e juízes),
cujos saberes são considerados “dominantes” e, muitos se posicionam como
“conhecedores de tudo”. No entanto, observou que estes carecem do conhecimento
específico (psicológico ou social) e necessitam ser assessorados para a tomada de
decisão. Diante disso, o grupo destacou que, em muitas cidades, observam que os
juízes esperam justamente que o laudo seja conclusivo e também aponte sugestões.
A importância do trabalho interdisciplinar é destacada por Ferreira e
Macedo (2016), os quais asseveram que, quando o perito se mobiliza com o
trabalho, posicionando-o (o trabalho) na direção da resolução não adversarial dos
conflitos, não só atuando ética e tecnicamente de forma competente, ele fornece
elementos de reflexão não só ao juiz, mas também aos advogados, ao promotor de
Justiça e aos pais. Salientam que tal ajuda que pode ser efetiva, objetivando-se o
melhor interesse dos menores envolvidos na pendência judicial.
Na obra “Guarda Compartilhada: uma visão psicojurídica”, os autores
supramencionados refletem que o perito pode aproveitar o momento da perícia para
mobilizar e refletir com as partes sobre suas atitudes, buscando transformar a
situação em prol da criança. Com base nesta leitura, o Grupo identificou ser comum
que algumas queixas citadas na petição inicial se diferenciam das verbalizadas
durante a perícia ou mesmo nunca foram expostas entre as partes. Considerou-se
que o perito poderia trabalhar com as partes a capacidade de comunicação através
de um treino assertivo: falar o que precisa para quem precisa utilizando a

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comunicação não-violenta, ou seja, não focar na crítica e sim nos sentimentos que
aquele comportamento suscita. Por exemplo, atenta-se para a importância dos
genitores em disputa de guarda habituar-se a verbalizar o termo “nosso filho”,
gerando assim o sentimento de pertencimento e não de exclusão.
Outra convidada a participar de uma Roda de Conversa com o Grupo, a
psicóloga judiciária Evani Zambon Silva, autora do livro Paternidade Ativa na
Separação Conjugal e de vários artigos, abordou a amplitude da contribuição da
Psicologia Jurídica nos Tribunais de Justiça considerando os diferentes aspectos da
atuação do psicólogo nesse campo e atentou para o movimento que reduz tais
profissionais a meros “produtores de laudos”. Nesse sentido enfatizou, citando
referências bibliográficas, a necessidade dos profissionais desenvolverem uma
reflexão crítica quanto ao seu papel na instituição, dentro da lógica de uma
“sociedade laudatória” que demanda laudos com diferentes objetivos, inclusive de
buscar legitimar a hegemonia das estruturas formais de suas organizações. Nas
palavras da autora:

Não se trata de colocar meramente um ramo do saber à disposição


do outro, como outrora se dizia, também não se trata de apresentar
verdades não sabidas a quem precise ouvi-las, uma vez que a
Psicologia tem uma concepção de verdade que difere de outros
campos. Trata-se de formalizar uma coconstrução, uma possibilidade
de configurar um olhar sobre elementos comuns às duas ciências –
Direito e Psicologia – que, dentre outras coisas, passa pela previsão,
explicação e construção de políticas voltadas para a saúde mental.
(Silva, 2013, p.915).

Silva ressalta que a Psicologia, há aproximadamente trinta anos, vem


conquistando um espaço e desenvolvendo conhecimento no campo jurídico. Nessa
lógica, conforme ressaltou a palestrante, a contribuição da Psicologia Jurídica segue
a recomendação do CNJ – Conselho Nacional de Justiça - de sensibilizar e orientar
para uma formação humanística daqueles que vão atuar como operadores de
direito.
A profissional compartilhou suas experiências junto ao Conselho Regional
de Psicologia ressaltando que quando o profissional elabora um laudo ele está
realizando uma exposição de si mesmo e é necessário considerar a diferença e a
importância que esse documento tem na vida de uma pessoa ou grupo familiar.

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Assim, aceitar realizar essa tarefa é compreender o âmbito da exposição tanto para
o bem como para o mal, no sentido de desagradar uma das partes e poder receber
diversos tipos de ameaças e/ou representações no conselho de classe.
Ressaltou ainda a importância do profissional se atualizar continuamente
e estar respaldado, do ponto de vista teórico científico de sua área, como uma
recomendação para se resguardar de questionamentos formalizados, bem como
primar pelo reconhecimento da classe nesse campo de atuação.
O Grupo de Estudos considerou um desafio tentar tornar o laudo
psicossocial um elemento apaziguador do litígio. Para tanto, sugeriu cuidados na
produção escrita, com o uso das palavras amenas ou esclarecimentos quanto aos
termos utilizados. Recomendou-se ainda, pontuar no laudo que o sistema judiciário
favorece o sistema adversarial que é nocivo a qualquer reestruturação pós-divórcio.
Nosso Grupo ressaltou sobre a importância do perito buscar seu próprio
tratamento psicológico para minimizar a interferência de questões pessoais e
subjetivas (inconscientes) quando da realização de seu trabalho. Discutiu-se sobre
os afetos contratransferenciais que costumam ocorrer nas relações de atendimento
e sobre os quais devemos cuidar para que não tragam prejuízo na avaliação do caso
e na elaboração do laudo. Nesse sentido, apontou-se para a importância de
reconhecer a própria violência e ir ao encontro da violência dos outros, conforme
explicitado por Jacqueline Morineau14 (2016), o que requer ousadia e coragem para
penetrar no nível profundo das próprias sombras e partir deste lugar para
transformar, cientes de que o que não é transformado é transferido ao outro,
perpetuando-se, assim, a transmissão da violência.

4.1 - A PARTICULARIDADE DE CADA CASO

Nos encontros realizados ao longo do ano além de aprimoramento


teórico, foram trazidos estudos de casos que envolviam os temas abordados pelo
Grupo. A seguir apresentaremos os resumos de dois casos altamente litigiosos
discutidos nos encontros.

14
La mediation humaniste
122
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4.1.1 - CASO 01: A RIGIDEZ DAS REPRESENTAÇÕES PATERNA SUSCITANDO


CONFLITOS

Trata-se de ação de modificação de guarda favorável ao pai através de


liminar, sem estudos técnicos preliminares, sob a argumentação de que a mãe teria
praticado relações sexuais com o companheiro na presença da criança.
Ao que parece, o pai, sem que a mãe soubesse, mobilizou órgãos e
equipamentos sociais expondo o relato da criança e, assim, conseguiu rapidamente
a modificação da guarda em seu favor.
As perícias técnicas realizadas (social e psicológica) concluíram que
dificilmente a criança teria presenciado tal situação na casa materna (dormiam em
quartos separados e distantes entre si). Além disso, foi levantada a possibilidade da
criança ter presenciado relações íntimas entre os adultos residentes na casa paterna
(onde dormiam todos no mesmo cômodo), ou mesmo de estar apenas reproduzindo
o discurso paterno por temor a ele.
O pai foi identificado com características de perversidade, apresentando
falas sedutoras, apesar da postura autoritária e de controle em relação à prole. Foi
observado em seu discurso sinais de agressividade e violência, bem como repetição
de comportamento, pois, para obter a guarda unilateral da criança, passou a
denegrir e desqualificar a mãe, assim como evidenciou ter feito na ocasião da
separação anterior.
O genitor demonstrou pouco repertório de cuidados com a filha e, no
contato com a instituição escolar, se corroborou que a criança apresentava sinais de
pouca higiene pessoal e muito medo da figura paterna.
Com relação à genitora, a mesma apresentou nas perícias social e
psicológica um perfil de mulher submissa e histérica, com relatos de violência
doméstica em sua história de vida e no relacionamento com o pai da criança,
ocupando o lugar de vítima nas relações abusivas. Ela evitava o confronto com o ex-
marido apesar de discordar deste, temendo por sua segurança e a de seu atual
companheiro. Aliado ao conflito em torno da guarda da criança, também foi
identificado pelos profissionais que haveria ainda outro processo em tramitação
envolvendo as partes, este de disputa por partilha de bens.
Nos atendimentos, a criança não conseguiu prosseguir com a denúncia
utilizada pelo pai para ingressar com a ação. Demonstrou-se bastante ligada
123
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

afetivamente à irmã mais velha, o que talvez justificasse a declaração de que


gostaria de permanecer com o pai, já que apresentava, contraditoriamente, uma
postura de medo e recuo na presença deste. Apesar de negar, no contexto da
perícia, a boa convivência com a mãe, foi observada sua satisfação no lar materno
quando realizada a Visita Domiciliar.
A equipe técnica que atuou no caso sugeriu a aplicação da Guarda
Compartilhada, tendo como residência fixa para a criança o lar materno. O grupo
refletiu acerca da importância de, mesmo diante de casos altamente litigiosos,
conferir tal modalidade de guarda.

4.1.2 - CASO 02: A DOENÇA COMO JUSTIFICATIVA PARA EXCLUSÃO DO


OUTRO

Trata-se de uma ação de modificação de guarda altamente litigiosa que


se encontra em trâmite processual desde 2007. Os genitores nunca tiveram
relacionamento estável e tampouco conviveram sob o mesmo teto. Em termos
históricos, tem-se que os genitores trabalhavam na mesma empresa, relacionaram-
se casualmente, ela engravidou e ele nunca quis assumir o relacionamento, apesar
do desejo dela. Assumiu a paternidade mediante comprovação genética e após seis
tentativas de acordo para regulamentação de visitas, o genitor, atualmente, requer a
mudança de guarda.
A criança possui dez anos de idade e evidencia sinais de sofrimento
psíquico devido ao conflito de lealdade em relação à genitora que sempre foi sua
principal cuidadora, apesar de suas dificuldades emocionais. Suspeita-se que a
genitora possua transtorno de personalidade. Ela sempre dificultou as visitas
paternas alegando problemas de saúde do filho (convulsões, síndrome de
Asperger), sem que os mesmos tivessem sido observados por terceiros (chegava
relatando os episódios nos plantões médicos).
Durante a apresentação, o Grupo destacou algumas características
recorrentes nos casos altamente litigiosos: gravidez não planejada, dúvida do genitor
quanto à paternidade, falta de compartilhamento de valores pelos genitores,
repetições da história de vida (conflito transgeracional), motivos racionais para evitar
as visitas (doença da criança), crença de que apenas a mãe sabe cuidar, registros

124
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de boletins de ocorrência (ameaças reais ou imaginárias) e descumprimento das


decisões judiciais.
Iniciou-se a discussão sobre alternativas para lidar com o conflito e sobre
a possibilidade de sugerir expedição de Carta Precatória para avaliação das
condições psicossociais do genitor (reside em outro estado). A primeira retirada da
criança pelo genitor ocorreu, por decisão judicial, de forma impositiva e radical, em
julho de 2015, momento no qual a criança (sem estar preparada) passou as férias na
residência paterna em cidade localizada em outro estado. Diante disso, foi
ponderado sobre quais seriam as melhores condições/momento para avaliar o
relacionamento entre a criança e o genitor, bem como sugeriu-se a avaliação
psiquiátrica da genitora.
Correlacionando a complexidade do caso com o texto de Johnston (2005),
foi possível identificar claramente a postura da criança aliada à figura do genitor
guardião, que usa tal argumentação em seu favor, acirrando ainda mais o conflito
com o genitor não guardião. Apesar do investimento desse genitor em aproximar-se
do filho e lutar pelo direito de convivência familiar, a criança se alia à figura mais
próxima, sua genitora, não percebendo sua conduta litigiosa.
A respeito do caso apresentado, também se refletiu sobre a importância
da articulação com todos os profissionais que atendem a criança para desmistificar a
situação de doença tão alegada pela genitora.
Outro fator aventado como agravante do litígio foi a demora processual.
No entanto, concluiu-se que o conflito tende a continuar, independentemente da
decisão judicial, haja vista que, ao ser deferida a mudança de guarda ao genitor, a
genitora recorreu em Segunda Instância (alegação de que a transferência escolar no
meio do bimestre acarretaria prejuízos ao filho) e o caso retornou à Primeira
Instância para continuidade (nova audiência, audição de testemunhas, produção de
provas, etc.).
Discutiu-se, também, sobre a inoperância da constatação de atos de
Alienação Parental no presente caso.
A apresentação e discussão de casos reais e altamente litigiosos
atendidos pelas equipes técnicas do Tribunal de Justiça propiciaram aos integrantes
do Grupo de Estudos o compartilhamento de experiências, a reflexão sobre o modo

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de intervir, as dificuldades únicas de cada situação (apesar de apresentarem alguns


padrões), a importância do trabalho pericial e do cuidado com a práxis.
Os encontros também oportunizaram a reflexão sobre outros espaços
possíveis para atendimento das demandas emocionais que permeiam os conflitos
judiciais e que extrapolam os limites da perícia, como a Oficina de Parentalidade, a
Justiça Restaurativa e a Mediação e Conciliação.

4.2 - INCENTIVO AOS MÉTODOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE


CONFLITOS: CÍRCULOS RESTAURATIVOS, MEDIAÇÃO E OFICINA DE
PARENTALIDADE

Nos últimos anos, o judiciário paulista tem evidenciado esforços no


sentido de incentivar os métodos alternativos de solução de conflitos, sendo a
instalação dos CEJUSC15, dos Núcleos de Justiça Restaurativa16 e a Oficina de
Parentalidade17 exemplos dessa iniciativa.
A Oficina de Parentalidade é um programa educacional e preventivo
ofertado por algumas Varas de Família e tem como objetivo instrumentalizar as
famílias que enfrentam conflitos jurídicos relacionados à ruptura do vínculo conjugal
(divórcio, dissolução da união estável, guarda, regulamentação de vistas, etc.), para
criarem uma relação parental efetiva e saudável junto aos filhos.
Alguns participantes do nosso Grupo têm como prática sugerir aos
genitores que participem da Oficina de Pais (curso on-line disponível no site do CNJ)
antes do início da perícia e apresentem o certificado de participação no atendimento
inicial. Avaliando que a experiência tem sido positiva, o Grupo considera que essa
intervenção possa ser adotada em todos os casos de disputa de guarda.
Discutiu-se também sobre a possibilidade da utilização dos métodos
utilizados pela Justiça Restaurativa nos casos altamente litigiosos. A Justiça

15
Através do Comunicado 250/17, processo n. 2017/86837, o TJSP veda a participação dos
profissionais do Setor Técnico como conciliadores ou mediadores nos Centros Judiciários de Solução
de Conflitos e Cidadania (CEJUSC).
16
Método instituído por meio da Resolução n 225 do Conselho Nacional de Justiça e regulamentado
no TJSP pelo Provimento 35/14.
17
O Provimento CSM n 2327/2016 dispõe sobre a implantação da Oficina da Parentalidade nos
Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) e, não sendo possível o
comparecimento das partes para a Oficina de Pais e Filhos, recomenda-se o acesso por via da rede
mundial de computadores (www.cnj.jus.br/eadcnj).
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Restaurativa, conforme a diretriz da resolução do CNJ tem como objetivo solucionar


conflitos a partir da escuta ativa e da compreensão das responsabilidades, buscando
a reparação dos danos advindos da transgressão e o atendimento das necessidades
de todos os envolvidos, para assim construir novos caminhos de convivência,
pautados no bem e na paz.
Acerca desta proposta, o grupo problematizou sobre a viabilidade da
utilização desta técnica em casos altamente litigiosos, especialmente quando há
pessoas com transtornos psiquiátricos, já que a condição dificultaria uma reflexão
profunda acerca da situação e suas possíveis resoluções. Para a aplicabilidade
desse método seria necessário triagem dos casos por técnico treinado, ou seja,
ressalta-se a importância do treinamento e supervisão dos profissionais que
trabalharão com a Justiça Restaurativa, visto sua especificidade.
Uma das integrantes do nosso Grupo está participando ativamente na
implantação de um Núcleo de Justiça Restaurativa e explanou sobre sua experiência
em alguns processos circulares relacionados a casos atendidos pelo Conselho
Tutelar e executados por profissionais treinados. Nessa modalidade, a rede participa
ativamente como parte do círculo restaurativo, havendo uma lógica diferente da qual
estamos acostumados: em qualquer momento, qualquer ator pode propor que o
caso seja trabalhado nesse modelo. As partes são convidadas e, se aceitarem, faz-
se o círculo quantas vezes forem necessárias até que a resolução advenha do
próprio grupo.
Outra modalidade de intervenção, conforme já pontuado por nosso Grupo
no trabalho realizado em 2016, é a Mediação. Segundo informações obtidas no site
do CNJ18, a Mediação é uma forma de solução de conflitos na qual uma terceira
pessoa, neutra e imparcial, facilita o diálogo entre as partes para que elas
construam, com autonomia e solidariedade, a melhor solução para o conflito. É um
procedimento estruturado que não tem um prazo definido e pode terminar ou não em
acordo, pois as partes têm autonomia para buscar soluções que compatibilizem seus
interesses e necessidades.
A Conciliação, por sua vez, é um método utilizado em conflitos mais
simples, ou restritos, no qual o terceiro facilitador pode adotar uma posição mais
ativa, porém neutra com relação ao conflito e imparcial. É um processo consensual

18
http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao-portal-da-conciliacao
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breve, que busca uma efetiva harmonização social e a restauração, dentro dos
limites possíveis, da relação social das partes.
As duas técnicas são norteadas por princípios como informalidade,
simplicidade, economia processual, celeridade, oralidade e flexibilidade processual e
os mediadores e conciliadores atuam de acordo com princípios fundamentais
estabelecidos na Resolução nº 125/2010 de confidencialidade, decisão informada,
competência, imparcialidade, independência e autonomia, respeito à ordem pública
e às leis vigentes, empoderamento e validação.
A Mediação e a Conciliação têm por objetivo alterar a cultura da
litigiosidade e promover a busca de soluções para os conflitos mediante a
construção de acordos. São considerados instrumentos efetivos de pacificação
social, solução e prevenção de litígios e sua implementação nas comarcas tem
reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de
recursos e de execução de sentenças.
Acerca da Mediação, Perissini da Silva (2015) destaca a sua
imprescindibilidade para que seja viável a guarda compartilhada, principalmente nos
casos de disputa de guarda.
Apesar de concordar com o posicionamento da autora acima citada, o
nosso Grupo ponderou que a mediação dos conflitos familiares seria de
competência do Poder Executivo, já que no Poder Judiciário vigora a lógica
adversarial, solicitando-se a um terceiro elemento (juiz) que resolva a disputa.
Comentou-se, ainda, sobre algumas experiências no exterior, mas por
serem dispendiosas, acredita-se serem difíceis de implantar em nosso país, apesar
de que estas poderiam encurtar os processos e torna-los mais baratos para o
Estado. Exemplos dessas experiências foram estudados pelo nosso Grupo em 2016
e, neste ano, ao discutirmos o livro Cezar-Ferreira e Macedo (2016), soubemos de
outras duas iniciativas:
a) Cooperação ordenada – Distrito Alemão (2004). Ressalta a importância
de os profissionais envolvidos com casos de separação e divórcio manterem relação
de cooperação e coerência. Reuniões frequentes promovidas sob orientação do Juiz
de família, onde técnicos e advogados e outros colaboradores tenderam a afastar-se
do raciocínio binário de que deveria haver ganhador e perdedor, e os diálogos
interdisciplinares tornaram-se mais construtivos em busca de soluções.

128
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

b) Coordenação Parental – Canadá (2013). Narrada por D’Abate em


palestra realizada na Associação dos Mediadores de Madri sobre experiências
iniciada na Califórnia e transferida para o Canadá. Esta opção é usada após
insuficiência de outras ferramentas, inclusive a mediação, tendo como escopo
educar e assessorar os pais sobre necessidades dos filhos e ajudá-los a tomar
decisões consensuais. A iniciativa é judicial, os prazos tornam-se mais longos, e as
entrevistas são semanais durante o primeiro ano. É um trabalho multiprofissional
que envolve Assistentes Sociais, Psicólogos e Mediadores. Apesar desse formato
tornar o serviço de alto custo financeiro, é inferior ao que custa ao Estado um litígio
protagonizado por esse tipo de família.
Por fim, observamos que, em diferentes países, buscam-se métodos
alternativos de resolução de conflito, pois está mais do que evidente que as partes
precisam ser auxiliadas a recuperarem a sua condição de sujeito responsável por
seus atos.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Grupo de Estudos este ano escolheu como tema a questão norteadora


“A guarda compartilhada nos casos altamente litigiosos, entre o ideal e o possível:
um caminho em construção”. O título, em si, já traduz uma certeza que não será
possível aproximar-se do ideal enquanto os conflitos subjacentes aos atos não forem
elaborados pelas partes, sabemos também que as relações humanas são
dinâmicas, subjetivas e demandam reflexões constantes. A proposta é “um caminho
em construção” e, para tanto, tratou-se de caminhar e ponderar, refletindo sobre o
assunto e buscando conhecer o pensamento de doutrinadores que se debruçam
sobre o tema, construindo caminhos.

Evani Zambon salientou que esse assunto é recorrente na realidade do


dia a dia das Varas de Família e citou o livro Direito e Psicologia, no qual consta o
resultado compilado de diversas palestras que aconteceram em um evento na
Universidade de Lisboa onde diferentes temas de Psicologia Jurídica foram tratados.
Ela fez um paralelo entre os estudos realizados em Portugal e no Brasil
considerando os avanços e desafios técnicos. Ressaltou que, em termos de
legislação, Portugal está em desvantagem em relação ao Brasil que desenvolveu um
conjunto de leis mais avançadas.

Refletindo sobre a possibilidade da justiça ajudar os filhos a terem pais e


mães, Azambuja e colaboradores (2009) enfatizaram que se o real interesse dos
pais fosse o bem estar dos filhos não haveria litígio para o estabelecimento da
guarda compartilhada, pois cada um dos genitores seria capaz de reconhecer a
importância do outro na subjetividade da criança e ao saudável desenvolvimento
psicológico. Havendo litígio, observa-se que o requerimento de guarda unilateral ou
compartilhada parece representar outra cena psíquica que não o desejo de participar
ativamente da vida do filho e/ou o superior interesse da criança.
As autoras transmitem o pensamento no tempo condicional, ou seja,
“seria capaz de reconhecer a importância do outro na subjetividade da criança...”
porque nem sempre o contexto atual das partes permite que elas consigam ter essa
capacidade tão importante e almejada.
Esse pressuposto remeteu o nosso grupo à duas propostas de ação não
impossíveis de planejamento e realização. A primeira proposta em nosso trabalho

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

visa à substituição da visão atual do sistema judiciário nas Varas de Família, qual
seja o da adversidade, onde cada uma das partes, representada legalmente, disputa
a guarda dos filhos, como principal objetivo da ação, pela real preparação das partes
para uma nova realidade parental, onde a partir de uma comunicação efetiva, toda a
rede do judiciário juntamente com as partes se direciona para o melhor interesse da
criança ou adolescente.
Como suporte à sentença judicial, os assistentes sociais e psicólogos do
Setor Técnico de cada Comarca, procuram avaliar, com base no conhecimento das
ciências afins e preparo para o trabalho com partes que litigam, diagnosticar o (real)
desejo do outro e leva-los a uma reflexão para que possam chegar a um acordo
efetivo. Em termos psicanalíticos, tratar-se-ia de ocupar o lugar de suposto saber
que dá sustentação ao discurso universitário (ou discurso técnico/científico) na
tentativa de promover/facilitar uma mudança. Supõe-se que o profissional, portador
dessas condições, poderia apoiar-se na literatura científica e interpretar que, muitas
vezes, a outra cena pode representar o desejo de dar continuidade ao
relacionamento com a(o) ex-parceira(o) e, desta forma, preservar os conflitos
anteriores evitando se confrontar com penosos sentimentos de perda.
Essa avaliação dos Setores Técnicos se dá juntamente com um esforço
não só para promover a reflexão com as partes sobre as representações dos papeis
sociais e da guarda compartilhada, como também para propor e incentivar a
participação dos genitores em programas alternativos como a importante oficina de
pais e filhos, que vêm sendo implantadas em diversas Comarcas, bem como a
participação em sessões de mediação, terapias individuais ou em grupo e em
dinâmicas de atuação da justiça restaurativa, quando praticadas nos municípios em
que atuam as Varas de Família responsáveis pelas ações.
Os técnicos podem e fazem ainda, quando oportuno, um esforço conjunto
com as partes no sentido de atuar na construção de um plano inicial de divisão de
tarefas e responsabilidades.
A produção/escrita do laudo requer desses técnicos precaução e cautela
a fim de não permitir que os representantes das partes se valham das informações
do laudo para acirrar o litígio.
O estudo do tema levou o grupo a pensar que a perda de referenciais e a
mudança de valores da sociedade atual, requer a reeducação dos genitores para

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

serem pais, para que consigam desvincular-se da relação conjugal conflituosa e


partir para o desenvolvimento da relação parental. Esse é um momento de transição
muito importante, no qual se faz necessária uma mudança de patamar relacional e a
utilização da comunicação não-violenta. Em uma linguagem psicanalítica, trata-se da
passagem da relação dual (conjugal) à relação triangular (parental).
Nesse sentido, torna-se fundamental o investimento em recursos que dê
suporte ao trabalho de mudança de visão, transitando da adversidade para o
entendimento cordial, contudo, dispõe-se ainda de parcos recursos como, por
exemplo, a Oficina de Pais e Filhos, que muito tem colaborado para essa nova
visão, porém ainda não conta com técnicos designados para um trabalho mais
completo. As Comarcas que iniciaram esse trabalho contam apenas com
voluntariado não remunerado. A legislação específica ainda não determina a
designação de técnicos porque parece se basear na visão adversarial do judiciário.
Observamos ainda, a importância do respeito ao tempo para que as
partes possam refletir sobre o trabalho proposto de esclarecimento e acesso à essa
nova fase que estão iniciando, ou seja, o tempo de elaboração das partes, poder-se-
ia, por exemplo, sugerir no laudo, o retorno dos autos após o início da aplicação de
alguma sugestão para realização de nova intervenção/sugestão, se necessário.
Trata-se de uma estratégia importante para consolidar intervenções
realizadas pela Oficina de Pais ou programas de Mediação que ajudem as partes,
genitores de crianças e adolescentes, na superação de suas dificuldades e na
construção de um novo modelo relacional. Em outras palavras, o tempo processual
poderia ser usado a favor das partes e dos filhos, pois a sentença judicial imposta,
imediata, provavelmente, será mais um fardo às partes, além de revelar-se, por
vezes, inoperante, pois os genitores atuam de acordo com as suas possiblidades,
não tendo a determinação judicial o poder de regular os afetos.
A guarda compartilhada provavelmente favorecerá aos filhos, porém, a
forma como se atingirá esse objetivo enseja estudos e criatividade. A questão que
se impõe é que este regime de guarda está ligado às capacidades das partes no
exercício de seus papéis parentais, bem como à proximidade e o tipo de
relacionamento estabelecido com os filhos durante o período de união do grupo
familiar. Se havia precariedade dos relacionamentos, a instauração de um regime de
guarda em si, não possui o poder de melhorar a qualidade da relação parental-filial,

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mas poderá auxiliar as crianças a terem pais e mães na medida em que indicará a
direção norteadora das ações dos pais em relação aos filhos.
Uma das maiores críticas em relação à guarda compartilhada nos casos
altamente litigiosos é a ineficácia de sua aplicabilidade. No entanto, conforme
argumentação apresentada pela Ministra Nancy Andrighi que consolidou o
entendimento que a guarda deve ser compartilhada mesmo quando os genitores não
tenham diálogo favorável, o sentido da determinação legal ultrapassa o litigio entre
as partes e vislumbra à reordenação futura das relações entre os membros
familiares.
A Lei como instância reguladora das relações sociais fornece as bases
fundamentais para preservação do direito à dignidade humana. Porém, a guarda
compartilhada nos casos altamente litigiosos requer trabalho prévio, como a
mediação, e o judiciário poderia atuar ao final desse trabalho. Fato é que o judiciário
não seria o melhor espaço para realização desse trabalho inicial na medida em que
no judiciário vigora, ainda, a lógica adversarial, requerendo ao juiz a resolução da
disputa. Portanto, a mediação dos conflitos familiares seria uma forma de trabalho
proposto para anteceder o acordo, poderia até mesmo contar com a competência
dos técnicos da rede de atendimento do município, no entanto, há carência desses
serviços, bem como falta de interesse político neste âmbito.
As reflexões sobre como a atuação do Setor Técnico podem auxiliar as
crianças e aliviar a carga emocional decorrente da relação paterna litigante não
cessam. O grupo reconhece que as intransigências das partes alimentam o
processo, prejudicam os filhos e que a guarda compartilhada mesmo nestes casos
tem aplicação referendada tanto em textos estudados como amparo legal.
Cientes de que não basta apontar as dificuldades e procurando formas de
atuação no campo do judiciário, o grupo iniciou reflexão sobre a necessidade da
criação de um fluxo processual consistente iniciando pela tentativa de preparação
das partes para uma nova fase de vida que se inicia com o rompimento conjugal
tendo como objetivo a instauração da guarda compartilhada em benefício dos filhos.
O grupo pontuou sobre a existência de diversas experiências dos
profissionais que compõem o judiciário atualmente e da importância destas serem
compartilhadas, utilizando-se de recursos como, jornadas temáticas, seminários e
palestras, além dos grupos de estudos em andamento. O interesse comum pela

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

temática e o intuito de diminuir o número de ações em litígio pela guarda dos filhos,
levou o grupo a sugerir que ideia seja levada ao Núcleo para articular um evento
destinado à troca de experiências.
A globalidade dos encontros, somada ao esforço conjunto para a criação
de uma rede no judiciário com uma nova visão de trabalho voltado ao superior
interesse da criança e adolescente, tem sido o alvo do trabalho deste Grupo de
Estudo que espera possa conquistar efetivamente a substituição da postura da
adversidade e do litígio por uma nova visão onde haja maior e melhor qualidade no
diálogo, evitando-se a violência e as situações de risco aos filhos.

134
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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ATENDIDO NO SETOR TÉCNICO DE SERVIÇO SOCIAL E
PSICOLOGIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Rachel de Souza da Costa e Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


São Roque
Raimundo Nonato Lopes Neto – Psicólogo Judiciário – Fórum Regional de Itaquera

AUTORES

Adriana Ribeiro Delgado – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de Itaquera


Bruna Rafaela Ortiz de Camargo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapetininga
Camila Manduca Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Ribeirão Pires
Juliana Fernandes Iuan – Psicóloga Judiciário – Fórum Regional de Santana
Julieta Camargo Silva de Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Itapetininga
Mara Maria Ferreira de Almeida – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sorocaba
Melina Barbosa Rubira – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos
Patrícia Maura Silva de Lima - Assistente Social Judiciário – Comarca de Votorantim
Regiane Ortolam – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba
Rosilda de Fátima dos Santos Coelho – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Ribeirão Bonito
Veridiana Eloia Bandeira – Assistente Social Judiciário – Fórum Regional de
Itaquera

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Eu não sou um cliente, um consumidor, nem


um usuário de serviço.
Eu não sou um preguiçoso, um parasita, um
mendigo, nem um ladrão.
Eu não sou um número do seguro nacional,
nem um ponto na tela.
Eu paguei minhas dívidas, nem um centavo a
menos e tenho orgulho disso.
Eu não puxo o tapete, e olho meu vizinho no
olho.
Eu não aceito nem peço caridade.
Meu nome é Daniel Blake, sou um homem, não
um cachorro.
Por isso, eu demando meus direitos. Eu
demando que você me trate com respeito.
Eu, Daniel Blake, sou um cidadão, nada a
mais, nada a menos. Obrigado.

Filme: Eu, Daniel Blake (2016).

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INTRODUÇÃO

Tudo acontece no cotidiano. E todos os dias apenas em uma passagem


pelas notícias nos deparamos com informações que atestam como este cotidiano
tem se tornado mais desafiador. Há quem diga tratar-se de uma crise estrutural do
capitalismo e, como crise estrutural, atinge a totalidade da vida.
A partir do acúmulo de debates nos anos anteriores deste grupo de
estudos, concebemos cotidiano como o espaço de reprodução de valores e
tradições e, por isso, de permanência de situações alienadas e alienantes, composto
por características como a heterogeneidade, a superficialidade, a imediaticidade. Ao
mesmo tempo, e dialeticamente, cotidiano é compreendido como importante
momento de resistência. Ou seja, o cotidiano nem é automaticamente algo que
possa ser enquadrado como “positivo” ou “negativo”, pois cotidiano precisa de
crítica! (NETTO, 2005).
Ora, se todos estes elementos estão no cotidiano, então também se
encontram presentes no cotidiano profissional, o qual é pragmático, requer atuação
imediata, pois a característica do pensamento no cotidiano é ser ultragenérico e com
juízos provisórios.
Em termos gerais, o(a) profissional tem que “resolver o problema”, “dar
respostas”, “emitir um parecer”, mas não tem tempo para examinar todos os
aspectos do caso singular (às vezes, nem mesmo os mais decisivos). Por isso, pode
recorrer a juízos provisórios e tipificações (por exemplo: “não adere”, “é acomodado”,
“quer tudo na mão”, “é negligente, coitado, carente” etc). E é por esta via que
preconceitos, negligências e desqualificações podem adentrar na prática
profissional, especialmente em uma conjuntura de tanta precarização nas condições
de trabalho.
Mas, por outro lado, cotidiano é possibilidade, porque, afinal de contas é
onde tudo acontece. Ele precisa ser suspenso continuamente para ser refletido,
sendo alvo sistemático de crítica (e autocrítica). E o conhecimento criterioso dos
processos sociais e de sua vivência pode alimentar ações inovadoras, capazes de
propiciar o atendimento às efetivas necessidades sociais das pessoas que são
atendidas nos setores técnicos. Esse conhecimento é pré-requisito para impulsionar

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a consciência crítica e uma cultura democrática, para além das mistificações


difundidas no senso comum (YASBEK, 2001).
É justamente o esforço em desvendar os impasses do cotidiano que
envolve os encontros do Grupo de Estudos “Cotidiano da prática profissional –
Família” de assistentes sociais e psicólogos (as) do Tribunal de Justiça de São
Paulo. Buscando compreender e fazer a crítica dos múltiplos aspectos do cotidiano
profissional, acordou-se que os encontros deste ano do Grupo de Estudos
abordariam tanto os debates e aprofundamentos teóricos, quanto garantiriam
espaço para discussão de casos atendidos pelas (os) assistentes sociais e
psicólogas(os) a partir de sua prática cotidiana no Tribunal de Justiça.
Neste ano, os debates nos encontros do Grupo de estudos giraram
especialmente em torno do acirramento desta conjuntura de crise (política,
econômica, ambiental, cultural, social etc.) e seus impactos aterradores. Impactos
estes presentes evidentemente nas vidas das pessoas que são atendidas, mas
também presentes nas vidas de trabalhadores (as) dos setores técnicos, atingindo a
todos(as).
Ou seja, em um contexto de crise, assistentes sociais e psicólogos(as)
são inseridos em um cenário carregado de tensões, expressões da questão social e
violências, esses profissionais se deparam com a deterioração das condições de
vida dos(as) trabalhadores(as) e são atingidos duplamente: como trabalhador(a)
assalariado(a) e como profissional comprometido com a realização dos direitos
sociais (IAMAMOTO, 2012).

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1 - “VOCÊ OLHOU BEM PARA ELA?”: PRECONCEITOS

Relato de experiência: Foi determinada a colocação em família substituta de L., 6


anos, com deficiência intelectual. Após extensas buscas, foi acionado no CNA casal de
pretendentes à adoção cujo perfil era para crianças até 10 anos, grupos de até 3
irmãos e aceitavam crianças com deficiência. Após bem sucedida aproximação, os
pretendentes iniciaram estágio de convivência visando à adoção de L. Dois meses
depois, posto que seu cadastro de adoção encontrava-se ativo, foram chamados por
outra comarca para conhecerem um grupo de três irmãos, com idades entre 3 e 10
anos. Os pretendentes decidiram conhecer as crianças e iniciaram estágio de
convivência também com elas. O acompanhamento do estágio de convivência indicou
que apesar das intensas mudanças vividas em pouco tempo a nova família
apresentava condições psicossociais para seguir adiante na construção das adoções
propostas. No entanto, ao tomar ciência dessa mudança, uma autoridade judicial
interpelou a técnica que acompanhava a família dizendo: “eles não parecem ter
condições [financeiras] para bancar quatro crianças... e você olhou bem para ela? Ela
é obesa, como pode cuidar de quatro crianças?”. Os elementos positivos colhidos
durante o acompanhamento foram reafirmados. Algum tempo depois, as adoções de L.
e dos irmãos foram concretizadas com grande êxito, formando uma família linda e
capaz de enfrentar desafios e preconceitos.

No início deste ano, quando o Grupo de estudos ainda discutia os rumos


dos debates, desde o primeiro encontro chamou atenção a percepção do
agravamento nos preconceitos na sociedade, evidenciados a partir das diversas
manifestações de preconceito de classe, racismos, machismos, sexismos,
LGBTfobias, preconceito contra imigrantes, criminalização da pobreza,
encarceramento em massa, preconceito contra pessoas com deficiência, genocídio
da juventude negra etc. Esta percepção em relação ao agravamento dos
preconceitos está calcada na realidade, pois, como aponta Barroco, no caderno
organizado pelo CFESS sobre “o que é preconceito?”:

[...] a realidade atual da sociedade brasileira, que evidencia a


legitimação, por parte da sociedade, de um caldo de cultura
ultraconservadora, expressa em práticas fascistas e irracionalistas.
Manifestações cotidianas de ódio e violência contra quem pensa e
age diferente revelam um cenário assustador e regressivo, do ponto
de vista político e civilizatório, em que a intolerância e a
discriminação marcam presença obrigatória. (BARROCO, 2016, p.
07).

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Qualquer debate intelectual exige ultrapassar a aparência dos fenômenos


para compreender suas raízes, suas estruturas básicas e essenciais. É nítido no
cotidiano o acirramento tanto das desigualdades quanto dos preconceitos. Mas, para
além dessa constatação cabe questionar, onde nascem os preconceitos? Para
responder essa questão retornamos mais uma vez ao nosso principal tema de
estudos: os preconceitos nascem no cotidiano.
Heller (2008) aborda as questões da cotidianidade do homem. Segundo a
autora, o homem já nasce inserido na vida cotidiana, sendo esta a vida de todo
homem, pois todos a vivem, sem nenhuma exceção. Ninguém consegue desligar-se
inteiramente dela e nem vivê-la intensamente.
Para Heller (2008) o preconceito é uma categoria fundamental da vida
cotidiana. Nas palavras de Heller (2008, p. 63): “O preconceito é a categoria do
pensamento e do comportamento cotidianos”. E, por mais que se caracterize por
interesses e motivações individuais, ele nada pode dizer acerca da individualidade
do sujeito que o assumiu, justamente porque provém de uma assimilação de cunho
ideológico.
No cotidiano realizamos diversas atividades heterogêneas, o que impele
ao mecanismo da ultrageneralização: generalizar as “soluções” para dar conta das
demandas cotidianas. Isto leva à inescapável formação de juízos provisórios –
“provisório porque se antecipa à atividade possível” (HELLER, 2008, p. 64) –, mas
que nem sempre encontram confirmação na prática.
O preconceito é um tipo particular de juízo provisório. Os juízos
provisórios, refutados pela ciência e por uma experiência cuidadosamente analisada,
mas que se conservam inabalados contra todos os argumentos da razão, são os
preconceitos. Falsos juízos de valor caracterizam o preconceito, na medida em que
o caráter pragmático da atividade cotidiana leva a esquemas de recepção do todo
social. Por isso, “a estrutura pragmática da vida cotidiana tem consequências mais
problemáticas quando se coloca em jogo a orientação das relações sociais”
(HELLER, 2008, p. 66).
Assim, o conceito de ideologia somente assume intencionalidade
discriminatória a partir do momento em que se transmuta em preconceito,
aparecendo como expressão de ideias que servem para criar ou manter relações
desiguais. A falsa consciência, quando se converte num sistema de preconceitos,

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obscurece a realidade contribuindo para a manutenção do sistema reprodutor de


desigualdades.
Quando o indivíduo se aliena, ele se torna incapaz de romper com
qualquer formação do pensamento ou do comportamento, mesmo em situações
cotidianas em que tais padrões necessitem de uma superação. Esse indivíduo
experimenta um empobrecimento e esvaziamento da sua individualidade, de
maneira que passa a atuar através de um conjunto de atividades cristalizadas,
rígidas, o que demonstra uma hipertrofia da estrutura da vida cotidiana.
Neste sentido, o modo de funcionamento do cotidiano alienado implica na
formação de um indivíduo que reproduz padrões de pensamentos e ações pré-
estabelecidos, recorrendo a pensamentos ultrageneralizadores, na impossibilidade
de tomar decisões de caráter individual.
Se guiar por preconceitos é cômodo e gera conformismos, protege dos
conflitos, responde a interesses imediatos, permite o isolamento aparente do
problema, inibe as escolhas e a autonomia. Dessa forma, a sociedade em que
vivemos propicia a restrição dos questionamentos e críticas, de maneira que as
formas de agir, pensar e sentir do homem não conseguem transcender os padrões
típicos de um cotidiano sem reflexão.
Os preconceitos são negativos porque obstam a autonomia na medida em
que diminuem a liberdade relativa no ato de escolha. Os preconceitos formados
impedem que sejam reveladas as demais propriedades e qualidades do indivíduo,
mistifica e distorce a realidade, há a desvalorização da potência, da diversidade
humana (HELLER, 2008).
Revisitar a origem dos preconceitos nos leva à necessária reflexão de que
preconceitos são também reproduzidos na prática profissional cotidiana. Pois o
cotidiano do trabalho de assistentes sociais e psicólogos(as) concretizam as
desigualdades e o desrespeito aos direitos humanos e sociais. Tal cotidiano da
prática profissional é tão desgastante que pode conduzir à reprodução de falas
prontas e discursos alienantes, pautadas na repetição do senso comum, com o
reforço de estereótipos, que trazem a tendência do reforço do sistema de
preconceitos socialmente construídos.
As condições de trabalho precárias impelem às soluções mais rápidas e
fáceis. Questionar é o caminho mais longo, difícil e trabalhoso. Mas desconstruir

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preconceitos é um movimento de resistência, de uma prática profissional consciente.


Na prática dentro do Tribunal de Justiça é central a importância de se atentar para o
rompimento deste ciclo, visto que este sistema de preconceitos que exerce uma
função social de controle e dominação pode ser combatido em nossa prática se
enfrentarmos o preconceito coletivo e individual.
O exercício da desconstrução do preconceito, embasado em
interrogações quanto aos seus alicerces, ou seja, rever socialmente a cultura
conservadora, machista, classista, autoritária e discriminatória, é iniciar o
rompimento desta cristalização de ideias. E esta não é apenas mais uma entre as
inúmeras atribuições da equipe técnica do Tribunal de Justiça, é uma diretriz para a
busca do conhecimento teórico que fundamenta o entendimento das situações
particulares em sua relação com a totalidade sócio histórica, em suas conexões e
contradições, visto que este conhecimento ético desvenda valores profissionais que
sustentam o compromisso ético das profissões de Serviço Social e Psicologia.
Pois embora a existência de preconceitos não diga do indivíduo isolado,
mas das relações sociais existentes, cada um é responsável pelos seus
preconceitos (HELLER, 2008) e o lugar para assistentes sociais e psicólogos(as) é
no seu combate.

O preconceito é expressão das relações conservadoras da


sociabilidade burguesa e de seu individualismo, que, por sua vez,
remete à exploração, cada vez mais bárbara, do trabalho pelo
capital. A banalização destes fundamentos representa um desvalor,
que emerge nas mais diferentes formas da vida cotidiana, e o desafio
do seu enfrentamento deve provocar, na categoria dos assistentes
sociais, processos de autorreflexão, com vistas a uma intervenção
profissional marcada por ações emancipatórias, na perspectiva de
outra ordem societária (CFESS, 2016, p. 05).

Os preconceitos, construídos pelas pessoas na esfera da vida cotidiana,


apresentam a rigidez das formas de pensamento e comportamento, mas podem
modificar-se, pois estão sujeitos a uma permanente transformação.

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2 - “VOCÊS NÃO SABEM DE NADA”: FAMÍLIAS

Relato de experiência: Era um dia quente de fevereiro, quando a mulher adentrou a sala
de audiências. Sua relação com a burocracia, sobretudo judiciária, nunca foi tranquila, o
que se agravava a cada olhar estigmatizador: a mãe-que-entrega, a mãe-que-entrega-de-
novo. Para aquela plateia, pouco importava a história, os abandonos, as potencialidades, a
subjetividade existente naquela “escolha” (?). Após a sessão, enquanto esperava o
despacho do juiz, a mulher ouve, em forma de burburinho, sua história sendo
compartilhada. E nem era a história completa, eram fragmentos escritos a partir do olhar
de quem reproduzia: “é o 10º filho (risos), daqui a pouco pode fazer um time de futebol”,
“foi pega na rua catando latinha com os filhos atrás”, “já não é a primeira vez que dá a
criança”, “tem que laquear essas mulheres todas”. Com o incômodo instalado e como a
única forma de resistência possível naquele momento, gritou: “vocês não sabem de nada,
eu trabalho!”.

As mudanças no contexto cultural, social, político e econômico do Brasil e


do mundo geraram também transformações na família brasileira. Considerando os
novos arranjos e a variabilidade de composição, revela-se ainda uma estrutura
societária hierarquizada, repressora e autoritária.

Existem diversas expectativas em torno dos papéis e das funções


que teriam as famílias, como por exemplo, os cuidados e a proteção
de seus membros. Entretanto, constata-se o enfraquecimento em
seus laços e a impossibilidade de cumprirem os deveres que lhe são
socialmente impostos, sobretudo por conta do sistema
socioeconômico vigente que reproduz valores como a
individualização, a competitividade e a retirada do Estado do
enfrentamento dos problemas sociais (MENDONÇA, 2013, p. 42).

O desmonte cada vez maior do Estado, especialmente em momentos de


crise, e da responsabilização e culpabilização das muitas famílias que não seguem
um modelo nuclear19 e acabam divergindo do “modelo idealizado de família”, torna
fundamental ampliar o olhar e problematizar o compromisso ético e político de
assistentes sociais e psicólogos(as) no Judiciário, desconstruindo posicionamentos
muitos vezes moralistas, racistas, preconceituosos de várias maneiras, a respeito
dos arranjos e rearranjos familiares. Principalmente entre as famílias mais
empobrecidas, que são aquelas cujos avanços do neoliberalismo atravessam mais
intensamente.

19
“De um modo geral o que se pode perceber entre as camadas mais atingidas pela desigualdade é
que o modelo idealizado de família (‘pai, mãe, filhos’) quase não existe. Há uma maior quantidade de
famílias marcadas pelo falecimento, adoecimento ou abandono do pai ‘provedor’, lares chefiados por
mulheres (mãe, tia ou irmã mais velha), crianças com inserção precoce no mercado de trabalho
visando compor a renda familiar e consumo pessoal”. (MENDONÇA, 2013, p. 100).
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O neoliberalismo trouxe consigo a exacerbação das características


do regime do Capital, somando-se a esta a retirada do Estado como
provedor essencial das demandas de trabalho e renda ou ainda à
assistência social às parcelas populacionais mais carentes do meios
e recurso necessários à sobrevivência (MENDONÇA, 2013, p. 40).

O avanço neoliberal no país, e no mundo, vem afetando não apenas as


famílias mais empobrecidas, mas também a atuação cotidiana de assistentes sociais
e psicólogas(os) do Tribunal de Justiça de São Paulo, que atendem demandas cada
vez maiores e complexas, que exigem intervenções e problematizações constantes,
mas que são constantemente pressionados a produzir mais e mais rápido, com
prazo, e determinações que buscam enquadrar aqueles técnicos em espaços que
colocam em xeque seu compromisso ético-político, de muitas maneiras.
O Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta uma nova lógica de
pensar a infância e a adolescência: muda-se o paradigma de população em
“situação irregular”, como nos Códigos de Menores20, para “sujeitos de direitos”.
No entanto, Nascimento (2012) nos apresenta que a legislação não se
funda, por si só, enquanto prática. A implantação do Estatuto da Criança e do
Adolescente trouxe mudanças importantes, afinal atualmente podemos considerar
outras possibilidades, sendo isso já um grande avanço. Anteriormente, as famílias
não tinham voz e os parâmetros eram mais punitivos. Hoje em dia o Estado é
corresponsável pela família, e a questão da proteção abre mais possibilidades de
ações com estas. O Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta-se com mais
avanços que o antigo Código de Menores, porém ele talvez continue subsidiando a
culpabilização das famílias. Será que só os termos mudaram, mas as questões
permaneceram as mesmas?
Tal entendimento pode ser observado no que se refere, especialmente,
ao acolhimento institucional de crianças e de adolescentes. Nascimento (2012)
apresenta que o poder judiciário atuou por décadas na retirada de crianças e
adolescentes de famílias pobres, sob o cunho da “proteção” trazida pelos Códigos
de Menores. O principal argumento era de que o acolhimento significaria melhores
cuidados e proteção, uma vez que as famílias seriam inaptas ou incapazes de fazê-

20
Já em seu primeiro artigo o Código de Menores trazia: “o menor, de um ou outro sexo, abandonado
ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às
medidas de assistência e proteção contidas neste código”.
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los, por possuírem modos de vida propícios ao surgimento de doenças, perversão e


vadiagem. Instituía-se a partir de discursos, crenças e práticas, a criminalização da
pobreza.
Ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente indique proibição no
acolhimento justificado por pobreza, observa-se que a família pobre passa a ser
governada através de um novo entendimento: o estatuto da família negligente
(NASCIMENTO, 2012, p. 40). A situação de pobreza é transformada em desrespeito
aos direitos estabelecidos pela legislação, ou seja, famílias “em risco”, “negligentes”,
necessitando de intervenção estatal.
Nascimento (2012, p. 40) apresenta que “há uma construção subjetiva que
afirma a pobreza como mais exposta a situações de vulnerabilidade”, por não seguir
um modelo pautado em verdades compatíveis com a lógica do capitalismo, tendo
como exemplo o modelo burguês de família:

Definida pela negação, a família negligente é considerada "culpada"


por suas estratégias de sobrevivência, autuada pelo que "não fez",
por uma falta de ação no provimento das necessidades da criança. A
família negligente é a que não faz coisas esperadas, e não se
encontra potência de vida nas coisas que faz que em geral não são
aquelas que se espera que ela faça (NASCIMENTO, 2012, p.43).

Nesse sentido, a compreensão de situação de risco justificaria a


vigilância, o controle e a observação desta população, a partir de

[...] um desejo de ordem e justiça no processo de enquadramento


das famílias como negligentes. Tal movimento segue um clamor
público por punição. [...] Prevalecem práticas de punição que podem
ser localizadas nas diversas ameaças que esses pais sofrem ao
circularem em órgãos públicos como conselhos tutelares, abrigos e
juizados. Instala-se uma espécie de máquina punitiva que vai
definindo a perda do poder familiar (deixa-se de ter direito sobre o
filho), a adoção por família dita estruturada (porque a pobre é
desestruturada), a colocação em abrigo (tido como o melhor lugar
para ficar o filho do negligente), o calendário restrito de visita aos
filhos abrigados e tantos outros castigos destinados àqueles julgados
como pais negligentes. (NASCIMENTO, 2012, p. 40).

O não pertencimento ao modelo instituído vai criando uma organização


que cada vez mais formata e se fecha às potencialidades das famílias, restando a
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elas o olhar e o lugar desviante, que modela, criminaliza, culpabiliza, como sua única
forma de existência. Além disso, ao invés de dar foco nas faltas das famílias,
despotencializando-as, talvez seria mais interessante e producente dar olhar as suas
potências, criando formas alternativas de viver que funcionem, de fato, para elas. As
famílias podem absorver esse lugar impotente que lhes é dado através das noções
normativas do que é considerado negligência.

A partir daí é necessário questionar (e questionar-se) sobre o rótulo das


“famílias que não aderem”. Até que ponto podemos encaminhá-las e até que ponto
podemos exigir algo destas famílias? Será que apenas as famílias são negligentes?
E as negligências cometidas pelo Estado? Sobretudo, qual é a qualidade e
finalidade desses encaminhamentos feitos por nós? E a qualidade desses serviços?
Será que tais serviços não são vistos como punição para seus usuários? A política
de proteção/prevenção é para proteger ou para controlar? Não raro as famílias já
chegam desqualificadas e culpabilizadas ao Judiciário, apontando a fragilidade da
rede de proteção.
Essas resultantes da questão social definem o lugar dos pobres nessa
sociedade: ausência de poder de mando e de decisão, a privação de bens materiais,
a desqualificação de suas crenças e modo de expressar-se, que ocorrem
simultaneamente às suas práticas de resistência (YASBEK, 2001).
Ao contextualizar a prática profissional de serviço social e psicologia sob
o viés neoliberal dessa categoria e do público alvo das intervenções, as famílias
pobres, é possível inferir que as práticas neoliberais, gradativamente, deixam sua
marca avassaladora no contexto sócio assistencial. Inegavelmente, o neoliberalismo,
além de ser responsável pela negação em cascata dos direitos sociais das famílias e
pela culpabilização dos indivíduos pelos problemas sociais, também afeta as
condições de trabalho dos(as) assistentes sociais e psicólogos, uma vez que tais
profissionais enfrentam uma precarização no desenvolvimento do seu trabalho.
É através dos diversos dispositivos de exercício do poder e reprodução
das relações sociais que se exerce a tutela sobre as famílias, seguindo os
parâmetros estabelecidos pela própria lógica dominante de reprodução e cujo
resultado mais evidente é uma invasão de todos os poros da vida, que “cobre a vida
como um todo” (NETTO, 2005, p. 87). Trata-se, para a maior parcela da população,
de um esquadrinhamento de todas as dimensões da vida, pois interfere no cotidiano

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das pessoas em situação de pobreza. Porém, cabe lembrar que o poder não se
reduz ao controle governamental e institucional, o poder é exercido também

através de relações diretas, expressando o poder de influência de


determinados agentes sociais sobre o cotidiano de vida dos
indivíduos, reforçando a internalização de normas e comportamentos
legitimados socialmente. Entre esses agentes institucionais encontra-
se o profissional de Serviço Social (IAMAMOTO, 2012, p. 116).

No contexto neoliberal, a condição financeira ainda é um requisito que


qualifica ou desqualifica as famílias quanto à capacidade de assumir o sustento de
seus membros. Se, perante a sociedade, existe a ausência dessa condição, há uma
culpabilização dessas famílias, o que justifica uma intervenção técnica ou estatal. E
é justamente desta armadilha que assistentes sociais e psicólogos(as) precisam
estar atentos para escapar, “exceto se nós [...] quisermos nos deter na condição dos
profissionais que ‘programam’ (ou concorrem para tal) a cotidianidade” (NETTO,
2005, p. 90).
Na maioria das vezes, as famílias pobres são vítimas do sistema
econômico vigente; as privações pelas quais estão submetidas não são levadas em
consideração nas sentenças judiciais. Da mesma forma, se as famílias pobres não
são capazes de proteger seus membros e acabam descumprindo ou colocando em
risco os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, são vistas como
negligentes pela sociedade.
A descrição do art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente (“aos pais
incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores”) elege a
família como a detentora do dever de cuidar de seus membros. Porém, a legislação
não acompanha as alterações e a dinamicidade imbricadas no bojo das relações
sociais quando não as reconhecem na sua base. Um campo de apropriação das
famílias são as políticas públicas que, na maioria das vezes, são pensadas e
executadas como medidas imediatistas e políticas pobres para pobres.
Enfim, criminalizar as famílias pobres pelas expressões da questão social
por elas vividas, sem levar em consideração a dimensão societária de produção da
pobreza e as práticas neoliberais é, de fato, equivocado. Sendo assim, fica claro que

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é papel do Estado assumir a responsabilidade de formular e operacionalizar as


políticas públicas em prol dessas famílias.
Neste ano de trabalhos do Grupo de Estudos “Cotidiano da prática
profissional” recebemos no dia 06 de junho de 2017, uma convidada especial: a
assistente social Dra. Joana Maria Gouveia Franco Duarte21, que apresentou e
debateu conosco o conteúdo de sua tese de doutorado: “Trabalho Social com
Famílias: das determinações sóciohistóricas aos subsídios para o trabalho
profissional cotidiano”.
A pesquisa de Joana Duarte (2017) procurou pensar em como o Serviço
Social está inserido no contexto de reconfiguração de políticas sociais e nessa
relação entre Estado-família. Além disso, quis entender como os assistentes sociais
pensam e trabalham com as famílias e sob quais fundamentos.
A tese defendida por Duarte (2017) compreende a família como categoria
histórica, tendo como mote a economia, determinada e constituída pelos processos
de produção e reprodução da vida cotidiana, na qual as condições de multiplicação e
acumulações de riquezas afetam na conformação dos modos de ser dos núcleos
familiares. Pois: “as famílias também estão situadas no processo de produção e
reprodução da vida social, portanto, quando nos referimos ao trabalho com famílias
estamos nos reportando às condições objetivas para sua reprodução” (DUARTE,
2017, p. 186).
Ainda hoje são observadas as marcas históricas de colonização,
escravismo e ditadura, na qual se fomentam relações de dependência, hierarquias e
opressões, pois as raízes do patriarcado influenciam a questão do gênero e divisão
sexual do trabalho.
As famílias encontradas no cotidiano profissional de assistentes sociais e
psicólogos(as) são marcadas por um universo de valores e padrões relacionado
entre as divisões de classe e o posicionamento do Estado, o qual é pautado pelo
modelo neoliberal. Em tal paradigma se observa a desresponsabilização estatal e

21
Joana Maria Gouveia Franco Duarte possui graduação (2002), mestrado (2012) e doutorado (2017)
em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É docente em cursos de
graduação e pós-graduação em Serviço Social. Participação em grupos de pesquisa. Consultoria,
assessoria e supervisão técnica. Experiência profissional nas políticas de Assistência Social
(Proteção Social Especial), Habitação (Pós Ocupação e Regularização Fundiária), Saúde (Ouvidoria,
violência doméstica), questões sócio-ambientais e resíduos sólidos. Experiência em elaboração de
projetos (Projeto de Trabalho Técnico Social e Sócio Ambiental).
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um enfraquecimento nos sistemas de proteção social, no qual há a mistificação de


relações sociais em problemas individuais.
Há a necessidade de se problematizar e relacionar as famílias atendidas
com o modo de produção capitalista, acumulação de capitais e reprodução das
relações sociais. Sem uma base consistente e uma atuação crítica, buscam-se
respostas no senso comum refletidas em uma abordagem normativa, na qual se
procura interpretar e construir respostas individualizadas para as vivências dos
núcleos familiares, descoladas do modelo econômico vigente. A tese de Joana
Duarte (2017) destacou que o avanço na garantia de direitos está sendo
obstaculizado pela manutenção de práticas conservadoras no cotidiano profissional,
sendo que mesmo os(as) profissionais com discursos mais progressistas possuem
ações retrógradas.
Neste sentido, como trabalhadores(as) também imersos nas relações
sociais capitalistas, nada nos separa das famílias atendidas, nos torna “os outros”, “o
estranho”, pois, como afirma Duarte (2017):

Estar inserido na divisão social e técnica do trabalho significa que os


assistentes sociais vendem sua força de trabalho implicados pelas
mesmas relações de exploração, capturas ideológicas e dilemas da
alienação a que está submetido o conjunto dos trabalhadores, sujeito
às mesmas vicissitudes das famílias que atendem.
Não há nada que os coloque em um pedestal, que os credencie a
olhar de cima para as famílias que atendem, pois tem a mesma
condição de trabalhadores. Por isso, a consciência do papel do
assistente social na sociedade de classe e a solidariedade com as
famílias que atendem, parece, das mediações mais importantes, ser
a empatia de quem também vive do trabalho e é constrangido por
humilhações e explorações na luta pela sobrevivência, em maior ou
menor grau (DUARTE, 2017, p. 186).

Ressalta-se a importância de se compreender a atuação profissional


inserida em um contexto sócio-histórico, relacionando as demandas das famílias
atendidas com a reprodução das relações sociais e acumulação de riquezas
socialmente produzidas. Acrescido a isso, é primordial romper com uma visão
ensimesmada e estar em permanente vigília e autocrítica na prática profissional,
combatendo desigualdades e a naturalização dos processos de exploração.
É de suma importância conferir um sentido ao trabalho, pois ele é a tônica
da dinâmica social familiar, tendo impacto direto em sua organização. Afinal, “uma
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vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de


sentido fora do trabalho. Em alguma medida, a esfera fora do trabalho estará
maculada pela desefetivação que se dá no interior da vida laborativa” (ANTUNES,
2010, p. 86).
São as determinações sócio-históricas e econômicas na constituição das
famílias e da sociedade brasileira e que refletem nas relações familiares, que podem
oferecer bases consistentes e subsídios para o trabalho profissional cotidiano. Pois,
a partir da relação entre classes e o posicionamento do Estado, marca-se um
universo de valores e padrões que refletem nos núcleos familiares que atendemos,
contrariando a individualização da questão social que reverbera nos discursos sobre
capacidade protetiva das famílias.
Faz-se necessário pensar um ambiente social em relativa consonância
com nossa subjetividade, ofertando processos de facilitação ao invés de invasões
dessubjetivantes. Observam-se, nos dias atuais, realidades pouco acolhedoras,
esvaziada de relações sociais consistentes, nas quais os sujeitos, rendidos à
invasão externa, sentem dificuldades em encontrar um lugar consistente para sua
existência pessoal, tendo uma experiência de extremo vazio. As identidades
contemporâneas estão cada vez mais permeáveis às demandas exteriores,
apresentando uma vacuidade de desejos e afetos, pautando-se mais em ideais de
corpo do que em posicionamentos sociais ou políticos.
Ambientes acolhedores produzem pessoas confiantes e criativas, cujo
prazer consiste em poder contribuir singularmente com a sociedade e não em ser
submetido a ela. Nota-se em nossa atualidade que os mecanismos de controle e
coerção fazem com que as pessoas tenham que sobreviver em uma vida
padronizada, pouco preocupada com as singularidades. Tais relações de poder
cristalizadas realizam um movimento de permanente apropriação de vida e
congelamento da criatividade, não permitindo a emergência de um si mesmo
consistente. A nova subjetividade muitas vezes passa a existir como um conjunto de
reações às demandas externas, na qual é priorizada a performance. Ou seja,
vivemos em uma época na qual encontramos sujeitos cada vez mais reativos e
enfraquecidos, fragmentados em sua própria interioridade.

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3 - “É MAIS FÁCIL GOSTAR DELE (...) ELE NÃO DÁ TRABALHO”:


NEOLIBERALISMO
Relato de experiência: Foi determinada a colocação em família substituta dos irmãos D., 5 anos, e R., 2 anos,
após esgotadas as tentativas e investimentos para o retorno à família extensa e de origem. O casal contatado,
através do CNA, estava há 3 meses no cadastro, após ter passado pelas avaliações no Setor Técnico e grupo de
preparação a adotantes. Na entrevista de avaliação, visando possível aproximação, o casal reiterou todas as
manifestações feitas nas avaliações anteriores sobre seu projeto de adoção. Conheceram as crianças, através de
um contato supervisionado pela equipe do serviço de acolhimento. O casal continuou na aproximação com as
crianças, e os vínculos começaram a surgir entre o casal de adotantes e os irmãos, que começaram a nomear os
adotantes de pai e mãe. O casal, durante entrevista para avaliar a aproximação, dizia que não via a hora de levar
as crianças para casa. Explicaram que já haviam preparado a casa e os quartos das crianças. O Setor Técnico,
juntamente com o serviço de acolhimento, sugeriu que o casal levasse os irmãos, inicialmente por um fim de
semana, com pernoite, considerando que tudo corria de modo positivo. E no primeiro final de semana em que os
irmãos estiveram com o casal, os adotantes entraram em contato para comunicar que não pretendiam mais adotar
as crianças. Mesmo após muitas intervenções e reflexões, o casal desistiu da aproximação com as crianças, que
perguntavam todos os dias quando seus “pais” os levaram embora. Algumas das justificativas do casal para
interromper a aproximação foram: “O mais velho dá muito trabalho, ele tentou derrubar a televisão, ele tinha
ciúmes do irmão, pegou a chave do carro dizendo que ia fugir, e ele ficava falando de como lembrava da mãe e
da tia dele. A gente achou mais fácil cuidar do R., de 2 anos, porque é mais fácil gostar dele, porque ele não dá
trabalho. Ainda bem que estamos desistindo na fase de aproximação, porque não causa tanto dano às crianças,
temos certeza que não deu de eles se apegarem a nós. Afinal de contas não é assim o processo de adoção?, se
ainda estamos apenas na aproximação, podemos desistir da adoção! Agora nós queremos adotar apenas uma
criança, porque entendemos com essa experiência que adotar duas crianças dá muito trabalho, então queremos
voltar para o CNA e mudar o perfil da criança desejada que queremos.”

Ao problematizar as relações de trabalho na atual conjuntura societária e


seus impactos para os trabalhadores/as e público atendido no Tribunal de Justiça,
torna-se necessário delinear as principais configurações de um mundo novo em uma
estrutura velha, ou antes, os novos modos de funcionamento ditados pelo
neoliberalismo, que compõem para além de meros novos fluxos político-econômicos,
novos modos de ser, de viver e de entender o tempo presente.
Para tanto, partimos do contexto em que após “trinta anos gloriosos”
(1945 – 1973) de um capitalismo monopolista que, mesmo com pequenas crises,
viveu uma fase de crescimento e expansão econômica caracterizada por uma
sociedade afluente, consumista, cujo modelo era o American Way of life e cujas
manifestações da questão social pareciam ter se tornado coisa do passado, na
medida em que a construção do Welfare State parecia ter encontrado a fórmula ideal
para manter, ao mesmo tempo, o desenvolvimento econômico em alta e a questão
social sob controle.

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Sabendo-se, no entanto, que a melhoria das condições de vida da classe


trabalhadora não altera a essência exploratória do capitalismo (e a consequente
pauperização relativa desta classe), esperar grandes revoluções com reformas
dentro do capitalismo não passa de uma ilusão. Isso se tornou evidente ao fim desta
onda longa de expansão do capital, em meados dos anos 1970, quando o mundo foi
atingido por uma longa, profunda e persistente crise econômica.
A partir daí, podemos falar em um novo tempo no mundo contemporâneo, um
tempo pleno de desafios, em que, em termos gerais, o mundo capitalista se torna
mais capitalista, seja levando a outro patamar características próprias deste modo
de produção da vida (como a exploração, a propriedade privada, a desigualdade),
seja trazendo elementos efetivamente novos, como a especulação financeira e o
neoliberalismo. Ao resumir as características principais do neoliberalismo, Baptista
(2008), aponta:

[...] sua meta maior constitui-se a estabilidade monetária através da


restituição do que chamam de taxa natural de desemprego, reforma
fiscal e contenção de gastos com bem estar. Seus primeiros
governos [...] inauguraram um programa marcado por: contração da
emissão monetária, elevação das taxas de juros, baixa drástica dos
impostos sobre rendimentos altos, abolição do controle sobre fluxos
financeiros, criação de níveis de desemprego massivos,
insensibilidade a greves, legislação anti-sindical, cortes de gastos
sociais, implantação de amplo programa de privatizações.
Outro ponto crucial desse programa de ajustes refere-se à
desregulamentação financeira criando condições otimizadas ao
investimento especulativo em detrimento do produtivo. Tal programa
foi uma receita seguida pelo conjunto dos países ditos
subdesenvolvidos, em particular pelo Brasil (BAPTISTA, 2008, p. 97).

São novos tempos que invadem a totalidade da vida social, incidindo em


transformações políticas, econômicas, sociais, ídeo-culturais, enfim, societárias,
envolvendo fenômenos como tão diversos quanto interligados como a globalização,
a reestruturação produtiva, as mudanças na relação entre Estado e sociedade civil e
o agravamento da questão social no mundo inteiro.
É neste contexto que Dardot e Laval (2016) propõem uma noção de
neoliberalismo bem mais ampla do que a já desgastada (e incompleta) definição de
privatização e corte nos gastos estatais, cujo símbolo são os tailleurs de Margaret
Thatcher. Para além disso, neoliberalismo é apresentado como o novo ethos do

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capitalismo contemporâneo: não forma, portanto, apenas ajustes econômicos e


plataformas políticas, mas é constituinte de um novo modo de ser, é a fábrica de um
novo sujeito, o sujeito neoliberal.
Segundo Iamamoto (2002) as transformações em pauta afetam ainda as
formas de sociabilidade, pois os critérios da racionalidade do mercado –
competitividade, rentabilidade, eficácia e eficiência – invadem diferentes esferas da
vida social, reforçando o individualismo. Ressalta a autora:

Ao lado da naturalização da sociedade – ‘é assim mesmo, não há


como mudar’ –, ativam-se os apelos morais à solidariedade, na
contraface da crescente degradação das condições de vida das
grandes maiorias. Esse cenário, de nítido teor conservador, atinge
formas culturais, a subjetividade, a sociabilidade, as identidades
coletivas, erodindo projetos e utopias. Estimula um clima de
incertezas e desesperanças. A debilitação das redes de sociabilidade
e sua subordinação às leis mercantis estimula atitudes e condutas
centradas no indivíduo isolado, em que cada um “é livre” para
assumir os riscos, as opções e responsabilidades por seus atos em
uma sociedade de desiguais. (IAMAMOTO, 2002, p. 30).

Dardot e Laval (2016) referem-se à radicalização do neoliberalismo diante


da crise mundial evidenciada em 2008, no contexto do capitalismo financeiro. Mas
ressalvam que esta crise está profundamente ligada à crise iniciada nos anos 1970,
sendo que ambas estão relacionadas à generalização do mercado e da
concorrência.
Insistindo na novidade do neoliberalismo, Dardot e Laval (2016) localizam
justamente na exigência de competividade e no modelo de empresa as técnicas de
poder inéditas atribuídas ao neoliberalismo. No plano geral, a concorrência é a mais
evidente norma neoliberal estendida para todos os países e governos, não só no
âmbito privado (que é o lugar por excelência da empresa), mas também no âmbito
público. Mas, para além da concorrência, outras estratégias estão presentes, como
indica Ana Elizabete Mota:

Uma das estratégias presentes na “nova” gestão estatal da força de


trabalho é incorporar o processo de precarização como inevitável, a
mercantilização como fato inexorável e a subordinação do público ao
privado como iniciativas complementares e parte constitutiva das
novas experiências de gestão. (MOTA, 2009, p. 43).
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No plano mais evidente de espraiamento do neoliberalismo, nos governos


do mundo inteiro, a concorrência generalizada torna este mundo uma “corrida
suicida” entre países, governos, empresas, para ver quem será o campeão de
austeridade. Tais planos de austeridade econômica diminuem “a renda de grande
massa da população” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 29), acarretando desigualdades
crescentes, pois “onde quer que sejam adotadas levam sociedades inteiras a uma
regressão social que até pouco tempo atrás era inimaginável” (DARDOT; LAVAL,
2016, p. 30).
Ocorre que, ao mesmo tempo em que se aprofundam as desigualdades,
aumenta a pobreza, o desemprego e as condições de vida se tornam mais aviltantes
e precárias para a parte da população mundial (a maior parte) que depende da
venda da força de trabalho para sobreviver, as repostas estatais à questão social
também são bruscamente cortadas ou restringidas. Ou seja, é justamente no
momento em que os trabalhadores/as se tornam mais vulneráveis em suas
condições de sobrevivência, que o neoliberalismo programa a lógica de redução dos
gastos sociais a todo custo, tornando as próprias políticas sociais focalizadas e
privatizadas.
Cabe notar que a campanha neoliberal de “satanização do Estado e
santificação do mercado” (BÓRON apud IAMAMOTO, 2012), que justifica a ampla
privatização dos setores públicos, leva também a uma generalização da gestão
pública de modo muito semelhante à gestão empresarial.
É como se cada instituição pública, que por definição responde a
interesses e demandas próprios desta esfera, fosse uma grande empresa, a ser
gestada com base em metas, de modo eficaz e eficiente. Daí a presença de
métodos de avaliação de rendimento e metas de produtividade, típicas da lógica
empresarial, também na esfera pública, inclusive no âmbito do Judiciário.
Porém, captar a novidade do capitalismo neoliberal em sua especificidade
implica compreender que o modelo de empresa não se estendeu apenas para a
gestão dos países, dos Estados e das empresas, mas “a todos os domínios da vida
social” (DARDOT; LAVAL, 2016, p.29).
Neste sentido, o neoliberalismo é a nova racionalidade do mundo, “a
razão de um capitalismo desimpedido de referências arcaizantes e plenamente
assumido como construção histórica e norma geral da vida” (DARDOT; LAVAL,

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2016, p.17, grifo nosso). É norma geral da vida porque não está presente apenas
nas estruturas macrossocietárias (assumindo o papel de uma coerção extra
econômica) pelo contrário, está presente em todas as dimensões da vida, inclusive
nos discursos, práticas e dispositivos cotidianos, constituindo simultaneamente
objetividades e subjetividades.
O neoliberalismo é, portanto, o fio condutor da atual lógica societária,
entendendo conduta como “tanto aquela que se tem para consigo mesmo quanto
aquela que se tem para com os outros” (DARDOT; LAVAL, 2016, p.18). E é aí
mesmo que reside a potencialidade do neoliberalismo: o que está em jogo não são
apenas os mecanismos externos capazes de manter as relações de poder
existentes, mas como mobilizar os próprios indivíduos (suas vontades, desejos,
afetos, sua vida) nesta manutenção e tudo isso “em nome da liberdade” (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 21).
E o eixo central que conduz esse novo modo de existência é o modelo de
empresa na totalidade da vida: trata-se não apenas de trabalhar de maneira
funcional e produtiva em uma empresa, trata-se não apenas de ser governado por
um Estado que se organiza se uma empresa fosse, mas trata-se de se auto
organizar como uma empresa.
Nos termos de Dardot e Laval (2016): “trata-se de produzir uma relação
do sujeito individual com ele mesmo que seja homóloga à relação do capitalismo
com ele mesmo, ou, mais precisamente, uma relação do sujeito com ele mesmo
como um ‘capital humano’ que deve crescer indefinidamente, isto é, valorizar-se
cada vez mais” (p.31).
Há um personagem contemporâneo que certamente não se encaixa no
perfil do sujeito neoliberal: Daniel Blake. Este é o protagonismo do filme “Eu, Daniel
Blake”, dirigido por Ken Loach. Este impactante filme foi tema de um cine debate
realizado no encontro de agosto do Grupo de Estudos “Cotidiano da prática
profissional”. O filme apresenta a trajetória de um trabalhador em busca de um
benefício social, uma vez que se encontra sem condições de saúde para retornar ao
trabalho, mas também fala da desumanização das relações.
No filme “Eu, Daniel Blake” também são apresentados valores como
solidariedade, que na discussão posterior foi entendida pelo grupo como um
“sentimento em extinção”, talvez em decorrência do próprio sistema econômico em

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que vivemos e que, conforme Dardot e Laval (2016) indicam, vem moldando o
mundo atuando diretamente nos modos de ser e de viver das pessoas.
O filme tem vigor porque consegue traduzir as consequências do
neoliberalismo, que afeta diretamente a vida dos trabalhadores. Dentre os diversos
aspectos que tem relação com o cotidiano profissional, um deles se destaca: Daniel
é apenas um trabalhador comum que precisa enfrentar a fria e labiríntica burocracia
estatal. Não é por acaso que o filme é pungente, uma vez servidores públicos,
compomos todos esta tal burocracia estatal (em alguns aspectos agravada em suas
fragilidades no Brasil).
Em entrevista ao El País, o cineasta Ken Loach afirmou: “As grandes
corporações dominam a economia e isso cria uma grande leva de pessoas pobres.
O Estado deve apoiá-las, mas não quer ou não tem recursos. Por isso cria a ilusão
de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo
direito ou chegou tarde a uma entrevista” (Ken Loach, El País, 05/01/2017). Daniel
Blake passa por muitos enfrentamentos, resistências e fracassos, mas nunca
consegue se tornar um sujeito neoliberal, ele nunca funcionaria como uma empresa.
Como atinge a totalidade da vida social, essa nova conjuntura apresenta
rebatimentos concretos para a reprodução de toda classe trabalhadora, com a
redução dos postos de trabalho, aumento do desemprego, subempregos, da
terceirização (que bate à porta dos setores técnicos) e de diversas formas de
trabalho sem a garantia dos direitos inerentes aos empregos com vínculos formais.
Pois, conforme indica Raichelis (2011):

Essa dinâmica de flexibilização/ precarização/ desregulamentação


atinge também as relações e o trabalho dos profissionais de nível
superior que atuam em instituições públicas e privadas no campo das
políticas sociais. Gerando rebaixamento salarial, intensificação do
trabalho, precarização dos vínculos e condições de trabalho, perda
e/ou ausência de direitos sociais e trabalhistas, pressões pelo
aumento da produtividade, insegurança do emprego, ausência de
direitos sociais e trabalhistas, pressões pelo aumento da
produtividade, insegurança do emprego, ausência de perspectivas de
progressão na carreira, ampliação da competição entre
trabalhadores, adoecimento, entre tantas outras manifestações
decorrentes do aumento da exploração da força de trabalho
assalariada. (RAICHELIS, 2011, p. 41).

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O sujeito neoliberal é um sujeito cuja identidade não está mais


relacionada a seu posicionamento de classe, de gênero, de status, ou seja lá o fosse
antes portador de identidade. A lógica neoliberal rompe a mais forte e evidente
fronteira entre empresa e trabalhador, dominante e dominado, patrão e empregado,
na medida em que leva todos a igualarem-se na forma-empresa, “produzindo uma
subjetividade ‘contábil’ pela criação da concorrência sistemática entre os indivíduos”
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 30).
Neste potencial destrutivo (e não casual) da construção do sujeito
neoliberal que destrói referenciais que balizavam identidades e formas de luta e tem
como resultado “profundos estragos subjetivos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p.27),
reside a importância de desnudar os alcances do neoliberalismo como um quadro
normativo denso que tem afetado as formas de sociabilidade, gerando, entre outras
consequências, uma mentalidade utilitária, o culto ao individualismo, a naturalização
das relações sociais e um clima de incertezas e desesperanças22. E que, por isso
mesmo, precisa ser substituído urgentemente por “outra razão de mundo”
(DARDOT; LAVAL, 2016, p.31).

22
Cf. BARROCO, Lucia. Barbárie e neoconservadorismo: os desafios do projeto ético-político.
Serviço Social e Sociedade, nº 106, abr./jun. 2011.
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4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tudo acontece no cotidiano, inclusive a história, é no dia a dia que a


história acontece, afinal “a vida cotidiana não se descola do histórico” (NETTO,
2005, p.66). Vimos que um cotidiano profissional aligeirado, célere, despolitizado,
automático e acrítico é um risco, tanto para os próprios profissionais quanto para as
pessoas que estes atendem.
No cotidiano profissional, o reconhecimento psicossocial das pessoas, de
suas escolhas e de seus desejos é elemento constitutivo para a efetivação de
direitos sociais e assistentes sociais e psicólogos(as) podem atribuir visibilidade a
esses processos, construindo um projeto profissional crítico, consciente, ético e
político no “tempo miúdo do cotidiano” (YASBEK, 2001). Pois,

A compreensão do cotidiano não se reduz aos aspectos mais


aparentes, triviais e rotineiros; se eles são parte da vida em
sociedade, não a esgotam. O cotidiano é a expressão de um modo
de vida, historicamente circunscrito, onde se verifica não só a
reprodução de suas bases, mas onde são, também, gestados os
fundamentos de uma prática inovadora (IAMAMOTO, 2012, p. 123,
grifo nosso).

Um dos espaços para potencializar as resistências cotidianas, construindo


essa direção profissional atenta à realidade é o Grupo de estudos para assistentes e
psicólogos(as) dos setores técnicos do TJSP. Contudo, o presente ano do Grupo de
estudos “cotidiano da prática profissional – Família” foi marcado pela percepção de
um esvaziamento, seja através de absenteísmo no Grupo ou mesmo abandono.
Ao buscar estabelecer contato com as coordenações dos demais grupos
de estudos a respeito das desistências dos participantes dos mesmos constatamos
que a taxa de desistência de assistentes sociais e psicólogas(os) dos grupos é
grande, seja pelas demandas de trabalho de suas respectivas comarcas, seja pelo
processo de remoção ou licença saúde. A partir disso, as discussões feitas no grupo
buscaram problematizar tais desistências e as dificuldades da manutenção de
espaços críticos, como o que proporciona o grupo de estudos, em detrimento do

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atendimento das demandas sempre crescente nas Varas de Infância e Família do


Tribunal de Justiça.
Os Grupos de estudos são espaços historicamente construídos e
conquistados de capacitação, aprofundamento teórico-técnico, debate intelectual.
Mas, se consolidam também como espaços para compartilhamentos de sofrimentos,
desgastes, angústias, desânimos, estratégias, parcerias, boas práticas,
experiências, fortalecimento. Podendo, em todos os seus aspectos, ser encarado
como uma possibilidade de suspensão do cotidiano.
O cotidiano é ineliminável, mas pode ser suspenso por três meios: o
trabalho criador, a arte e a ciência. Quando o indivíduo suspende temporariamente a
cotidianidade, encontra a particularidade, “espaço de mediação entre o singular e o
universal” (NETTO, 2005, p. 69). Sendo ineliminável, é sempre necessário o retorno
ao cotidiano, mas após a suspensão, o indivíduo não é mais o mesmo:

[...] ao efetuar este retorno, o indivíduo enquanto tal comporta-se


cotidianamente com mais eficácia e, ao mesmo tempo, percebe a
cotidianidade diferencialmente: pode concebê-la como espaço
compulsório de humanização (de enriquecimento e ampliação do ser
social). [...] a vida cotidiana permanece ineliminável e inultrapassável,
mas o sujeito que a ela regressa está modificado (NETTO, 2005, p.
70, grifo nosso).

É possível compreender a partir da leitura dos textos e das discussões


realizadas que o neoliberalismo norteia a lógica societária através de mecanismos
que afetam o modo de ser dos sujeitos e suas relações sociais, os desejos, afetos,
as crenças, as identidades e as configurações familiares. Há um potencial destrutivo
na construção do sujeito neoliberal considerando os violentos direcionamentos
normativos de como o sujeito e, por exemplo, a família, deve ser. Assemelhando-se
a uma empresa, as políticas neoliberais procuram responsabilizar as famílias e
particularizar os sujeitos como responsáveis pelo fracasso ou sucesso de sua
manutenção e existência.
Nesse caminho, o Tribunal de Justiça, seguindo também a lógica
neoliberal, tem cobrado que a atuação das equipes técnicas tenha objetividade,
especificidade, produtividade e agilidade frente ao que é humano e complexo no

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público atendido e espera que as famílias sejam pelas equipes, cobradas e


culpabilizadas por suas saídas e tentativas de resolução de suas demandas, na
maioria delas humanas e subjetivas. O Neoliberalismo entranha-se, algumas vezes
discretamente e outras vezes, aparece escrito nas determinações judiciais,
instalando competições, violências e danos, aos atendidos e aos que atendem,
todos humanos, para além de dados, lucros e ganhos. No neoliberalismo vivido
pelos sujeitos nas famílias atendidas e nas equipes técnicas que atendem tais
grupos, quase tudo é dano.

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YAZBEK, M. C. Pobreza e exclusão social: expressões da questão social no Brasil.


In: Temporalis, Revista da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social (ABEPSS). N. 3. Brasília: ABEPSS, 2001.

165
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A ANÁLISE DE CONJUNTURA COMO UM ELEMENTO


CONSTITUTIVO DO ESTUDO SOCIAL

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“ESTUDO SOCIAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017
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COORDENAÇÃO
Carlos Henrique de Francisco – Assistente Social Judiciário – Foro das Varas
Especiais
João Carlos Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itanhaém

AUTORES
Alana Beatriz Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva

Ana Rita Pavão – Assistente Social Judiciário – FR I - Santana

Angelita Luiza Covre – Assistente Social Judiciário – Comarca de São Carlos

Daniela de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Cubatão

Douglas Oliveira Batista – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapetininga

Fabiane Cristina Vieira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Piracicaba

Fernanda Tonus de Melo Furtado de Mendonça – Assistente Social Judiciário –


Comarca de Brodowski

Lucinete Rodrigues de Santana – Assistente Social Judiciário – FR I - Santana

Marilza Elorza Carneiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Andradina

Marisa Tiemi Akinaga – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itupeva

Patrícia Silva Santos Carvalho – Assistente Social Judiciário – FR VII - Itaquera

Poliana Maria Albrechet Machado – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Monte Alto

Priscila de Almeida Prado – Assistente Social Judiciário – FR III - Jabaquara

Roberto Barros da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Taboão da


Serra

Sandra Sueli Catarina David – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapecerica


da Serra

Thamara Gloria de Almeida Borges – Assistente Social Judiciário – FR VII - Itaquera

Thiago Simoni – Assistente Social Judiciário – FR V - S. Miguel Paulista

Vivian Bertelli Ferreira de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Bragança Paulista
167
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“Num mundo em que os meios de comunicação despejam sobre as


pessoas diariamente, minuto a minuto, uma carga enorme de
informações, fica cada dia mais difícil encontrar tempo e instrumentos
para uma reflexão sobre a realidade que nos cerca”
Herbert José de Souza, o Betinho

INTRODUÇÃO

Na área sociojurídica, o assistente social se depara com situações


complexas das relações sociais e interpessoais e necessita munir-se de ferramentas
apropriadas para sua intervenção, identificando e explicitando esta realidade social,
através do domínio das competências teórico-metodológicas, técnico-operativas e
ético-políticas. A dimensão investigativa deve estar presente, desvelando a realidade
da situação imediata, que suscitou a intervenção, em suas particularidades e na
perspectiva da defesa e ampliação dos direitos sociais.
Dessa forma, no complexo exercício intelectivo de compreender o
momento atual em que a sociedade brasileira atravessa, a partir de uma breve
análise crítica, e de elencar alguns dos rebatimentos para a atuação profissional dos
assistentes sociais do Tribunal de Justiça - no cumprimento de suas atribuições - o
Grupo de Estudos da Capital “Estudo Social” utilizou as mais variadas ferramentas,
como estudo de artigos de renomados autores, debates e a participação
imprescindível da assistente social e pesquisadora Dra. Eunice Teresinha Fávero,
que brindou este grupo de estudos com uma excelente exposição sobre esta
temática.

1 - ELEMENTOS PARA A ANÁLISE DE CONJUNTURA

Para se obter uma análise de conjuntura é necessário identificar


ingredientes, atores e interesses que a compõem, a partir da análise em categorias,
tais como: acontecimentos, cenários, atores, relação de força, articulação entre a
“estrutura” e “conjuntura”.

168
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Os acontecimentos podem ser definidos como aqueles que adquirem um


sentido especial para um país ou para uma classe social. Aponta Souza (2014, p.11)
que “identificar os principais acontecimentos num determinado momento, ou período
de tempo, é um passo fundamental para se concretizar e analisar uma conjuntura”.
Quanto aos cenários são espaços onde desenvolvem as ações da trama
social e política. Dessa forma, a identificação dos cenários onde o conflito de classes
emerge e suas particularidades se mostram de suma importância em relação
contexto social onde se inserem.
Os atores são aqueles que exercem um papel em determinada trama de
relações. O “ator” social pode ser o portador de uma reivindicação, um projeto, uma
promessa ou uma denuncia; também pode ser representado por uma classe social,
um sindicato, partidos políticos, jornais, rádios, emissoras de televisão, igrejas e
outros grupos sociais organizados.
A categoria “relações de força” parte do pressuposto que os atores sociais
estão em relação uns com os outros. Essa dinâmica entre os diversos atores sociais
pode ser de confronto, de coexistência, de cooperação demonstrando situações de
domínio, igualdade ou de subordinação.
As relações de força podem ser aferidas quantitativa ou qualitativamente,
quando a dinâmica social é menos perceptível à realidade. Destaca-se que as
relações de força não são imutáveis, pois sofrem, permanentemente, influências da
realidade que as cercam.
Sobre a articulação entre a estrutura e conjuntura, esta emerge na
interação entre a história e as relações sociais, econômicas e políticas estabelecidas
ao longo desse processo histórico.
A estrutura está vinculada ao poder econômico e os seus reflexos na
realidade social, política, cultural e religiosa. Fundamentalmente aparece no bojo do
conjunto de forças que estão por detrás dos acontecimentos, o inédito, o não
acontecido, os fenômenos novos que começam a se manifestar, o sentido lógico ou
não de um acontecimento.

169
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2 - UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A REALIDADE

A tentativa de observar, de forma crítica, a realidade ocorreu a partir de uma


concisa análise de conjuntura que é, sem dúvida, uma tarefa complexa, dada a
necessidade de perceber, compreender, descobrir sentidos, relações e tendências, a
partir de informações e dados emergentes em nossa realidade.
Dessa forma, o Grupo de Estudos - Estudo Social - elencou dois pontos
importantes para a se efetuar a análise de conjuntura: a partir da lógica do poder
dominante e/ou do ponto de vista dos movimentos populares, das classes
subalternas no enfrentamento a este mesmo poder dominante.
Por vezes, observam-se análises de conjuntura extremamente
conservadoras, visando reordenar os elementos da realidade para manter o
funcionamento do sistema – o status quo.
Para este Grupo, a utilização da análise de conjuntura emerge enquanto
ferramenta importante na elaboração dos laudos e pareceres técnicos, cujo
interesse possa eclodir em uma intervenção política transformadora, às estratégias e
táticas das forças sociais em luta.
No processo da análise de conjuntura, é possível considerar as
articulações e dimensões locais, regionais, nacionais e internacionais dos
fenômenos, dos acontecimentos, dos atores e das forças sociais, frente a um
contexto mais amplo e permanente.
Portanto, a análise de conjuntura é uma leitura especial da realidade e
que se faz sempre em função de alguma necessidade ou interesse. Nesse aspecto,
ela nunca é neutra por se tratar de um ato político.
Isto posto, é imperioso destacar que a organização societária da qual
somos parte e expressão ainda permanece intocada. A produção e reprodução da
vida social tem se sustentado pelo mando e desmando do capital, em seus diversos
estágios de desenvolvimento23.

1
O primeiro estágio do capitalismo – século XVI até meados do século XVIII - que se inicia com a
acumulação primitiva e vai até os primeiros passos do capital para controlar a produção de
mercadorias e, assim, comandar o trabalho mediante o estabelecimento da manufatura. Nessa
primeira fase do capitalismo o papel dos mercadores/comerciantes foi decisiva, tanto que este estágio
foi designado como capitalismo comercial ou mercantil. A partir da oitava década do século XVIII,
configura-se o segundo estágio do capitalismo nominado como capitalismo concorrencial ou chamado
de liberal ou clássico. Nesta fase do capitalismo se observou uma fusão dos capitais monopolistas
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Ora, as características do capitalismo se baseiam na exploração, na


divisão social de classes e na acentuada desigualdade social em decorrência da
propriedade privada, dos meios de produção e da usurpação da riqueza socialmente
produzida. Ele traz em sua essência a exploração da classe trabalhadora, que vende
a única mercadoria de que dispõe, ou seja, a força de trabalho, em troca de um
salário que não corresponde ao seu valor real. O trabalho nessa sociedade é
realizado para atender à estrutura capitalista, tendo em vista que o fim último é a
produção de mais-valia.
Barroco (2011, p. 206) considera esse momento histórico, da
globalização do capital em sua face mais perversa - o neoliberalismo - a fase mais
ofensiva, pois:

[...] resultou no agravamento da desigualdade estrutural e na


degradação da vida humana e da natureza. Aprofundando a
exploração do trabalho, o desemprego estrutural e conjuntural,
instituindo novas formas de trabalho precário e destruindo direitos
conquistados historicamente pelos trabalhadores, entre outros, esse
processo intervém na vida dos indivíduos, criando demandas e
respostas à insegurança vivenciada objetiva e subjetivamente na
vida cotidiana.

O neoliberalismo - implementado para a América Latina em 1989 - com


uma programática clara dos países capitalistas centrais, adotou as seguintes
medidas: disciplina fiscal, através da qual o Estado deve limitar seus gastos à
arrecadação, eliminando o déficit público; focalização dos gastos públicos em
educação, saúde e infraestrutura; reforma tributária que amplie a base sobre a qual
incide a carga tributária, com maior peso nos impostos indiretos e menor
progressividade nos impostos diretos; liberalização financeira, com o fim de
restrições que impeçam as instituições financeiras internacionais de atuar em

industriais com os bancários que constituem o capital financeiro, cuja centralidade se deu no terceiro
estágio evolutivo do capitalismo, bem como, o capitalismo monopolista possui o estágio imperialista,
que se gestou nas ultimas três décadas do século XIX, com transformações durante o século XX se
prolongando na entrada do século XXI. Os autores corroboram que a configuração do capitalismo que
se designa como contemporânea inicia-se nos anos setenta do século XX (NETTO; BRAZ, 2007, p.
170-179).

171
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igualdade com as nacionais e o afastamento do Estado do setor; taxa de cambio


competitiva; liberalização do comércio exterior, com redução de alíquotas de
importação e estímulos à exportação, visando impulsionar a globalização da
economia; eliminação de restrições ao capital externo, permitindo investimento direto
estrangeiro; privatização, com a venda de empresas estatais; desregulação, com
redução da legislação de controle do processo econômico e das relações
trabalhistas; e aquisição da propriedade intelectual. Tais ações atravessaram a
última década do século XX e permanecem no século XXI.
Mas em qualquer quadra histórica a primeira e elementar ação humana e
social é a criação das condições materiais para a sua sobrevivência. Assim, para
que o homem possa criar e fazer sua própria história deve estar em condições para
atingir tal intento. Segundo Marx e Engels (2007, p.33):

[...] devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda


existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o
pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver
para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de
tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais.
O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a
satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material,
e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de
toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser
cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os
homens vivos.

Contudo, as crises cíclicas do capital, que são constitutivas da essência


desse modo de produção em sua lógica destrutiva, não oferecem oportunidades e
possibilidades para que a “classe-que-vive-do-trabalho” (Antunes, 2007) possa se
reproduzir, nas palavras de Abramides (2017, p. 368):

A ofensiva do capital, para superar sua própria crise, se direciona a


uma nova forma de gestão das relações de trabalho, pela
acumulação flexível desenvolvida no processo de reestruturação
produtiva para retomar as taxas de lucro para o capital, ampliando a
exploração da força de trabalho humana. Desregulamenta as
relações trabalhistas com desemprego estrutural, precarização do
trabalho, ampliação do trabalho informal, redução do operariado
172
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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fabril contratado, subproletarização e substituição de trabalhadores


contratados por terceirizados, que se expandem pelos serviços,
contratados por tempo determinado, por projetos, por serviços sem
carteira assinada, por pessoa jurídica e com alta rotatividade no
trabalho imposta pelos empregadores que reduzem violentamente os
direitos dos trabalhadores [...]

Nesse cenário a ideologia conservadora avança, vez que encontra todo


respaldo na ideologia neoliberal, esta que

[...] declara o “fracasso”: dos projetos emancipatórios, das


orientações éticas pautadas em valores universais, da razão
moderna, da ideia de progresso histórico e de totalidade. O estímulo
à vivência fragmentada centrada no presente (resumida ao aqui e ao
agora, sem passado e sem futuro), ao individualismo exacerbado,
num contexto penetrado pela violência, dá origem a novas formas de
comportamento, [...] (BARROCO, 2011, p. 207).

Esse “novo” conservadorismo, aliado a ideologia neoliberal, espraia seus


tentáculos com grande força - mas não a única - em uma correlação de forças no
cenário conjuntural brasileiro e internacional, impõe seu jeito de ser e sua forma de
pensar. Barroco (2011, p. 208) explicita o papel dessa ideologia na sociedade:

A ideologia dominante exerce uma função ativa no enfrentamento


das tensões sociais, para manter a ordem social em momentos de
explicitação das contradições sociais e das lutas de classe. Numa
sociedade de raízes culturais conservadoras e autoritárias como a
brasileira (Chauí, 2000), a violência é naturalizada; tende a ser
despolitizada, individualizada, tratada em função de suas
consequências e abstraída de suas determinações sociais. A
ideologia neoliberal — veiculada pela mídia, em certos meios de
comunicação como o rádio, a TV, a internet e revistas de grande
circulação — falseia a história, naturaliza a desigualdade, moraliza a
“questão social”, incita o apoio da população a práticas fascistas: o
uso da força, a pena de morte, o armamento, os linchamentos, a
xenofobia.

É importante destacar que temos, nas expressões da questão social,


nossa matéria de trabalho. Para Iamamoto (2009) a questão social é parte

173
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constitutiva das relações sociais capitalistas e é tributária das formas assumidas


pelo trabalho e pelo Estado na sociedade burguesa, apreendida como expressão
ampliada das desigualdades sociais, que são intermediadas pelo Estado,
expressando disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais.
Netto (2001, p. 42) destaca que a expressão questão social:

[...] tem emprego recente (apropriada praticamente no mesmo


período em que emergiu a palavra socialismo) e surge para explicar
o pauperismo – fenômeno consequente da primeira onda
industrializante do século XVIII. Assim sendo, tal fenômeno foi
caracterizado como processo decorrente do capitalismo em seu
estágio industrial-concorrencial. Neste contexto, a questão social
surge como expressão das contradições sócio-políticas da época,
onde os pauperizados protestavam contra suas condições
ameaçando as instituições sociais e a ordem estabelecida.

No Brasil, a questão social está relacionada com a generalização do


trabalho livre em uma sociedade marcada pela escravidão:

Trabalho livre que se generaliza em circunstâncias históricas nas


quais a separação entre homens e meios de produção se dá em
grande medida fora dos limites da formação econômico-social
brasileira. Sem que se tenha realizado em seu interior a acumulação
(primitiva) que lhe dará origem, característica que marcará
profundamente seus desdobramentos (IAMAMOTO; CARVALHO,
2007, p. 125).

Na comparação entre o texto de Netto (2001) e o de Iamamoto &


Carvalho (2007), observa-se que são construções convergentes, pois apesar do
primeiro referir-se a emergência da questão social no mundo, o segundo analisa que
o seu surgimento - no Brasil - está diretamente conexo com o aparecimento do
trabalho livre. Dessa forma, pode-se inferir que a questão social é histórica e
evidencia tanto novos determinantes quanto novas expressões, ainda que
permaneça a mesma questão social.

174
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Retornando à análise sobre a ideologia neoliberal, apontada por Barroco


nas citações acima, compreende-se que, diante desse cenário histórico desfavorável
à classe trabalhadora, o Estado - que é mínimo para os direitos sociais e máximo
para o capital - não consegue, por opção política, garantir a proteção social básica,
conforme os direitos sociais apregoados pela Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 6º (a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a
assistência aos desamparados).
Em que pese os últimos anos de governos de esquerda terem trazido
melhoria para as condições de vida de parte da população brasileira, através dos
programas de transferência de renda e da política de reajuste do salário mínimo, não
houve uma geração de novos sujeitos políticos, mas sim novos consumidores (Mota
2017, p.43).
A professora Dra. Eunice Teresinha Fávero, em sua exposição ao Grupo
de Estudos, refletiu que a conjuntura atual brasileira está transformando direitos em
serviços, baseada no ideário neoliberal que prega falaciosamente que a mobilidade
social se dá pelo sistema de meritocracia, gerando o aumento da desigualdade
social e da culpabilização dos indivíduos e famílias.
Para compreender isso, basta atentar para os acontecimentos que tem
marcado os dias atuais como Reformas Trabalhista, Previdenciária e Tributária;
Violência Endêmica; Aumento Significativo do Desemprego, da População
Carcerária e de Rua; Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff; Reforma do
Ensino Médio; Privatização das riquezas nacionais.
Essas pautas acompanham uma onda ultra-conservadora e reacionária
dotada de novos significados identificados no combate à corrupção, no fetiche do
Judiciário, na austeridade fiscal, no machismo e no branqueamento do poder (Mota
2017, p. 44).
Isso tudo traz rebatimentos para o cotidiano profissional do Assistente
Social Judiciário, visto que:

[...] são identificadas refrações com a ideologia da


judicialização/individualização das lutas, combinadas com a
criminalização da pobreza, das drogas, do aborto; ampliação da
violência com a população negra, mulheres, crianças, idosos,

175
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homossexuais, transexuais, travestis, etc., afetando não apenas os


direitos sociais, mas os diretos civis e políticos (MOTA 2017, p.48).

Nos estudos sociais realizados com parte da classe trabalhadora, isto é o


estrato mais vulnerabilizado da população, é possível deparar-se, cotidianamente,
com as violações de direitos apontadas acima por MOTA.

3 - A DESPROTEÇÃO SOCIAL E O DISCURSO DA


CULPABILIZAÇÃO

Destarte, os reflexos da atual conjuntura provocam rebatimentos nos


estudos sociais realizados junto ao cotidiano do Judiciário que abrange parte da
classe trabalhadora; é, também cotidianamente, que os profissionais que atuam
nesse contexto se deparam com violações de direitos de mulheres e homens, de
crianças e adolescentes revitimizados em processos que ampliam o sofrimento
social e desconstroem sua história de vida, pois interferem diretamente no espaço
familiar dessa população.
Se compreendermos que o modo de produção e reprodução da vida
social, nessa organização societária, desfavorece a proteção social dos estratos da
classe trabalhadora que atendemos no espaço sócio ocupacional do judiciário,
principalmente devido à incidência das expressões da questão social na vida
objetiva das diversas organizações familiares, podemos então assinalar com
MELATTI (2011, p.53) que não é a família a fonte desses processos contraditórios
visíveis pela sociabilidade da violência:

[...] o que muitas vezes é expresso por ditados populares no nível do


senso comum, do tipo: “aprendeu em casa”, denotando uma
retomada do valor conservador familiar. Essa lógica é inversa. A
família é que expressa a centralidade que a violência, entendida
como a redução do sujeito a uma condição de objeto, possui na
realidade do modo de produção capitalista. Trata-se de um ciclo
contraditório, que atua no cotidiano, com o imediatismo que este
propõe.

176
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Diante desse contexto, considerando as suas peculiaridades e as


proposituras legais que envolvem este tema, cabe à família, à sociedade e ao
Estado o papel de propiciar os cuidados para o desenvolvimento saudável de seus
membros. Tais cuidados incluem os direitos sociais já elencados no corpo desse
artigo.
Para desempenhar sua função social, a família tende a se constituir
internamente determinando papéis e organizando as interações entre seus
membros, numa relação de reciprocidade e segurança. Neste sentido, a esfera
doméstica se constitui num espaço de poder, cuja hierarquia será composta de
acordo com a forma com que este sistema se institui.
Nessa direção, CARVALHO (2007, p. 271) reafirma o papel da família
enquanto constitutiva da sociedade urbana:

A família, como expressão máxima da vida privada é lugar da


intimidade, construção de sentidos e expressão de sentimentos,
onde se exterioriza o sofrimento psíquico que a vida de todos nós
põe e repõe. É percebida como nicho afetivo e de relações
necessárias à socialização dos indivíduos, que assim desenvolvem o
sentido de pertença a um campo relacional iniciador de relações
includentes na própria vida em sociedade. É um campo de mediação
imprescindível.

Contrapondo-se à necessária estabilização desse sistema, as mudanças


ocorridas no processo de reestruturação social e a volta de uma política
conservadora pautada no ideário neoliberal estão eclodindo nesse interior,
agudizando e tornando visíveis os diferentes níveis de pobreza e exclusão social.
Alinhando-se a este apontamento, é possível constatar que no sistema
capitalista - no qual se vincula capital e trabalho - isso reflete de forma generalizada
nas relações estabelecidas entre os indivíduos tanto em âmbito social, quanto no
pessoal, uma vez que enfraquece, altera e desmonta o conjunto de proteções
previstas em leis, ignorando direitos duramente conquistados, induzindo a uma
desqualificação social da “classe-que-vive-do-trabalho”. Percebe-se, assim, que esta
mesma sociedade que se impõe como forma crucial de sobrevivência dos indivíduos
mediante a sua inserção no trabalho, ao comprometer direitos, os deslocam da

177
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tessitura social gerando desestabilização pela ausência de identificação e de


pertencimento.
Tais conceitos mostram o recrudescimento que o modelo conservador
reitera à contradição existente entre capital e trabalho, sistema de exploração que se
utiliza da força de trabalho como instrumento principal para a sua própria
sobrevivência, o que se justifica, através do pensamento de Guerra que:

A concorrência econômica mundial exige, dos países pobres e


emergentes, ajustes na política econômica e social, para o
cumprimento dos acordos econômico-financeiros internacionais.
Essas estratégias, que compõem o projeto neoliberal, pressupõem
um Estado mínimo, com menor investimento nas áreas sociais
(saúde, educação, assistência social, habitação) e menor intervenção
nas relações de mercado – o que inviabiliza e imobiliza mudanças no
contexto das desigualdades sociais existentes. (GUERRA 2013, p.
98).

No Brasil, é possível identificar, neste modelo, marcas significativas que


apontam para um processo de desconstrução ao se trazer a perspectiva do acesso
a direitos. A descontinuidade e a não integralidade das políticas públicas assumem
um caráter perverso ao indisponibilizar, à população vulnerabilizada, o ingresso ao
sistema de proteção social e confronta com o princípio da universalidade, mostrando
o antagonismo existente na lógica neoliberal que propõe o Estado Mínimo. O ajuste
neoliberal, ao apregoar a redução dos recursos direcionados às políticas sociais,
agrava as condições socioeconômicas de grande parcela da população, elevando os
níveis de pobreza estrutural e, por consequência, aumentando a demanda pela
busca de serviços inerentes às políticas sociais, por sua vez, reduzidas pelo modelo
político vigente.
Fávero, em relação à proposta neoliberal assinala que:

Em consequência desse ajuste, a situação de pobreza vivenciada


por vasta parcela da população, que já não tinha acesso ou tinha
dificuldade de acesso à participação no processo de trocas sociais,
tendeu a ampliar-se. Ou seja, a parcela da população que já não
tinha garantido o direito à inclusão no trabalho formal e ao
atendimento com dignidade às suas necessidades básicas tem sido
ampliada com novos contingentes populacionais excluídos
socialmente ou com maior grau de dificuldade para o acesso a bens
e serviços. (FÁVERO, 2007, p. 79 e 80)

178
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Importante aqui situar, dentre as transformações ocorridas na


contemporaneidade, o acúmulo de uma população que se desloca de áreas rurais
ou pequenas comunidades mais empobrecidas para centros urbanos em busca de
alternativas que venham minimizar ou cessar a condição de carência ou miséria.
Esse processo também se torna recorrente nas cidades podendo ser visto pelo olhar
da gentrificação24, processo de reorganização geográfica urbana que, ao valorizar
determinados bairros, empurra a população com menor poder aquisitivo para a
periferia, numa espécie de higienização social, formando núcleos de sub-habitações,
pois sem condições adequadas de moradia, com nichos de pobreza e com menor
alcance a bens e serviços a que teria por direito.
Neste cenário, a luta pela sobrevivência traz o sentido da busca por
garantir minimamente o necessário à subsistência, individual e familiar, geralmente
num contexto social permeado por violências, tais como assassinatos prematuros de
jovens em função do tráfico e do uso prematuro de drogas. Outros fenômenos de
iguais gravidades podem ser observados mais frequentemente entre esta
população, tais como a baixa escolaridade entre os adultos, a deserção escolar
entre os jovens, a gravidez precoce, o subemprego e o desemprego como condição
paradoxal à busca de melhor oportunidade de vida.
A ausência de melhores perspectivas de futuro, que se faz recorrente
entre essa camada populacional vitimada pela pobreza e pela exclusão social, de
certa forma mantém-se perpetuada frente a uma sociedade globalizada e de
consumo cuja essência se faz em torno do capital e do poder aquisitivo, numa
valorização do ter em detrimento do ser.
Essa realidade é exposta diariamente pelas redes de comunicação e
mostra as sucessivas formas de violações que atingem o cotidiano das famílias
pauperizadas. Gomes já alertava:

24
A palavra gentrificação (do inglês gentrification) pode ser entendida como o processo de mudança
imobiliária, nos perfis residenciais e padrões culturais, seja de um bairro, região ou cidade. Esse
processo envolve necessariamente a troca de um grupo por outro com maior poder aquisitivo em um
determinado espaço e que passa a ser visto como mais qualificado que o outro. O termo é derivado
de um neologismo criado pela socióloga britânica Ruth Glass em 1963, em um artigo onde ela falava
sobre as mudanças urbanas em Londres (Inglaterra). Ela se referia ao “aburguesamento” do centro
da cidade, usando o termo irônico “gentry”, que pode ser traduzido como “bem-nascido”, como
consequência da ocupação de bairros operários pela classe média e alta londrina.
(https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/gentrificacao-o-que-e-e-de-que-
maneira-altera-os-espacos-urbanos).
179
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[...], sobretudo após os sucessivos e constantes episódios de


massacre no campo e nas ruas das cidades, a cada dia mais se fala
em criança abandonada, criança da rua, do eufêmico menor. E
temos a impressão de que a miséria, a vida precária e deplorável de
um grupo familiar e, sobretudo, o abandono de crianças é fruto da
irresponsabilidade do casal. Porém, a evidência parece inequívoca: à
criança abandonada, objeto da violência alheia, civil ou militar,
correspondem famílias abandonadas, objeto primeiro da violência
social, institucionalizada.” (GOMES, 2003, p. 61 e 62)

A condição de vulnerabilidade na qual está inserida essa parcela da


população indica o reflexo da ausência ou a ineficiência de políticas públicas que a
veja e a entenda nas dimensões em que constituem o seu cotidiano, quer sejam nas
relações interfamiliares, com o trabalho e com a sociedade na qual se vê
engendrada. Ressalta também a importância de observar fatores condicionantes
relativos à formação cultural da qual provém, aspectos relevantes que possibilitam
identificar peculiaridades sociais características de determinado espaço de onde
esse indivíduo tem origem.
Nesse sentido, em toda política pública há que se considerar o contexto
sócio familiar e cultural, considerando diferenças e igualdades presentes numa
sociedade multicultural, opondo-se a qualquer forma de discriminação ou opressão
relativa à raça, gênero ou classe social.
A esse respeito, Ceolin traz que:

Decifrar as novas mediações pelas quais se expressa a questão


social em tempos de padrão flexível de acumulação significa
apreender as várias expressões que as desigualdades sociais
assumem na atualidade, os processos de sua produção e
reprodução, bem como projetar e forjar as estratégias para seu
enfrentamento. (CEOLIN, 2017, pg. 254).

É nesse sentido que os laudos e pareceres técnicos, alinhados ao projeto


ético político que embasa a profissão de Serviço Social, podem desvelar a realidade
em que esses sujeitos se inserem, removendo o discurso da culpabilização das
famílias pobres e denunciando as fragilidades e carências das políticas públicas, as
quais evidenciam os déficits em sua implementação, não facilitando o amplo acesso

180
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

deste estrato social ao sistema de garantia de direitos, preconizado junto à


Constituição Federal de 1988.

4 - ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O DESMONTE DO SISTEMA DE


GARANTIA DE DIREITOS

Para a compreensão conjuntural das consequências do desmonte do


sistema de garantia de direitos e seus reflexos para a população mais pauperizada,
há que se evidenciar brevemente sua construção histórica, mais precisamente sob a
demanda da participação popular e democrática – que embasou a promulgação da
Constituição Federal de 1988: o alcance de um projeto societário que viesse ao
encontro da equidade social foi construído no âmbito de um processo eticamente
democrático, com ampla participação popular, no qual BAPTISTA (2012, p. 184),
citando VIOLA (2006):

[...] aponta a importância do movimento social, o qual empenhou-se


na formação de grupos e de indivíduos no sentido de — a partir de
uma análise do universo político, apoiada em uma profunda
dimensão ética — torná-los capazes de orientar sua ação cidadã
para a recusa intransigente de qualquer forma de arbítrio. Essa
formação estava relacionada ao direito a ter direitos e ao direito do
exercício de uma cidadania participativa.

Desta forma, toda a implantação do sistema de garantia de direitos no


Brasil emergiu no bojo da proteção social, a partir do tensionamento, na propositura
de ações para sua implementação.
O atual cenário nacional, aqui apresentado, claramente a serviço do
capital, indica um novo tensionamento, não mais ancorado na luta de classes, não
mais em busca da equidade social, mas como produto da crise política institucional
ora posta: um retrocesso ao sistema democrático, tão presente na luta de classes,
campo fértil ao retorno do conservadorismo e da meritocracia neoliberal.
Esse tensionamento, presente nos noticiários e mais comumente nas
redes sociais, acaba por mascarar o ataque ao sistema de garantia de direitos e
promove, mais uma vez, um cenário em que a criminalização da pobreza e das
minorias passa a justificar o constante aumento da violência.
181
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesse sentido, Durigueto (2017, p.112) aponta que essa sofisticação da


criminalização é fortalecida pela ação dos meios de comunicação, que priorizam as
falas criminalizatórias e manipulam as informações e os fatos referentes às
manifestações e lutas sociais.
Desta forma, o desmonte do sistema de garantia de direitos, tanto
daqueles preconizados na Constituição de 1988 quanto daqueles enunciados junto
aos tratados internacionais, firmados ao longo da instalação do processo
democrático no Brasil, representa um retrocesso nas históricas conquistas no âmbito
da proteção social, como observa BAPTISTA (2012, p. 180):

Os direitos das pessoas, em suas relações com a sociedade, tal


como os estudamos hoje, resultam de uma construção social, de
conteúdo ético, resultante de um processo histórico e dinâmico de
conquistas e de consolidação de espaços emancipatórios da
dignidade humana. Nesses espaços, antes de seu reconhecimento
como direitos, as necessidades, os carecimentos e as aspirações já
eram objeto de articulações, resistências, reivindicações e pressões.

Observa-se, portanto, a correlata ligação entre a perda dos direitos (e de


serviços essenciais) – onde a judicialização da questão social ganha peso – e a
criminalização das classes mais pauperizadas, a partir da leitura capitalista da
questão social, onde a culpabilização do indivíduo por sua condição justifica a
intervenção judicial.

5 - O ESTUDO SOCIAL NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CRÍTICA

O Serviço Social brasileiro é uma profissão inscrita socialmente e


determinada historicamente e que tem como objeto de análise e ação a intervenção
as múltiplas expressões da “questão social”25 que se configuram como a inserção

25
Quando tratamos desse conceito de “questão social”, é interessante a perspectiva trazida no II
Seminário Nacional: o serviço social no campo sociojurídico, na perspectiva da concretização de
direitos em sua conferencia de abertura, em que o Procurador de Justiça aposentado Sr. Wanderlino
Nogueira Neto nos traz: “Reconheçamos: A questão social não é senão as expressões do processo
de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado”.
(CARVALHO e IAMAMOTO. 1983). E mais se afirme: “A questão social é a aporia das sociedades
182
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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dos trabalhadores no cenário político e que colocam demandas a serem


respondidas, demandas estas materializadas na mais profunda desigualdade social,
resultado da priorização pelo Estado da esfera financeira e do grande capital
produtivo que, segundo IAMAMOTO (2009, p. 31) estão representados pelas
instituições e mercados financeiros e empresas multinacionais.

Sabemos que o Serviço Social, historicamente, atua nas múltiplas


refrações da questão social, conformadas na ordem social
contemporânea e seus procedimentos técnicos são instrumentais
vinculados a uma intencionalidade, que extrapola a requisição
institucional, cuja demanda nos é colocada sem lapidação teórica e
ético-política. Só a competência do(a) profissional, pelo
conhecimento teórico-político é capaz de decifrar seu significado.
(CFESS, 2012, p. 31).

Nesse modelo de organização da sociedade em que são priorizados


investimentos econômicos em detrimento do desenvolvimento humano, a
apropriação privada da riqueza socialmente produzida pelo trabalho impõe a uma
parcela majoritária da população uma vida marcada por violências e violações de
direitos.
As carências sociais dessa população, à qual são negados direitos de
cidadania, se transformam em demandas para os/as profissionais de Serviço Social
em espaços de trabalho marcados por relações tensionadas em função de
interesses sociais distintos. Tais demandas se apresentam no cotidiano de trabalho
dos assistentes sociais nos diversos espaços sócio ocupacionais da profissão: um
desses espaços é o Poder Judiciário, onde está formalmente inscrito enquanto
profissão desde o final da década de 1940.
Atualmente, os/as assistentes sociais nesse espaço de trabalho são
norteados pelo Código de Ética Profissional e pela Lei Federal nº 8.662 de 07 de

modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica
societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a
ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na
dinâmica das relações de poder e dominação” (TELES.1996).” Contudo, o autor continua “Ou como
ressalva Potyara PEREIRA diante da nova conjuntura mundial: “- Questão Social NÃO é sinônimo da
contradição entre capital e trabalho e entre forças produtivas e relações de produção – que geram
pobreza, desigualdades, desemprego e necessidades sociais - mas de embate político, determinado
por essas contradições”. [...].” (CFESS, 2011a, p. 26).

183
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

junho de 1993 que dispõe sobre a profissão de assistente social e estabelece sua
regulamentação, determina no artigo 4º, as competências do assistente social e no
artigo 5º, as atribuições privativas, como se segue, principalmente o item IV:–
realizar vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres sobre
a matéria de Serviço Social e, por Resoluções dos Conselhos Profissionais –
Estadual e Federal, notadamente a Resolução CFESS nº 559/2009 que “Dispõe
sobre a atuação do Assistente Social, inclusive na qualidade de perito judicial [...]”
(Conselho Federal de Serviço Social, 2011b, p. 105).
Os assistentes sociais que atuam no âmbito do Poder Judiciário são
considerados peritos judiciais e, como tais, auxiliares do Juízo e regulados pela
portaria nº 9.277/2016 que dispõe sobre as atribuições profissionais e pelas
resoluções e provimentos da corregedoria geral, além das legislações vigentes em
nosso país.

[...] É nesse terreno de disputas e conflitos que trabalham os


assistentes sociais, exercendo suas atribuições tendo em vista
oferecer subsídios para a decisão judicial por meio de estudo social,
aconselhamentos, orientação e acompanhamentos, além de atuarem
na viabilização de benefícios, no acesso aos serviços judiciários e
recursos oferecidos pelas políticas públicas e pela sociedade,
articulando-se às formas públicas de controle democrático do Estado
(Conselhos de Políticas, de Direitos e Tutelares e fóruns da
sociedade civil organizada). (IAMAMOTO, 2015, p. 28-29).

Nesse sentido, o Serviço Social enquanto profissão que tem o


compromisso e seu exercício profissional “[...] para além da sua eficiência operativa
ou de sua instrumentalidade e [que] seja comprometida eticamente com a
transformação social.” (Mioto, 2010, p. 165), tem - em seus instrumentais técnico-
operativos como o estudo social - uma ferramenta de análise crítica ao objeto a ser
estudado - ultrapassando os limites dos julgamentos morais, da averiguação e do
controle e da burocratização dos procedimentos, transcendendo a compreensão
imediata e aparente do real, a qual responsabiliza o indivíduo por suas situações de
mazelas sociais.
Ressalta-se a compreensão de que “[...] as necessidades trazidas por
sujeitos singulares não são mais compreendidas como problemas
individuais/famílias. Ao contrário, tais demandas são interpretadas como expressões

184
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de necessidades humanas não satisfeitas, decorrentes da desigualdade social


própria da organização capitalista.” (Mioto, 2010, p. 165).
A realização do Estudo Social, uma das competências do assistente
social segundo a Lei de Regulamentação da Profissão (CFESS, 2011), é
compreendida enquanto uma das dimensões investigativas do exercício profissional
(MENDES, 2015, pag. 145) e também como processo de conhecimento da realidade
que deve contemplar a articulação das dimensões teórica, metodológica e ética da
prática profissional (FAVERO, 2009, p. 612).
Desta forma, a realização de estudo social em âmbito judiciário, entre as
atribuições privativas do assistente social e junto as quais também se destacam a
realização de “vistorias, perícias técnicas, laudos periciais, informações e pareceres
sobre a matéria de Serviço Social” (CFESS, 2011, p. 46), cabe salientar que se trata
de uma prática a ser “norteada pelos princípios éticos estabelecidos no Código de
Ética Profissional.” (FAVERO et.al., 2012, p. 125).
Compreende-se que para se desvelar a realidade social é necessária a
realização de estudo social acompanhado das indagações acerca de “qual o objeto
a ser conhecido, quais os objetivos e qual a finalidade” do trabalho a ser realizado,
tendo como direção o projeto ético político do Serviço Social.
A metodologia operativa, que se refere a “como conhecer essa realidade
e como agir”, deve estar em sintonia com os instrumentos técnico-operativos da
profissão, podendo-se destacar a entrevista, a visita domiciliar, os
encaminhamentos, a articulação com a rede familiar e social, etc. Todo esse
processo se articula à instrumentalidade do Serviço Social no decorrer de sua
identidade e de seu projeto profissional.
O Serviço Social brasileiro contemporâneo está voltado para a afirmação
dos direitos, na perspectiva da defesa e ampliação da cidadania, tendo como desafio
aos assistentes sociais do judiciário estabelecer algum distanciamento do cotidiano,
ultrapassando a realidade imediata e desenvolvendo uma reflexão crítica sobre ela.
Nessa linha de análise FAVERO (2012, p. 173) argumenta que:

O desvelamento das relações entre esse concreto vivido e a sua


construção histórica, com as influências políticas, econômicas e
culturais recebidas, possibilita o conhecimento da realidade social
dos sujeitos, conteúdo essencial a ser abordado no desenvolvimento
do estudo social e a ser registrado em alguma forma de documento,
185
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

como relatório social ou laudo social [...]. Ao conhecer e interpretar o


trabalho, o território, as políticas públicas e a família na vida de um
indivíduo, numa perspectiva histórico-crítica, o assistente social pode
desenvolver o estudo social em sintonia com a garantia de direitos e
a justiça social.

Enfim, a atuação dos profissionais que opinam sobre matéria de Serviço


Social é primordial para o desvelar da dura realidade imposta pelo mando e
desmando do capital junto às famílias que são atendidas no âmbito do Judiciário,
utilizando-se dos instrumentos e técnicas que a intervenção demanda e do Estudo
Social enquanto ferramenta para “defesa intransigente dos direitos humanos e
recusa do arbítrio e do autoritarismo”, preconizado no II Princípio fundamental do
código de Ética do Serviço Social.

6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Serviço Social enquanto profissão objetiva a totalidade na garantia de


direitos. Toda atividade da profissão se volta exatamente para aquele sentido da
vida – a felicidade, em sua constituição, nos mais variados e amplos
direcionamentos com a finalidade de realizar uma vida com qualidade.
Não nos cabe, no momento, ou não nos é possível outra ação que não
seja buscar em Aristóteles, mesmo que distanciado no tempo – não no ensinamento,
para entendermos que ante o “ter” ou “não ter” se encontra a razão para a
reprodução de todos os elementos sociais. Em REALE(2007), encontramos o
ensinamento:

para Aristóteles, a finalidade da virtude é a felicidade. Todavia,


diferentemente de Sócrates e de Platão, Aristóteles considera que a
felicidade não consiste apenas numa atividade da alma, mas
considera indispensável ser suficientemente dotado de bens
exteriores e de meios de fortuna: “parece, todavia, que a felicidade
precisa também de bens exteriores, na medida em que é impossível,
ou não é fácil, realizar belas ações sem meios de ajuda. Com efeito,
muitas coisas são realizadas através de meios de execução, através
dos amigos, da riqueza e do poder político e se somos privados de
alguns desses meios, a felicidade se nos arruína, como quando
carecemos de uma boa estirpe, de uma boa prole, da beleza física.

186
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Logicamente que, fazendo largos passos na história, chegamos à


condição necessária da garantia de direitos, sendo que esta se fundamenta em
processo alicerçado na “justiça social”.
Neste campo sociojurídico nos deparamos com a necessidade da justiça
social, entendendo que do macro ao micro, deveríamos encontrar o Estado, a
sociedade e a família, trabalhando em complementariedade, ou seja, um suprindo o
outro quando, não fosse possível o atendimento das necessidades básicas. No
entanto, ante o desmonte observado, percebemos que a indicação de um “culpado”
isenta os demais da culpabilidade que lhes cabe.
Quando se recorre ao Estado-Juiz para apreciação da realidade social,
corre-se o risco de receber uma sentença não protetiva de direitos, mas acusatória
da própria realidade. Como exemplo disso, vamos citar o caso de uma família que
vê determinada a suspensão de seu poder familiar sobre a prole.
Tal determinação apresenta vários desdobramentos, dentre eles tomemos
dois:
No primeiro, grosso modo, haverá atuação do Serviço Social para o
restabelecimento dos mínimos sociais. Isto irá permitir o exercício do direito de
convivência entre pais e filhos.
No segundo, em se chegando a uma situação de perda do poder familiar,
os pais, se presentes, serão esquecidos, os filhos serão colocados em famílias
substitutas... O Estado dá nova conformação à sociedade e àquela família.
Passamos pela desconstituição da família de origem e a sociedade se reorganiza
em outra família e o Estado permanece, independentemente de que os entes não se
tenham suprido entre si, pois já foi estabelecido um “culpado” e não haverá mais
pena a outrem.
Analisar a conjuntura, em toda a sua amplitude, é a tentativa de
compreender a realidade, na realização de seu trabalho, pelo assistente social,
enquanto trabalhador que também é. Vale lembrar que este trabalhador, do mesmo
modo, sofre todas as agruras observadas no desmonte das obrigatoriedades
estatais.
A todo momento, mesmo sem ter consciência disso, fazemos “análises”
de conjuntura em relação às mais variadas situações de nosso dia a dia, em função
das quais tomamos decisões.
187
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Assim podemos dizer que, no nosso ofício de peritos, temos que


desenvolver uma leitura especial da realidade, que se faz sempre em função de
alguma necessidade ou interesse e, ainda que desejemos, não há análise neutra,
desinteressada, podendo ser objetiva, mas sempre estará relacionada a uma
determinada visão de mundo, alicerçada numa ética.

188
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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190
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DISCUSSÃO ACERCA DE PARÂMETROS PARA SE


CONSIDERAR UMA FAMÍLIA SUFICIENTEMENTE BOA
PARA CUIDAR DE SUA PROLE

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

2017

191
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO:

Elisângela Sastre – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba


Suzana Pilar Barreiro Jamardo – Assistente Social Judiciário – F.R. Itaquera

AUTORES
Alessandra Pissoli Assaly Abilel – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itapecerica da
Serra
Axel Gregoris de Lima – Assistente Social Judiciário – Secretaria da Área da Saúde
Carlos Francisco Lombardi – Psicólogo Judiciário – Comarca de Embú das Artes
Cristiane Andrade Garcia – Assistente Social Judiciário – Comarca da Lapa
Lídia Maria Vieira dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Caçapava
Marcelo Messias dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santo
André
Maria José Graciliano da Silva Oliveira – Assistente Social Judiciária – Fórum
Regional Nossa Senhora do Ó
Regina Rodrigues Rinaldi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Registro

192
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

No ano de 2017, o grupo de estudos com o tema “Família” iniciou reflexão


acerca das famílias que chegam a nós nas Varas da Infância e Juventude em que
atuamos; quando se levantou o questionamento sobre quais os critérios mínimos
para que estas sejam consideradas “suficientemente boas” para oferecerem
cuidados às crianças e adolescentes que se apresentam como demanda de nosso
trabalho.
Dessa forma, não poderíamos deixar de efetuar uma incursão pelos
vários modelos de família que constituíram e constituem a nossa sociedade. Para
tanto, utilizamos bibliografia produzida pelas áreas do Serviço Social, da Psicologia
e demais ciências afins.

1 - A FAMÍLIA COMO QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL

Nossa reflexão está no ano de 1975 – Ano Internacional da Mulher.


Desde então, passou-se a um processo de irrupção da pessoa humana na superfície
do direito internacional, e atenção especial para cada segmento: Ano Internacional
da Criança e do Jovem, Ano Internacional da Pessoa Deficiente, entre outros.
Este olhar sobre os indivíduos se reflete no panorama legal das políticas
públicas e no movimento social, na normativa internacional e nacional.
Bom exemplo é o olhar que ganhou a questão da mulher, desde 1975
(ano internacional), com a instalação das delegacias de direitos da mulher,
conselhos de direito, participação feminina no mundo do trabalho e nas decisões
políticas.
O mesmo ocorre com a atenção à criança e ao adolescente, através das
normativas internacionais, que acabam por culminar, em 1990, na construção do
Estatuto da Criança e do Adolescente; lei esta que veio para renovar a forma de
olhar para a criança e o adolescente na perspectiva da proteção integral, conflitando
com o entendimento até então presente no Brasil, da situação irregular26.

26
A doutrina da situação irregular foi adotada antes do estabelecimento do atual Estatuto da
Criança e do Adolescente. Ela foi sustentada pelo antigo Código de Menores (Lei 6697/79), que
admitia situações absurdas de não proteção à criança e ao adolescente. Naquele ínterim, os menores
infratores eram afastados da sociedade, sendo segregados, de forma generalizada, em
193
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

No entanto, a questão da família sempre ficou em segundo plano na


formulação de normativas. Ela apenas ficou subentendida nas discussões atinentes
às mulheres e/ou às crianças e adolescentes.
Quando se lança um olhar sob o perfil geral da atuação de entidades
voltadas à família, estas estão compreendidas em 4 eixos:
1. as de cunho religioso, voltadas à edificação cristã da família (Pastorais,
ECC, Movimento Familiar Cristão)
2. aquelas que, basicamente, visam o atendimento de famílias em
dificuldades, constituídas por associações profissionais (Psicólogos, Assistentes
Sociais, Médicos), no âmbito da terapia familiar.
3. aqueles grupos que agregam pais em favor da educação (escola de
pais é um exemplo).
4. organizações que unem famílias em atividades de natureza produtiva.

2 – UM OLHAR SOBRE AS FAMÍLIAS BRASILEIRAS

Em uma incursão pelas famílias brasileiras, tem-se que elas são


caracterizadas principalmente pela pluralidade. Em sua essência, compostas por ex-
escravos e descendentes de africanos e indígenas.
Ainda assim, a república propõe imprimir a ideia de supremacia branca/
europeia, ao mesmo tempo em que ressalta a “barbárie” e a “inumanidade” dos
africanos. Temos como conceito de família “padrão” a família burguesa de
inspiração vitoriana.
NEDER (2005, pag. 27) aponta como um dos motivos do fracasso da
educação o fato de a escola ignorar nossa miscigenação e pluralidade cultural,
“deixando de formular estratégias eficazes de educação pública de qualidade”.

estabelecimentos como a FEBEM, desrespeitada a dignidade da pessoa humana e o termo “menor”,


inclusive, passando a ser usado pejorativamente. A conjuntura histórica para que a doutrina da
situação irregular fosse utilizada envolvia uma grande quantidade de menores infratores que, diante
da demasiada desigualdade social do início do século XX, recorriam aos delitos das ruas para
promover o sustento próprio e da família. Dessa forma, a legislação não houvera sido criada para
proteger os menores, mas para garantir a intervenção jurídica sempre que houvesse qualquer risco
material ou moral. A lei de menores preocupava-se apenas com o conflito instalado e não com a
prevenção. Os jovens não eram tratados como sujeitos de direitos, mas sim objeto de medidas
judiciais.Fonte:http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12051.

194
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O modelo de família brasileira tem viés patriarcal, de origem ibérica, o que


já é descrito desde o consagrado “Casa - Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre.
Na referida obra, o autor descreve as diferenças regionais, ainda que não
com este intuito, acerca das configurações familiares, trazendo as figuras da
Sinhazinha, no nordeste, que tem suas atividades voltadas para o cuidado com a
casa e tudo o que diga respeito a este universo. Outra figura é a da Bandeirante, do
Sul, que na ausência do marido desbravador, era quem tomava conta de tudo que
dissesse respeito à administração da fazenda e controle dos escravos. Ambas as
estruturas familiares eram reprodutoras das normas de disciplinamento e controle
social, ditadas pela Igreja.
Este domínio da Igreja sobre os comportamentos das famílias perdura até
hoje, uma vez que quando se fala em educação pautada no castigo físico, se
remonta à concepção da educação fundada na “culpa”, impondo sanções antes
mesmo de o “acusado” se defender.
Em se tratando de famílias de origem africana, sequer estas pessoas
eram consideradas humanas, mas sim animais; o que “justificava” a educação como
forma de imprimir princípios minimamente “humanos”.
Estamos, agora, no ano de 1889, ocasião da Proclamação da República.
Ela traz, como consequência, o fim do trabalho escravo, a urbanização, e mais tarde
o início da industrialização; trazendo a possibilidade de construção da ordem
burguesa no Brasil.
Esta nova república se alicerçava no Positivismo de Comte, que mantinha
um padrão de controle político e social excludente.
Modernizam-se, então, as concepções sobre o lugar da mulher na família
“branca”, que deveria ser educada para ser mãe, educadora dos filhos, e suporte do
homem que tinha como função primordial a de prover o sustento de sua família. Esta
mulher, para exercer estas funções, precisava também estudar, para ser uma boa
educadora.
Para os ex-escravos, pairava a preocupação de se garantir a continuidade
da exclusão: a eles era proibida a propriedade da terra, por não serem considerados
“aptos a administrá-la”, a despeito de serem eles os responsáveis pela produção
agrícola (mão-de-obra) brasileira.

195
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Considerados, também, biologicamente inferiores, a eles não era voltada


a política educacional, tampouco as políticas sociais.
Na segunda metade do século, a Igreja aparece como organizadora da
educação nacional e da Assistência, surgindo, então, a designação até hoje utilizada
de Serviço (no sentido católico) Social. O tema “família” também recebe tratamento
religioso católico, com raíz europeia, patriarcal, com presença marcante do
moralismo e controle sexual típicos desta matriz ideológica.
Ainda sobre a escravidão, em um ponto os historiadores pouco divergem:
ela tem marcado a sociedade brasileira, seja qual for o viés de interpretação
adotado.
Também consideram que “o autoritarismo e a violência da escravidão
foram responsáveis pela separação entre casais, pais e filhos, e outros parentes e
amigos; tendo como consequência a perda de vínculos e crises de identidade
marcantes e irreversíveis” (NEDER, pag. 39). Estas separações ocasionaram o
estabelecimento de laços temporários e instáveis.

2.1 - QUADRO ATUAL DAS FAMÍLIAS NO BRASIL

O que se observa atualmente é que o conceito de família persistente é


aquele construído pelas elites.
Em se tratando de famílias pobres, estas são tratadas como “irregulares”
e, por isso, refletiria na dificuldade de manutenção dos vínculos familiares.
Isto não varia muito dos relatos de cem anos atrás, quando os
comerciantes “denunciavam” nos jornais a insatisfação com os “moleques negrinhos
que perambulavam pelas ruas, prejudicando a freguesia e as vendas; reclamam
também de suas mães, mulheres relaxadas, descuidadas, que parem muitos filhos e
os largam no mundo sem o devido cuidado”. (NEDER, pag. 43)

196
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

3 – O LUGAR DA FAMÍLIA NA POLÍTICA SOCIAL

Não pretendemos, aqui, abordar reflexões sobre expressões e


significados do ‘ser família’ na contemporaneidade, mas Carvalho ressalta a
importância de alavancar reflexões básicas acerca do lugar da família na Política
Social na primeira década do século.
Carvalho (2006) afirma que as perspectivas em relação à família que
permeiam o imaginário coletivo, estão impregnadas de idealizações, sendo uma
delas a família nuclear e tradicional, o que gera expectativas em torno do cuidado,
proteção, afetos, vínculos relacionais e construção de identidade, que emergem
como possibilidades e não garantias, estando assim em contextos que podem ser
fortalecedor ou esfacelador de suas potencialidades.

Desse modo é importante olhar a família dentro do seu real contexto, em


seu movimento de organização e reorganização, o que possibilita verificar os seus
arranjos, assim como suas potencialidades e deficiências. É necessário
compreender as diversas interfaces da ‘família’, como grupo social no qual seus
movimentos mantêm estreita relação com o contexto sociocultural.

Nas décadas de crescimento econômico com pleno emprego e ofertas de


políticas sociais universalistas, na qual a proteção e reprodução social tornou missão
quase total de um Estado de direitos dos cidadãos (Welfare State) evidenciou a
individualização do indivíduo, sendo que sua via seria apenas dependente do Estado
e do trabalho e não mais da sociabilidade comunitária e familiar.

Martin, apud, Carvalho (2006) ressalta que nos fixamos nesta promessa
na qual Estado e trabalho centralizam-se como protagonistas do desenvolvimento e
promoção dos indivíduos em sujeitos de direitos, desse modo o Estado significou o
‘grande tutor’ na distribuição do Bem Estar Social e o trabalho integrador e vetor da
inclusão social.

A partir da ameaça a estas promessas, com as mudanças significativas


nas políticas econômicas, o aumento do desemprego, a precarização do trabalho e o
aumento da pobreza, houve a necessidade de rearranjos e modos de gestão da
política social.

197
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Para Carvalho (2006), é neste cenário que ganham importância as redes


de solidariedade e sociabilidade a partir da família na política social, em especial na
proteção social.

O Estado de Bem Estar Social emerge como missão partilhada entre


Estado, sociedade civil e iniciativa privada nos anos 90.

No Brasil e América Latina o mesmo se configurou de modo frágil,


ressoando com uma larga tradição do chamado ‘Welfare Mix’, onde a
responsabilidade é partilhada entre Estado e Sociedade Civil, sendo que esta última
é representada por organizações solidárias chamada de terceiro setor.

As redes sociofamiliares e de solidariedade nunca foram descartadas no


Brasil, foram e ainda continuam sendo principalmente para as camadas populares,
uma condição de sobrevivência e resistência, o que coloca a família num papel
importante de maximização de rendimentos, apoios, afetos e relações sociais.

Carvalho (2006) afirma que:

“Há no desenho da política social contemporânea um particular acento


nas microssolidariedades e sociabilidades sociofamiliares pela potencial condição de
assegurar proteção e inclusão social”. (p. 17)

Sendo assim, os serviços implementados pelas políticas sociais, que


ofertam atendimento a população, estão centrando suas práticas na família e na
comunidade, desse modo a família passa a ser revalorizada em sua função
socializadora, e convocada a exercer autoridade e definir limites, no intuito de uma
socialização mais disciplinar e menos permissiva principalmente com as crianças e
adolescentes.

Frente a esse pressuposto a família retoma um lugar de destaque na


Política Social, sendo ao mesmo tempo beneficiária, parceira e peça importante na
proteção e inclusão social.

A família já esteve no limbo, no qual era consenso que Estado ou


mercado pudessem substituí-la em seu papel formador, hoje a família retoma como
agente principal da socialização de seus membros, e na garantia dos vínculos
relacionais que previnem os riscos sociais, não estando mais centrada no modelo
conservador ou nostálgico ‘da família tradicional’, mas valorizando a flexibilidade dos
198
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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modelos sociofamiliares, que mantêm em sua essência as possibilidades de


proteção, socialização e criação de vínculos relacionais.

A família assume lugar privilegiado de proteção e pertencimento, desse


modo é importante ressaltar que a revalorização da família não exclui o Estado do
seu papel na proteção social dos indivíduos.

Mesmo estando no cerne da proteção social de seus membros é


importante entender que a própria família, necessita de proteção para exercer
proteção, para tal a mesma precisa receber atenções básicas, em particular as
famílias em situação de pobreza.

Para tal é necessário atenções diversificadas que se complementam


como: acolhimento e escuta, rede de serviços de apoio psicossocial, cultural e
jurídico à família, programas de complementação de renda e programa de geração
de trabalho e renda.

Partindo da escuta qualificada das queixas das famílias e seus membros,


que possibilita acolhimento e humanização, na proximidade com as diversas
vivências cotidianas das famílias, através de uma rede articulada e em diversas
frentes, com o intuito de participar dos processos de emancipação e autonomia das
famílias em situação de pobreza relativa ou absoluta.

Portanto a família ganha lugar de destaque nas Políticas Públicas no


Brasil, sua inclusão nesse processo de partilha de responsabilidades entre Estado,
sociedade civil e iniciativa privada, conjugam novas tendências na condução da
Política Social contemporânea.

4 – FAMÍLIA E CONSTITUCIONALIDADE

O artigo “Família: Cuidado, vulnerabilidade e sustentabilidade, do


desembargador António Carlos Mathias Coltro, traz os princípios que nortearam a
elaboração da CF de 1988 e que particularmente tratam dos direitos e deveres
inerentes a família. Desde a equivalência no exercício desses direitos e deveres
entre o homem e a mulher à compreensão ampliada do ente familiar esclarecendo

199
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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seu alcance desde a União estável as relações formadas por pessoas do mesmo
sexo.
Ao princípio do superior interesse da criança considerando a doutrina de
proteção integral cita o artigo 227 e suas previsões assim como os artigos 229 e 239
da CF que evidenciam, em seu entendimento, o relevo constitucional dado a família.
Citando Paulo Lobo, o desembargador traz a tona o princípio da
afetividade que se insere no texto constitucional, embora de forma implícita,
emergindo na esteira das transformações que ocorreram e estão ainda em curso no
direito da família.
O autor cita a jurisprudência onde é observado esse princípio tanto nos
casos de reconhecimento das uniões homoafetivas quanto nas situações que
envolvem colocação em família substituta/extensa, guarda, adoção post mortem,
unilatareal (por padrasto) e ainda o “reconhecimento da maternidade por aquela que
não tinha vínculo biológico com a criança”. Inserindo assim a supremacia dos laços
afetivos sobre o biológico nas decisões que envolvem o melhor interesse da
crianca/adolescente.
Esclarece o autor que a Carta Constitucional reconhece a família não
mais como entidade singular, mas atribui-lhe significação plural, embora caracterize
avanços a CF não individualizou o limite cabível quanto ao conceito do “em que
consiste a família”, tendo em vista principalmente as mudanças recorrentes na
sociedade atualmente.
Considerando a família como instituto aberto, ressalta que as decisões
proferidas pelo STF, pelo STJ e demais cortes nacionais, seguem os princípios
constitucionais e jurídicos cabíveis, observando a necessidade de dialogar com
outras ciências sociais partindo do sentido plural atribuído ao ente familiar na
constituição.
Na Constituição federal de 1988, um dos maiores avanços foi a
incorporação de políticas sociais como responsabilidade do estado. Nesta direção, a
Constituição cidadã enfatiza a seguridade social e retira a família do espaço privado,
colocando-a como alvo de políticas públicas e afirma direitos da população infanto -
juvenil, compreendendo-os como sujeitos de direitos, em condição peculiar de
desenvolvimento, e por isso, possuindo prioridade absoluta.

200
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos direitos da


criança e do Adolescente a Convivência Familiar e Comunitária, elaborado pelo
Conselho Nacional de Direitos da criança e do adolescente, pelo Conselho Nacional
de Assistência Social, fixa os princípios e diretrizes para que o trabalho articulado e
em Rede alcance seu propósito de garantir às crianças e adolescentes condições
dignas para seu pleno desenvolvimento, autonomia e participação nas decisões que
dizem respeito á sua vida. Para tanto, estimulam a matricialidade sócio familiar, com
ênfase na implementação prioritária de políticas públicas destinadas à orientação,
apoio e promoção social das famílias de origem ou estendidas, que por força do
dispositivo do artigo 226 caput da Constituição Federal, tem direito a especial
proteção por parte do Estado.
Nessa perspectiva, a família é compreendida como um grupo de pessoas
com laços de consanguinidade, de alianças, de afinidade, de afetividade ou
solidariedade, cujos vínculos circunscrevem obrigações recíprocas, organizados em
torno de relações de geração e de gênero.
Arranjos familiares diversos devem ser respeitados e reconhecidos como
potencialmente capazes de realizar as funções de proteção e de socialização de
suas crianças e adolescentes.
Fruto de parte do quadro de pesquisa de tese de doutorado de Vitalle 27, a
autora nos convida a refletir “sobre o processo de transmissão do mundo social
através das relações entre três gerações”, com enfoque nos “aspectos da
articulação entre a sociabilidade e a subjetividade”, tendo como público alvo o que
denominou de “segmentos médios urbanos”.

Valendo-se dos ensinamentos de Berger e Luckman, a autora afirma que


“o mundo social integra o processo de construção da subjetividade”, entendendo tal
processo, no contexto desta apresentação como socialização. Os teóricos citados
definem a relação homem-sociedade como dialética e que esta relação supõe três
momentos: interiorização, objetivação e exteriorização. Acentuam que “através da
interiorização, o mundo do objetivo é reintroduzido na consciência pelo processo de
socialização”. Assim, definem socialização: “a ampla e consistente introdução de um

27
Projeto de pesquisa de doutorado: Vergonha: um estudo em três gerações. Programa de Estudos
de Pós-graduação em Serviço Social da PUC-SP.

201
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela” (Berger e


Luckmann, 1987:175).

Para a autora, a socialização primária é entendida como a interiorização


da realidade a partir da relação entre a criança e os outros significantes (a
localização que ocupam na estrutura social, e mediante suas idiossincrasias
individuais, aspectos da vida social a serem transmitidos).

Já a socialização secundária, decorrente do mundo interiorizado na


primeira infância através da socialização primária, que é fortemente mantida na
consciência, e, no decorrer da vida, novas interiorizações ocorrem, que facilitam a
adaptação dos indivíduos a novos papéis.

A autora destaca que a família não é o único canal pelo qual se pode
tratar a questão da socialização, no entanto, em sua opinião, é um ambiente
privilegiado, uma vez que este tende a ser o primeiro grupo responsável pela tarefa
socializadora.

O compromisso de amar e cuidar passou a definir a relação que une as


pessoas. O desafio se concentra em construir uma relação em que os aspectos
saudáveis de cada um se complementam, e que ambos possam ser o que são, duas
individualidades em uma parceria.

Segundo Coltro, aspectos como respeito, atenção, apoio,


compreensão, afeto, solidariedade e proteção, que são marcados pela
reciprocidade, foram inseridos na CF de 1988, embora nem sempre de forma
explícita. A incorporação desses aspectos revela a consideração do cuidado como
princípio constitucional, especialmente em referência ao direito da família. O dever
de cuidar, inerente a natureza humana, é então abordado em diversos mecanismos
legais, inscrevendo-se no ordenamento jurídico vinculado ao princípio maior da
dignidade humana.

(...) indubitavelmente e além de em tais casos assevera presente o


cuidado, ainda que de forma implícita e decorrente da menção à
dignidade da pessoa, tiveram os juízes que os apreciaram, atenção
para o valor jurídico que tal princípio possui, agindo eles próprios
com o cuidado que se impõe na prática da função jurisdicional.

202
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O destaque concedido a família no texto constitucional, destinando-lhe um


capítulo próprio, explícita a preocupação do legislador com as questões atinentes a
situação de vulnerabilidade a qual possa serem expostos o ente familiar e seus
integrantes. Essa preocupação do legislador ressalta a necessidade de proteção do
estado, não só ao ente familiar, como um todo, mas aos que o compõem conforme
as diferentes necessidades que possam apresentar dentro do campo do cuidado em
que se insere (idoso, criança, mulher, deficiente).
“Ao adotar como fundamento da República a dignidade da Pessoa
humana e referir como princípio fundamental o da igualdade, afirmando, ademais,
que a família, pouco importando decorra ela do casamento, da União estável, da
entidade monoparental, de vínculos biológicos, socioafetivos ou extensos, e surja da
união de pessoas de sexos diversos ou não, merece a especial proteção do Estado,
evidenciou a CF o viés a ser considerado pelo intérprete e pelo aplicador da lei, além
de pelo próprio legislador, em atitude na qual resplandece de maneira evidente e a
não deixar dúvida, o cuidado com a vulnerabilidade daqueles que estejam inseridos
nas relações familiares e com o próprio ente família.” (Coltro)
Outro aspecto abordado no artigo do desembargador Coltro, é o conceito
de sustentabilidade aplicado à família. em seu artigo é ressaltado que embora o
conceito de sustentabilidade esteja vinculado à sobrevivência, meio ambiente e
circunstância social, não há referência expressa, nos textos jurídicos ou em
definição, que observem o ente familiar sobre esse aspecto. Entretanto Coltro faz
referências a ONG’s que entendem sustentabilidade como:

(...) princípio estruturador de um processo de desenvolvimento


centrado nas pessoas e que poderia se tornar o fator mobilizador e
motivador nos esforços da sociedade para transformar as instituições
sociais, os padrões de comportamento e os valores dominantes
(Coltro, 2012).

A sustentabilidade guarda relação com a continuidade e aplicada a família


nos fala da sustentação necessária para a preservação do ente
familiar, inscrevendo-se aqui o cuidado com a vulnerabilidade para garantir a
manutenção, preservação e continuidade da família.

203
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A coletânea da AASPTJSP conceitua que não se fale em “família”, mas


em “famílias”, porque já não podemos trabalhar com base em apenas um modelo de
família. Assim podemos conceituar com base nestes modelos:
 Família Nuclear: composta por pai, mãe e filhos.
 Família Monoparental: chefiada por um dos genitores.
 Família Recomposta: Formada por pessoas advindas de outras uniões,
com ou sem filhos de outros casamentos.
 Famílias Homoafetivas: formada por casais homossexuais, com ou
sem filhos.
Devemos expandir nosso olhar para os arranjos em que cada indivíduo se
encontre, se diz pertencer e se identifique dentro da composição de família. Assim,
percebemos que a concepção de família engloba diferentes aspectos, como:
 Relações de consanguinidade.
 Relações de afeto.
 Relações de ajuda mútua financeira.
 Relações de cuidados pessoais.

5 – SUBJETIVIDADES PRODUZIDAS NOS PROCESSOS DE


“ADOÇÃO PRONTA”: A FAMÍLIA AFETUOSA E A MÃE
DESNATURADA

No artigo produzido por Lygia Santa Maria Ayres é proposta uma reflexão
a cerca da forma como os personagens atuantes nos processos de adoção pronta
são retratados pelos técnicos do judiciário.
Nos referidos laudos, são ressaltados os aspectos positivos da família
que acolhe, “A família afetuosa”, na maioria das vezes permeados de juízos de valor
o que se contrapõe com a imagem da mãe que entrega o filho, “mãe desnaturada”
caracterizada como irresponsável, desprovida de afeto ou de sentimentos que são
tidos como necessários para ser uma boa mãe. A desqualificação de uma para
enaltecer as qualidades do outro são aspectos recorrentes nestes processos de
acordo com a autora.
O ato de deixar os filhos sob os cuidados dos avós ou outros parentes
próximos de confiança que tem sido amplamente estudado por diversos profissionais

204
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

da psicologia e serviço social como um mecanismo de regulamentação familiar, nos


processos de adoção são retratados de forma negativa para ressaltar a imagem da
“mãe desnaturada”. Ainda hoje apesar das diferentes concepções de família, o
modelo de família nuclear burguesa, centrada na tríade Pai-Mae-Filho, todavia, de
acordo com a autora é tomada pelas técnicas como uma referência para
problematizar os laudos.
Ante o exposto acima a mãe que entrega é caracterizada como
naturalmente desprovida da capacidade de cuidar, desconsiderando suas condições
sócio históricas. A logica de reparação da criança que foi abandonada predomina, a
adoção neste sentido encobre uma realidade que não foi abordada ou
problematizada pelos profissionais que atuam nos processos, o abandono de acordo
com a autora é um produto de uma determinada conjuntura socioeconomicopolitica
e não enquanto escolha pessoal como é comumente retratado nos autos. As
condições as quais esta mãe foi inserida deveriam ser interrogadas ao invés de se
naturalizar e tomar este ato como um ato autônomo e não enquanto produto de uma
sociedade que não possibilitou que esta mãe viesse a cuidar de seus filhos. A
postura adotada pelos técnicos ao reforçar a imagem da mãe enquanto
“desnaturada” e a da família que permaneceu com a criança enquanto “Família
Afetuosa” segundo a autora, solidifica o quadro de injustiça social.
A família com seus códigos de obrigações possui uma linguagem através
da qual se traduzem o mundo, definindo o horizonte de sua ação política.
O apego à moral familiar fundamenta os modos de agir, tendo a família
como um espelho na reprodução dos seus atos.
Existe um código de reciprocidade como um traço que persiste pelas
próprias características da sociedade onde se inserem, como um dado estrutural da
formação histórica brasileira.
Dentro da ordem social e moral, o indivíduo emerge dependente da rede
que o sustenta, diante da escassez de recursos, num mundo desigual e sem
oportunidades. Faz-se necessária uma rede de relações que ampare e suporte
como uma condição primordial para o desenvolvimento da família.
Têm-se um histórico onde a esfera pública não atua de modo a substituir
o padrão de relações personalizadas, numa sociedade onde a casa está também na
rua.

205
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

As dificuldades enfrentadas para a realização dos papéis familiares no


núcleo conjugal, diante de uniões instáveis e empregos incertos, levam a arranjos
que envolvem a rede de parentesco como um todo, para viabilizar a existência da
família.
As condições socioeconômicas e a estabilidade familiar estão diretamente
ligadas, no sentido dos ciclos de vida familiar se desenvolverem sem rupturas.

6 - FAMÍLIA SUFICIENTEMENTE BOA SEGUNDO WINNICOTT

Do ponto de vista psicológico a família considerada “suficientemente boa”


nos cuidados às crianças e adolescentes depende do desenvolvimento emocional
de cada indivíduo que a compõe. Winnicott aponta no livro “A família e o
desenvolvimento individual” em seu capítulo 6 – “Fatores de integração e
desintegração na vida familiar” a forma como os pais organizam seu
desenvolvimento e capacidade de cuidar de sua prole.

A criança quando vem ao mundo não apresenta capacidade de se


perceber como um indivíduo distinto, é totalmente dependente de sua mãe e esta se
adapta às necessidades da criança. A mãe vai aos poucos permitindo que a criança
saia de um estado de indistinção com ela para um estado de ser no mundo. Aos
poucos a mãe vai introduzindo o ambiente externo à criança e lhe apresentando um
mundo distinto.

Esta apresentação permite à criança uma “introdução gradual do


ambiente externo” como forma dela passar a conviver com o mundo mais amplo, o
que lhe permite um desenvolvimento emocional sadio.

Estes pais, porém, dependem de uma série de fatores para poderem


possibilitar ao filho este desenvolvimento. Dependem segundo Winnicott “de seu
relacionamento geral com o círculo mais amplo que os envolve”. O autor acrescenta
que não podemos considerar os pais apenas segundo suas relações sociais.
Existem outras forças na criação e conservação das famílias que são resultados da
relação estabelecida entre estes pais, ligadas à fantasia sexual. Winnicott entende
as satisfações sexuais como um amadurecimento do desenvolvimento emocional,
que são importantes para a saúde mental do sujeito.

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Quando a sexualidade é vivida pelo sujeito como desprazeroso – no


sentido de insatisfatório associam o sujeito à neurose, problemas psicossomáticos
ou despotencialização do viver criativo. O autor afirma também que pais com uma
base construída através destas satisfações não garantem necessariamente uma
“melhor base para a construção de um lar” suficientemente saudável.

Winnicott cita que outras questões interferem na construção de uma


unidade familiar, dando o exemplo do desejo dos pais serem iguais aos seus
próprios pais, no sentido da identificação adulta.

O autor aponta mais adiante em seu texto o significado que cada filho tem
na fantasia consciente e inconsciente dos pais, que os levam a apresentar
sentimentos e atitudes diferentes em relação a cada um deles. Afirma que esta
situação depende do relacionamento dos pais à época da concepção e nascimento
de cada filho. Acrescenta que estas alterações no relacionamento leva os pais ao
que podemos chamar de amadurecimento do sentido de responsabilidade de cada
um.

A criança quando vem ao mundo não apresenta capacidade de se


perceber como um indivíduo distinto, é totalmente dependente de sua mãe e esta se
adapta às necessidades da criança. A mãe vai aos poucos permitindo que a criança
saia de um estado de indistinção com ela para um estado de ser no mundo. Aos
poucos a mãe vai introduzindo o ambiente externo à criança e lhe apresentando um
mundo distinto.

Winnicott afirma ainda no texto que estes significados e fantasias dos


pais leva os filhos a se “encaixarem” ou não num contexto imaginativo e emocional
que é diferente para cada filho, por mais que não haja mudanças significativas no
ambiente físico, levando assim a cada ser diferente do outro.

Winnicott fala no texto dos fatores de desintegração familiar nos casos em


que esta família não obtenha êxito ou se desinteresse pelos cuidados da criança - o
que denomina de desenvolvimento insuficiente – que leva à desintegração familiar,
situação que pode ocorrer também por motivo de doença da criança.

Conclui o autor no texto que “a família é composta de crianças individuais


cujas diferenças não são apenas genéticas, mas também bastante determinadas”
pelos significados e fantasias dos pais. E que o simples fato da criança existir
207
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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proporciona segurança e com o tempo a neutralização das fantasias dos pais


possibilitando a construção de uma família suficientemente boa.

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7 - CONCLUSÃO

Considerando nossa intenção de aprofundar a compreensão dos critérios


para definição de uma família suficientemente boa para cuidar de sua prole, conclui-
se que a qualidade dos cuidados que as famílias oferecem a seus membros,
depende da proteção que esta família recebe dos programas e políticas públicas,
tendo em vista o previsto nos dispositivos legais.
Importante, no entanto, reconhecer e respeitar a pluralidade em seus diversos
matizes; uma vez que nem sempre aquilo que é oferecido pelas políticas públicas é
o que a família necessita.
Visto que as famílias passaram por diversas transformações sociais, culturais,
entre outros, rompendo com o modelo tradicional sócio-burguês, compreendemos
ser necessário, para a garantia de seus direitos, que sejam vistas a partir de suas
peculiaridades.
Conclui-se, portanto, que as políticas públicas é que devem ser
suficientemente boas na implementação dos cuidados básicos às famílias, conforme
previsto em lei; e não as famílias se adequarem a padrões estabelecidos pelo
Estado e Sociedade.
A ausência de cuidados observada nas famílias em situação de
vulnerabilidade, muitas vezes reflete a ausência do Estado nos cuidados
necessários às famílias.

209
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

AYRES, Lygia Santa Maria. Subjetividades produzidas nos processos de Adoção


Pronta: A família afetuosa e a mãe desnaturada. In AYRES, Lygia Santa Maria
(Org.) Pivetes : Encontros entre a psicologia e o judiciário. Curitiba: Juruá, 2013.

CARVALHO, Maria do Carmo B. O lugar da Família na Política Social. In:


CARVALHO, Maria do Carmo Brant (Org.) A Família Contemporânea em Debate.
São Paulo: EDUC – Cortez, 2006.

COLTRO, Luiz Carlos Mathias - Familia: cuidado, vulnerabilidade e sustentabilidade,


in Família entre o Público e o Privado - PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.),
IBDFAM, Ed. Lexmagister - 1° edição – 2012.

FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, 17ª ed. Rio de Janeiro, Livraria Editora
José Olympio, 1975.

NEDER, G. Ajustando o Foco das Lentes: um novo olhar sobre a organização das
famílias no Brasil. In: KALOUSTIAN, S.M. Família Brasileira a Base de Tudo, 7ª ed.
Cortez, São Paulo, 2005.

MALDONADO, M. T. Casamento, Término e Reconstrução: o que acontece antes,


durante e depois da separação. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.

SALES, Mione Apolinário; MATOS, Maurílio Castro de; LEAL, Maria Cristina (Orgs.).
Política social, Família e Juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez,
2004.

SARTI, Cynthia Andersen. A Família Como Espelho – um estudo sobre a moral dos
pobres. Editora Cortez – 3ª ed. 2005.

WINNICOTT, D. W. A Família e o Desenvolvimento Individual - Cap. 6 - Fatores de


integração e desintegração na vida familiar. Ed. Martins Fontes, 2011.

210
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

211
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

JUSTIÇA RESTAURATIVA: VIVENCIANDO A


METODOLOGIA DO PROCESSO CIRCULAR

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“JUSTIÇA RESTAURATIVA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

212
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO:

Andrea Svicero – Assistente Social Judiciário – Serviço de Justiça Restaurativa

Silvia Nascimento Penha – Psicóloga Judiciário – Núcleo de Apoio Profissional de


Serviço Social e Psicologia da CIJ

AUTORES

Ana Paula Cardia Soubhia – Assistente Social Judiciário – F. Pederneiras

Carla Pontes Donnamaria – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

Edilaine Borges Losilla – Assistente Social Judiciário – F. Bauru

Fabiana Maria Dias Aranha – Assistente Social Judiciário – F VEIJ da Capital

Felipe Augusto Ribeiro Pires – Psicólogo Judiciário – F. Santana

Izabel Rita Fregnani – Assistente Social Judiciário – Serviço de Justiça Restaurativa

Josiane Moraes – Assistente Social Judiciário – F VEIJ da Capital

Juliana Frota Viegas – Psicóloga Judiciário – F. Itú

Keila Nogueira Gomes – Assistente Social Judiciário – F. Marilia

Leni Coimbra Massei – Psicóloga Judiciário – Comarca de Campinas

Lucimar Ribeiro Campos – Psicóloga Judiciário – Psicossocial Vocacional

Maria Cristina Abi Rached – Assistente Social Judiciário – V. Infancia Santana

Maria Lucia Bianchini – Assistente Social Judiciário – F. Embu das Artes

Rubia Carla Ribeiro – Psicóloga Judiciário – F VEIJ da Capital

Silvana Ilek Barbosa – Assistente Social Judiciário – Serviço de Justiça Restaurativa

Zilda Rodrigues Nogueira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jales

213
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A Justiça Restaurativa...

Tem foco nos danos e consequentes necessidades (da vítima, comunidade e ofensor)
Trata das obrigações resultantes desses danos (obrigações do ofensor, mas também da comunidade
e da sociedade)
Utiliza processos inclusivos e cooperativos.
Envolve todos os que têm interesse na situação (vítimas, ofensores, comunidade, sociedade)

(Howard Zehr, 2008, p. 257)

INTRODUÇÃO

O grupo de estudos de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do


Estado de São Paulo teve início em 2016, momento em que o grupo estudou o
conceito de Justiça Restaurativa. Trata-se de uma mudança de paradigma, daquele
retributivo (punitivo) para o restaurativo, uma verdadeira “troca de lentes”, tal como
sugere Howard Zehr. É uma nova forma de tratar o conflito/violência, de modo que
se consiga trabalhar os danos e as necessidades, tanto da vítima, quanto do ofensor
e da comunidade.

A partir desta perspectiva, a lente da justiça deixa de focar


exclusivamente no ofensor, direcionando-se também para a vítima
que, de simples objeto de prova, passa a ser ouvida e a seus
interesses observados na construção do consenso. O ofensor
também é visto de forma inovadora pela lente restaurativa, não como
quem deve pagar o mal com o mal, mas como quem pode
compreender os danos decorrentes da própria conduta e se
responsabilizar por aplacar ou mitigar o mal causado. A Justiça
Restaurativa parte dos pressupostos de que a autoresponsabilização
pelos prejuízos causados à vítima, patrimoniais ou psicológicos,
abrange muito mais do que o mero cumprimento de sanção pelo
ofensor, bem como de que o sentimento de justiça da vítima não é
atenuado pela simples condenação do ofensor (MASSA; CRUZ;
GOMES; 2016, p. 310).

Talvez você esteja se perguntando como isso efetivamente se dá na


prática. Desde a sua elaboração e implementação, na década de setenta, a Justiça
Restaurativa desenvolveu uma série de técnicas/metodologias para a resolução de
conflitos: o VOP (processo vítima-ofensor, na sigla em inglês), a Conferência
Familiar, o Círculo Restaurativo, o Processo Circular, entre outras (SALMASO,
2016).

214
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O grupo de estudos deste ano, 2017, elegeu aprofundar-se no


conhecimento de uma dessas metodologias, o Processo Circular, uma das técnicas
restaurativas mais utilizadas, inclusive no Brasil. Desenvolvida por Kay Pranis
(2010), norteamericana, autora do livro “Processos Circulares: Teoria e Prática”,
obra que norteou os nossos debates.

Os processos circulares apresentados por Kay Pranis são


alicerçados na forma de diálogo e rituais de aborígenes e em culturas
ancestrais, [...] além dessas primeiras fontes de inspiração, princípios
e práticas contemporâneos inseridos nos métodos para
transformação dos conflitos, nas práticas restaurativas, na
comunicação não-violenta, na escuta qualificada e na construção de
consenso, para o alcance de soluções que expressam as
necessidades individuais e, ao mesmo tempo, as do grupo.
(PASSOS, 2010, p. 9, Preâmbulo)

Há Círculos de vários tipos, aplicados em diferentes contextos (escolas,


comunidades, sistema de justiça), que foram recebendo diferentes terminologias
segundo as suas funções. Dessa forma, há círculos de diálogo, de compreensão, de
restabelecimento, sentenciamento, apoio, construção de consenso, resolução de
conflitos, reintegração, celebração, entre outros (PRANIS, 2010).
Embora cada tipo de círculo tenha as suas especificidades, há um
fluxo/estrutura comum que perpassa a construção de todos eles. Tal fluxo, que será
detalhado neste artigo, contempla: cerimônia de abertura, apresentação e check-in,
construção de valores e diretrizes, contação de histórias, perguntas norteadoras,
check-out e cerimônia de fechamento.
Ao longo dos dez encontros, além de estudarmos os elementos
estruturais e o fluxo do círculo, vivenciamos o processo circular na prática. Ou seja,
realizamos todos os encontros no formato circular e, a partir dessa metodologia,
debatemos o livro da Kay Pranis, assistimos ao filme “Escritores da Liberdade28” -
tecendo, na sequência, considerações a respeito das impressões provocadas pelo
filme e quais as possíveis relações com o texto da Kay Pranis e com a proposta da
Justiça Restaurativa - bem como experimentamos um “Círculo de Diálogo”,
planejado por duas integrantes do grupo, momentos que também são considerados
neste artigo.

28
ESCRITORES da LIBERDADE. Direção: Richard Lagravenese, 2007.
215
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Os Círculos objetivam criar um espaço onde os participantes se sintam


seguros para serem totalmente autênticos e fiéis a si mesmos” (PRANIS, 2010, p.
25-26). A oportunidade para um Círculo se dá quando duas ou mais pessoas:

Precisam tomar decisões conjuntas; discordam; precisam tratar de


uma experiência que resultou em danos para alguém; querem
trabalhar em conjunto com uma equipe; desejam celebrar; querem
partilhar dificuldades; desejam aprender uns com os outros (PRANIS,
2010, p. 20).

O emprego dessa metodologia significa um resgate de boas práticas


utilizadas por nossos povos ancestrais, entre eles os indígenas, na forma de
compreender e lidar com os conflitos contemporâneos. “Pode também consistir em
uma possibilidade de resgate das relações historicamente rompidas pela negligência
dos “povos civilizados”” (MASSA; CRUZ; GOMES; 2016, p. 316). Sinta-se convidado
a mergulhar conosco neste resgate.

1 - ELEMENTOS ESTRUTURAIS E O FLUXO DO PROCESSO


CIRCULAR

O formato do Círculo, com os participantes sentados em cadeiras


dispostas em roda - sem mesas ou outros móveis no centro - “simboliza liderança
partilhada, igualdade, conexão e inclusão. Também promove foco, responsabilidade
e participação de todos” (PRANIS, 2010, p. 25).
Nos Círculos, todos os participantes são corresponsáveis pela busca de
soluções e pelo controle dos acordos. Dessa forma, não há um controlador
diferenciado, mas há quem o facilite, tendo, por isso, o nome de Facilitador (ou de
guardião do Círculo), pessoa especialmente capacitada para essa função e que tem
o papel - apoiado por um co-facilitador, igualmente capacitado - de organizar o
Círculo, convidar os participantes e, uma vez no Círculo, dar início a “um espaço
respeitoso e seguro e envolver os participantes na partilha da responsabilidade pelo
espaço e pelo trabalho em comum” (PRANIS, 2010, p. 53).
Diferentemente de outros modelos de trabalhos em grupo conduzido com
a presença de um coordenador, o facilitador e o co-facilitador de um Processo

216
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Circular participam do encontro com a mesma possibilidade de partilhar suas ideias,


pensamentos e histórias.
O facilitador é o único que pode falar a qualquer tempo, sem o chamado
“objeto da fala”, sendo válido ressaltar que:

O guardião [ou facilitador] não controla as questões levantadas pelo grupo,


nem tenta conduzi-lo na direção de determinada conclusão, mas pode intervir
para zelar pela qualidade da interação grupal (PRANIS, 2010, p. 27).

O bastão ou “objeto da fala”, elemento-chave do círculo, é um objeto


escolhido pelo grupo ou pelo facilitador, que é passado de pessoa para pessoa na
sequência da roda. O objetivo do bastão é regular o diálogo dos participantes,
permitindo que o seu detentor fale sem interrupções e que os demais foquem na
escuta.
Vale ressaltar que, em posse do bastão, o participante também pode
oferecer o seu silêncio ou simplesmente passá-lo adiante. O seu uso não obriga a
fala, mas evita distração ou interferência na fala daquele que o detém. Assim, todos
têm igual oportunidade de falar, partindo-se do pressuposto de que cada participante
tem algo importante a oferecer ao grupo. Supõe-se que à medida que o bastão
passa de uma mão a outra, tece um fio de conexão entre os membros do círculo.
Como já dito, na configuração do Círculo não devem existir mesas ou
outros móveis no centro. Entretanto, esse espaço pode contar com uma “peça
central”, que pode ser um tapete, ou outro tecido, colocado no chão, no centro do
espaço físico do círculo, para criar um ponto de convergência. Sobre o tecido,
podem ser colocados objetos “que tenham significado evocativo para o grupo, ou se
relacionem com o assunto a ser conversado” (PRANIS, 2010, p. 72), assim como “os
princípios que alicerçam o processo, uma visão compartilhada do grupo” (PRANIS,
2011, p. 17).
O Círculo de Diálogo, especialmente planejado para um de nossos
encontros, é um tipo de círculo que não tem como foco o tratamento de conflitos,
mas que permite a partilha de diferentes pontos de vista sobre o assunto escolhido
para ser abordado. Pode ser usado, por exemplo - tal como o usamos - para
explorar os diferentes significados de uma experiência. Sua organização se dá, de
maneira geral, em quatro estágios.

217
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Inicialmente, é avaliada a adequação do Círculo para o propósito


identificado, o que implica em saber da disponibilidade dos participantes, se o
facilitador se sente aberto a escutar e respeitar perspectivas muitos diferentes de
suas próprias a respeito do assunto que se pretende tratar e a segurança de que o
propósito do Círculo respeita a todos os integrantes.
O segundo estágio compreende os preparativos do Círculo, quando são
identificados os possíveis participantes (sendo importante, sempre que possível, ter
em conta pessoas com pontos de vista diferentes, caso não se trate de um grupo já
formado, diferente do que era o nosso caso); são definidos: o facilitador e o possível
co-facilitador, o local, com as condições adequadas para a sua realização, o bastão
da fala, as cerimônias de abertura e de encerramento, bem como o planejamento
das perguntas norteadoras, que favoreçam os participantes se conhecerem melhor e
abordarem o assunto do diálogo.
É parte, ainda, dos preparativos a realização do convite às pessoas
identificadas como possíveis participantes. A participação voluntária, de livre e
espontânea vontade é um dos princípios fundamentais a serem seguidos para a
realização de qualquer procedimento em Justiça Restaurativa.
O terceiro estágio corresponde à realização do Círculo propriamente dito.
Nessa etapa, os participantes chegam ao local previamente preparado pelo
facilitador e co-facilitador e vivenciam, sempre tendo em conta o respeito à
voluntariedade: uma cerimônia de abertura, um check-in, a construção dos valores e
das diretrizes que, para o grupo que se forma, torna aquele espaço seguro, para a
contação de histórias, para a abordagem ao assunto que os trouxe ali a partir das
perguntas norteadoras oferecidas pelo facilitador, um check-out e uma cerimônia de
encerramento.
Alguns círculos não requerem momentos posteriores. Dessa forma, o
quarto estágio, chamado por Pranis (2010) de “acompanhamento” não é
considerado imprescindível. Em realidade, como diz a autora

Círculos não são processos rígidos, mas certos elementos como a


cerimônia de abertura e fechamento, o uso do bastão de fala e a
criação de orientações são de fato essenciais (PRANIS, 2010, p. 75).

218
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Na organização do Círculo de Diálogo vivenciado por nós, além das


cadeiras sempre dispostas em círculo, foi planejada uma “peça de centro”,
caracterizada por um pano de renda/crochê, uma flor e as palavras escritas nos
encontros iniciais do nosso grupo de estudos, com os Valores e as Diretrizes
acordados.
Como bastão de fala - para a experiência específica do nosso Círculo de
Diálogo - foi escolhido o próprio livro da Kay Pranis, justamente a obra estudada ao
longo deste ano.

1.1 - CERIMÔNIA DE ABERTURA

As Cerimônias de Abertura dão o tom do espaço relacional do Círculo,


marcando-o como lugar à parte. O facilitador e o co-facilitador, ao planejarem o
Círculo, escolhem a atividade, que pode ser: uma dinâmica, um relaxamento, um
texto, uma música, ou qualquer outra que ajude

[...] os participantes a se centrarem, a trazê-los para participar


plenamente do espaço, reconhecer sua interconectividade, livrar-se
de distrações não relacionadas ao contexto e estarem atentos aos
valores de seu verdadeiro eu (PRANIS, 2011, p. 16).

Em nossa vivência de Círculo de Diálogo, foi feito o convite inicial para


que ficássemos em uma posição confortável para o exercício de respiração. Na
sequência, foram lidos trechos da música “Brincar de Viver”, dividida em três partes,
previamente impressas e, de forma aleatória, dispostas nas cadeiras, sendo as
pessoas, no momento da atividade, convidadas a lerem, em voz alta, o trecho que
tinham em mãos. Ao ser iniciada essa leitura, uma das participantes começou a
cantar ao invés de ler. Essa participante foi seguida por outras e, no refrão, todos
formaram um coro.

1.2 - APRESENTAÇÃO / CHECK-IN

A apresentação confere a rodada inicial, na qual, os participantes, já em


posse do objeto de fala, expressam seus nomes, profissões, ou outras informações
219
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pessoais que entendam relevantes para o desenvolvimento do círculo, e que irão


variar conforme seja um grupo novo ou um grupo em continuidade.
Ainda nessas primeiras rodadas de apresentação/check-in, os
participantes são estimulados a responder a alguma pergunta que os ajude a
conectar-se com o aqui e agora do círculo. Podem ser “perguntas leves e bem-
humoradas destinadas a relaxar o grupo” (PRANIS, 2010, p. 35), ou outras, tais
como: Como estão se sentindo? O que deixa você feliz hoje? Qual foi o ponto forte
da sua semana? Entre outras.
No círculo de diálogo que vivemos, as perguntas de check-in foram:
Como você está se sentindo hoje? Gostaria de compartilhar algo com o grupo? A
partir dessas perguntas, os participantes presentes puderam transmitir seus
sentimentos sobre uma determinada situação vivenciada em seu dia- a- dia, na
família, no trabalho ou uma questão confidencial.

1.3 - CONSTRUÇÃO DE VALORES E DIRETRIZES

Os círculos são ocasiões extremamente democráticas e, apesar da


presença de um facilitador e de um co-facilitador, são os participantes que
desempenham o papel principal na construção do espaço, na manutenção de sua
qualidade e respeito, bem como no alcance dos objetivos. Inicialmente, coloca-se a
necessidade de discutir e buscar valores tidos como importantes para si e para os
demais envolvidos no diálogo e, posterior ou concomitantemente, estabelecem-se
juntos e mediante consenso, as diretrizes para a discussão e para o bom andamento
do encontro, com o intuito de proporcionar um espaço seguro para exposição e troca
entre todos.
Kay Pranis menciona que valores que nutrem e promovem vínculos
benéficos com os outros são o fundamento do Círculo. Segundo ela, quando os
participantes conseguem eleger e expressar valores que guiarão sua interação,
conseguem manter mais claramente a intenção de alinharem seu comportamento
com tais valores. O círculo é estruturado de forma a ir em direção ao melhor de si.
Ela também ressalta que os mesmos valores são evidenciados e compartilhados nos

220
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mais diversos contextos. “Estou certa de que esses valores não são ensinados,
estão em nosso DNA”29.
Os participantes em um Círculo têm o papel principal na concepção de
seu próprio espaço, criando as diretrizes para sua discussão. As diretrizes articulam
os acordos entre os participantes sobre como eles se conduzirão no diálogo. O
objetivo das diretrizes é descrever os comportamentos que os participantes elegem
como aquilo que contribuirá para que o espaço do círculo seja um lugar seguro para
que eles falem suas verdades. Não são limites rígidos, mas são lembretes para que
os participantes tenham em mente um compromisso mútuo de criar um lugar seguro
e protegido que viabilize o diálogo, especialmente para diálogos de temas sensíveis,
e sendo os valores e as diretrizes revisitados quando há continuidade de encontros,
sempre em consenso.
A guarda destes valores e diretrizes, em caso de sua violação, no entanto,
cabe ao facilitador e ao co-facilitador, que figuram como os guardiões da sacralidade
ou seguridade do círculo, assim como da manutenção das condições ideais da
comunicação.
Os valores e as diretrizes que sustentaram os encontros deste grupo de
estudos foram firmados logo nas primeiras reuniões. Escolhidos a partir de uma
questão norteadora, anotados em papéis coloridos, verbalizados com a circulação
do bastão da fala e colocados junto à peça de centro. Os valores e as diretrizes
acordados por nós foram:
Valores: respeito ao próximo, compromisso, empatia, solidariedade,
generosidade, honestidade, verdade, parceria, disciplina, metamorfose.‘

Diretrizes: acolhimento, escutar para compreender, trocar


conhecimentos, sigilo, compromisso, ser escutado e escutar sempre,
comprometimento, acolhimento e respeito, transparência, compreensão, escuta,
crença de que tudo de bom é possível, escuta sem julgamento.

29
PRANIS, Kay. Fala proferida no curso de formação em Processo Cirular na Palas Athena em maio de 2017,
São Paulo.
221
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1.4 - CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS: A IMPORTÂNCIA DE CONTAR HISTÓRIAS

A contação de histórias é uma etapa fundamental do Círculo. “O processo do


círculo é um processo que se realiza através do contar histórias” (PRANIS, 2010, p.
16). A partilha de histórias, além de propiciar um “processo de reflexão sobre nós
mesmos” (PRANIS, idem, p. 57) permite que as pessoas se conectem, identifiquem-se
com a humanidade do outro, encontrando pontos em comum que os levam à
construção de laços de confiança.

[...] Cada pessoa tem uma história, e cada história oferece uma lição.
(...) As histórias unem as pessoas pela sua humanidade comum e as
ajudam a apreciar a profundidade e beleza da experiência humana
(PRANIS, 2010, p. 16)

Nessa dimensão de ouvir o outro dentro de um Círculo, podemos


congregar as pessoas, chegar ao entendimento mútuo, fortalecer relacionamentos e
resolver problemas grupais.

Quando contamos histórias, mobilizamos uma escuta diferente. O


corpo relaxa, se acalma, fica mais aberto e menos ansioso.
Absorvemos a história antes de avaliar seu conteúdo. Somos
envolvidos emocionalmente, além de mentalmente. Essa escuta
diferenciada permite que a informação seja passada integralmente, o
222
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que leva a uma compreensão muito maior entre as pessoas.


(PRANIS, 2010, p. 56)

Em um dos nossos primeiros encontros, a facilitadora propôs, para o


momento da contação de histórias, que cada um de nós contasse como escolhemos a
nossa profissão. Entre similaridades e diferenças, fomos nos identificando um com os
outros. O momento possibilitou uma aproximação entre os participantes do grupo, com
manifestações de sentimentos de cumplicidade, de acolhimento, de bem querer. Assim,
embora histórias individuais, a experiência de contá-las no círculo promoveu conexão
entre nós.

Já na vivência especial do nosso Círculo de Diálogo, houve a proposta,


também para a contação de histórias, de partilharmos alguma situação da vida, pessoal
ou profissional, para a qual - pensando nela hoje - aplicaríamos a metodologia da
Justiça Restaurativa. O resultado disso foi o de que todos os participantes resgataram
alguma vivência, argumentando que teriam em muito ajudado a transformar o conflito e
dado um curso diferente àquela situação específica, com mais abrangência e
profundidade.

1.5 - ATIVIDADE PRINCIPAL DO CÍRCULO / PERGUNTAS NORTEADORAS

Com o intuito de estimular e de facilitar a discussão sobre o principal


interesse do grupo, o facilitador oferece perguntas ou temas norteadores no início
das rodadas. “O preparo cuidadoso das perguntas é importante para facilitar a
discussão que vai além das respostas superficiais” (PRANIS, 2011, p. 17).

O filme “Escritores da Liberdade” foi um tema que norteou dois momentos


de discussão do grupo. Inicialmente, no encontro em que o filme foi assistido pelo
grupo, a pergunta norteadora foi “o que o filme mobilizou em você e qual a relação
com a prática profissional?”

A partir dessa questão norteadora, opinamos sobre o filme, discutimos,


avaliamos e pensamos nossa realidade de Assistentes Sociais e Psicólogas(os) no
Tribunal de Justiça, tendo como parâmetro de comparação os desafios que a
personagem central do filme enfrentou com os que enfrentamos cotidianamente em

223
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

nosso trabalho. O filme despertou no grupo a esperança e a motivação, pontos


importantes abordados no Círculo de Diálogo, pois, apesar das dificuldades
encontradas no trabalho, ainda temos sonhos e desejo de ter uma realidade melhor.

Já no Círculo de Diálogo, especialmente planejado por duas de nossas


integrantes, além da pergunta norteadora que deflagrou a contação de histórias,
relatada acima, outra questão que fomentou o diálogo foi: “Em que a Justiça
Restaurativa especialmente te toca?”.

Por meio dessa pergunta, abordamos algumas experiências pessoais e


profissionais referentes às nossas vivências na escola, nos ambientes de trabalho,
na família e nas comunidades, etc. e os reflexos que tiveram em nossas vidas, tanto
os positivos quanto os negativos. Neste último aspecto, foi pontuado que a forma de
se conduzir os conflitos e de se fazer “justiça” baseava-se na punição e na ausência
de diálogo, não resolvendo de fato e só agravando os problemas.

Nesse sentido, o grupo frisou a busca pela Justiça Restaurativa como um


caminho para entender a proposta de como restaurar as relações abaladas por
conflitos e desentendimentos, como uma nova forma de Justiça. Por essas razões,
os participantes disseram que procuraram compreender melhor o que é Justiça
Restaurativa e se integraram a esse grupo de estudos como uma possibilidade de
também tentar trazer para o cotidiano de trabalho essa nova experiência.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1.6 - CHECK-OUT E CERIMÔNIA DE ENCERRAMENTO

Para encerrar o Processo Circular, são realizadas o check-out e a cerimônia


de encerramento. Para o check-out, os participantes são convidados a expressar como
estão se sentindo após a participação no círculo, o que levam da experiência vivida ou
como estão saindo.

A cerimônia de encerramento é importante para dar um fechamento e


contorno ao que foi realizado durante o Processo Circular. Sinaliza o encerramento da
prática e celebra o esforço pela realização das atividades.
Da mesma forma que na cerimônia de abertura, podem ser utilizadas
dinâmicas ou atividades lúdicas, como a leitura de uma poesia, audição de uma
música, técnicas de respiração, entre outras.
Neste ano, o grupo experimentou diferentes check-outs e cerimônias de
encerramento. Como check-out, por vezes, fomos convidados pela facilitadora a dizer,
em uma palavra ou frase, como estávamos saindo. Como encerramento, vivenciamos,
por exemplo, a proposta de uma dança de roda, cantando a música “O canto de um
povo de um lugar” de Caetano Veloso.
Já como encerramento do Círculo de Diálogo cantamos a música “Aquarela”,
de Toquinho. Conforme considerações em ata do encontro (Agosto, 2017), o poeta vai
brincando e fazendo imaginar quão gostoso é se perder nesse universo infantil, no
mundo de “faz de conta”. Nesse mundo de ficção não há limite de tempo ou de espaço.
Também nos mostra que na vida há obstáculos, os “muros”, mas que, com criatividade,
podemos ultrapassá-los.

Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá o fim dela
ninguém sabe bem ao certo onde vai dar. Vamos todos numa linda
passarela de uma aquarela que um dia enfim descolorirá... (Trecho da
música Aquarela).

Imaginamos que a Justiça Restaurativa seja como uma “linda aquarela”, que
vai se abrindo, conduzindo-nos pela mão, bastando ter sensibilidade para dar cada
passo no rumo certo.

225
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vivência da metodologia do processo circular nos encontros do grupo


de estudos em Justiça Restaurativa, ao longo deste ano, possibilitou que
trouxéssemos, para este artigo, mais do que uma compreensão dos aspectos
teóricos de uma técnica, pudemos experimentar a vivência de um Círculo. Fazendo
uso do bastão da fala, dos check-ins e check-outs, da construção de valores e
diretrizes, do partilhamento de histórias, das discussões estimuladas pelas
perguntas norteadoras e das cerimônias de abertura e de encerramento, nos
deparamos, por nossa experiência, com os potenciais de um Círculo.

O sentido de pertencimento, proporcionado pela interconexão entre os


participantes desde a partilha de histórias, caracterizou-se como um dos mais
marcantes efeitos da vivência da metodologia para este grupo. Inclusive, isso
favoreceu a conclusão da leitura da obra escolhida para guiar os estudos do grupo
deste ano, além de ter despertado o interesse de ler outras obras.

Da experiência de se ter voz e vez nas discussões, experimentamos uma


redução da ansiedade que encontros e partilhas em grupo podem ocasionar. Além
disso, foram momentos para repensar nossa prática profissional, refletir sobre
nossos valores e poder expandir, por meio de vivências dos Círculos, nossa
percepção do outro, nossa escuta atenta e a capacidade de compartilhar
experiências.

Constatamos, dessa forma, o que até então tínhamos conhecido apenas


pela teoria.

Consideramos que essa vivência nos desafia a uma autotransformação, à


interiorização dos princípios e valores da Justiça Restaurativa, e à vivência deles no
dia a dia, em nosso trabalho, dialogando com posições contrárias, numa instituição
que ainda se baseia nos principios da Justiça Retributiva.

Como bem lembrado em uma de nossas discussões, não podemos


confundir grupo de estudo com formação/capacitação. São duas condições
importantes para todos aqueles que se identificam com a ideia de ser um facilitador
de procedimentos de Justiça Restaurativa, porém, é preciso ter em conta que
226
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

estudos - ainda que conduzido com o uso da própria metodologia, como fizemos,
não substituem a necessidade de capacitação específica.

O risco de uma prática sem a devida formação é o de que essa


metodologia se travista, na prática profissional, de “tribunal circular”, contribuindo
com a manutenção e acirramento do status quo, colocando as pessoas em um lugar
mais passivo, submisso, e não as empoderando, tampouco colaborando com uma
transformação. .

Como propostas para a continuidade deste Grupo de Estudos específico,


apontamos o desejo de compartilhar experiência de quem já atua com práticas
restaurativas, analisar casos à luz da Justiça Restaurativa e pensarmos fenômenos
e aspectos de grupo, já que o Grupo de Estudo é composto por pessoas que se
interessam pela temática da Justiça Restaurativa desde aproximações distintas.

Assim, encerramos os trabalhos deste ano com entusiasmo e consciência


de que temos muito ainda por estudar, no caminho de ajustar - referenciando, uma
vez mais, Howard Zehr - as novas lentes.

227
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

MASSA, ADRIANA ACCIOLY GOMES; CRUZ, FABRÍCIO BITTENCOURT DA;


GOMES, JUREMA CAROLINA DA SILVEIRA. Resgate da circularidade na
resolução de conflitos indígenas. In: Justiça Restaurativa: Horizontes a partir da
Resolução CNJ 225. (Coord. Fábio Bittencourt da Cruz): Brasília, 2016.

PRANIS, Kay. Processos Circulares: Teoria e Prática. Palas Athena. São Paulo,
2010.

PRANIS, Kay. Guia do Facilitador. AJURIS. Porto Alegre, 2011.

SALMASO, Marcelo N. Um mudança de paradigma e o ideal voltado à construção


de uma cultura de paz. In: Justiça Restaurativa: Horizontes a partir da Resolução
CNJ 225. (Coord. Fábio Bittencourt da Cruz): Brasília, 2016.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes - um novo foco sobre o crime e a justiça. Palas
Athena. São Paulo, 2008.

228
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

PARTICULARIDADES DA REALIDADE SOCIAL DOS


SUJEITOS DOS ESTUDOS SOCIAIS: A DESIGUALDADE
DAS RELAÇÕES DE GÊNERO COMO INDICATIVO PARA A
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA NAS DEMANDAS DA
JUSTIÇA DE FAMÍLIA

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL

“SERVIÇO SOCIAL NAS VARAS DE FAMÍLIA E


SUCESSÕES: PARTICULARIDADES E IDENTIDADE
PROFISSIonal”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2017
229
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO:
RITA DE CÁSSIA SILVA OLIVEIRA – Assistente Social Judiciário – Seção Técnica
de Serviço Social da Vara da Infância e da Juventude - Foro Regional IV – Lapa

PARTICIPANTES:
BIANCA DA SILVA OLIVEIRA – Assistente Social Judiciário- FR Jabaquara
CRISTIE PRISCILA AMORIM CEBALLOS – Assistente Social Judiciário - F. N.
Senhora do Ó
DINA DA SILVA BRANCHINI - Assistente Social Judiciário – FR Poá
DULCE ALVES TAVEIRA KOLLER - Assistente Social Judiciário – FR Mogi Cruzes
GLAUCIA CRISTINA DE MELO - Assistente Social Judiciário- FR Cordeirópolis
GREICIELI RAMOS ALMEIDA RUFINO - Assistente Social Judiciário- FR Sto.
Amaro
HELENA CRISTINA FIGUTI – Assistente Social Judiciário - Taubaté
ISABEL CRISTINA SILVA COHEN - Assistente Social Judiciário- FR Central
JOSIANE DACOME – Assistente Social Judiciário – Hortolândia
KARINA MARINHO DOS SANTOS – Assistente Social Judiciário – S. Luiz do
Paraitinga
MARCIA CAMPOS DE OLIVEIRA – Assistente Social Judiciário - Barueri
MARIA VALERIA DE BARROS CASTANHO - Assistente Social Judiciário - FR
Central
MARIA ZENAIDE RIBEIRO – Assistente Social Judiciário – FR S. Miguel Paulista
MARTHA REGINA ALBERNAZ - Assistente Social Judiciário- FR Lapa
MONICA GIACOMETTI SECCO – Assistente Social Judiciário - Hortolândia
QUELLI FOLLES DE OLIVEIRA - Assistente Social Judiciário- FR Sto. Amaro
REGINA CELIA ANDREAZZI - Assistente Social Judiciário- F.Varas Especiais
RITA DE CASSIA SILVA OLIVEIRA – Assistente Social Judiciário – FR Lapa
SILVANIA TEIXEIRA DE CARVALHO MENDES - Assistente Social Judiciário- FR
Central
SIMEI DA SILVA- Assistente Social Judiciário – Jundiaí
TAINAH ROSA RESPLANDE – Assistente Social Judiciário - Jacareí
THAIS FELIPE SILVA DOS SANTOS - Assistente Social Judiciário- FR Central
VIVIANE DE PAULA – Assistente Social Judiciário - F. N. Senhora do Ó
VIVIANE SOUZA DUQUE GARCIA – Assistente Social Judiciário - Taubaté

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INTRODUÇÃO

O grupo de estudos30 iniciado em 2016 com intuito de refletir sobre as


particularidades e a identidade do Serviço Social na Justiça de Família, teve como
um dos focos em 2017 o estudo sobre fundamentos teóricos de família na
perspectiva social com vistas a enriquecer os estudos/perícias sociais31 e a adensar
teoricamente a dimensão interpretativa e analítica dos registros realizados para os
processos de Varas de Família.

Com esse objetivo convidamos para refletir conosco Dalva Gois e Eunice
Fávero32, assistentes sociais do TJSP, doutoras, com pesquisas e publicações
relevantes sobre a temática família, estudo social e inserção profissional na área
sociojuridica. Pensando na elaboração do laudo social, tomando-o como mais que
um instrumento técnico e de escrita, fomos provocadas por Fávero a discernir em
cada demanda qual é a sua finalidade profissional para além da institucional e com
Gois a refletir sobre as relações das famílias em litígio judicial e como realizamos
nossas análises dos conflitos que vivenciam.

Partimos das reflexões sobre as particularidades da produção teórica do


Serviço Social sobre família e a ausência de produções próprias nas temáticas da
justiça de família, questão que incide diretamente sobre a identidade profissional
nesse espaço.

No que se refere às temáticas da justiça de família, em especial quanto se


tratam dos recorrentes temas alienação parental, guarda de filhos e cuidados
parentais, estamos subsumidas em linhas gerais à legislação e às contribuições do
Direito e da Psicologia, questão essa que tem sido apontada reiteradamente.

A incorporação da teoria social crítica pela profissão trouxe novas


referências teóricas fundamentais para a construção do seu projeto ético - político
que implica em mudanças na forma de conhecer e trabalhar com família. Mioto

30
Este grupo é constituído por vinte assistentes sociais mulheres, trazendo, à tona a identidade de
gênero na composição do grupo e o questionamento de como esta identidade influi nas relações
profissionais e na prática profissional dentro do espaço do TJSP.
31
Utilizaremos estudo e perícia social como sinônimos.
32
Ao nos referirmos as autoras sem indicação de publicação, estaremos registrando conteúdo de
reflexões feitas no grupo de estudos.
232
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(2010) nos ajuda a compreender o tamanho do desafio posto pelo nosso grupo de
estudos, visto que repensar a relação do Serviço Social com as famílias sob novas
bases e perspectivas é um desafio coletivo da profissão.

Esse novo paradigma operou, no contexto do Serviço Social, duas


mudanças fundamentais para instituir uma nova forma de pensar e
trabalhar a família. Uma refere-se a nova possibilidade de
interpretação da demanda. Ou seja, as necessidades trazidas por
sujeitos singulares não são mais compreendidas como problemas
individuais/familiares. Ao contrário, tais demandas são
interpretadas como expressões de necessidades humanas não
satisfeitas, decorrentes da desigualdade social própria da
organização capitalista. Assim, torna-se possível desvincular-se
da ideia que as necessidades expressas nas famílias e pelas
famílias são “casos de família” e, por conseguinte, as questões
que afligem as famílias não se circunscrevem no campo da
competência ou incompetência desses sujeitos. A outra mudança
decorrente da nova perspectiva teórica refere-se ao
redimensionamento exigido em relação a ação profissional,
tanto no que diz respeito ao seu alcance como a sua
direcionalidade. Com a possibilidade de postular que as soluções
dos problemas expressos na família e pela família, só se efetivam, de
fato, com a transformação das bases de produção e reprodução das
relações sociais - superação do modo de produção capitalista -
exige-se que a ação profissional seja pensada na sua teleologia.
(MIOTO, 2010, p.165) grifos nossos

Nesse contexto as publicações do Serviço Social sobre família estão


voltadas para aquelas que vivem o processo de exclusão social da sociedade
capitalista brasileira, abordando a temática no enfoque da proteção social e da
relação com as políticas públicas.

Está reposta, portanto a necessidade de continuarmos a reflexão quanto


a produção teórica do Serviço Social, no que se refere as particularidades das
demandas da justiça de família que, inclusive, também abarcam famílias das classes
médias e médias altas, sob um referencial teórico-metodológico que guie uma
prática profissional ancorada nos princípios ético-políticos da profissão.

Gois pondera que pensar família na perspectiva de direitos sociais implica


pensar o recorte de classe social, mas não apenas. Em sua visão, há questões de
família que são transversais à classe social, apontando que na articulação entre

233
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questões universais e singulares, é importante considerar aquelas que dizem


respeito à história e à cultura da família.

Fávero destaca que há pouca produção do Serviço Social sobre a prática


profissional na Justiça de Família, observando-se uma “fragilidade quanto ao
referencial teórico metodológico no desenvolvimento do trabalho, relativo ao objeto,
aos objetivos e instrumentais operativos e analíticos utilizados” (Fávero, 2009,
p.208). Para a autora tal fragilidade se revela por meio da prevalência de laudos
descritivos e pouco analíticos, ou até mesmo com um direcionamento contrário ao
nosso projeto ético-político, quando se reproduz na atuação profissional, por
exemplo, preconceitos relativos a instituição que estamos inseridos e que de certa
forma estão presentes no meio cultural brasileiro.

Fávero ponderou que a atuação do Serviço Social na Infância e


Juventude está mais clara em relação ao projeto profissional, em contraponto à
atuação nas Varas de Família, o que pode gerar angústia profissional.

Analisando as produções de outros grupos de estudos33 que também


tratam de temáticas de Varas de Família com incidência dos temas guarda e suas
modalidades, alienação parental, falsas denúncias de abuso sexual, observamos a
predominância da apropriação teórica do Direito, bem como da Psicologia, embora
vários grupos tenham mais assistentes sociais que psicólogas/os em sua
composição.

Gois ressalta constantes queixas de assistentes sociais sobre a falta de


subsídios para fundamentar os seus laudos e destaca a necessidade do Serviço
Social realizar aportes teóricos compatíveis com a perspectiva social, indicando que
sejam da Sociologia, da Antropologia, da Educação e, eventualmente da Psicologia
Social, se naquele assunto não tiver nada produzido pela área social.

Partindo do pressuposto que um dos eixos identitários do Serviço Social é


a permanente atitude investigativa sobre a realidade social, o grupo realizou, além
dos estudos, também um levantamento de dados a partir de consulta em seus
próprios relatórios e laudos sociais34, com o intuito de compreender e analisar
particularidades das famílias e das demandas da justiça de família que chegam ao

33
Caderno 13 dos Grupos de Estudos disponibilizado em 2016 referente a produção de 2015.
34
Utilizaremos relatório e laudo social como sinônimo.
234
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Serviço Social, bem como refletir sobre o que os conflitos, que emergem nas ações
processuais na justiça de família, trazem como expressões da questão social.

Com isso, este texto35 articula os resultados do levantamento e sua


análise com as reflexões teóricas realizadas ao longo do ano, lançando luzes para
aspectos que devemos atentar em nossos estudos, contribuindo para o
adensamento de registros (relatório, laudo ou parecer social) de modo a retratarem
nossa competência teórica e ético politica em direção à defesa de direitos sociais,
pautado na perspectiva crítica.

1- APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS NA


PESQUISA DE LAUDOS/RELATÓRIOS SOCIAIS
REALIZADA PELO GRUPO EM 2017

Tal levantamento foi realizado por meio de uma amostragem das


intervenções profissionais das assistentes sociais participantes deste Grupo de
Estudos, com objetivo de conhecer aspectos comuns da realidade social dos
usuários da justiça de família contribuindo assim para o aperfeiçoamento de nosso
trabalho na função de perito social judiciário nas Varas das Famílias.

Os critérios estabelecidos para coleta dos dados foram: máximo de dez


relatórios por assistente social, selecionados de forma aleatória, seguindo a ordem
cronológica no período de agosto a novembro de 2016. Foram desconsiderados os
casos de cartas precatórias, por terem informações restritas a apenas uma das
partes envolvidas no processo.

Nesta amostragem pretendeu-se obter informações quantitativas, por


meio de questionário com perguntas/repostas fechadas, referentes a identificação do
perfil dos adultos e das crianças e adolescentes envolvidos nas ações judiciais em
que as assistentes sociais do grupo atuam. Assim foram contemplados três aspectos

35
O texto foi elaborado por Dina da Silva Branchini, Glaucia Cristina de Mello, Martha Albernaz e Rita
Oliveira, recebendo contribuições das demais participantes do grupo, durante leitura coletiva no
ultimo encontro de 2017.
235
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centrais: perfil das crianças e adolescentes, dos adultos envolvidos, e,


procedimentos técnicos utilizados pelas assistentes sociais para o estudo social.

Quanto ao perfil dos adultos envolvidos considerou-se a natureza da ação


da demanda judicial, a caracterização do/a requerente e requerida/o, parentesco
com a criança, sua escolaridade, renda familiar, inserção no trabalho, condição
socioeconômica e composição familiar.

Em relação ao perfil das crianças e adolescentes foram considerados:


faixa etária, quantidade de crianças por processo, com quem moram e quem
contribui para seus cuidados cotidianos na moradia.

Sobre os instrumentais técnicos foram elencados vários procedimentos


sobre os quais pretendíamos realizar uma analise mais detalhada, mas optamos por
deixar de fazê-lo neste momento.

Os dados foram registrados em formulários, utilizando-se ferramenta


disponibilizada pelo Google, transformados em planilha, sendo então gerados
gráficos e cruzamento de dados por meio do PowerBI.36 Optamos por não
apresentar todos os gráficos para não extrapolar os limites e características deste
texto. Em alguns momentos fazemos referências somente aos dados, focando
também apenas os mais representativos.

O levantamento corresponde a 113 laudos e relatórios sociais referentes


a processos judiciais das Varas de Família e Sucessões dos Fóruns de Santo
Amaro-23, Hortolândia- 19, Central – 16, Lapa-13, Poá -11, Mogi das Cruzes- 10,
Jundiaí – 7, Taubaté -5, Cordeirópolis – 4, São Luiz do Paraitinga - 4 e Jacareí – 1.

36
Para a geração de gráficos contamos com a colaboração de Jonathas Albernaz, irmão de uma
participante do grupo.
236
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GRÁFICO 1

Esclarecemos que a maior quantidade de relatórios sociais de origem dos


Fóruns de Santo Amaro, Hortolândia, Central e Lapa se justifica por ter mais de uma
assistente social desses locais participando do grupo de estudos.

Em relação às medidas legais a que se referem os documentos que foram


fonte de coleta de informações destaca-se que a maior demanda referiu-se a
processos referentes a guarda de crianças e adolescentes e suas
modalidades registradas como 56 (49,6%) pedidos de guarda, 16 (14,2%) de
modificação de guarda e 3 (2,7%) de guarda compartilhada; a segunda maior
demanda referiu-se a 19 (16,8%) processos de regulamentação de visitas. A
terceira é a de interdição de adultos- 12 (10,6%) e 7 (6,2%) referem-se a outras
medidas, dentre as quais destacou-se uma demanda inovadora- a de mudança de
sexo e nome no registro de nascimento em função da transexualidade37.

37
Sobre esta temática é possível consultar artigo escrito pelas assistentes sociais Edna Fernandes
da Rocha e Thais Felipe Silva dos Santos intitulado Transexualidades e travestilidades: contribuições
do Serviço Social no exercício da cidadania, publicado no livro Trasnpolíticas Públicas, sob
organização de Antonio Deusivam de Oliveira e Cristiano Rosalino Braule Pinto, Editora Papel Social.

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GRÁFICO 2

Devido ao destaque da demanda relativa à guarda de filhos na Justiça de


Família, optamos por conhecer algumas de suas particularidades. Tal escolha não
significa que desprezemos a importância do trabalho com adultos e idosos com
algum tipo de deficiência, foco das ações judiciais de interdição e curatela, sobre os
quais passamos a tecer algumas considerações, para posteriormente encadearmos
as analises relativas à medida legal da guarda.

2.1 - BREVES APONTAMENTOS SOBRE A DEMANDA DE


INTERDIÇÃO E CURATELA

Dos doze processos de interdição, verifica-se que o encargo dessa


responsabilidade recai majoritamente sobre mulheres: 4 são esposas, 3 mães, 1
filha e 1 sobrinha. Os homens eram 1 filho e 1 sobrinho e em outro processo o
requerente foi o Ministério Público.

A ampliação da expectativa de vida e de famílias unipessoais referenda o


aumento gradativo dessa demanda assim como da complexidade que a envolve.
Destacamos ainda a recente aprovação da Lei da Inclusão que passou a vigorar em
2016 que significou aumento de casos enviados para estudo social por vezes sendo
difícil a identificação do objetivo profissional nestes casos, para além da demanda
institucional.

238
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Sobre as mudanças significativas na composição das famílias brasileiras


reportamo-nos a Gelinski (2015) que, com base no censo demográfico 201038,
observa a diminuição do número de membros por família que se articula com a
queda de fecundidade e o aumento da expectativa de vida, referindo a estimativa de
que em 2040 o país atinja o chamado crescimento zero, diminuindo sua população,
ao mesmo tempo, incrementando a expectativa de vida da população.

Em 1940 a esperança de vida ao nascer no Brasil era de 45,5 anos, em 2010


passou para 73,48 e para 2050 estimativa é de alcançar 81,3 anos. Isso tem
reflexos na estrutura etária da população: se em 2008, para cada 100
crianças de 0 a 14 anos existiam 24,7 idosos de 65 anos ou mais, para 2050
estima-se que para cada 100 crianças de 0 a 14 anos existirão 172,7 idosos.
(GELINSKI, 2015, p. 137).

Outro elemento importante destacado é o aumento do número de famílias


unipessoais que foi o mais expressivo, sendo que “as pessoas que moram sozinhas
representavam 8,6% da população no ano de 2000. Dez anos depois representam
12,1% da população.” (Ibid, p.140)

Em relação ao atendimento do idoso nas ações de Vara de Família


compreendemos que a tendência é o aumento dessa demanda e ainda maiores os
desafios para o profissional, tendo em vista que a família é requisitada como
principal responsável pelos cuidados de seus membros, característica das formas de
enfrentamento do Estado neoliberal, que vem reduzindo os gastos com as politicas
sociais e aumentando a sobrecarga das famílias.

Se atualmente já observamos uma parcela de pessoas em processo de


interdição em que não há mais a possibilidade de pessoa de sua rede de relações
assumir a responsabilidade por seus cuidados e pela curatela, a tendência é o
aumento dessas situações.

A intervenção profissional do/a assistente social nos casos de interdição


deve sobrepor as implicações relativas à incapacidade aliando-se "a um sistema de
proteção social que garanta a esses indivíduos seus direitos sociais de atenção à
saúde, à moradia e à sobrevivência com dignidade, não como seres dependentes,

38
O censo demográfico 2010 define família como conjunto de pessoas que residem no mesmo local,
com laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência
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desprovidos de possibilidades, mas como respeito às suas diferenças como uma


outra forma possível de estar no mundo” (MEDEIROS, 2007, p.106)."39

Concluímos que as ações de interdição requerem atenção para estudos


por parte do Serviço Social, em especial, considerando que a empiria tem
demonstrado que em geral tais processos judiciais vêm sendo encaminhados
somente para estudo social e por fim o levantamento confirma tal apreensão- de
doze somente dois tiveram também avaliação psicológica. Certamente há nessa
demanda uma alargada possibilidade de problematização e contribuição por parte
do Serviço Social, espaço esse que poderá representar importante demarcação da
identidade profissional na Justiça de Família.

2.2 - PARTICULARIDADES DAS CRIANÇAS E


ADOLESCENTES SUJEITOS DO ESTUDO SOCIAL DOS
PROCESSOS RELACIONADOS A GUARDA: NO MELHOR
INTERESSE DA PRIMEIRA INFÂNCIA

Como vimos no Gráfico 2 a regulamentação ou modificação de guarda


somam as medidas legais mais ocorrentes na atuação do assistente social judiciário,
seguida da regulamentação de visitas e da interdição. Tomando como referência a
Lei nº 11.698/2008 da guarda compartilhada e o Código Civil (Lei n. 10.406, de 10
de janeiro de 2002), que expressa nos artigos 1.583 e 1.584, a igualdade de direitos
do pai e da mãe no que se refere à guarda dos filhos, assistimos o aumento da
procura de modificação da guarda, que era compreendida como natural encargo
materno.

No caso da disputa judicial pela guarda da criança ou do adolescente,


esta parece ocupar um lugar de disputa hierárquica de poder, seja o poder do
cuidado ou da gestão dos cuidados da criança, que têm sido culturalmente

MEDEIROS, Maria Bernadete de Moraes – INTERDIÇÃO CIVIL: PROTEÇÃO OU EXCLUSÃO? –


39

São Paulo: Cortez 2007.


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destinado e incorporado pela mulher, enquanto ao homem cabia o poder como


provedor.

É significativo o índice apontado neste levantamento referente às ações


de modificação de guarda. Analisando especificamente tal demanda, observamos
que de 16 processos, o pai era requerente a modificação em 12 deles; a mãe em
três e o avô paterno em um. Aqui se evidencia a predominância do pai como
requerente a guarda, diferentemente do equilíbrio que observamos no cômputo total
de guarda e suas modalidades. O que significaria a mudança reivindicada pelo
genitor? Seria a busca por efetivar os mesmos direitos da mãe em relação à gestão
dos cuidados, a crítica aos cuidados prestados pela mãe ou, estaria atrelada a
resistência ou impossibilidade de transferir para a mãe a gestão do valor referente
aos alimentos? Estas questões estão postas como possibilidades de pesquisas a
serem empreendidas pelo Grupo de Estudos ou por assistentes sociais que atuam
nas Varas de Famílias. De qualquer forma a guarda parece ser o espaço privilegiado
de disputa de poder nas relações familiares, em casos de separação conjugal.

Embora a quantidade de ações intituladas como guarda compartilhada


seja pequena, não se pode inferir que tal demanda seja reduzida, haja vista que os
processos denominados simplesmente como guarda também podem se referir a
guarda compartilhada. No entanto, não tivemos este foco para o levantamento.

A contribuição para que os envolvidos ampliem sua compreensão sobre a


guarda se coloca na dimensão socioeducativa de nossa profissão, o que extrapola a
função do/a perito/a, superando a visão recorrente do perito/a como o que ouve,
observa e relata como um profissional não interventivo. Fávero observa que perito é
aquele/a que detém o saber sobre determinada área, no nosso caso o Serviço
Social, destacando que mesmo ao realizar uma perícia estamos de alguma forma
intervindo na vida dos sujeitos.

Gois defende a guarda compartilhada como premissa mas problematiza a


questão ilustrando com um atendimento de uma mãe que não aceita a ideia, embora
reconhecesse o pai como um “bom pai”. Ao buscar na história da família concluiu
que a mãe tinha sido criada numa organização de família patriarcal onde era muito
claro que a centralidade de cuidados dos filhos era da mulher-mãe. Tais valores

241
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foram transmitidos a ela e também para a filha cuja guarda se discutia. Ou seja: um
valor transmitido por três gerações.

A pesquisadora ressalta que é importante analisarmos como as famílias


compõem os antigos legados com as perspectivas contemporâneas e para isso
precisamos acionar um repertório de fundamentos e conhecimentos teóricos,
identificando os pontos centrais e os periféricos para a análise social. Segundo ela
as famílias contemporâneas são mais complexas porque dispõem dessas
ramificações.

Em relação à alienação parental, que também teve recente aprovação em


lei, embora não tenha surgido no levantamento ação judicial que assim se
intitulasse, não significa que não fizesse parte das alegações nos processos judiciais
de guarda. Fávero ressalta que o profissional não deve restringir o planejamento do
estudo social aos procedimentos metodológicos com o objetivo de fornecer provas,
esta é a finalidade institucional, mas é fundamental que articulemos nossa atuação
nesses processos à finalidade profissional. O registro é fundamental para subsidiar a
decisão judicial, porém outra importante dimensão ético-política de nossa atuação
pode se realizar no processo de elaboração do estudo social junto aos envolvidos.

A regulamentação de visitas aparece de forma secundária em relação à


guarda em 19 processos. Tal demanda é de extrema relevância em relação aos
direitos da criança, pois se refere ao direito de convivência familiar e comunitária. A
princípio poderíamos inferir que o número de pais a requerer tal medida seria maior
que o de mães, entretanto houve um equilíbrio entre pai e mãe: nove requerentes
eram pais, oito eram mães e dois eram avós paternas, o que gera alguns
questionamentos: como tem sido compreendido pelos pais e mães o cumprimento
desta medida e a importância da convivência familiar do/a filho/a com as respectivas
famílias que fazem parte de sua origem e que contribuem para seu processo de
socialização? Tal pedido poderia indicar que tanto o pai como a mãe pode estar
tendo dificuldades de conviver com a/o filha que não está sob sua guarda? Poderia
ser um indicativo que coloca em cheque a ideia de que as mulheres-mães sejam as
que praticam atos indicados na lei como de alienação parental, como o afastamento
filho/a-pai? Este também é um indicativo importante para pesquisas.

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Buscando identificar algumas particularidades da maior demanda para


estudo/perícia social, realizamos a análise geral dos dados referentes aos processos
judiciais de guarda (56), modificação de guarda (16) e guarda compartilhada (3) que
envolviam 115 crianças e adolescentes.

Do total de 75 processos pesquisados, a maioria versa sobre apenas uma


criança ou adolescente (60%), seguida de duas (32%). O fato de a maioria
corresponder a uma criança ou adolescente não remete de imediato a serem filhos
únicos, mas é um dado que merece maior aprofundamento, pois pode revelar as
diferentes configurações familiares em que tais sujeitos possam estar inserida/os.

Enquanto 58,6% das crianças e adolescentes moram com o/a requerente,


outros 32% moram com o/a requerido e 7% alternam moradia com ambos. No
decorrer falaremos quem são requerentes e requeridos.

Em relação à faixa etária das crianças e adolescentes destaca-se aquela


correspondente à primeira infância, período determinante para o desenvolvimento
humano que tem gerado atenção especial dos governos. Em 2016 ocorreram
mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente com o objetivo de incorporar a
atenção pública para tal faixa etária especialmente em relação ao atendimento da
saúde, educação e convívio familiar e comunitário.

Das 115 crianças e adolescentes sob disputa de guarda, 36% (41)


estavam na faixa de 0 a 6 anos, 30% (34) de 7 a 9 anos, 19% (22) de 10 a 12 anos,
11% (13) de 13 a 15 anos e 4% (5) de 16 a 18 anos.

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GRÁFICO 3

Idade das Crianças em disputa de guarda


16 a 18 anos
5
13 a 15 anos 4%
13
11%
0 a 6 anos
41
10 a 12 anos
36%
22
19% 7 a 9 anos
34
30%

A relevância da primeira infância e da faixa etária entre sete e nove anos


coloca em destaque a importância dos fundamentos teóricos sobre socialização de
crianças na realização do estudo social.

Gois pondera que os pais indicam o padrão de sociabilidade, que está


diretamente associado ao processo de socialização dos filhos. A forma como os pais
foram socializados repercute na vivência dos filhos. Segundo a mesma, a
compreensão da forma de organização da família de origem pode ser importante
nesse sentido.

A partir dos indicativos de Gois estudamos sobre a socialização primária e


secundária conceituada por Berger & Luckmann (1985).

Grande parte das crianças a que se refere o levantamento está na fase da


socialização primária, que é a que introduz “... um indivíduo no mundo objetivo de
uma sociedade ou de um setor dela. (...) é a primeira socialização que o indivíduo
experimenta na infância, e em virtude da qual torna-se membro da sociedade”
(Berger & Luckmann, 1985, p.175). Tal processo se dá em família por meio da
linguagem, é permeado por emoções e é considerado determinante na vida dos
indivíduos.

244
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Os autores apontam que na socialização primária não existe a


possibilidade de “escolha de outros significativos40” ou “outro arranjo” para a criança
além daqueles que lhe são apresentados. “(...) embora a criança não seja
simplesmente passiva no processo de sua socialização, são os adultos que
estabelecem a regra do jogo. (...) Desde que a criança não tem escolha ao
selecionar seus outros significativos, identifica-se automaticamente com eles. Pela
mesma razão, a interiorização da particular realidade deles é quase inevitável. “A
criança não interioriza o mundo dos outros que são significativos para ela como
sendo um dos mundos possíveis. Interioriza-se como sendo o mundo, o único
mundo existente e concebível (...)”(ibid., p. 180). Assim, como o mundo da infância é
o único, o real, sua confiança será estabelecida com as pessoas “significativas” – o
adulto próximo, com as definições que este dá às situações, e que possibilita a ela
segurança. (ibid.).

Outra referência teórica sobre socialização pode ser localizada no texto


do Plano de Convivência Familiar e Comunitária - PNCFC que ressalta que do
convívio social da criança faz parte a interação com adultos mas também com outras
crianças (por meio do brincar), determinante para seu processo de socialização.
Nessa relação a criança percebe os papéis familiares e sociais, as diferenças de
gênero, as regras, aprende a controlar sua agressividade, a discernir entre fantasia e
realidade, a cooperar, a competir e a compartilhar, dentre outras habilidades
importantes para o convívio social.

Nessa perspectiva o PNCFC destaca a importância do papel da família41


no processo de socialização da “criança pequena”:

(...) é ela quem mediará sua relação com o mundo e poderá auxiliá-la a
respeitar e introjetar regras, limites e proibições necessárias à vida em
sociedade. O modo como os pais e/ou os cuidadores reagirão aos novos
comportamentos apresentados pela criança nesse “treino socializador”, em
direção à autonomia e à independência, influenciará o desenvolvimento de
seu autoconceito, da sua autoconfiança, da sua auto-estima, e, de maneira
global, a sua personalidade. (PNCFC, 2006, p.27)

40
No caso da criança, os outros significativos são os adultos responsáveis por educa-la, são os que
estabelecem as condições iniciais, ou prévias, à sua vida.
41
O PNCFC tem como importante diretriz o controle social das políticas públicas, reconhecendo que
para a família proteger seus membros, deve ser destinatária da proteção social do poder publico.
245
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Considerando que 30% das crianças, sujeitos de nossos estudos sociais,


estão na faixa etária de 7 a 9 anos, torna-se fundamental também a compreensão
de como se dá a socialização secundária da criança em estudo. Berger & Luckmann
(1985, p.175) a tomam como qualquer processo subsequente que introduz um
indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade,
dando destaque para a sociabilidade vivenciada na instituição escolar e outros
espaços institucionais onde não apenas adultos se tornam referências de
socialização, mas também outras crianças, seus pares, que possibilitam trocas
fundamentais para a constituição do ser social.

Daí a importância de desenvolver nos estudos sociais, a compreensão da


família e suas inter-relações como parte de uma rede de sociabilidade, interagindo
com diferentes grupos sociais e etários, destacando a importância dos jogos infantis
entre as próprias crianças e na relação com adultos como parte do processo de
socialização.

A partir do momento em que começa a frequentar outros contextos sociais,


além da sua família, como o estabelecimento de educação infantil ou de
ensino fundamental, a criança tem os seus referenciais sociais e culturais
ampliados. Segundo Mussen (1977), nesse período, ela constrói novos
relacionamentos e é influenciada por novos estímulos: educadores,
companheiros da mesma idade, livros, brinquedos, brincadeiras e mídia. Suas
habilidades cognitivas aumentam e tornam-se mais complexas e
diferenciadas. Todavia, apesar dos novos relacionamentos propiciados por
outros contextos sociais, as relações familiares permanecem centrais para a
criança, sendo preponderantes para a construção de sua identidade e
capacidade para se relacionar com o outro e o meio. (PNCFC, 2006, p.26/27)

2.3 - A CENTRALIDADE DA MULHER NOS CUIDADOS DAS


CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Sobre os cuidados dos filhos no cotidiano domiciliar destacou-se que 53%


(40) dos responsáveis contam com apoio de pessoa que mora na casa, 25% (19) de

246
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pessoa que colabora nos cuidados, mas não mora na casa e 19% (14) não contam
com tal apoio.

Em relação a identificação sobre quem seria a pessoa que apoia nesse


cuidado cotidiano, os dados expressaram a questão de gênero e a feminização dos
cuidados, além da centralidade das avós nessa tarefa fundamental para a
reprodução social da família. Destaca-se a presença da avó materna em 42% (35),
seguida da avó paterna em 14% (12), de funcionária em 14% (12) e da madrasta em
12% (10).

Cruzamos os dados para compreender como os pais e as mães


(requerentes) se organizavam para os cuidados do filho/a que mora consigo. Nossa
ideia inicial era a de que encontrariamos mais mães que pais cuidando dos/as
filhos/as sem contar com apoio de pessoas que morassem na casa. Entretanto, tal
dado é semelhante para ambos:

- dos 9 pais requerentes, 5 contam com a avó paterna na moradia para


cuidar, três não contam com ninguém, três contam com madrasta e um com babá;

- das 23 mães requerentes, 11 contam com a avó materna na moradia


para cuidar, 4 contam com irmã/o da criança, três com babá, três não contam com
ninguém e um com o padrasto.

Tais dados indicam que tanto o pai como a mãe, possivelmente a partir da
separação conjugal, retome o convívio com sua respectiva mãe, contando com a
mesma para dar conta da reprodução social e material da vida familiar. Tal
conclusão nos remete a refletirmos sobre o significado do arranjo familiar para as
relações que se estabelecem entre os seus membros.

Gois aponta ser um equívoco pensar que devido a separação conjugal as


pessoas envolvidas deixam de ser família nuclear biparental - a menos que, após a
separação, ocorra um corte na ligação com um dos ramos parentais. Assim a
a separação conjugal não torna a família monoparental. A família monoparental é
aquela que já teve um corte, uma ruptura na relação, ficando os filhos em contato
somente com um dos ramos parentais.

Reportando-se a contribuição do IBGE para a contagem das famílias,


Gois discorre sobre as particularidades das famílias conviventes nas quais vários

247
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

núcleos conjugais residem na mesma casa. Nesse arranjo pode ocorrer mais
conflitos relacionados às regras de convívio e autoridade, questões essas
importantes para nossa compreensão quando realizamos o estudo/perícia social de
determinada família, inclusive para que eles próprios possam compreender melhor
os conflitos que vivenciam. Em relação a família extensa na qual convivem no
mesmo teto avós, netos e filhos se destaca a relação entre duas ou mais gerações
convivendo, o que também pode representar conflitos e tensões a serem
compreendidos no estudo social.

Gois pondera que a organização de uma família tem a ver com questões
morais, regras, inclusive financeiras, requerendo a compreensão da dinâmica
desses núcleos a partir de um refinamento de entendimento capaz de garantir
profundidade de análise.

Outro dado que referenda ainda mais a feminização desses cuidados foi o
resultante da identificação de quem seriam as pessoas (requerentes e
requeridos/as) com quem residem: 54,7% (41) das crianças e adolescentes moram
com as mães42; 17,3% (13) residem com os pais43; 16% (12) moram com avós;
sendo 9,3% (7) maternas e 6,7% (5) paternas, e outros 6,7% (5) alternam moradia
com mãe e pai.

Ao totalizarmos a quantidade de crianças e adolescentes sob disputa


judicial aos cuidados de mulheres temos que 71% delas moram com pessoas do
sexo feminino.

O predomínio das mulheres no cuidado das crianças desvela a questão


das relações de gênero como uma das manifestações das desigualdades sociais no
processo histórico da sociedade capitalista, na qual o lugar ocupado pelas mulheres
tem sido o de subalternidade. A identificação de certas atividades não só na esfera
privada, mas também pública leva-nos a refletir sobre a feminização de algumas
profissões, ocupadas predominantemente por mulheres, como o caso do Serviço
Social, cuja origem está atrelada a uma visão de atividade “tipicamente” feminina.

42
Dentre elas 22 são requerentes e 19 são requeridas no processo.
43
Dentre eles 9 são requerentes e 4 são requeridos no processo.
248
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Mirla Cisne44 tem problematizado a questão da identidade profissional a


partir da relação de gênero, sendo uma profissão formada majoritariamente por
mulheres e com uma atuação voltada predominantemente para as mulheres, o que
traz à tona a feminização como elemento de desvalorização do papel da mulher em
relação ao homem, ao mesmo tempo em que há uma sobrecarga de
responsabilidade social sobre as mulheres, quer no âmbito da proteção familiar quer
na atuação social.

O problema não reside em ser majoritariamente composto por


mulheres e sim, ser considerada uma profissão feminina e como tal,
sermos cobradas para corresponder a “qualidades” consideradas
“naturalmente” femininas para ser uma assistente social, como a
sensibilidade, a capacidade de acolhimento, a bondade, etc. Isso
contribui para a construção de um perfil vocacional e não profissional.
Tal perspectiva vocacional nos desvaloriza como trabalhadoras
especializadas, com formação de competência profissional.
Outra preocupação é que esse sentido vocacional se agrega à uma
perspectiva conservadora e moralizante - tal qual o perfil das pioneiras
do Serviço Social –, que responsabiliza as mulheres individualmente
pelas expressões da questão social, contrariando o perfil de
profissionais críticas/os defendido pelo nosso projeto ético-político.

Seguindo sua reflexão, a desvalorização profissional é refletida nos


baixos salários às mulheres trabalhadoras, inferiores em média, aos dos homens,
ocorrendo uma divisão sexual do trabalho: “os trabalhos e as atividades
consideradas femininas são desvalorizados e se concentram no campo da
reprodução social, e os considerados masculinos são mais valorizados e se
concentram mais na esfera da produção direta do valor.”

Certamente uma das decorrências para a mulher refere-se diretamente a


questão de renda e inserção social das mesmas, tendo em vista que o trabalho de
cuidar, principalmente no âmbito doméstico não recebe, muitas vezes,

44
Mirla Cisne – trecho de entrevista exclusiva ao CRESS-MG, em função do Dia das Mulheres. No
dia 8 de março de 2017. Acessível em:
http://www.cress-mg.org.br/Conteudo/c321f5fc-51d1-45ee-85f9-28ef74bf9be3/Serviço-Social-e-as-
mulheres-uma-profissão-construída-por-elas! É autora do livro “Gênero, divisão sexual do trabalho e
Serviço Social”, Ed. Outras Expressões (2012).

249
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

reconhecimento social e financeiro. Mas e para as crianças, o que significa essa


centralidade feminina em seus cuidados? Quais as decorrências para seu processo
de socialização? Tal questionamento precisa estar presente a cada estudo social
que realizamos.

2.4 - DADOS SOCIOECONÔMICOS DOS PAIS E MÃES


REQUERENTES/REQUERIDO(A)S A GUARDA DO(A)S
FILHO(A)S

Das pessoas que requereram a guarda dos filhos, 53% (28) eram mães e
47% (31) eram pais, podendo-se concluir que houve equilíbrio entre os requerentes,
apesar de pequena prevalência do número de pais. Em relação a quem foi
requerido(a) temos que as mães (42) superam numericamente os pais nessa
condição (32).

A empiria nos mostra que tanto aquele que está cuidando da criança
como o que não está, podem ser requerentes a sua guarda, mas a incidência maior
é da primeira situação por ser recorrente o pedido de guarda para regularizar a
situação assim que ocorre a separação. Este levantamento comprova tal apreensão
do cotidiano mas chama a atenção quanto as diferenças entre a situação do pai-
requerente e da mãe-requerente.

Da maioria das mães requerentes a guarda 82% (23 de 28) estava com a
criança/adolescente sob seus cuidados e apenas cinco (18%) não moravam com a
filha/filho, requerendo nesses casos que deixassem a casa do requerido. Dos pais
requerentes a guarda somente 9 de 31 estavam com o filho/a sob seus cuidados,
58% (18) não estavam e 13% (quatro) compartilhavam cuidados com a mãe. Assim,
é possível concluir que, quando a mãe é a requerente da guarda, a tendência é que
esteja com o/a filho/a sob seus cuidados, porém o mesmo não ocorre com o pai,
sendo que os dados do levantamento indicam que a maioria deles não estava com a
guarda do/a filho/a requerendo portanto que saíssem do convívio com as mães. Este
seria um importante enfoque para pesquisa pois certamente indica questões
relacionadas à desigualdade de gênero que precisam ser melhor compreendidas.
250
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Dando seguimento a apresentação dos dados, importante registrar que a


intenção inicial era sistematizar particularidades das pessoas que requeriam ou
eram requeridas nos processos judiciais em relação a alguns aspectos de sua
inserção social: a) configuração da família no domicílio (unipessoal feminina e
masculina, mulher/homem sem cônjuge com filho, casal com/sem filho, três ou mais
gerações, outros), b) escolaridade e renda familiar, c) profissão/ocupação, d)
inserção no mercado de trabalho (autônomo, com ou sem vínculo empregatício, fora
do mercado de trabalho, desempregado, outros). Deixamos de contabilizar os itens
"a" e "c" respectivamente por inconsistência nos registros e dificuldade quanto a
categorização das profissões.

Sobre a escolaridade:

- das mães requerentes a guarda: 43% (12) tinham o ensino médio


(completo ou não), 18% (5) ensino superior (idem) e 14% (4) pós-graduação
(advogada medica e psicóloga);

- das mães requeridas: 33% (14) possuíam ensino médio (completo ou


incompleto), 26% (11) ensino superior (idem), 2% (1) possuía pós-graduação e
sobre 21% (9) não temos informação.

- dos pais requerentes a guarda: 42% (13) tinham ensino médio (completo
ou não), para 35% (11) não havia a informação, 32% (10) ensino superior (completo
ou não), 2 pós-graduados.

- dos pais requeridos - 18,75% tinham ensino superior (completo ou não),


12%(5) ensino médio e 12%(5) ensino fundamental I.

Da escolaridade dos pais e mães requerentes a guarda, portanto,


constatamos que o ensino médio completo se destaca para ambos, índice superior
ao da média da população brasileira na região sudeste, de 8,4 anos (PNAD 2015).
Já em relação ao ensino superior o destaque é para os pais (quando é requerente e
especialmente quando é requerido), contrariando a tendência das mulheres
estudarem mais que os homens. Poderia significar que para mulher o casamento e
os filhos implicaram na suspensão do prosseguimento dos estudos além do nivel
médio, enquanto o contrário se deu para o homem? Será que levamos em
consideração tal questão em nossos estudos sociais?

251
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Também chama a atenção o alto número de falta de informação sobre a


escolaridade dos pais requerentes e das mães requeridas. Qual o significado dessa
ausência nos estudos sociais?

Quanto a renda familiar e a inserção no trabalho:

- das mulheres- mães requerentes: 61% (17) delas estavam na faixa de 1


a 3 salários mínimos e 11% (3) na faixa de 16 salários mínimos ou mais, as quais
correspondiam às pós-graduadas. Sobre a inserção no trabalho, 42% (12) mães
tinham vínculo empregatício e 25% (7) estavam fora do mercado de trabalho. Para
várias das últimas havia a indicação de serem "do lar".

- dos homens – pais requerentes: 23% (7) deles se inseriam na faixa de 1


a 3 salários mínimos, 16% (5) de 4 a 6 salários mínimos, 16 % (5) sem informação e
6% (2) acima de 10 salários mínimos. Sobre a inserção no trabalho: 45% (14) tinham
vínculo empregatício, 29% (9) eram autônomos (dentre eles alguns empresários),
13% (4) sem vínculo empregatício, e 6% (2) fora do mercado de trabalho.

Para ambos o destaque se dá na faixa de 1 a 3 salários mínimos, porém


enquanto 23% dos pais aí se incluiam, as mães somavam 61%, possivelmente
indicando a desigualdade de gênero quanto aos salários, visto que os requerentes
homens-pais são melhores remunerados do que as mulheres-mães, apesar de
possuírem em sua maioria nível de escolaridade similar.

A relação de desigualdade entre homens e mulheres no mercado de


trabalho reduziu um pouco em 2015 em relação ao ano anterior, com
a queda generalizada do rendimento, mas as mulheres ainda
recebiam em média 76% do rendimento dos homens (IBGE, 2016,
p.77).

Se articularmos os dados significativos da mulher-mãe em relação ao


homem-pai – renda inferior, saida do mercado de trabalho para cuidar da casa e dos
filhos/as, não inserção no ensino superior – é possível concluir que casamento,
maternidade e separação conjugal impactam negativamente a vida socioeconomica
da mulher e por consequência de toda família.

252
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

3 – CONCLUSÃO

O trajeto percorrido ate aqui pelo Grupo de Estudos nos mostrou que há
ainda muito a se aprofundar no que diz respeito a aportes teóricos sobre família
condizentes com o projeto ético politico do Serviço Social, tais conhecimentos
podem enriquecer nossos estudos e analises que devem estar sempre direcionadas
a defesa dos direitos [sociais] dos usuários.

Os conflitos que emergem nos processos judiciais que se envolvem direta


ou indiretamente a guarda e o convívio familiar entre pais e filhos após a separação
conjugal convocam nossa atenção para a singularidade presente em cada caso e
mais especificamente para as relações internas entre os membros da família, nos
levando facilmente ao enfoque de aspectos conflitivos intrafamiliares. Com isso
podemos estar reproduzindo em nossos estudos sociais uma visão sobre a família
que a toma como uma instância em si mesma e como “objeto terapêutico”, conforme
denomina Mioto (2010), contraditando os pressupostos do projeto profissional do
Serviço Social.

Ao realizarmos o movimento investigativo com base em nossos próprios


relatórios e laudos sociais particularizando as demandas que nos chegam e a
realidade social dos sujeitos de nossos estudos, fizemos o movimento dialético de
partirmos da singularidade para a particularidade, o que propicia que voltemos aos
nossos atendimentos individuais com indicativos importantes de análise e possíveis
direcionamentos do estudo social, assim como para imprescindíveis pesquisas na
área.

Os resultados do levantamento indicaram temáticas importantes -


relações de desigualdade de gênero dada a centralidade do cuidado feminino sobre
crianças, adolescentes e interditos, socialização na primeira infância, aumento das
demandas de interdição articulado ao envelhecimento e as doenças crônicas, a
família extensa e o convívio intergeracional com destaque para o significado da
presença da avó nas famílias - que precisam ser melhor estudadas e
problematizadas pelo Serviço Social nas produções do âmbito sócio-jurídico, bem
como demonstrou a necessidade de se conhecer os sujeitos dos autos
considerando-os como indivíduos sociais que fazem parte de um contexto social,

253
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

político, econômico e cultural com suas determinações estruturais e históricas para


além das singularidades individuais.

Concluímos que importante demarcação da identidade do Serviço Social


no processo de trabalho junto as demandas de guarda na Justiça de Família tem
relação com a análise e os desdobramentos da desigualdade de gênero presentes
na realidade social das famílias que disputam a guarda de filhos/as e que não tem
imediata visibilidade nos conflitos que se apresentam nessas demandas, exigindo de
nossa parte complexas mediações.

A feminização dos cuidados e suas decorrências é algo que devemos


problematizar nos estudos e laudos sociais, temática que, por sua prevalência e
importância deve ser mais estudada e discutida por nós assistentes sociais, visto
que além de impactar a inserção no mercado de trabalho e a remuneração da
mulher, conforme Síntese dos Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística -IBGE de 201645, também afeta sua qualidade de vida haja
vista acumular o trabalho domestico com o mercado de trabalho.

[...] as atividades relacionadas com os afazeres domésticos e cuidados


têm impacto na inserção no mercado de trabalho, principalmente para
as mulheres. Essa articulação entre os dois tipos de trabalho
remunerado e não remunerado tem impactado o bem-estar social das
mulheres. Assim como ressalta a Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe - Cepal (Comisión Económica para América
Latina y el Caribe - Cepal) (GÉNERO..., 2009), na medida em que não
há novas alternativas privadas ou sociais de redistribuição do cuidado
dentro do domicílio, nem uma maior participação dos homens em tais
atividades, associado ao fato que as jornadas de trabalho são pouco
flexíveis, as tensões relativas aos ajustes de “tempos” se intensificam,
reduzindo o bem-estar e a qualidade de vida das mulheres. Os
resultados da PNAD em relação às jornadas no mercado de trabalho e
o cuidado com afazeres domésticos mostram que os padrões de
gênero na sociedade brasileira permaneceram praticamente
inalterados na última década. (Síntese... 2016, sem identificação de
página, capítulo Trabalho)

45
A síntese dos indicadores sociais do IBGE 2016 está disponível para consulta
file:///C:/Users/Asus/Desktop/ind%20sociais%20ibge%202016.pdf
254
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Embora seja de conhecimento generalizado que as mulheres têm salários


inferiores aos dos homens e que, apesar das mudanças legais e da reinvindicação
dos pais por também cuidarem dos/as filhos/as, ainda há uma prevalência nos
cuidados pelas mães e que, os resultados do levantamento realizado explicitaram a
desigualdade das relações de gênero e escancararam tais questões. As
consequencias dessas desigualdades certamente não se restringem às mulheres e
sua família, mas também a toda sociedade. Resguardada a autonomia profissional e
as particularidades de cada caso, consideramos que tal questão deva estar na pauta
dos debates profissionais em busca da igualdade parental entre homens e mulheres
como uma perspectiva de projeto societário.

Concluindo, consideramos que a intervenção profissional comprometida


transcende o sentido, por vezes, asséptico e determinista da perícia e com o devido
planejamento e escolha adequada de instrumentos técnico operativos, que nos
permitam aproximar de forma responsável dos sujeitos e famílias, podemos
conhecê-los mais do que superficialmente, identificar questões e promover
reflexões.

Longe de encerrar qualquer discussão o presente trabalho lança luz sobre


questões que, ainda que conhecidas, por vezes são negligenciadas nos estudos
realizados e documentos produzidos a partir desses estudos, entendemos que
registros que contenham análises teoricamente embasadas são também um modo
de demarcar nossa identidade e competência teórica em uma instituição onde seus
agentes nem sempre demonstram compreender a finalidade do Serviço Social.

255
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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FERNANDES, F. A. (trad.). Petrópolis : Vozes, 1985.

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parental e altera o art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (DOU de
27/08/2010). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Lei/L12318.htm.

______. Lei Federal no 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas


públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de
1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, a Lei no 11.770, de 9
de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5 de junho de 2012. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm.

_______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria


Especial dos Direitos Humanos. Plano Nacional de Convivência Familiar e
Comunitária. Brasília-DF, 2006.

CISNE, Mirla. Trecho de entrevista exclusiva ao CRESS-MG, em função do Dia das


Mulheres. No dia 8 de março de 2017. Acessível em: http://www.cress-
mg.org.br/Conteudo/c321f5fc-51d1-45ee-85f9-28ef74bf9be3/Serviço-Social-e-as-
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FÁVERO, Eunice T. Famílias, Serviço Social e Justiça: apontamentos sobre


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FÁVERO, Eunice; GOIS, Dalva A. (Orgs.) Serviço Social e temas sociojurídicos:


debates e experiências. Coletânea Nova de Serviço Social. Rio de Janeiro: Lumen
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famílias brasileiras e a proteção desenhada nas políticas sociais. In: MIOTO,
Regina Celia; Marta Silva CAMPOS; Cassia Maria CARLOTO (Orgs). Familismo,
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256
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

GOIS, Dalva A. de. Famílias, desenraizamento social e privação de direitos. In:


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MIOTO, T. C. R. Família. Trabalho com Família e o Serviço Social. SERV. SOC.


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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. ESCOLA JUDICIAL DOS


SERVIDORES. CADERNOS DOS GRUPOS DE ESTUDOS, No. 13. Ano 2016.

257
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ASPECTOS DA EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA E SEUS


REFLEXOS NOS CONFLITOS FAMILIARES
JUDICIALIZADOS

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“VARA DE FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

258
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Cristina Benedetti Sampaio – Assistente Social Judiciário – Varas de Família Foro
Central

Wadson do Carmo Alonso – Psicólogo Juiciário – Comarca de Santo André

AUTORES

Ana Paula da Silva Barbosa- Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí

Carmem Sylvia de Barros Pereira Camargo – Psicóloga Judiciário – Foro Regional


de Pinheiros

Claudia Gavião Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itapetininga

Edna Fernandes da Rocha Lima – Assistente Social Judiciário – Varas de Família do


Foro Central

Elenir Nascimento de Carvalho – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ubatuba

Eliana Aparecida D. Giacobino – Assistente Social Judiciário – Comarca de Botucatu

Eliana Cléia dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Itanhaém

Geisa Nascimento Guidolin e Lazarini – Assistente Social Judiciário – Varas de


Família do Foro Central

Karen Schurhaus da Silva – Assistente Social Judiciário – Foro Regional de


Pinheiros

Luciane Lilian Pereira Salgado – Psicóloga Judiciário – Comarca de Itanhaém

Maria Aparecida Fachin – Psicóloga Judiciário – Comarca de Fernandópolis

Maria Elaine Martins – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sorocaba

Paula Silveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Praia Grande

Rodrigo Bronze dos Santos – Psicólogo Judiciário – Comarca de Mairiporã

Salvador Loureiro Rebelo Júnior – Psicólogo Judiciário – Foro Regional do Ipiranga

Sandra Aparecida Donaire – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jales


259
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Num mundo letrado, ser adulto implica ter acesso a segredos culturais
codificados em símbolos não naturais. Num mundo letrado, as crianças
precisam transformar-se em adultos.” (POSTMAN, 1999, p. 27)

INTRODUÇÃO

“Por que existem processos judiciais incitados por conflitos entre pais e
avós a respeito da Guarda de crianças?”.
Tentando encontrar uma compreensão (ou muitas), elencou-se que os
três agentes inalteráveis dentro de uma família precisariam ser investigados, sendo
eles: os avós, os pais e os netos.
As reflexões no grupo de estudos Vara de Família trouxeram diversas
hipóteses e questionamentos sobre este universo compartilhado entre profissionais
do Judiciário. O que motiva tais processos? Existiriam desejos por parte dos avós de
reparar o mal que fizeram a seus filhos, investindo-se agora em seus netos? Por
outro lado, existe outro universo de avós, comumente encontrados nos casos de
Vara da Infância onde são tidos como uma alternativa saudável para a criança,
sendo assim, qual o nosso papel e lugar neste paradoxo? Qual o papel do Estado
nestas famílias?
Contudo, ao tentarmos encontrar as respostas para estas perguntas,
compreendemos que algo muito mais amplo precisaria ser entendido: a família.
Partimos do microcosmo das Varas de Família para buscar respostas sobre a
identidade desta Instituição secular.
Tendo em vista a pluralidade de situações, decidiu-se buscar as origens
das tramas sociais em que estas pessoas vieram se constituindo, para hoje
despontarem nas disputas de guarda.

260
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - BREVE PERCURSO HISTÓRICO SOBRE A INFÂNCIA E AS


FAMÍLIAS

Segundo Mello (2002) a família, qualquer que seja a forma, é influenciada


pelas regras sociais, ajustando os sujeitos na vida organizada da sociedade. A
socialização põe ordem, estabelece categorias, permite organizar o caos por
intermédio da linguagem, colocando cada coisa em seu lugar, atribuindo qualidades
e valores, da forma como estão impressos nas relações humanas.
Finda a Antiguidade Clássica até a invenção da tipografia, adultos e
crianças se comunicavam num contexto social sem fronteiras, onde sexo,
brincadeiras e histórias eram compartilhadas igualitariamente. Todos viviam no
mesmo mundo social e intelectual. Crianças existiam, inexistente era o
sentimento de infância.
O surgimento da tipografia e do livro impresso permitiu as pessoas
adentrarem em um contexto psicológico de privacidade, criando uma delimitação
entre conteúdo do adulto e da criança. Surgem os segredos e necessidade de
mantê-los (POSTMAN, 1999).
Postman cita Ariès ”Quando o modelo de infância tomou forma, o modelo
de família moderna tomou forma também”. (1999, p. 58), ou seja, tudo que afetou a
sociedade para criar a Infância moldou também a família moderna.
A família foi encarregada de novas funções educacionais e religiosas,
houve uma reformulação do relacionamento dos pais com os filhos, aumentou para
os pais as expectativas e responsabilidades por serem os tutores, guardiões,
protetores, mantenedores, punidores, árbitros do gosto e da retidão.
Roudinesco (2003) considera a emergência do termo “parentalidade” a
partir de 1970 para definir o pai segundo sua qualidade ou faculdade de alcançar
uma função dita parental. Isso resultou em um universo funcionalista de onde fora
destituído todo o sentido do trágico da experiência humana simplificando-a num
reducionismo da família a um “empreendimento de planejamento jurídico-
comportamental”, tomados por um meio de circunscrever valores da família
pretensamente cunhados por um modelo funcional de ciência e adotados pelo
consumismo das classes médias. A autora compreende que essa atitude
positivista buscava controlar a desconstrução espontânea da família ocidental,

261
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

reação à grande onda de contestação antiautoritária e antifamiliarista ocorrida entre


1965 e 1975.
Produto da revolução da condição feminina, o divórcio evidenciava que
o casamento perdia efetivamente a sua força simbólica, sendo cada vez mais
assimilado a um rito festivo, representando um contrato mais ou menos duradouro
entre duas pessoas. Daí o surgimento da noção de família recomposta, da
expressão “família monoparental” e da palavra parentalidade.
A contracepção e as técnicas reprodutivas, somadas ao divórcio,
denunciavam que a instituição casamento deveria ser totalmente repensada: “A
contracepção de um lado, a procriação médica assistida de outro, parecia trazer um
desmentido flagrante a toda aquela herança judaico-cristã sobre a qual se constituíra
a família moderna” (ROUDINESCO, p.163).

1.1 - MAS E A REALIDADE BRASILEIRA? COMO A FAMÍLIA EVOLUIU?

Partindo do ponto de vista dos profissionais do judiciário, estes enquanto


parte integrante do Estado, as discussões do grupo trouxeram uma pluralidade de
dinâmicas e organizações familiares no universo atendido.
Sabemos que a constituição das famílias em nosso contexto seria
tributária à forma como se deu à miscigenação brasileira, tal constituição de um
povo influiria nas características e problemáticas apresentadas dentro de si (Mello,
2002). Portanto, o manejo de seus próprios conflitos é resultante de um povo que
vem crescendo a partir de uma miscelânea de histórias, rupturas, jeitos de ver o
mundo, lidarem com os problemas, crenças, cores e estilos de enfrentamento
diversos, afetando portando a identidade de seus componentes.
Buscando compreender o que poderia alinhavar um percurso sobre esta
instituição, o estudo de Rocha (2016), propõe pensar sobre o percurso da família
no Brasil através da análise dos marcos legais relacionados a Família, sendo
os principais: a Lei do Divórcio de 1977; a Constituição Federal de 1988, sobretudo o
artigo nº §4º do artigo 226; o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990; o
Código Civil de 2002 e a lei da Guarda Compartilhada (2008). Percebendo-se um
salto importante em termos de conquistas para crianças e mulheres, do Código Civil
de 1962, da submissão da mulher e supremacia do homem, para a Lei da Guarda

262
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Compartilhada em 2008, passando pela Carta Magna de 1988, que garante a


igualdade dos gêneros.
Destaca-se que o Estado ainda assume um modelo conservador de
entender o contexto familiar e os papéis de parentesco, culpabilizando as famílias,
acarretando em práticas interventivas igualmente rígidas e por vezes inapropriadas.
Este emaranhado de Leis que versam sobre as Famílias vem de encontro
ao que Mello (2002), referenciando Lasch, discorre sobre a perda dos laços e das
relações familiares para instituições de ensino ou assistenciais, especialmente pela
entrada da mulher do mercado de trabalho e atribuição da educação das crianças a
estas instituições.
O Estado passa a acessar o indivíduo em sua esfera de vida privada
na medida em que substitui o valor da família em sua constituição e com
repercussões quanto à autoridade familiar. Nesta problemática entramos nós
como agentes do Estado, com famílias que demandam do judiciário, não respostas
às suas perguntas, mas a realização de seus desejos, reforçados pela Indústria
Advocatícia por trás das Varas de Família, havendo o risco de a judicialização
estar consoante com os interesses das partes em disputa. Mas por que as
famílias precisam procurar uma instituição que represente o Poder através da
hierarquia, controle e ordem? Por que os conflitos são construídos, ao invés de
serem sanados já no início?
Ao mesmo tempo em que uma parcela da população ganhou poderes e
direitos, a família enquanto grupo tem-se perdido em seus referenciais.
Na análise da literatura, nota-se que há mais de 20 anos o conhecimento
científico retrata a mesma situação, onde o contexto brasileiro oferece menos
oportunidades para os jovens no mercado de trabalho há o aumento das questões
ligadas à violência, drogas, prostituição e gravidez na adolescência. Não obstante,
somam-se às novas demandas, através dos meios de comunicação de massa, como
televisão, internet, redes sociais que fabricam “homem-massa”46, também
padronizam crianças em suas brincadeiras, jogos, linguagens, etc.
Percebe-se então que a família enquanto grupo, está recebendo
diversas demandas, assim se transformando, como um organismo vivo. Mas será
justo compreendê-la como um ente passivo conquanto dentro de suas dinâmicas

46
“Informação instantânea, do regional para o global”
263
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

observam-se tantos conflitos? Nesse sentido, podemos adentrar a este micro


universo das Varas de Família.

2 - OS AVÓS, OS PAIS E SUAS CRIANÇAS

A partir dos anos 2000, observou-se o aumento do número de bisavós e o


crescimento dos avós chefiando famílias e, ainda, avós assumindo a função de
guardiões, por diferentes motivos, atravessados pelas expressões das questões
sociais, características estas mais comuns nas Varas da Infância e Juventude.
Inclusive o fenômeno do “ninho vazio” não representaria de forma significativa a
realidade atual brasileira segundo Vitalle (2010). A autora também destaca a
importância do papel simbólico da figura dos avós, que dá aos netos uma identidade
genealógica envolvendo questões como “autoridade, tradição e hierarquia” entre as
gerações, ou seja, aspectos multidimensionais e complexos. Estes aspectos
parecem confusos nos casos atendidos em Varas de Família e Sucessões.
Levando em conta o processo histórico brasileiro, estes avós teriam sido
influenciados pelos ideais da geração ”Boomers47” e sua dinâmica (ZAGURY, 2015).
Zagury (2015) descreve que os “Boomers” mudaram a relação pais e
filhos que deixou de ser autoridade impositiva e promoveram mudanças sociais
importantes, como o avanço da mulher no mercado de trabalho, a liberdade sexual.
Muitos filhos saíram da casa dos pais para terem liberdade e defenderem suas
ideias, abrindo mão de mordomias. Não queriam mais regras definidas e decisões
prontas e nem submeterem-se à autoridade máxima dos pais, com regras rígidas e
inflexíveis. Assim surgiu uma geração revolucionária e contestadora, que acreditava
no diálogo como método educativo.
No entanto, para autora o movimento promoveu falta de autoridade e a
família ganhou um distanciamento afetivo entre pais e filhos. Os filhos se tornaram

47
“Baby Boomers ou Boomers”: termo forjado para caracterizar a geração nascida na pós-Segunda
Guerra Mundial, durante ascensão da curva demográfica ocorrida entre as décadas de 1950 e 1960,
especialmente nos Estrados Unidos, Canadá, Austrália e algumas regiões da Europa. O movimento
dos Boomers surgiu por volta dos anos 40, filhos do pós-guerra, famosa geração de 1968, iniciaram
os movimentos de contestação, influenciando pessoas no mundo inteiro através da propagação de
seus valores pelo entretenimento e bens de consumo.

264
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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imperativos, poucos empáticos e não assumiram as consequências de suas


escolhas (ZAGURY, 2015).
O fenômeno “Boomers” não se reproduziu no Brasil de forma igual e
linear, uma vez que se vivia uma ditadura, que limitava a disseminação desta
cultura em todas as classes sociais, de forma que reflexos deste sonho em conviver
o máximo em família, apareceram somente por volta dos anos 80, com reflexos
ainda mais acentuados hoje, rompendo-se com a lógica da autoridade militar
dentro das famílias para se orientarem no trabalho parental. O grupo refletiu que
possivelmente uma das motivações desses pais atuais com seus filhos, seja a
tentativa de reparação das experiências de distanciamento afetivo e desamparo de
suas infâncias. Um fenômeno, portanto bastante amplo na sociedade.

Ressalvas sejam feitas, primeiramente, como o observado acima, foram


múltiplos fatores que influenciaram a conquista desta liberdade: a mulher saindo
para trabalhar para acessar melhores condições para a família; a globalização;
mudanças políticas, etc. E o universo atendido por estes profissionais,
circunscrevem estas conclusões às gerações depois da infiltração destes valores na
sociedade.

2.1 - MAS POR QUE ALGUNS AVÓS SE CONCEITUAM MAIS “COMPETENTES”


QUE SEUS FILHOS?

A boa família, segundo o psicanalista Meyers (1999), seria aquela onde


existe espaço e saúde em seus membros para abandonar e ser abandonado, e a
delicadeza das relações evoluírem garantindo a possibilidade do desempenho dos
papéis de cada um, sem que ocorra um rompimento definitivo entre os familiares, e
sim a ressignificação do papel parental, por exemplo, reconhecendo-se que o filho
que certa vez dependeu de seus cuidados, agora também é pai, adulto e
independente; e o entendimento deste adulto de que não é necessária a constante
manutenção do papel que antes desempenhava na família. Neste diapasão, uma
família bem-sucedida se organizaria de maneira a seus membros conseguirem
dar origem a uma nova família.
O grupo discutiu sobre famílias que se organizam de modo a não
possibilitarem seus membros atingirem emancipação e o destino considerado pelo
265
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autor, impedindo que novos papéis sejam agregados a identidade de seus membros,
subjugando-os aos ditames de uma ordem familiar que não propaga o
desenvolvimento.
Percebe-se que os efeitos deletérios da criação sem limites ao desejo,
acarretam comportamentos de rivalidade e dependências que fatalmente fomentarão
conflitos, podendo estes se judicializarem ou não.
Uma hipótese bastante coerente é a de que na oportunidade de
educarem os netos, avós tentam modificar o suposto engano na educação dos
filhos, tirando destes o direito de exercerem a parentalidade, inferindo-se que o
legado que tem sido deixado para estes pais é o da insegurança por falta de
modelos sobre autoridade e a incompreensão sobre seus lugares frente as crianças.
Rocha (2016) relata que dinâmicas como estas, onde avós querem
assumir cuidados efetivamente na figura de pais, observa-se um contexto
potencialmente alienador. Sentimentos como orgulho, vaidade e arrogância, assim
como defesas primitivas como a Negação, também foram trazidos como uma
constante em casos assim. Tais análises da dinâmica com viés psicanalítico e clínico
teriam que ser mais bem aprofundados.
Por exemplo, relatou-se um caso de disputa judicial entre avós e filhos
pela guarda do neto, em que os avós criticavam em seus filhos o uso de substâncias
psicoativas, afirmando em seus discursos que, diferentes de seus filhos, ele teriam
hábitos de uma saúde psíquica libada. Contudo, tinham um hábito semelhantemente
identificável: o uso problemático de álcool, mas negavam sobre sua falta de controle.
Os participantes observaram também que dentro destas famílias, existe
uma pobreza de projetos de longo prazo, uma vez que, sob a justificativa do
amor, eles se tornam prisioneiros de competições veladas, sendo a Guarda das
crianças, um “prêmio” para o vencedor e o vexame de seus rivais. Existe também
uma ausência da percepção dos papéis, capacidade e lugar de cada um na
família: avós que parecem ser motivados a avançarem para o lugar dos filhos; filhos
que se mantiveram infantis por um tempo, mas agora precisam da Justiça para
lutarem; e, em meio a isso, os netos que ficam violentados e desprotegidos
assistindo o duelo intrafamiliar.
Ao que parece, estes avós não se dão conta de que eles são a prova viva
do Poder da passagem do Tempo. Pensam menos ainda no legado que deixarão

266
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aos seus entes procedentes, que não tardiamente se tornarão órfãos, conforme a
sucessão lógica do tempo, denunciando a pobreza de seus projetos existenciais.

2.2 - MAS E QUEM SÃO AS CRIANÇAS DE HOJE QUE AVÓS E PAIS PRECISAM
LIDAR, SEJA ATRAVÉS DO LITÍGIO OU NÃO?

Compreende-se também que ser criança atualmente implica em se ver


diluída em provocações e seduções adultas. Observa-se que as crianças estão
também sofrendo um excesso de cobranças das escolas; do mercado com suas
seduções de consumo; doenças psiquiátricas; medicalização precoce e dificuldades
para usufruir tempo livre.
Verifica-se, portanto que o legítimo desejo de crescer e se tornar adulto,
é levado por apelos de uma sociedade dirigida pelo objetivo central de se tornar
acrítica, já que priorizando o dito crescimento econômico, vive-se e transmite-se
massivamente os valores da sociedade do consumo, como o egoísmo, o
individualismo, a hipocrisia e a ganância, mascaradas na formalidade trazida pelos
bens de consumo.
Segundo Postman (1999), os avanços tecnológicos na comunicação têm
proporcionado a diluição entre as fronteiras do Ser adulto e Ser criança já que a
infância até então “protegida” de alguns conhecimentos e símbolos (os quais eram
privilégios dos adultos), passou a ter meios de acessá-los (televisão, internet...), e
para o referido autor, o cenário estaria voltando a ser aquele da Europa Feudal.
O grupo refletiu que esta desigualdade do acesso às informações,
entre adultos e crianças, ensejava uma garantia de autoridade para os adultos. A
partir do momento em que ambos passam a ter acesso às mesmas informações,
como se dará o exercício desta parentalidade? A este efeito, já estamos notando as
consequências, e o observado é que os pais estão perdidos em seu próprio mapa
familiar, não sendo protetivos com seus filhos.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

2.3 - SE ESTES ADULTOS NÃO ESTÃO CONSEGUINDO SER


SUFICIENTEMENTE PROTETIVOS, QUAL O PAPEL DO ESTADO COM ESTAS
FAMÍLIAS?

Prioritariamente, elencou-se como um risco quando, focando aspectos


individuais nos sujeitos atendidos, esquece-se da falência das políticas públicas.
Especificamente nas Varas da Infância, a judicialização da pobreza e o imperativo
de decisões no curto prazo, podem desestabilizar grandemente o grupo familiar,
sob a justificativa da proteção da criança.
Através da prática profissional, observa-se que os recursos aplicados nos
serviços previstos nas Legislações não são suficientes para atender toda a demanda
apresentada pelas famílias, restando-as o desamparo por parte do Estado,
evidenciando mecanismos de exclusão dentro do mesmo, vide as triagens dos
serviços como o CRAS e o CREAS.
As novas configurações familiares seriam economicamente necessárias, o
crescimento demográfico teria por causalidades aspectos do campo econômico,
porém socialmente há discriminação de como se estruturam as famílias, em especial
as famílias recompostas.

3 - A PRÁTICA PROFISSIONAL: OBSERVAÇÕES E


RECOMENDAÇÕES

Percorrendo a odisseia das famílias, vimos que as mesmas transformam


suas identidades, consequentemente afetando o trabalho dos Profissionais do
Judiciário, e, portanto, estes também devem constantemente transformar sua
identidade no trabalho, uma vez que se deparam sempre com a interdição de sua
própria onipotência frente às escolhas familiares e a Instituição. Sendo que o único
“poder” de fato a eles concedido é o de transformem-se na constância da atuação e
no aprendido do cotidiano no universo jurídico.
Dentro do caos habitual que se tornam os processos envolvendo
disputas, sugere-se que o profissional não se esqueça de qual é o lugar das
crianças nos litígios, isso pode trazer um mínimo de estabilidade para se pensar
sobre o caso, o que habitualmente inexiste nos processos litigiosos.

268
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Refletiu-se que a falta de esclarecimentos da população e também


dos próprios profissionais do dispositivo legal da guarda compartilhada
também pode ser um potencial fomentador dos litígios, uma vez que esta proposta
poderia ser vista como uma forma da família ao menos compreender a prática a
importância uns dos outros para suas crianças, suspendendo os conflitos, quiçá
apaziguando-os com o tempo e crescimentos de seus infantes.
É também bastante pertinente para acurar o olhar crítico do profissional, a
proposta do PNCFC48 (BRASIL) onde se recomenda que a ênfase na estrutura
familiar deve ser ultrapassada e o profissional buscar o Potencial Protetivo
daquela família. Podemos ainda estender este último não apenas para a proteção,
mas para o Potencial de Desenvolvimento ofertado por aquela família.
Ainda assim, buscando aprimorar nosso fazer profissional, questionou-se
se seria possível adaptar a proposta de Meyer (2002) sobre o terapeuta de família
em nossa função, a qual seria de nos compreendermos como um novo elemento
que funciona como um reorientador da organização-padrão de uma família, aquele
que revela os acordos inconscientes contidos naquele grupo. Lembrando que o lugar
dos Peritos é institucionalizado e hierarquizado, neste sentido, certos cuidados
devem ser tomados.
Meyer (2002) observa a necessidade de se considerar o trabalho de
enlutamento e elaboração de superação e encerramento de fases da vida. Tal
aspecto não é possível de ser trabalhado com as famílias, mas é uma categoria que
pode ser investigada por nós dentro do potencial daquelas pessoas.
Em vez de se prender a crítica às famílias, seria mais eficaz, da
perspectiva da atuação, apontar como fator mantenedor da fragilização da família às
políticas públicas que não dão suporte e que, por vezes, não tem caráter
compreensivo com as necessidades da população.
Observaram-se nas políticas sociais a existência de um forte idealismo
em responsabilizar a família pelos seus membros, sem que tais políticas ofertem
reais condições neste sentido. E levando-se em consideração o avanço das
dinâmicas familiares e as novas configurações que vem se construindo na
sociedade, considera-se que o olhar dos profissionais tem de avançar a respeito da
proteção das configurações não tracionais. Mas com isto, uma nova pergunta se fez:

48
Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, Brasil, 2006
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Como o estado protegerá o que não foi previamente conhecido? Como nós, os
profissionais, agiremos nestes casos?
Acreditamos que não podemos reforçar o lugar de vítima dos entes
familiares, mas ajuda-los a resgatarem seu poder familiar, através de ações sócio-
educativas no processo de empoderamento da família e refletiu-se que adultos
“desempoderados”, tornam-se “desprotetores” de suas crianças.
Notou-se que a temática do tempo e envelhecimento, também causa
resistência ao desenvolvimento dos assuntos para os profissionais. Somando isso
ao anteriormente exposto, compreendeu-se que os técnicos devem ficar atentos e
precisam conversar entre si sobre suas idealizações e preconceitos, justamente para
não serem pegos numa armadilha que prejudicará tanto eles quanto seus atendidos,
pois compreendemos que a única forma de se trabalhar no lugar da imparcialidade,
é se fortalecendo enquanto grupos, “desidealizando” nossas próprias convicções,
buscando construir conhecimento baseado na Ética.
Um sentimento de desesperança também acompanhou as discussões
sobre o fazer profissional tendo em vista o modelo clássico de pericias e seus limites
frente as necessidades observadas nas famílias. Em contrapartida, tal sentimento foi
discutido, percebendo-se que existe uma evolução grandiosa no desenvolvimento
do trabalho pericial ao longo das décadas, pois os profissionais vieram
construindo um know-hall importante no trabalho com as Famílias no Poder
Judiciário e portanto a desesperança pode dar lugar a esperança de que
profissionais éticos e comprometidos, podem sim fazer a diferença na vida dos
sujeitos das Varas de Família, mesmo que pequenas de início.
Na experiência deste grupo de estudos, o Serviço Social, percebe uma
necessidade de melhorar a visão sobre a transversalidade da questão social nas
dinâmicas psicológicas das famílias, auxiliando os psicólogos nesta tarefa, assim
como os Psicólogos podem ajudá-los na compreensão dos afetos e pactos velados
no interior do grupo familiar. Complementando-se, as duas áreas podem
vislumbrar os potenciais da família e suas fragilidades, sempre se lembrando
que o tempo da infância é curto e precioso.
O grupo de estudos de Vara de Família compreendeu que as leituras e
interpretações sobre as dinâmicas ilustradas neste estudo exploratório, não se
encerram aqui, mas espera-se que através do exercício contínuo de enfrentamento

270
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de nossas próprias ambiguidades e das dialéticas teóricas possamos ser


otimistas e realizar um trabalho que faça a diferença na vida das pessoas.
Os participantes psicólogos também perceberam a lacuna sobre teóricos
da realidade social brasileira e fundamentos básicos sobre teoria Psicanalítica
aplicada ao contexto familiar, assim como temáticas contemporâneas como a
Transexualidade poderiam ser mais bem estudadas.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4 - CONCLUSÃO

E novamente os segredos...
Neste estudo, tentou-se abordar a complexidade dos papéis assumidos e
atribuídos aos avós, pais e crianças no universo atendido nas Varas de Família, mas
percebeu-se um tema muito mais abrangente, que versava sobre a transgressão e
mudança das identidades destes três agentes inalteráveis.
Abordou-se que a dificuldade de se delimitarem as fronteiras entre a
Adultez e a Infância na sociedade, coloca dificuldades ao exercício parental e isto
pode acarretar na judicialização dos conflitos familiares.
Cedo ou tarde, filhos acessam os ditos segredos adultos, tendo em
vista o apelo e facilidade com que lidam com os veículos de informação e meios
eletrônicos de comunicação. Neste sentido, cabe aos pais serem conscientizados de
seus lugares na hierarquia familiar, qual seja, o de transmitir o significado destes
ditos segredos no momento adequado para os filhos. O exercício parental é a forma
de se manterem os segredos, dentro de seu momento adequado para a criança, e
isso não é ruim. Ainda cabe-nos outra reflexão: quais seriam os segredos a
Infância está tentando nos mostrar, e muitas vezes não os enxergamos pela
solidez do viés adultocêntrico em nosso olhar?
A família que vem sendo tão alvo de contingências disruptivas e o
enfraquecimento do Estado, só tende a se tornar mais frágil com as dinâmicas
descritas ao longo deste trabalho, correndo-se o risco de fragmentarem e
sofrerem violações. Incentivar o fortalecimento dos pais enquanto sujeitos adultos e
responsáveis também é parte do papel do perito dentro da visão compartilhada pelo
grupo de estudos, já que adultos cedendo aos apelos dos filhos e da
exterioridade da família, produzem falta de proteção para as crianças e
adolescentes. Os profissionais, devem se lembrar de seus compromissos éticos-
políticos e lutarem para que os pais se vejam responsáveis e exerçam, de fato, a
autoridade parental.
Este também deve ser olhado pelos profissionais, não apenas pelo viés
legalista, mas como sendo o exercício da convivência com empatia, cooperação,
tolerância, escuta, respeito aos papeis e limites de cada ente familiar e atitudes que
os façam unidos, para juntos transformarem suas crianças em adultos saudáveis.

272
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Por fim, por mais desafetos, vitorias, gostos, e desafios que apresente a
seus membros, fato é que a família é reivindicada como um valor a qual ninguém
quer renunciar (Roudinesco, 2003).

273
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

MELLO, Sylvia Leser de Mello, Família: uma incógnita familiar in Família: conflitos,
reflexões e intervenções, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2002.

MEYER, Luiz, A família do ponto de vista psicanalítico in Família: conflitos, reflexões


e intervenções, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2002.

POSTMAN, Neil. O desaparecimento da Infância, tradução de Suzana Menescal de


Alencar Carvalho e José Laurenio de Melo, Rio de Janeiro, Graphia Ed.,1999.

ROUDINESCO, Elizabeth. A família em Desordem, tradução André Telles, Rio de


Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2003.

ROCHA, Edna Fernandes da. Tese de Doutorado em Serviço Social: Alienação


Parental sob o olhar do Serviço Social – limites e perspectivas da atuação
profissional nas Varas de Família. PUC/SP, 2016.

VITALE, Maria Amália Faller. Avós: velhas e novas figuras da família


contemporânea. Publicado no livro Família, Redes, Laços e Políticas Públicas.
Editoria Cortez: Coordenadoria de Estudos e Desenvolvimento de Projetos Especiais
– PUC/SP, 2010.

ZAGURY, Tânia. Filhos adultos mimados, pais negligenciados: efeitos colaterais da


educação sem limites, Rio de Janeiro, Ed. Record, 2015.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

VIOLÊNCIA DE GÊNERO

GRUPO DE ESTUDOS DA CAPITAL


“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Lucimara de Souza – Psicóloga Judiciário – Vara da Região Norte de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher – Fórum de Santana
Maria de Fátima de Jesus Agostinho Ferreira – Assistente Social Judiciário – Vara do
Foro Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Fórum Criminal da
Barra Funda

AUTORES
Aline da Silva Fernandes – Assistente Social Judiciário – Vara da Região Leste 2 de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Fórum de São Miguel Paulista
Camille Soares de Aguiar – Assistente Social Judiciário – Núcleo de Apoio Profissional de
Serviço Social e Psicologia
Célia Pereira de Lemos – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santana do Parnaíba
Claudia Figliagi Sellmann Nazareth – Psicóloga Judiciário – Comarca de Embu das Artes
Cristina de Carvalho Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Monte Azul
Paulista
Estevam Colacicco Holpert – Psicólogo Judiciário – Vara da Infância e Juventude de
Itaquera
Fausto Santos Borges – Psicólogo Judiciário – Vara da Infância e Juventude de Itaquera
Jucilene Alves Neves Pokojski – Assistente Social Judiciário – Vara de Infância e
Juventude, Família e Sucessões de Ferraz de Vasconcelos
Katia Regina Dias da Silva Freitas – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e
Juventude e Vara de Família e Sucessões de Itu
Maria Cristina Marques Ribeiro – Psicóloga Judiciário – Comarcas de Ribeirão Pires
Marta Rosana de Souza – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e Juventude da
Comarca de São José do Rio Preto
Vanessa Ferreira Lopes – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e Juventude de
Itaquera
Viviana Eugenia Gualtieri – Assistente Social Judiciário – Comarca de Jundiaí

276
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos sobre Violência Doméstica e Familiar optou por estudar o


tema sobre violência de gênero pela gravidade desta questão em nosso cotidiano
profissional nas diversas Varas, as quais solicitam estudos sociais e psicológicos por
parte dos profissionais.
Esta escolha se deu em virtude da peculiaridade do trabalho desenvolvido no
Tribunal de Justiça. Como profissionais atendemos todos os envolvidos em situações de
violência: vítimas, familiares e averiguados.
A partir de estudos psicossociais realizados junto aos processos e inquéritos
policiais das Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, das Varas de
Família e Sucessões, das Varas de Infância e Juventude, nas Varas das Comarcas do
interior do Estado de São Paulo (nas quais algumas são únicas e todas cumulativas) e do
Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e Psicologia, percebemos o alto número
de processos em que atuamos com este fenômeno.
Ao longo deste ano trocamos experiências a partir de nossa prática profissional
como assistentes sociais e psicólogos, discutimos a realidade os desafios vivenciados e
as condições de cada local de trabalho.
Os métodos utilizados no decorrer deste semestre foram: leitura, discussão de
textos, debate a respeito de filmes e, a fim de subsidiar nossas discussões pela troca de
experiências, convidamos profissionais especialistas no tema, que contribuíram com a
nossa reflexão por intermédio de explanação, debate e indicação de textos
complementares.
As profissionais convidadas foram a Dra. Graziela Aquaviva49, professora do
curso de graduação de Serviço Social da PUC de São Paulo e coordenadora do Núcleo

49
Dra. Graziela, docente da Faculdade de Serviço Social da PUC/SP – apresentou a sua experiência e
trajetória acerca do período em que atuou como assistente social do Tribunal de Justiça de São Paulo e na
política de assistência social, em que trabalhou como assistente social na Casa Eliane de Grammont
atendendo mulheres vítimas de violências e, por fim, a intervenção como docente. Ressaltou várias
questões sobre “A reprodução da violência doméstica e suas interfaces com a lógica da dominação”.
Socializou reflexões importantes sobre a interface da violência e o modo de ser capitalista, entendendo a
violência no âmbito de um conjunto de opressões que são produzidas e reproduzidas no cotidiano.
Discorreu ainda acerca da hierarquia das relações sociais que pressupõe a manutenção de esquemas
patriarcais de pensamento, reforçando, sobretudo, as expressões da questão social e a sociabilidade regida
pela mercadoria, produtora de comportamentos coisificados, expressos na valorização da posse mercantil,
na competitividade e no individualismo.
277
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de Violência e Justiça e Dra. Damares Vicente50, pesquisadora do Núcleo de Pós-


Graduação do curso de Serviço Social coordenado pela Professora Dra. Raquel Raichelis.
Tivemos como objetivo analisar a violência de gênero a partir de alguns autores
e dos estudos sociais e psicológicos realizados em nossa rotina de trabalho, identificando
que o patriarcado se caracteriza por um sistema onde há uma relação de dominação do
gênero masculino sobre o feminino. Observamos que as desigualdades trazem graves
consequências principalmente para as mulheres e consequentemente para todas as
pessoas que vivenciam a diversidade sexual, considerada LGBT (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans).
Partindo desta análise o referido artigo constatou que as legislações e as
políticas sociais são insuficientes e incapazes de eliminar a violência de gênero e as
desigualdades sociais. Além disso ainda observamos que a violência institucional ocorre
pela falta de atenção adequada, do início da escuta, que ocorre nas delegacias, nos
serviços de saúde de referência, perpassando pela assistência social e até mesmo no
sistema de justiça.
A violência de gênero, principalmente contra a mulher, resulta de um modelo
social patriarcal, capitalista, historicamente construído, que concede ao gênero masculino
uma posição de superioridade e domínio o qual se expressa de maneira cruel nessa
forma de violência.
O engajamento e comprometimento profissional, a continuidade de
reivindicações junto aos movimentos sociais, as redes de enfrentamento são necessários
para modificar tal situação, reduzindo as diversas formas de violências e possibilitando a
ampliação das políticas existentes, lutando contra a implantação do estado mínimo, como
assistimos em tempos de precarização e redução dos direitos conquistados.

50
Dra. Damares, estudiosa sobre o adoecimento dos profissionais da saúde apresentou sua experiência
quando trabalhou na Secretaria da Saúde da cidade de São Paulo, em que atuou na UBS da Freguesia do
Ó com um grupo de Gays a respeito de prevenção de DST/AIDS no Centro de Referência de AIDS. Este
trabalho teve início devido a epidemia de AIDS e posteriormente agregou outras pessoas. Mencionou sobre
o trabalho doméstico que as mulheres realizam e a divisão sexual do trabalho. Em seguida comentou sobre
a identidade política e a visibilidade para o modo de estar no mundo. Falou a respeito do sexo biológico, da
orientação hetero e homossexual, das relações afetivas, da população bissexual, o conservadorismo, o
direito de ter uma família, o casamento, a adoção, a desigualdade, o interesse do capitalismo, a construção
social, o uso de drogas, o suicídio, as injustiças, a exploração econômica, as políticas públicas para a
população LGBT no Brasil, especialmente a política de assistência social. Reafirmou a necessidade dos
profissionais que atuam no CREAS, CRAS, da área da saúde, dos Centros de Referência da Diversidade
Sexual e de Violência contra a Mulher compreenderem a dimensão da atuação com esta população, e, por
último, a invisibilidade da mulher lésbica. Ressaltou que para trabalhar com esta população é necessário ter
uma mente mais aberta, reconhecer que eles têm um lugar e que precisam do nosso respeito.
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1 - VIOLÊNCIA E VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Violência é um fenômeno complexo, histórico e multicausal. É uma ação


determinada por intermédio das relações de força envolvendo todas as classes sociais.
Para Chauí (1985) a violência representa a conversão dos diferentes em desiguais
tratando o ser humano não como sujeito, mas como coisa. Quando a fala do outro é
impedida, ocorre a violência. De acordo com Minayo (1999) a violência precisa ser
interpretada em suas várias faces, de maneira interligada por meio de situações em que
se expressa, repercute e se reproduz.
Violência de gênero se expressa majoritariamente na opressão do homem
sobre a mulher que prejudica o exercício da cidadania de mulheres do mundo todo. De
acordo com a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência
contra as mulheres na Convenção de Belém do Pará entende-se como violência contra a
mulher “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera
privada”.
O movimento feminista denuncia a opressão da mulher na cultura ocidental
com os valores da liberdade e autonomia. As aspirações de emancipação foram
frustradas por diversas barreiras, restringindo-se a uma democracia com critérios
“androcêntricos e patrimoniais”. A partir da evolução do movimento feminista, abre-se um
debate a partir de reflexões sobre a natureza de homens e mulheres com uma concepção
sobre as diferenças reforçando a inferioridade da mulher em relação ao homem
confirmando uma hierarquia com bases biológicas.
O início das análises sobre a noção de gênero, além de relativizar o
determinante biológico e enfatizar a influência cultural entre homens e mulheres extrai o
foco da condição feminina, implicando em uma perspectiva relacional. O sexo na sua
dimensão biológica é base de construção simbólica da representação entre masculino e
feminino. O movimento feminista aponta o impacto da supremacia masculina e a
vulnerabilidade da condição da mulher reivindicando políticas eficazes de combate à
discriminação e à violência contra a mulher.
A violência de gênero não dá para ser entendida fora de valores culturais e
históricos. O entendimento deste fenômeno compreende diversas visões, mas partimos
de um pressuposto de que nenhum ser humano tem o direito de submeter o outro a
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

qualquer comportamento que vise a satisfação própria em detrimento de outra, isto é


considerado violência. Gênero implica na tentativa de imposição cultural sobre o que é ser
homem e o que é ser mulher e nas relações de poder entre ambos.
Portanto, gênero não é sinônimo de sexualidade, questão analisada pelas
autoras Cisne (2015) e Lisboa (2014), as quais afirmam que as construções relativas às
práticas sexuais estão inscritas nas relações de gênero revelando símbolos que atenuam
as diferenças entre feminino e masculino nas diversas culturas que influenciam atitudes e
práticas em territórios rígidos em várias dimensões da vida cotidiana e suas
representações como homossexualidade e heterossexualidade.
Assim, a violência de gênero ocorre sobre homens e mulheres, mas os dados
de diversas pesquisas e estatísticas apontam que a violência maior é cometida sobre as
mulheres por homens e com consequências físicas e/ou psicológicas graves. Este tipo de
violência é uma violação dos direitos humanos e um problema de saúde pública. A
violência de gênero acontece em todos os lugares e espaços, e, independentemente da
categoria de análise, as mulheres são as mais atingidas.
Entretanto, Lisboa (2014) em seu artigo na Revista Temporalis apresenta a
temática da violência de gênero, que precisa ser compreendida nos seus desdobramentos
como: violência doméstica, violência contra a mulher, violência intrafamiliar e outras.
Aponta para o fato de que:

Os assistentes sociais são majoritariamente do sexo feminino e que no


cotidiano de intervenção profissional atendemos prioritariamente usuárias
mulheres com uma crescente demanda de situações perpassadas pelas
questões de gênero, classe, raça/etnia, que caracterizam exclusão,
opressão, desigualdade social, relações de poder, entre outras. (LISBOA,
2014, p. 34)

A autora chama a atenção de que os assistentes sociais, psicólogos,


profissionais da área da saúde e da área jurídica ao realizarem os atendimentos, se
deparam com esta questão cotidianamente.
Os espaços socio ocupacionais em que o Serviço Social e a Psicologia atuam,
foi ampliado como nos Centros de Referência em atendimento às Mulheres em Situação
de Violência, nos Juizados de Violência contra a Mulher, Ministério Público, Defensoria
Pública, em locais relacionados às políticas sociais da saúde e da assistência social.
Nesse sentido, as lutas do movimento feminista alcançaram conquistas relevantes em
280
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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relação aos direitos das mulheres, passando a “visibilizar a questão da violência, tirando-a
do espaço privado para transformá-la em política pública”. (LISBOA, 2014, p. 35).
Para (Velásquez, 2006, apud Cisne, 2015) a violência de gênero engloba a
violência doméstica, violência contra a mulher, violência familiar ou intrafamiliar, violência
conjugal, violência sexual, psicológica, patrimonial em que a coerção, a ameaça, a
coação, o abuso, a força, o controle e o poder são caracterizados como violência de
gênero. A desigualdade entre homens e mulheres é a chave da discriminação sexista e a
origem de toda a violência de gênero identificada com pautas culturais e sociais
diferenciadas para homens e mulheres.
Segundo a autora:

Violência de gênero abarca todos os atos mediante os quais se discrimina,


ignora, submete ou subordina as mulheres nos diferentes aspectos de sua
existência. É todo ataque material ou simbólico que afeta sua liberdade,
segurança, intimidade e integridade moral e/ou física. (VELÀSQUEZ, 2006,
apud CISNE, 2015, p. 41)

Os estudos de gênero refletem a complexidade da questão ao longo da


história, a diferença sexual e a desigualdade social existentes entre os sexos e segundo
Scott, (1995) “um elemento constitutivo das relações sociais”.
Assim, em 1994 a Organização dos Estados Americanos - OEA aprovou a
Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher,
conhecida como a Convenção de Belém do Pará e nela é adotada a definição de violência
contra a mulher prevista na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher
da Organização das Nações Unidas – ONU de 1993, reiterando ser a violência física,
sexual e/ou psicológica contra a mulher uma violação dos direitos humanos.
Nesse sentido, a categoria gênero é incorporada como fundamento da
violência contra a mulher e estabelece um catálogo de direitos abarcando um amplo
conceito de violência doméstica e intrafamiliar bem como, enumera os deveres a serem
implementados pelos Estados que assinaram os documentos, e, o Brasil ratificou a
Convenção do Pará em 1995.
Em 2003 o Novo Código Civil elimina normas discriminatórias de gênero como
as referências à chefia masculina da sociedade conjugal, à predominância paterna no
pátrio poder e a do marido na administração dos bens do casal, inclusive dos particulares

281
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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da mulher, à anulação do casamento pelo homem, caso ele desconheça o fato de já ter
sido a mulher deflorada e à deserdação de filho desonesto que viva na casa paterna.
Além disso, em 2015 a lei 13.104/15 sobre o feminicídio alterou o Código Penal
Brasileiro ao tipificar o feminicídio cometido com requintes de crueldade contra as
mulheres, por motivações de gênero incluindo-o no rol de crimes hediondos, aumentando
a pena para autores de crimes por razões de menosprezo e discriminação da condição de
sexo feminino, passando para um terço até a metade se for praticado durante a gestação;
nos três meses posteriores ao parto, para pessoa menor de 14 anos ou maior de 60 anos,
pessoa com deficiência, como também se o crime ocorrer diante de um descendente ou
ascendente da vítima.
Segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS, o Brasil ocupa a 5ª
colocação de país que mais mata mulheres por questão de gênero e segundo o Mapa da
Violência de 2015 o homicídio de mulheres no Brasil entre 2003 e 2013, o número de
vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21% na década que
representam 13 feminicídios diários. A Organização dos Estados Americanos - OEA
afirma que para combater o feminicídio é preciso reforçar a vigilância, sensibilizar
profissionais da saúde e policiais, aumentar a prevenção, reduzir a posse de armas e
incentivar a investigação desses assassinatos em nome da honra.
Nessa mesma perspectiva, o relatório de “assassinatos LGBT no Brasil”
concluiu que de 2008 a 2016 nosso país foi o maior em número de mortes à população
LGBT. Mata-se mais no Brasil esta população do que no Oriente e na África, onde existe
a pena de morte contra este segmento. Dos 343 assassinatos ocorridos no Brasil em
2016, 173 vítimas eram homens gays (50%), 144 (42%) pessoas Trans (Travestis e
Transexuais), 10 Lésbicas (3%) e 4 bissexuais (1%), incluindo 12 heterossexuais, como
amantes de Transexuais.
Logo, a série “Assistente Social no combate ao preconceito” Caderno 4
denominado de “Transfobia” (CFESS, 2014-2017) pretende dar suporte aos assistentes
sociais e a outras profissões para que se mantenham permanentemente vigilantes aos
seus posicionamentos éticos e políticos, de modo a transformá-los em ações que
combatam as diversas manifestações do preconceito, refletidas no moralismo exacerbado
e no controle de corpos e mentes, tão presentes nas dinâmicas socioinstitucionais.
(CFESS, 2014-2017, p. 5).

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Dessa forma, o documento ressalta que vivemos em binarismo de gênero e


orientação sexual heteronormativa: “o binarismo de gênero é uma ideologia constituída
pela afirmação de que mulheres e homens são radicalmente distintos e que esta distinção
está fundada nos corpos biológicos e que, portanto, ele é imutável e inquestionável”.
(CFESS, 2014-2017, p.8).
Uma das populações mais afetadas pela opressão do binarismo de gênero é
formada pelas que se reconhecem como Trans ou população T (mulheres, transexuais,
homens transexuais e as travestis).
Isso posto, compreendemos que o movimento feminista no século XX provocou
uma revolução nas relações sociais entre os gêneros. Na década de 70 constrói uma
nova categoria de gênero. Na década de 80 essa categoria obtém uma outra abordagem
a partir de Scott (1991) em que afirma que gênero é um elemento constitutivo das
relações sociais, fundamentado sobre as diferenças percebidas entre os sexos e uma
maneira de significar as relações de poder.
A partir desta autora que a categoria gênero se desenvolve não somente como
uma categoria de análise, mas também e fundamentalmente histórica. Aponta e critica o
caráter descritivo do conceito de gênero e o fato de estar sendo utilizado como substituto
de mulher. Além disso, ela coloca o fenômeno do poder no centro da organização social
de gênero. A violência contra a mulher é uma expressão trazida pelo movimento feminista
há cerca de trinta anos no Brasil diante da visibilidade de um fenômeno milenar, enquanto
a violência de gênero só recentemente tem se tornado um problema central.
Segundo Chauí (1985) há violência em qualquer ato que tenha como
determinação o gênero e que a diferença se torne em desigualdade e dominação.
De acordo com Faria e Nobre (2003) o conceito de gênero trouxe inúmeras
contribuições como demonstra a identidade feminina e masculina e não apenas um fato
biológico. As relações de gênero estruturam o conjunto das relações sociais com o mundo
do trabalho, da política e da cultura. O gênero faz compreender e superar a dicotomia
entre produção e reprodução, público e privado. A análise só é possível entrecruzando
com classe, idade, raça, orientação sexual, características regionais e o momento
histórico. As autoras e o movimento de mulheres são contra o patriarcado, o machismo e
a exploração do capital.
Para desconstruir o patriarcado, precisamos de ações afirmativas fazendo com
que as mulheres participem de maneira efetiva exercendo a política enquanto sujeito de

283
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direito e não apenas subsidiando e sim construindo organizações e ações com


perspectivas coletivas.

2 - CONJUNTURA ATUAL E AS RELAÇÕES DE GÊNERO

Tendo em vista o propósito do nosso estudo, cremos ser de suma importância


contextualizar a conjuntura atual. Sabemos que os estudos voltados a analisar a categoria
gênero são recentes, conforme enfatiza Cisne:

Os estudos de gênero surgem principalmente sob a influência de


feministas acadêmicas, no final do século 20, entre as décadas de 1970 e
1980. Seu objetivo advém da necessidade de desnaturalizar e historicizar
as desigualdades entre homens e mulheres, analisada, pois, como
construções sociais, determinadas pelas e nas relações sociais (CISNE,
2015, p.85).

Desde então diversas são as abordagens e perspectivas teóricas acerca deste


tema que apontaram avanços e também retrocessos no que diz respeito à necessária
igualdade nas relações entre homens e mulheres. Esses estudos foram materializados
por autores e autoras, como Gayle Rubin, Judith Butler, Donna Harawy, dentre outros, e
também no interior dos movimentos feministas.

Para o artigo, entendemos que a teoria social crítica é o que nos norteia para o
estudo da categoria gênero, tendo em vista sua perspectiva de totalidade e de
transformação societária como possibilidade de desconstrução das relações de poder
entre homem e mulher como ocorrem historicamente. Cisne aponta:

Desse modo, a teoria social marxista permite ao movimento feminista e


aos estudos de gênero instrumentalizarem-se para desnaturalizar as
diversas opressões a que estão submetidas as mulheres (CISNE, 2015, p.
102).

Ainda sobre a teoria social crítica, Cisne descreve:

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Essa teoria, ao expor em bases materiais concretas as determinações da


subordinação da mulher, permite engendrar ações pela transformação
dessa situação, transformação essa, em torno da busca pela igualdade
substantiva. Enfim, a teoria marxista vai ao cerne, ao foco das
desigualdades sociais, analisando dentro de uma dimensão materialista e
de uma perspectiva de totalidade a opressão e a exploração da mulher
(CISNE, 2015, p. 103).

Assim, considerando que “a tradição marxista possibilita uma ruptura real com
o conservadorismo ao analisar criticamente e a subordinação da mulher, percebendo
suas determinações reais e não apenas aparente” (Cisne, 2015, p. 102), levantaremos de
forma breve como as determinações sócio-históricas atuais estão contribuindo ou não
para o avanço da ruptura dessa relação patriarcal51.

Em nossas discussões, pontuamos que as questões que envolvem a categoria


gênero, não podem ser consideradas de maneira isolada, pois estão ligadas as formas de
construção dessa sociedade como um todo, tendo desdobramentos com os modos de
produção, os valores culturais e as relações sociais. Lisboa faz a seguinte referência
quanto a isto:

É importante lembrar que as relações de gênero fazem parte do cotidiano


de todas as pessoas, acontecem em todas as instâncias e em todos os
níveis sociais. Por esse motivo, essa abordagem deve estar integrada a
uma análise global da sociedade e ser pensada em termos dinâmicos,
pois repousa em antagonismos e contradições. Lembramos que embora
o conceito de gênero tenha ganhado força e destaque enquanto
instrumento de análise das condições das mulheres ele não deve ser
utilizado como sinônimo de “mulher”. O conceito é usado tanto para
distinguir e descrever as categorias mulher e homem como para
examinar as relações estabelecidas entre ambos (LISBOA, 2000, p. 38).

A sociedade capitalista hoje, diante de sua crise estrutural, apela para uma
renovação conservadora, objetivando a manutenção dos privilégios de poucos em
detrimento da exploração da classe trabalhadora. Barroco descreve sobre esta questão,
que no caso brasileiro se inicia na década de 90, do século passado:

51
“O patriarcado refere-se a milênios da história mais próxima, nos quais se implantou uma hierarquia
entre homens e mulheres, com primazia masculina” (Saffioti, 2015, p. 145).
285
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Para enfrentar ideologicamente as tensões sociais decorrentes da ofensiva


neoliberal, no contexto da crise mundial do capitalismo dos anos 1970, o
conservadorismo se reatualizou, incorporando princípios econômicos do
neoliberalismo, sem abrir mão do seu ideário e do seu modo específico de
compreender a realidade. O neoconservadorismo apresenta-se, então,
como forma dominante de apologia conservadora da ordem capitalista,
combatendo o Estado social e os direitos sociais, almejando uma
sociedade sem restrições ao mercado, reservando ao Estado a função
coercitiva de reprimir violentamente todas as formas de contestação à
ordem social e aos costumes tradicionais (BARROCO, 2015, p. 624 e 625).

O que observamos, portanto, é que além da superexploração da classe


trabalhadora, da redução e até extinção de direitos sociais, da precarização total dos
serviços públicos, sendo que o capital se apropria dos recursos destinados a este fim,
ocorre uma maior segregação da classe trabalhadora, pautada em retrocessos de valores
morais e éticos, discriminação e violência com o que não se considera padrão,
fundamentalismos religiosos influenciando no próprio Estado, entre outros pontos, que
degradam ainda mais a realidade social dos sujeitos. Para Barroco:

Com sua interferência na estrutura e na regulamentação das


relações de trabalho, nas formas de organização política e
jurídica do Estado e das instituições, a ofensiva neoliberal do
grande capital diversificou e ampliou a degradação do
trabalho e da vida social, atingindo duramente as condições
de existência da classe trabalhadora e dos setores
marginalizados. Ao materializar-se na exploração, na
dominação, na desigualdade, na violência objetiva e subjetiva,
a acumulação capitalista e o neoliberalismo criaram as bases
concretas para a reprodução social da barbárie manifesta em
ideias, valores e comportamentos. (BARROCO, 2015, p. 626).

Falando em desconstrução das relações sociais de gênero, fica evidente que o


contexto atual não favorece este processo. Como as autoras acima destacaram existe um
apelo a uma manutenção da ordem, logo, o patriarcado é parte disso. Mesmo com os
avanços existentes, como por exemplo, do ponto de vista legal, a resistência quanto à
igualdade entre os papéis sexuais é legítima e fortalecida por esse novo
conservadorismo.
O que vemos, portanto, dentre outros aspectos que envolvem este tema, é a
manutenção da desigualdade entre homens e mulheres - nas relações pública e
doméstica - aumento exacerbado da violência contra tudo àquilo que ameaça a
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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centralidade do homem na sociedade, a desconsideração política daqueles sujeitos que


possuem orientação sexual diversa a heteronormativa52 e consequentemente uma
retração dos direitos sociais que historicamente os movimentos sociais lutaram para
conquistar. Fontes pontua:

A crise das formas parlamentares, ao lado da exacerbação securitária,


abre brechas para reemergência de belicosas direitas, carreando
xenofobias, racismos, sexismos, além de pregar abertamente o
aprofundamento das desigualdades nacionais e internacionais. A crise
contemporânea assume, pois, um perfil político (FONTES, 2017, p. 420).

São nessas novas tensões sociais, baseadas na ordem conservadora e


explicitadas por meio de violência urbana e institucional, redução de direitos sociais e
trabalhistas e até da censura cultural e do livre pensamento para se garantir o controle e
consequentemente ampliar os ganhos para o capital, é que estão as possibilidades de
ampliação das lutas dos sujeitos. Para Fontes:

Em tempos de aprofundamento da desigualdade e da crise, em suas


várias dimensões, com evidente aprofundamento de elementos da
sociabilidade do capital como competição, o individualismo e a
fragmentação, de fragilização dos laços sociais, de avanço de ideologias
conservadoras ultradireitistas, as políticas públicas, balizadas por
concepções meritocráticas e gerencialistas, refuncionalizam a própria
sociedade desigual. Daí a importância de dotar as políticas de potencial
ético-político emancipatório, pela atuação da sociedade civil, com
intensificação e unificação das lutas sociais em defesa da democracia e
dos direitos, compreendidos em sua materialidade e função de travessia
para uma nova cultura, uma nova sociedade (FONTES, 2017, p. 505).

Consideramos que o entendimento sobre esse momento da sociedade


capitalista e os rebatimentos disso para uma real transformação das relações de gênero é
que possibilitarão que os movimentos sociais vinculados a estas lutas possam ampliá-las.
Cisne e Santos referem:

52
“A heterossexualidade alimenta ainda, a ideologia de naturalização dos sexos e, como tal, reproduz de
forma ‘natural’ as desigualdades que marcam as relações sociais de sexo, historicamente apropriadas pelo
capital para a superexploração da força de trabalho feminina, bem como do segmento trans. Isso ocorre
porque ao serem desvalorizados (as) como pessoas, consequentemente também sua força de trabalho é
desvalorizada e até mesmo não reconhecida como trabalho...” (Cisne; Santos, 2014, p.155)
287
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Defesas imediatas por direitos, bem como um projeto alternativo à


sociabilidade capitalista, obrigatoriamente têm que assegurar a inclusão da
diversidade humana e o enfrentamento às subalternidades sociais
naturalizadas, se não desejarem reproduzir formas históricas e
consolidadas de opressão e exploração que obstaculizam ainda mais a
construção da liberdade substantiva (CISNE e SANTOS, 2015, p. 172).

Fica evidente, portanto, que o repensar das formas em que estão construídas
as relações de gênero nessa sociedade não pode ser feito de forma isolada, já que as
perspectivas que estas relações foram estabelecidas objetivam a manutenção de uma
ordem social, ordem esta que está pautada nas mais diversas formas de exploração e
opressão.

3 - DIVERSIDADE SEXUAL E A EXPANSÃO DA PROTEÇÃO DE


GÊNERO PREVISTA NA LEGISLAÇÃO

A sexualidade humana é formada por múltipla combinação de fatores


biológicos, psicológicos, sociais e pelo sexo biológico, orientação sexual e identidade de
gênero.
Diversidade sexual são as formas de vivência e expressão da sexualidade e da
identidade de gênero. A orientação sexual é a atração afetiva e/ou sexual que uma
pessoa manifesta em relação a outra, para quem se direciona, involuntariamente o seu
desejo. Heterossexual, Homossexual e Bissexual.
No Brasil, travestis, mulheres transexuais e homens trans, se reconhecem e se
identificam por sua comunidade e solicitam a alteração no documento de identidade por
meio de uma ação judicial em que o prenome adotado será reconhecido.
Para adentrar na compreensão da diversidade sexual, consideramos
importante tecer algumas definições, tais como:
Cisgênero: pessoa cuja identidade de gênero está de acordo com o sexo
biológico e que não tem conflito com a identidade de gênero.
Transgênero: pessoa que transita entre os gêneros. Mulheres transexuais e
homens trans são pessoas que possuem identidade de gênero diferente do sexo
biológico.
De acordo com os seguintes documentos:

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Mulher transexual: é aquela que nasceu com sexo biológico masculino,


mas possui uma identidade de gênero feminina e se reconhece como
mulher, independentemente de ter feito operação de mudança de sexo.
Homem trans: é aquele que nasceu com sexo biológico feminino, mas
possui uma identidade de gênero masculina e se reconhece como homem,
independente de ter feito a operação de mudança de sexo. (SÃO PAULO.
SECRETARIA DA JUSTIÇA E CIDADANIA, 2017, p. 19)
Transexuais: são as pessoas que tendo sido registradas no sexo
masculino ou feminino ao nascerem, se identificam como sendo de outro
gênero. (CFESS, 2014-2017, p. 10).

Portanto, o que prevalece na mulher ou homem transexual é o respeito à


identidade autoenunciada pela pessoa.
De acordo com os periódicos (CFESS, 2014-2017 e SÃO PAULO.
SECRETARIA DE JUSTIÇA E CIDADANIA, 2017) ambos definem Travestis como
pessoas que nascem com sexo masculino, mas a identidade de gênero é feminina.
Tendem a não desejar modificações cirúrgicas de sua genitália e desejam ser
reconhecidas como feminina, inclusive, adotando um nome feminino e ao contrário das
pessoas trans, não necessariamente se vê como outro gênero.
Outras expressões de gênero são consideradas por: (SÃO PAULO.
SECRETARIA DA JUSTIÇA E CIDADANIA, 2017; CFESS, 2014-2017; BRASIL.
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013):

Crossdresser: pessoa que se veste com roupas do sexo oposto para


vivenciar momentaneamente papéis de gênero diferentes atribuídos ao seu
sexo biológico, mas que em geral, não realiza modificações corporais e
não chega a estruturar uma identidade transexual ou travesti.
Drag Queen ou Transformista: Homem que se veste com roupas
femininas extravagantes para a apresentação em shows e eventos, de
forma artística, caricata, performática e/ou profissional.
Drag King: mulher que se veste com roupas masculinas com objetivos
artísticos, performáticos e/ou profissionais. (SÃO PAULO.SECRETARIA
DE JUSTIÇA E CIDADANIA, 2017, p. 20 e 21).
Heterossexual: Sente atração e/ou tem relacionamento emocional, afetivo
ou sexual com uma pessoa do sexo diferente.
Homossexual: Sente atração e/ou tem relacionamento emocional, afetivo
ou sexual com uma pessoa do mesmo sexo.
Lésbica: Mulher que sente atração e/ou tem relacionamento emocional,
afetivo ou sexual com outra mulher.
Gay: Homem que sente atração e/ou tem relacionamento emocional,
afetivo ou sexual com outro homem.
Bissexual: Pessoa que sente atração e/ou tem relacionamento emocional,
afetivo ou sexual tanto com homens quanto com mulheres. (BRASIL,
MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013)
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É preciso, portanto, entendermos as diferenças e que a partir do gênero


percebemos a organização da vida social e as conexões de poder nas relações entre os
sexos, pois o gênero expõe o dilema da diferença e a construção de desigualdades.
Assim, o nome social é o prenome adotado pelo qual a pessoa se identifica e
corresponde a forma que se reconhece. Existem decretos, portarias, resoluções e outros
documentos públicos que reconhecem este direito que deve ser respeitado.
A expansão das ideias dos movimentos sociais em defesa de identidades
sexuais e de gênero, tem promovido mudanças que dão visibilidade para os problemas
enfrentados pela população LGBT e diante da realidade apresentada, as Varas de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher estão utilizando a lei Maria da Penha e em
seu artigo 5º que diz: para os efeitos desta Lei, configura “violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial”, sendo
consideradas as relações sociais desiguais de poder entre homens e mulheres.
Dessa forma, a concessão de medidas protetivas de urgência e a aplicação da
lei demonstra que está sendo considerada a constituição de famílias por pessoas do
mesmo sexo prevendo expressamente a proteção da mulher sem distinção de sua
orientação sexual. A população composta por lésbicas, gays, transexuais, travestis e
transgêneros estão tendo os seus direitos reconhecidos de acordo com o Estado
Democrático de Direitos sobre a diversidade sexual e a livre orientação sexual sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
Embora não haja unanimidade em relação à aplicabilidade da Lei 11.340/2006,
estão sendo consideradas a relevância da proteção à mulher em situação de violência,
bem como transexuais masculinos do gênero feminino em consonância com o artigo 226
da Constituição Federal e em concordância com os princípios da igualdade, da diferença
e da dignidade humana e por fim, em 05 de maio de 2011 o Supremo Tribunal Federal
reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar.
Cabe acrescentar que os direitos à vida, à identidade de gênero, à intimidade,
à livre expressão sexual, à integridade física e psíquica, justificam a realização da cirurgia
de mudança de sexo de pessoa maior e capaz, permitindo-se a adequação do prenome e
do sexo no registro civil. A implantação do processo transexualizador no Sistema Único
de Saúde – SUS que regulamenta os procedimentos para a readequação cirúrgica

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genital, insere-se no contexto da Política LGBT e o desafio é a garantia de acesso à todas


as pessoas que necessitam dessa forma de cuidado. (BRASIL.MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2013).

4 - APONTAMENTOS PSICANALÍTICOS EM CASOS DE VIOLÊNCIA

A atuação de psicólogos nos casos de violência em particular, mas também


como membros do setor técnico integrante do poder judiciário de maneira geral, envolve
uma série de desafios para os quais a formação acadêmica em si normalmente não
oferece respostas suficientes. Neste artigo, pode-se considerar que um dos grandes
impasses se dá quando o psicólogo é instado a se posicionar tecnicamente a respeito de
um caso específico de violência, especialmente quando deve considerar a
responsabilidade e imputabilidade de um sujeito envolvido em uma situação em particular.
Nestes casos, faz-se fundamental que a abordagem teórica adotada permita uma
articulação coerente e necessária entre os diversos aspectos – sociais e individuais – que
podem motivar os atos de violência. Assim, ao trazer dados da experiência clínica e do
corpo teórico da psicanálise para o entendimento das questões sociais, Freud contribuiu
de forma essencial para esta articulação importante, auxiliando em muito os psicólogos
em sua a atuação no contexto judiciário. Aqui, atentaremos especificamente às
proposições trazidas por Freud nos textos “Totem e Tabu” (1913-1914/2002), “Psicologia
de Massas e Análise do Ego” (1921/2002) e “Por que a guerra” (1933 [1932]/2002), que
representam momentos distintos da reflexão psicanalítica sobre o tema do homem em
sociedade.
Em ‘Totem e Tabu’, Freud se dedica a contrastar os pontos de vista da
psicanálise com os trabalhos de outros pesquisadores que se debruçaram sobre o tema
do psiquismo do homem primitivo, marcadamente o médico alemão Wilhelm Wundt
(1832-1920) e o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). Partindo da pesquisa
realizada por Wundt, Freud ressalta a dupla significação do tabu nas sociedades
primitivas – a mesmo tempo ‘sagrado’ e ‘impuro’. Assim, aponta Freud, ”de acordo com
Wundt, esta característica original do tabu - a crença num poder ‘demoníaco’ que
jaz oculto num objeto e que, se este for tocado ou utilizado ilegalmente, vinga-se lançando
um encantamento sobre o transgressor - ainda é inteira e unicamente ‘medo objetivado’.
Esse temor, contudo, ainda não se cindiu nas duas formas nas quais posteriormente se
291
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

desenvolve: veneração e horror”. Freud, então aponta a semelhança entre estas


características e a relação dos pacientes obsessivos com o seu ‘objeto tabu’:

O ponto de concordância mais evidente e marcante entre as proibições


obsessivas dos neuróticos e os tabus é que essas proibições são
igualmente destituídas de motivo, sendo do mesmo modo misteriosas
em suas origens. Tendo surgido em certo momento não especificado, são
forçosamente mantidas por um medo irresistível. Não se faz necessária
nenhuma ameaça externa de punição, pois há uma certeza interna, uma
convicção moral, de que qualquer violação conduzirá à desgraça
insuportável, (FREUD, 1913-1914/2002).

Assim, de início, o que vale ser destacado a partir desta observação freudiana
é a relação subjetiva dos indivíduos com a lei e as proibições. Tal relação pode ser
confirmada pelo próprio fato de que, mesmo no direito moderno, o julgamento constitui
uma ocasião em que são cuidadosamente analisadas as circunstâncias e motivações
específicas para cada possível situação de violação da lei – bem como a medida corretiva
mais adequada. Ao mesmo tempo, cada indivíduo possui sua própria concepção de ‘certo’
e ‘errado’, o que não raramente pode variar de acordo com as circunstâncias ou ao longo
de um mesmo dia. Então, o que Freud destaca, a partir do estudo dos tabus nas
sociedades primitivas, é a estreita relação entre as proibições e os impulsos humanos, e
como esta relação pode ocorrer de maneira completamente inconsciente.
Seguindo em seu esforço de confrontar o estudo das leis e das proibições com
os dados oriundos da prática clínica, Freud parte das informações sobre a psicanálise
com crianças chega à relação entre o totem e o pai. Nesta relação, para Freud, o primeiro
passo seria a identificação do menino com o animal totêmico. Então:

De momento, enfatizarei apenas dois aspectos dela [observação] que


oferecem valiosos pontos de concordância com o totemismo: a completa
identificação do menino com seu animal totêmico e sua atitude emocional
ambivalente para com este. Essas observações, em minha opinião,
justificam nossa substituição desse animal pelo pai na fórmula do
totemismo (no caso de indivíduos do sexo masculino). Vai-se observar que
não há nada de novo ou particularmente ousado nesse passo à frente. Na
verdade, os homens primitivos dizem a mesma coisa e, onde o sistema
totêmico ainda se acha em vigor atualmente, descrevem o totem como
sendo seu ancestral comum e pai primevo (FREUD, 1913-1914/2002).

292
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na história da psicanálise, a correlação entre o pai e a lei foi objeto de estudo


para diferentes autores, inclusive Jacques Lacan, que propondo uma releitura da obra
freudiana a partir dos registros do Simbólico, Real e Imaginário, entende o pai como uma
função – a função paterna - não necessariamente identificada ao homem. Tal
entendimento é fundamental para compreendermos o papel da psicanálise na sociedade
e nas famílias modernas. Freud, no entanto, seguia os dados que a clínica e os seus
pacientes lhe traziam, que por sua vez, refletiam a sociedade e os valores da época.
Então, em seu exame dos totens, Freud conclui que:

A primeira consequência de nossa substituição é notabilíssima. Se o


animal totêmico é o pai, então as duas principais ordenanças do
totemismo, as duas proibições de tabu que constituem seu âmago - não
matar o totem e não ter relações sexuais com os dois crimes de
Édipo, que matou o pai e casou com a mãe, assim como os dois
desejos primários das crianças, cuja repressão insuficiente ou
redespertar formam talvez o núcleo de todas as psiconeuroses (FREUD,
1913-1914/2002)

A seguir, Freud passa, então, ao estudo dos “festins sacrificatórios”, nos quais
“os indivíduos passavam alegremente por cima dos seus próprios interesses e
acentuavam a dependência mútua existente entre eles e o seu deus”. Assim,

A força ética da refeição sacrificatória pública repousava em ideias muito


antigas da significação de comer e beber juntos. Comer e beber com um
homem constituía um símbolo e uma confirmação de companheirismo e
obrigações sociais mútuas. O que era diretamente expressado pela
refeição sacrificatória era apenas o fato de o deus e seus adoradores
serem ‘comensais’, mas todos os outros pontos de suas relações mútuas
estavam incluídos nisto (FREUD, 1913-1914/2002).

Então, Freud segue descrevendo diferentes exemplos de rituais envolvendo o


sacrifício de animais sagrados em diversas culturas, e afirma que:

A despeito da proibição que protegia a vida dos animais sagrados na


qualidade de companheiros de clã, surgiu a necessidade de matar um
deles de tempos em tempos, em comunhão solene, e de dividir sua carne
e sangue entre os membros do clã. Os motivos que levaram a esse ato
revelam o significado mais profundo da natureza do sacrifício (FREUD,
1913-1914/2002).

293
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Assim, o final de sua análise dos totens e tabus nas sociedades primitivas,
Freud conclui que:

O animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai e isto entra em


acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do animal seja em
regra proibida, sua matança, no entanto, é uma ocasião festiva - com o
fato de que ele é morto e, entretanto, pranteado. A atitude emocional
ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e
com tanta frequência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal
totêmico em sua capacidade de substituto do pai (FREUD, 1913-
1914/2002)

De forma resumida, portanto, a mitologia freudiana descreve um pai totêmico


onipotente e abusivo, ao mesmo tempo odiado e invejado por todos os membros do
grupo, e também detentor do acesso exclusivo a todas as mulheres. Então, o assassinato
deste pai, um ato coletivo, marcaria o início da civilização, da medida em que colocaria
todos os indivíduos em pé de igualdade, sendo que a nenhum deles individualmente seria
dado o direito de ocupar novamente este lugar. Por fim, Freud descreve seus achados da
seguinte maneira:

O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de


cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a
identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A
refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria
assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e
criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das
restrições morais e da religião (FREUD, 1913-1914/2002).

Relacionando esta análise às religiões modernas, Freud menciona o


cristianismo, para o qual o filho se identifica ao pai, o substituindo, de forma que “a antiga
refeição totêmica era revivida sob a forma da comunhão, em que a associação de irmãos
consumia a carne e o sangue do filho - não mais do pai - obtinha santidade por esse e
identificava-se com ele” (1913-1914/2002). Para Freud, “embora o totem possa ser a
primeira forma de representante paterno, o deus será uma forma posterior, na qual o pai
reconquistou sua aparência humana”. Então, “deus nada mais é que um pai glorificado”
(1913-1914/2002). Neste momento, percebe-se claramente o que, para Freud, seria o
fundamento da sociedade patriarcal, definida antropologicamente como “um tipo de
organização social que se caracteriza pela sucessão patrilinear, pela autoridade paterna e
294
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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pela subordinação das mulheres e dos filhos” (Michaelis, 1998). De fato, Freud não hesita
em afirmar que “a família constitui uma restauração da antiga horda primeva e devolveu
aos pais uma grande parte de seus antigos direitos” (Freud, 1913-1914/2002).
Quando observamos os casos de violência doméstica, não se pode deixar de
notar que o autor da violência é caracteristicamente o homem, normalmente o chefe da
família, enquanto as vítimas tendem a serem as mulheres e as crianças. Tal situação
tende a se agravar em sociedades mais tipicamente patriarcais, quando toda a estrutura
social – as religiões, o Estado, as instituições - se organizam em torno do estabelecimento
e manutenção do poder masculino. Nestes casos, a tentação de restaurar o poder e a
onipotência do pai da horda primitiva em torno de um único indivíduo passa a ser mais
forte do que os impulsos para reprimi-la.
Se, por um lado, o estudo freudiano dos totens e tabus, lança luz sobre a
relação do homem com as leis e a moral, alguns desenvolvimentos posteriores da
psicanálise freudiana aprofundam esta compreensão. Em ‘Psicologia de Massas e Análise
do Ego’, Freud (1921 / 2002) lança mão de conceitos psicanalíticos já mais maduros -
como identificação, narcisismo e ideal de ego – à formação e manutenção dos grupos
humanos. Tal articulação se mostra fundamental na medida em que relaciona o psiquismo
individual à sociedade. Então, a relação do sujeito com a imagem ideal, antes associada
ao totem e ao deus, passa ao domínio do narcisismo e do ideal do ego, enquanto a
relação com os semelhantes ocorre pela identificação. Ao mesmo tempo, mantém-se a
característica de ambivalência afetiva, já observada em relação aos totens. Tal
característica (que será extensivamente examinada por Lacan a propósito do seu ‘estádio
do espelho’) passa pela função do narcisismo na constituição do psiquismo, ou seja,
unificar as pulsões em torno de uma imagem de totalidade, sem a qual o ego não pode se
formar. Tal imagem permanece ativa na vida adulta por meio do ideal de ego. A
identificação, por outro lado, reforça a alienação do sujeito à imagem, por vezes
substituindo ou competindo com a relação objetal (como observado por Freud em ‘Luto e
Melancolia’, 1917[1915]/2002). Ao correlacionar estes conceitos com a formação dos
grupos, Freud avança sua compreensão da instabilidade afetiva característica dos grupos
humanos. Assim:

Cada vez que duas famílias se vinculam por matrimônio, cada uma delas
se julga superior ou de melhor nascimento do que a outra. De duas
cidades vizinhas, cada uma é a mais ciumenta rival da outra; cada
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

pequeno cantão encara os outros com desprezo. Raças estreitamente


aparentadas mantêm-se a certa distância uma da outra: o alemão do sul
não pode suportar o alemão setentrional, o inglês lança todo tipo de
calúnias sobre o escocês, o espanhol despreza o português (FREUD, 1921
/ 2002).

Então, “nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por


estranhos com quem têm que tratar, podemos identificar a expressão do amor a si
mesmo, do narcisismo” (Freud, 1921/2002). Embora parte fundamental da constituição do
sujeito, a imagem narcísica tem origem no exterior e sua confirmação vem de fora (daí as
‘selfies’, espelhos, a moda, os cosméticos, etc.). Sua base é inconsciente, pode
permanecer inalterada por toda a vida e, na análise, encontra-se normalmente do lado da
resistência. Na formação dos grupos, o narcisismo exerce uma função quando um líder –
um ídolo, um guia, um modelo ao qual os membros de um grupo se identificam – assume
o lugar do ideal do ego, poupando o sujeito de submeter sua imagem ideal às provas da
realidade. Assim, um líder religioso ou político pode chegar a assumir poderes quase
ilimitados, levando nações inteiras à guerra e ao genocídio em nome da manutenção
deste ideal – como Hitler, por exemplo. A maior suscetibilidade dos jovens a tais líderes,
que também podem ser músicos populares, atores de TV, etc. se explica pelo fato de a
perda do ideal infantil ser ainda recente.
Um exemplo da rigidez do ideal do eu aconteceu como retratado no filme ‘Milk’.
Até meados da década de 70, a cidade de São Francisco, nos Estados Unidos era política
e culturalmente dominada pela comunidade irlandesa, de moral protestante e
conservadora. Até que um inteligente homem que vinha de Nova Iorque, Harvey Milk,
cansou de esconder a sua homossexualidade e passou a organizar a comunidade gay na
cidade para ganhar maior espaço político e liberdade. Harvey foi tão bem sucedido que se
tornou o primeiro político abertamente homossexual a ocupar um cargo público nos
Estados Unidos. Seu adversário político, Dan White, líder da comunidade protestante
irlandesa, reconheceu publicamente a derrota nas urnas e foi recebido por Harvey em seu
gabinete. Então, assassinou-o com cinco tiros nas costas e foi preso. Assim, para Dan
White a derrota democrática para um político abertamente homossexual feria fatalmente
não apenas a sua imagem política, cuidadosamente construída e mantida por anos com o
apoio de poderosas instituições locais, mas também a sua imagem narcísica. Sem
recursos para lidar com a perda subjetiva, Dan White atua, numa tentativa de eliminar do
mundo a imagem discordante, sem ter que mudar a si mesmo.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Se tal fato ocorreu nos Estados Unidos, nos anos 70, poderíamos pensar em
quantos outros casos envolvendo uso da violência contra mulheres, crianças, idosos,
negros, homossexuais e deficientes mentais não há ação de homens e pessoas que
entendem que a garantia de direitos das minorias sociais constitui um ataque pessoal ao
seu ideal narcísico. Ou daqueles que necessariamente devem associar a lei à imagem
masculina. De fato, tal resposta não pode ser obtida ‘a priori’. No entanto, a própria
evolução da psicanálise aponta direções. Como colocado, seus desenvolvimentos mais
recentes entendem o pai como uma função, não uma pessoa. O exercício desta função,
portanto pode ser, e é efetivamente cumprido por mães solteiras, famílias monoparentais,
homossexuais e demais possíveis arranjos existentes na sociedade moderna. Como,
mais tarde, Lacan vai apontar ao distinguir o pai simbólico do pai real e o pai imaginário.
Então, a relação do sujeito com a lei, essencial para a vida em sociedade, deixa de estar
necessariamente associada à figura masculina. Ao mesmo tempo, alguns psicanalistas
consideram que os diferentes mecanismos de defesa – recalque, denegação e foraclusão
– correspondem a diferentes estruturas psíquicas, que marcam relações distintas do
sujeito com a castração e consequentemente com a lei e a vida em sociedade.
O último texto de Freud abordado aqui se trata de uma carta aberta trocada
com o físico Albert Einstein sobre o tema ‘Por que a guerra?’ (1933[1932]/2002). Tendo
como pano de fundo a ascensão do nazismo na Alemanha e o prenuncio da Segunda
Guerra Mundial, este diálogo guarda um tom pessimista, ao mesmo tempo em que a
teoria freudiana já alcançara maturidade. Neste ponto, os dados oriundos da clínica,
marcadamente a compulsão à repetição, já haviam levado Freud a mudar a sua teoria
pulsional e sugerir a pulsão de morte. Em contraposição a Eros, as pulsões de morte
visariam o retorno ao mesmo, à separação e à destruição. Mesmo assim, em cada ser
humano, ambas as pulsões – Eros e Thanatos – seriam ativas, e agiriam frequentemente
em conjunto, o que dificultaria a sua distinção. Assim, diante da pergunta de Einstein
sobre se “é possível controlar a evolução da mente do homem de modo a torna-lo à prova
das psicoses do ódio e da destrutividade?”, Freud é claro em argumentar que esta
resposta não pode ser teórica, mas prática, já que envolveria um esforço constante.
Neste sentido, Freud é coerente. Desde seus primeiros movimentos na
intenção de escutar o sofrimento psíquico onde só se mostrava uma paralisia motora que
contrariava o conhecimento de anatomia, ou de compreender a sexualidade infantil como
a de um ‘perverso polimorfo’, Freud não hesitou em seguir o conhecimento trazido pela

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clínica psicanalítica para se contrapor ao ideal de um ser humano autônomo, consciente e


altruísta. Agora, por meio da pulsão de morte, Freud mais uma vez se vale dos dados da
clínica para abandonar definitivamente a imagem do ser humano bom, de maneira que a
própria coexistência pacífica requer esforço constante, abertura e pesquisa. Neste
sentido, podemos acreditar que a possibilidade da justiça e igualdade social passa
necessariamente pelo conhecimento da loucura em suas manifestações mais cotidianas.

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5 - CONCLUSÃO

A violência é um fenômeno complexo, histórico e multicausal que se manifesta


por intermédio das relações de força e a partir do gênero percebemos a organização da
vida social e as conexões de poder nas relações entre os sexos, a compreensão do
dilema da diferença, a complexidade da questão e a construção de desigualdades nas
relações e a opressão de classes sociais, raça, etnia e gerações.
A violência de gênero é uma violação dos direitos humanos com sofrimento
físico, sexual e psicológico de uma cultura sexista e patriarcal permeado pela
sociabilidade burguesa. A perspectiva de gênero traz variadas possibilidades de
feminilidades e masculinidades, criando novas formas de convívio e resolvendo conflitos
por meio de diálogo. Entretanto, as relações de poder entre as pessoas são carregadas
de intolerâncias, práticas sistemáticas de violência, colocando o outro em situação de
inferioridade. Esses fatores colocam o Brasil em posição de liderança entre os países com
alto índice de violência contra as mulheres e a população LGBT.
Assim, a heteronormatividade é uma forma de regulação social da sexualidade,
valorizando a relação entre pessoas de sexo oposto (heterossexual) em detrimento de
outras formas de relacionamento sexual.
Constata-se que a violência de gênero ocorre desde à infância até à velhice,
sendo o domicílio o lugar mais violento, onde são geradas as disputas pelo poder nas
relações sociais com ideologia patriarcal e favorece o exercício de exploração,
dominação, isolamento, depressão e desgaste emocional. Os padrões culturais
negligenciam as ocorrências e as consequências do problema, tolerando violências que
deveriam ser abominadas.
É possível detectar a violência de gênero em todos os espaços públicos e
privados, sendo as mulheres as mais atingidas e posteriormente a população LGBT. Esse
tipo de violência é uma violação de direitos e um problema de saúde pública com
consequências muito graves e que assistimos ao longo da história sendo nutrida por fatos
políticos, econômicos e culturais.
Observa-se, portanto, que além da superexploração da classe trabalhadora,
da redução e até extinção de direitos sociais, da precarização total dos serviços públicos
(sendo que o capital se apropria dos recursos destinados a este fim), ocorre uma maior
segregação da classe trabalhadora, pautada em retrocessos de valores morais e éticos,

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discriminação e violência para com o que é considerado fora do padrão,


fundamentalismos religiosos influenciando no próprio Estado, entre outros pontos que
degradam ainda mais a realidade social dos sujeitos.
A diversidade é fundamental para uma sociedade mais justa. Nesse sentido,
devem ser implantadas medidas para assegurar a igualdade de oportunidades entre
homens e mulheres. Contudo, o que se observa atualmente é a implantação dos mínimos
nas políticas sociais e a retirada de recursos destinados há quem mais sofre com esta
questão tão complexa.
Dessa forma, é de suma importância que as (os) assistentes sociais ofereçam
uma escuta crítica e qualificada decifrando as histórias, tentando garantir a singularidade
e a totalidade, mantendo o diálogo, verificando os territórios e estimulando os processos
de ruptura com relações violentas.
Nestes casos, faz-se fundamental que a abordagem teórica adotada permita
uma articulação coerente e necessária entre os diversos aspectos – sociais e individuais –
que possam motivar os atos de violência. O que fica ressaltado, neste momento,
portanto, é a relevância do conhecimento derivado da prática clínica para a função do
psicólogo judiciário. Então, pode-se considerar que um dos grandes impasses se dá
quando o profissional é instado a se posicionar tecnicamente a respeito de um caso
específico de violência de gênero, especialmente quando deve considerar a
responsabilidade e imputabilidade de um sujeito envolvido em uma situação em particular.
Apesar da relevância e da implantação das legislações que tentam oferecer
proteção às mulheres e às pessoas que vivenciam a diversidade (como a população
composta por Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Mulheres e Homens Trans) essas políticas
são insuficientes e não se efetivam por falta de vontade política em função do preconceito
e da discriminação. Ou seja, as políticas públicas existentes são incapazes de eliminar a
violência de gênero e as desigualdades sociais e, ao invés de proporcionarem serviços
eficazes, percebe-se uma violência institucional pela falta de atenção adequada às
vítimas, - desde o início da escuta até o final - perpassando pelos órgãos responsáveis
pelo atendimento.
Pelos motivos expostos se faz necessário ações e engajamento de toda a
sociedade para com a situação, a continuidade de reivindicações junto aos movimentos
sociais e as redes de enfrentamento para redução das diversas formas de violências e do
envolvimento coletivo para a construção de uma outra sociabilidade.

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UNESCO -1ª ed. Brasília – DF. 2015. Disponível em:http://www.mapadaviolencia.oor.br>
Acesso em 02 de nov 2017.

303
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ESTUDO SOCIAL E AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA NO


JUDICIÁRIO NO ÂMBITO DA CURATELA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - ARAÇATUBA


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Claudia Lopes Ferreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bilac


Amanda Vaz Valeriano Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba

AUTORAS
Ana Beatriz Benetti Salesse dos Santos – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Araçatuba
Cássia Regina de Souza Preto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Araçatuba
Graciela Ap. Franco Ortiz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Araçatuba
Lianara Carmona Vallego – Psicóloga Judiciário – Comarca de Guararapes
Márcia Kioko Hiraga – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guararapes
Nair Yayoi Haikawa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pereira Barreto
Regiane Silvério da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guararapes
Susana Maria de Souza Moraes Borges – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Araçatuba

305
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O tema escolhido para estudo no ano de 2017 foi resultado de grande


debate em torno da necessidade de escolha de um assunto que atendesse
integralmente às inquietudes das participantes e, após amplo debate foi acordada a
temática “Estudo Social e Psicológico no âmbito da curatela/interdição”,
considerando a reconfiguração de nossas demandas profissionais decorrentes das
alterações no Novo Código Civil e da promulgação do Estatuto da Pessoa com
Deficiência.
Ao longo do processo, as questões suscitadas relacionavam-se mais
diretamente a necessidade de compreensão acerca do papel da equipe técnica nos
processos de curatela/interdição e, após discussões e apropriação das demandas e
necessidades de estudo no segmento da curatela/interdição, foram levantadas
bibliografias pertinentes, a fim de fundamentar as discussões e possibilitar a
materialização das reflexões presentes neste artigo.
Para tanto, está organizado em dois eixos norteadores, sendo
Normatizações das Questões Relativas à Curatela/Interdição e Avaliação psicológica
e social na atuação em equipe multiprofissional judiciária em processos em
curatela/interdição, respectivamente.

1 - NORMATIZAÇÕES DAS QUESTÕES RELATIVAS À


CURATELA/INTERDIÇÃO

1.1 – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE


CURATELA/INTERDIÇÃO

O instituto da curatela possui origem no Direito Romano, mais


precisamente na Lei das XII Tábuas, especificamente na V Tábua - Das Heranças e
Tutelas em que se preconizava que “8. - Se alguém tornar-se louco ou pródigo e não

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

tiver tutor, que a sua pessoa e seus bens sejam confiados à curatela dos agnados 53
e, se não houver agnados, à dos gentis”.

Ao longo dos anos, a curatela se desenvolveu e se consolidou de modo


semelhante em todos os países que seguiram a tradição romano-germânica, sendo
que no Brasil sua aplicação é prevista desde os tempos coloniais, com as
Ordenações Filipinas que tratavam da matéria cível no Livro Quarto, cujo título CIII
dispunha sobre a curatela, definindo as circunstâncias que a ensejavam e as regras
sobre a nomeação do curador. Pode-se observar que algumas características do
instituto da curatela no ordenamento jurídico pátrio têm raízes nas Ordenações
Filipinas, que influenciaram marcantemente o Código de Beviláque, que em parte foi
repetido pelo atual Código Civil. Destaque-se, ainda, o caráter patrimonial atribuído à
curatela, cuja principal preocupação é a tutela e administração dos bens do
curatelado e a quase completa mitigação da personalidade do interditado que,
praticamente perde a capacidade de agir. A despeito de parecerem absurdas nos
tempos presentes, essas inferências eram plenamente condizentes à realidade do
direito privado da época, cujas bases centrais estavam na propriedade, nos contrato
e na família de ascendência romanística.
No Brasil, o Código Civil de 1916 que vigorou até janeiro de 2003,
considerava incapazes para os atos da vida civil e, consequentemente, sujeitos à
curatela, “os loucos de todo o gênero; os surdos-mudos, sem educação que os
habilite a enunciar precisamente a sua vontade; e os pródigos”. Conforme
MEDEIROS (2007, p. 97), sendo atestada a condição por um perito médico, ao
“doente” era atribuída a incapacidade absoluta e, assim, determinada a interdição
total. A autora destaca que aos “surdos-mudos”, pródigos e toxicômanos era
admitida a interdição parcial ou relativa. Já aos “loucos”, também chamados de
alienados mentais, psicopatas, dementes ou portadores de enfermidade mental, a lei
não abria exceções.
Por séculos as pessoas com doenças ou deficiências mentais foram
segregadas em instituições psiquiátricas, onde muitos foram abandonados por suas

53
A definição de agnados é: Parente pela linha de descendência masculina. Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/agnado>. Acesso
em 14-12-2017.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

famílias. Com a Reforma Psiquiátrica, que desinstitucionalizou a loucura, fechando a


maior parte dos leitos psiquiátricos no país, os invisíveis pacientes retornaram para
suas famílias de origem. Outros, por motivos diversos, continuaram sob a tutela do
Estado ou abandonados à própria sorte. De qualquer forma, a instituição ou família
que assumiu os cuidados com o paciente se deparou com um ser, agora visível, mas
sem lugar na sociedade, que necessitava de alguém com poderes para representar
seus interesses.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, no Art. 203, foi
estabelecida

[...] a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa


portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir
meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família, conforme dispuser a lei.

A operacionalização do Benefício de Prestação Continuada teve início em


janeiro de 1996 e com ela a exigência de que as pessoas com doença ou deficiência
mental tivessem um representante legalmente constituído para acessá-lo. Tal
exigência, sem qualquer embasamento legal, ainda é um traço marcante na relação
do usuário com o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, conforme aponta o
estudo realizado por BARISON e GONÇALVES (2016).
Os autores BARISON e GONÇALVES (2016, p. 59), concluem em sua
pesquisa que, em virtude das exigências legais, o enfrentamento da pobreza
depende indiretamente da ação do Poder Judiciário, que, passa a ser protagonista
do acesso dos sujeitos aos seus direitos sociais. Assim, incoerentemente, para
acessar esses direitos torna-se necessário privar o sujeito do exercício de outros
direitos civis.
A interdição civil, que a priori deveria ser adotada como medida extrema e
excepcional passa a ter um caráter de necessidade para que a pessoa com doença
ou deficiência mental tenha acesso a direitos. MIZIARA (2007, p.24) ratifica esse
entendimento ao questionar:

[...] o que ocorre com o deficiente intelectual que tenha atingido a


maioridade, todavia sem ser interditado, e independentemente do
grau de seu comprometimento, pretenda: obter o benefício de
prestação continuada, a renovação ou emissão de seu primeiro
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

passaporte; embarcar em voos domésticos ou internacionais;


receber, judicialmente, os bens deixados por seus pais ou terceiros
em processo de inventário ou arrolamento de bens; alienar bens de
sua titularidade; abrir e movimentar contas bancárias, ainda que
meramente vinculadas a salário, etc.

Conforme o autor, advogado voluntário da APAE-SP e especialista em


Direito Processual Civil, salvo raras exceções, sempre será exigida a representação
legal, sem a qual o ato não poderá ser praticado.
A Convenção de Nova York – Convenção sobre os Direitos da Pessoa
com Deficiência, datada do ano de 2007 e, da qual o Brasil é signatário, tem por
objetivos “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os
diretos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e
além de promover o respeito pela sua dignidade inerente”.
De acordo com a ONUBR, a Convenção recebeu mais de 160 ratificações
e no Brasil, a promulgação desse documento pelo Decreto n.º 6.949, de 25 de
agosto de 2009, destaca-se por sido a primeira convenção internacional com
equivalência de emenda constitucional por força do artigo 5º, § 3º do texto
constitucional de 1988 e a alteração no conceito de pessoa com deficiência na
legislação brasileira.

Desta forma, uma vez aprovada, a convenção é tomada como base,


pelos países signatários, para a construção das políticas sociais, no
que diz respeito tanto à identificação do sujeito albergado pela
proteção social, quanto dos direitos a serem garantidos ou
assegurados (FEIJÓ; PINHEIRO, 2007, p16).

A importância de tal Convenção se dá pelo fato de que é a partir dela que


os Estados signatários se comprometem a criar normatizações com vistas à sua
regulamentação; e no caso brasileiro, temos a promulgação do Estatuto da Pessoa
com Deficiência, em vigor a partir de janeiro de 2016 e que mudou substancialmente
a organização do sistema de incapacidades aplicado ao diploma civil.
Em virtude dessa modificação a Lei 13.146/2015 também altera o art.
1.768 do Código Civil, colocando em debate importante questão que discute se
ainda será cabível o processo de interdição ou apenas a nomeação de um curador.

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2 - DEFINIÇÕES DE CURATELA E TUTELA / INTERDIÇÃO

Conforme o Estatuto da Pessoa com Deficiência,

Art. 2o: Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem


impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade
de condições com as demais pessoas.

Derivado do latim interctione, o vocábulo interdição pode ser definido


como: 1. Ato de interdizer; proibição, impedimento. 2. Privação judicial de alguém
reger sua pessoa e bens. 3. Suspensão de funções ou de funcionamento. 4.
Privação legal do gozo ou do exercício de certos direitos no interesse da
coletividade; interdito (Ferreira apud Medeiros, 2007, p. 79).
Importante ressaltar que para compreender a interdição civil se faz
necessário, antes, conhecer o(s) entendimento(s) socialmente construído (s) acerca
do que se considera como incapacidades, ou melhor, dizendo, daquilo que se
considera como doenças/transtornos/deficiências mentais/intelectuais, seus
significados e implicações na determinação médico/judicial quanto à capacidade ou
incapacidade dos sujeitos.

Porém, em situações excepcionais, a pessoa com deficiência mental


ou intelectual poderá ser submetida a curatela, no seu interesse
exclusivo e não de parentes ou terceiros. Essa curatela, ao contrário
da interdição total anterior, deve ser de acordo com o artigo 84 do
Estatuto da Pessoa com Deficiência, proporcional às necessidades e
circunstâncias de cada caso “e durará o menor tempo possível”. Tem
natureza, portanto, de medida protetiva e não de interdição de
exercícios de direitos (LÔBO, 2015, p. 2).

O Código Civil de 1916 impedia – via interdição, que “os loucos de todos
os gêneros” praticassem qualquer ato da vida civil por si mesmos, sistema no qual o
incapaz era protegido pelo direito, contudo, o advento do Estatuto da Pessoa com

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Deficiência descaracteriza a incapacidade total e absoluta, tornando a pessoa com


deficiência sujeito tanto de capacidade de direito como de capacidade de fato.

Ainda bem que duas inovações da Lei 13.146/2015 escaparam


dessa confusão, criada pelo novo CPC: a curatela compartilhada e a
tomada de decisão apoiada. Pela primeira, a pessoa com deficiência
poderá contar com mais de um curador, para incumbências
específicas; pela segunda, a pessoa com deficiência poderá escolher
pelo menos duas pessoas para apoiá-lo no exercício de sua
capacidade. A segunda, dependente de decisão judicial, não se
confunde com a curatela e tem por objetivo, principalmente, o apoio
para celebração de determinados negócios jurídicos; se houver
divergência entre os apoiadores e a pessoa apoiada, caberá ao juiz
decidir (LÔBO, 2015, p.3).

3 - A AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA NA ATUAÇÃO NOS PROCESSOS


DE CURATELA

O início da atuação do profissional psicólogo nos processos judiciais de


interdição na Vara de Família e Sucessões do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo data das primeiras nomeações destes profissionais na referida instituição em
1985. As avaliações psicológicas neste tipo de processo possuem caráter pericial,
constituindo-se como prova e para tanto, construído dentro dos referenciais legais
da profissão. Citando Primi apud Preto (2016) esclarece que:

[...] a avaliação psicológica não é apenas uma área produtora de


ferramentas profissionais, mas também uma área responsável pela
operacionalização das teorias psicológicas em eventos observáveis,
advogando que a avaliação psicológica e uma área da psicologia
fundamental que integra ciência e profissão (PRIMI apud PRETO,
2016, p. 51).

Preto define laudo Psicológico como sendo

[...] um documento utilizado para descrever como o processo de


avaliação psicológica foi realizado, podendo ser considerado um
311
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

relatório de pesquisa realizado no âmbito profissional; é um


documento de comunicação entre o psicólogo e o destinatário e
normalmente objetiva produzir efeitos benéficos aos envolvidos
(PRETO, 2016, p.25).

A avaliação psicológica é entendida como sendo um processo dinâmico,


onde a partir da seleção apropriada de instrumentos, busca-se analisar
criteriosamente os dados coletados e resultados obtidos a partir de referencial
teórico próprio da área de atuação, produzindo ao final relato escrito ou verbal,
sendo que nas atuações periciais, geralmente se produz um Laudo Psicológico.
O Psicólogo Judiciário realiza avaliação de crianças, adolescentes e
adultos, com a finalidade de subsidiar ou assessorar a autoridade judiciária no
conhecimento dos aspectos psicológicos dos envolvidos na lide, a fim de oferecer
subsídios para a decisão judicial.
Anterior ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, as avaliações
psicológicas em processos de interdição eram demandadas de forma esporádica,
porém a partir da entrada em vigor da referida lei a avaliação fica sob a
responsabilidade de uma equipe multidisciplinar.
Quanto ao conteúdo da avaliação psicológica há divergências quanto aos
aspectos que deveriam ser avaliados. Uma possibilidade de foco para a avaliação
psicológica na Curatela é quando o psicólogo busca avaliar a dinâmica familiar e
demais relacionamentos do interditando em seu dia-a-dia, verificando se a pessoa
está devidamente assistida pelo núcleo familiar, necessidade de encaminhamentos
pertinentes para os serviços especializados dispostos na rede de atendimento local.
Outra possibilidade seria voltada ao periciando, para avaliar sua condição
de exercer suas capacidades, limitações etc. com possibilidade de abordar quais
atividades do cotidiano o indivíduo apresenta condições de realizar por si só e em
quais atividades necessita de ser curatelado.
Necessário se faz reafirmar que, na avaliação multidisciplinar, do
psicólogo deve ater-se à sua área de atuação, não tomando posse daquilo que
compete ao profissional da área médica ou do serviço social, esperando-se dos
outros membros da equipe igual postura, conforme descrito no Art. 2º.

312
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

§ 1o A avaliação da deficiência, quando necessária, será


biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e
interdisciplinar e considerará:
I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III - a limitação no desempenho de atividades; e
IV - a restrição de participação.

Este tipo de processo trouxe uma nova demanda de trabalho para o


Psicólogo perito de Varas de Famílias e Sucessões, que se mantém desenvolvendo
seu trabalho dentro das suas capacidades técnicas, formulando o Laudo Psicológico
e respondendo aos quesitos formulados nos autos de forma imparcial e científica,
porém atendendo às novas demandas trazidas pela referida Lei.

4 - ESTUDO SOCIAL NOS PROCESSOS DE INTERDIÇÃO

O Serviço Social no âmbito do judiciário tem como atividade principal a


elaboração de estudo social, com a finalidade de subsidiar as decisões judiciais nos
processos que envolvem violação de direitos de crianças e adolescentes, conflitos
familiares, ações de curatela/interdição, pessoas com deficiência, idosos entre
outros. As intervenções dentro dos processos judiciais são de natureza pericial, que
se efetiva através do estudo social e culmina com a elaboração de um parecer.
Quanto ao estudo social Fávero afirma que

[...] é um processo metodológico específico do Serviço Social, que tem


por finalidade conhecer com profundidade, e de forma crítica, uma
determinada situação ou expressão da questão social, objeto da
intervenção profissional – especialmente nos seus aspectos
socioeconômicos e culturais (...) é instrumento fundamental no
trabalho do assistente social que atua no sistema judiciário (FÁVERO,
2014, p. 53).

Dentre as demandas acima elencadas, os assistentes sociais têm atuado


nos processos de interdição como peritos, atendendo ao que está previsto nas
legislações vigentes. Neste sentido, o artigo 156 do Código Civil estabelece que “O
juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento
técnico ou científico”.

313
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Entende-se que perito é o profissional que através do conhecimento


especializado traz a “verdade” para alcançar maior objetividade, a fim de subsidiar o
juiz nas decisões com vistas a evitar equívocos; é também especialista chamado
para estudo, investigação, exame ou vistoria de uma situação processual que
produz uma prova. (FAVERO, 2014)
A mesma autora conceitua que a perícia social,

[...] é o estudo social, realizado com base nos fundamentos teórico-


metodológicos, ético-políticos e técnico-operativos próprios do
Serviço Social, e com finalidades relacionadas a avaliações e
julgamentos (FÁVERO, 2014, p.55)

O Código Civil pressupõe, também, em seu artigo 1771, que nos casos de
curatela “Antes de pronunciar-se acerca da interdição, o juiz, assistido por especia-
listas, examinará pessoalmente o arguido de incapacidade”.
Fávero (2013) aponta questionamentos acerca dos conteúdos que são
pertinentes ao Serviço Social na realização de perícia, qual o profissional domina,
investiga e sistematiza? O que busca conhecer acerca de relações e de vínculos
sociais presentes (ou ausentes) na vida dos sujeitos, no que se refere ao trabalho,
com a cidade e com o território, com as políticas sociais? Como acontecem as
relações com a família, qual sua capacidade protetiva, com qual social o indivíduo
e/ou a família, qual conta?
Atualmente, no âmbito legal, há critérios que definem as características para se
considerar pessoa com deficiência, os quais devem nortear a avaliação nos casos de
interdição; porém, a partir da reflexão baseada na formação profissional do assistente social,
no Código de Ética profissional, na Lei de Regulamentação da Profissão e nas referências
bibliográficas estudadas, entende-se que tal avaliação extrapola o objeto do estudo social,
sobretudo no concerne à defesa de direitos. Dentre estes aspectos, o que mais se aproxima
dessa premissa é o inciso IV do Art. 2º da Lei da pessoa com deficiência, abaixo explicitado.

Art. 2o Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem


impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade
de condições com as demais pessoas.

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§ 1o A avaliação da deficiência, quando necessária, será


biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e
interdisciplinar e considerará:
I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III - a limitação no desempenho de atividades; e
IV - a restrição de participação.

Já no caso do Código Civil, não se identifica critério de avaliação quanto


às pessoas que estão sujeitas à curatela que seja matéria do Serviço Social:

Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela:


I – aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem
o necessário discernimento para os atos da vida civil;
II – aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a
sua vontade;
III – os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em
tóxicos;
IV – os excepcionais sem completo desenvolvimento mental;
V – os pródigos.

315
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

5 - CONCLUSÃO

As reflexões, os debates e os estudos realizados nos encontros ou nos


momentos preparatórios para os encontros mensais do Grupo de Estudos,
possibilitaram o desvelamento da complexidade que reveste as ações de interdição
e de curatela, apontando para a necessidade de aprofundamento do tema, a fim de
esclarecer as competências profissionais para atuar nessas ações.
Por outro lado, tais reflexões revelaram, também, que as equipes
interprofissionais, embora não tendo conhecimento específico e especializado nas
ações em questão, acumularam conhecimentos através de intervenções nas ações
da infância e da juventude, no que se refere ao estudo da dinâmica relacional
intrafamiliar, bem como a capacidade protetiva e provedora das figuras responsáveis
pela prole, no entanto, a intervenção profissional nas ações tema de estudo deste
ano, para equipe técnica elaborar laudos psicossociais capazes de fundamentar a
convicção do magistrado e também para assegurar os direitos dos interditos, requer
uma capacitação profissional, haja vista que, a sentença judiciária, em si, não
representa a garantia de direitos ou a qualidade de vida dos interditos, requerendo
da equipe técnica a ampliação dos horizontes de analise.
Neste sentido, a articulação da rede socioassistencial se faz necessária, a
fim de partilhar responsabilidades sociais para dar suporte ao exercício da curatela,
especialmente nos casos de interditos que apresentarem quadros de demência com
reações violentas nas relações intrafamiliares ou sociais e que representem risco à
integridade física daqueles com os quais convivem.
Os caminhos a serem trilhados pelos profissionais requisitados nas ações
de interdição e de curatela estão sendo construídos empiricamente, demandando
com isso, posturas e buscas pautadas no projeto ético-político do Serviço Social e
nas competências profissionais definidas aos profissionais de Serviço Social e de
Psicologia, pela Instituição Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Há ainda pouco material científico produzido por psicólogos voltados a
avaliação psicológica em perícia em ações de Curatela/Interdição, entretanto, o
Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e Psicologia do TJ/SP (2016) em
importante documento elaborado pelo referido Núcleo não há entendimento de que o
psicólogo deva atestar patologias referentes aos casos de interdição.

316
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em específico em relação à atuação do psicólogo, há o entendimento de


que o psicólogo judiciário abordará a dinâmica familiar e demais relações humanas
do Interdito em seu cotidiano, bem como, no que tange a equipe (Psicólogo e
Assistente social) tem ainda como objetivo a análise da qualidade da atenção e dos
cuidados oferecidos ao Interdito, assim como as condições e disponibilidades da
pessoa que assumirá a Curatela\Tutela.
Deste modo, concluímos que os estudos, ora apresentados, revelam a
necessidade de se construir o arcabouço teórico-metodológico que norteie o agir
profissional, com base científica para as profissões que compõem a equipe técnica
do Poder Judiciário Paulista.

317
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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319
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DE ADOLESCENTES:


MEDIDAS DE PROTEÇÃO OU PUNIÇÃO?

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – ASSIS

“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

320
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Laura Moreira de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de Palmital

Silvia Maria Rossi Barreto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Candido Mota

AUTORAS

Ana Lúcia Martins Fonseca – Assistente Social Judiciário – Comarca de Paraguaçu


Paulista

Marcia Cristina Schwarz Mendes – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis

Maria Aparecida Pareschi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Candido Mota

Roberta Schiavinato Felipe – Assistente Social Judiciário – Comarca de Maracaí

Rosana Cesar de Oliveira Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Paraguaçu Paulista

Roseclair Keller de Oliveira Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Assis

Vanessa Aparecida Tusco Bregagnoli – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Quatá

Yvone Aparecida Pereira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Venceslau

321
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DEDICATÓRIA

Dedicamos este trabalho à Psicóloga


clínica Heidi Mirian Bertolucci Coelho, que
trouxe contribuições importantes para
nossa reflexão sobre o tema e sobre
nosso cotidiano de trabalho.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“No líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os


representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente
sentidos da ambivalência.”

Zygmunt Bauman

INTRODUÇÃO

O presente trabalho compreende a produção do Grupo de Estudos


formado por Assistentes Sociais e Psicólogos da Circunscrição de Assis, Ourinhos e
Presidente Venceslau, cujo tema é “O COTIDIANO DA PRÁTICA
PROFISSIONAL”, especificamente neste ano abordando o tema Acolhimento de
Adolescentes: Medidas de Proteção ou Punição?. Traz como objetivo promover a
reflexão sobre as medidas de acolhimento institucional de adolescentes enquanto
mecanismo de punição ou de possível desresponsabilização familiar baseado em
atendimentos, vivências e experiências dos membros deste Grupo de Estudos.

A escolha do tema se deu após várias discussões e angústia dos


profissionais frente às dificuldades de encaminhamentos, considerando a fragilidade
e precarização dos vínculos familiares e a dificuldade de apropriação das atribuições
e papéis desempenhados tanto pelas famílias como pelos diversos atores que
compõem a rede de proteção aos direitos da infância e juventude. Tal reflexão nos
leva a analisar a liquidez das relações humanas e o cotidiano das famílias baseado
em empobrecimento e na dificuldade em formar vínculos sólidos e efetivos.

Para fins didáticos o presente artigo encontra-se dividido em três partes


constitutivas. Na primeira parte do texto, buscou-se discorrer sobre a adolescência e
os fatores de risco que culminam no acolhimento institucional. Posteriormente,
apresentou-se uma discussão sobre vínculos afetivos e o acolhimento institucional
de crianças e adolescentes e por último uma análise dos principais casos de
acolhimento institucional acompanhados pelos profissionais de cada Comarca
representada no Grupo de Estudos. Para isto nos valemos de referencial teórico,
experiência de trabalho e contribuição de profissionais renomados na área de
família.

323
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Na análise dos casos consideramos fatores como composição familiar,


relações socioeconômicas, condições de moradia, dinâmica familiar, figura de
respeito/provedor familiar, quebras, rupturas e traumas significativos na vida do
adolescente ou da família, relacionamento com a figura cuidadora, visão da família e
do adolescente sobre o acolhimento.

Espera-se que o resultado final traga contribuições para o cotidiano da


prática profissional do trabalho técnico do assistente social e psicólogo no poder
judiciário, e promova uma reflexão sobre as práticas de acolhimento institucional
para adolescentes enquanto medida de proteção referendada no Estatuto da
Criança e Adolescente e não como instituto de punição. A apresentação deste
trabalho não esgota o assunto, que deverá ser internalizado e discutido
cotidianamente por todos os atores do Sistema de Garantias de Direitos,
especialmente pelo Judiciário.

324
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - CAPÍTULO I – ADOLESCÊNCIA E FATORES DE RISCO PARA O


ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

Atualmente existe um consenso acerca da adolescência como uma fase


específica do desenvolvimento humano, este conceito foi construído historicamente,
surgindo pela primeira vez apenas no século XIX. Entretanto, foi apenas no século
seguinte, com o desenvolvimento da teoria psicanalítica que se deu atenção
especial ao tema, sendo Freud o responsável por definir o período equivalente ao
que se conhece nos dias atuais por adolescência, ou seja, dos 12 aos 18 anos de
idade.

Para Silva (2010, p. 26), estas teorias, apesar de muito contributivas, se


restringiam a uma análise psicológica do indivíduo. Nas palavras da autora,
“Observa-se, que apesar de tratarem da adolescência, tais autores consideram
basicamente os aspectos psicodinâmicos do indivíduo, sem atentar para fatores
ligados à cultura e ao contexto social em que ele está inserido”.

Neste sentido e ainda de acordo com a mesma autora, é importante


ressaltar sobre esta fase do desenvolvimento humano que:

[...] aspectos relacionados à idade não estão apenas ligados a


processos biológicos ou características naturais, se construindo e se
modificando de acordo com a inserção histórico-cultural dos
indivíduos. Ou seja, as diversas fases do desenvolvimento humano
variam de acordo com a sociedade na qual o homem está inserido,
não se prendendo apenas a aspectos naturais, universalizantes.

Logo, conclui-se como mais aceitável e sensato tratar o período da


adolescência do indivíduo como adolescências, no plural. Assim,

A visão de que a adolescência não se constitui uma fase natural do


desenvolvimento, que está sendo constituída de acordo com o
contexto histórico e social em que o indivíduo se insere, possibilita a
compreensão dessa fase da vida dentro do seu potencial de
adolescente como ator social, ativo no mundo, transformando e
sendo transformado de acordo com as contingências existentes no
meio social (SILVA, 2010, p. 28).

325
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Com esta breve explanação introdutória sobre o conceito de


adolescência/adolescências, podemos avançar no sentido de que, sendo esta etapa
da vida também condicionada por fatores e condições sociais, há grandes diferenças
vivenciadas entre os jovens pertencentes às camadas mais abastadas da sociedade
e àqueles pertencentes às classes mais empobrecidas.

Ao contrário do que se vê nos casos dos adolescentes detentores de um


padrão de vida mais privilegiado, um adolescente pobre tem seu ingresso no
mercado de trabalho de forma mais precoce e constituindo risco pessoal, em
decorrência da necessidade de subsistência familiar. Neste caso, a família, que
deveria ser o local de proteção, oferece poucas possibilidades a este adolescente
(SILVA, 2010).

Faz-se importante neste momento, inserirmos uma discussão acerca dos


fatores de risco que acomete a adolescência pauperizada. No entanto, cabe um
esclarecimento inicial sobre o que se compreende por tais fatores de risco:

(...) situação de risco pode ser considerada como um conjunto de


eventos indesejáveis, inter-relacionados em uma complexa rede de
fatores histórico, culturais, políticos, socioeconômicos e ambientais,
que oferece risco a toda uma comunidade ou subgrupo social
(CALIL, 2003, p. 146 APUD SILVA, 2010, p. 31-32).

Neste sentido, a entrega, o abandono ou a retirada de uma criança ou


adolescente de sua família de origem justificam-se “em determinadas circunstâncias,
como consequência de um movimento integrado por fatores sociais, econômicos,
culturais e emocionais, e não como uma ação mecanicista, situada tão somente no
âmbito das determinações econômicas” (FÁVERO, 2007, p. 31).

Aqui no primeiro capítulo nos deteremos em uma análise dos fatores


objetivos que imputam uma situação de vulnerabilidade familiar. Somente no
capítulo subsequente abordaremos alguns mecanismos subjetivos que influenciam a
institucionalização de adolescentes como medida protetiva, pois acredita-se que
estes fatores encontram-se inter relacionados na constituição do viver do ser
humano.

326
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Neste ponto, nos valeremos de um estudo de Santos (2014), que trata


especificamente da intervenção social em torno dos menores em situação de risco
familiar. Para tanto, a referida autora se vale de um conceito de famílias
multiproblemáticas, que está relacionado a núcleos que apresentam dificuldades em
vários níveis, tais dificuldades se entrelaçam, criando um círculo vicioso de difícil
superação. Assim, o funcionamento familiar destes núcleos, apresenta alguns
padrões comuns, que podem ser tipificados em três categorias: 1) Pais periféricos;
2) Casal Instável; 3) Mulher sozinha (SANTOS, 2014).
Em se tratando da intervenção social no âmbito das famílias
multiproblemáticas, cabe esclarecermos que, normalmente são os filhos que
constituem o motivo da intervenção, ou seja, em regra o ponto de partida do trabalho
social é acionado por terceiros, como por exemplo a escola, quando o adolescente
passa a apresentar absenteísmo ou outros tipos de problemas. Até mesmo os
serviços de assistência social despertam a atenção para tais famílias, quando
constatam situações de carência socioeconômica, negligências ou maus tratos,
iniciando um acompanhamento ou solicitando encaminhamentos.
Como vimos, em contraponto aos riscos apresentados, surgem os fatores
de proteção social, sendo importante citarmos os mecanismos legais, tais como a
Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã, e especialmente o
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, ambos documentos trazem
uma compreensão de implementação de garantia de direitos e também da proteção
social para casos onde já há negligência de direitos instalada.
No âmbito da proteção, este trabalho destaca o acolhimento
institucional, como uma medida de proteção temporária e excepcional (ECA, 1990,
Art. 101, inciso VII, § único) que se justifica pela tentativa de reparar direitos
violados, como a convivência familiar e comunitária, visando reintegração da criança
e/ou do adolescente ao convívio social.
Sobre isto, Santos (2014, p. 185), pondera que:

Na maioria dos casos, a transferência da criança do ambiente


familiar (considerado inadequado ou indulgente) para um ambiente
institucional é uma ação, teoricamente, temporária, esperando-se
que a família de origem se recomponha em termos de funcionamento
estrutural e relacional para que possa receber novamente a criança.
Noutros casos, mais raros, a retirada da criança assume um caráter

327
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

permanente analisando-se, sempre que possível, um projecto de vida


que passe pela adopção ou institucionalização permanente”.

Contudo, acredita-se que esta medida apesar de teoricamente protetiva


pode camuflar aspectos excludentes, principalmente quando trata-se do acolhimento
de adolescentes, os quais muitas vezes são negligenciados pela própria família,
primeira instância da proteção e socialização do indivíduo, e também pelo Estado,
responsável por oferecer assistência às famílias em condições de vulnerabilidade
social.
Estudar estes fatores teóricos da realidade dos adolescentes
institucionalizados é defrontar-se com a realidade destes jovens que quase sempre
convivem com privação e violação de direitos sociais fundamentais. De acordo com
Fávero (2014, p. 189), “Sob a face visível do que pode ser apontado como
negligência, abandono e violação de direitos (...), não raras vezes escondem-se
trajetórias pessoais e familiares de privação de direitos sociais e de cuidados
emocionais”. Some-se a isto que as famílias em questão desenvolvem vinculos
afetivos de modo precarizados, pois mantêm relações entre seus membros de modo
que as relações parentais não são continentes e afetivas, impedindo o
desenvolvimento de filhos psicologicamente capazes de se vincularem com outros
setores sociais.

328
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2 - CAPÍTULO II - VÍNCULOS AFETIVOS E O ACOLHIMENTO


INSTITUCIONAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

O termo vínculo tem sua origem no latim “vinculum”, que significa ligar,
unir. Quanto à sua raiz morfológica está relacionado a vinco, ou seja, marcar algo
que está unido, um laço capaz de formar uma espécie de cadeia invisível, formada a
partir de ligação moral ou afetiva entre pessoas, partes ou instituições.
Analogicamente é como observarmos a própria letra do início deste termo, a letra V,
é unida e inseparável em sua base, porém com destinos independentes.
A noção de vínculo é bem antiga e mesmo com outros termos, aparece
em várias ciências como a filosofia, mitologia, biologia, religião entre outras, sempre
se destacando a sua relevância em função de algo vivo, dinâmico que se forma, se
articulam e funcionam durante toda a vida.
Portanto, ao se considerar que “o ser humano se constitui a partir do
outro”, o Vínculo como estado mental, torna-se essencial ao desenvolvimento
saudável da mente humana e pode ser estudado através de vários modelos com
vários vértices de abordagem.
Nossa abordagem será a psicológica e ou psicanalítica e para tanto é
importante destacar que vários são os autores que trabalharam direta ou
indiretamente com o conceito de vínculo, como não é este o nosso enfoque
principal, apenas delinearemos alguns que nos aludem à evolução do termo:
Freud, embora não utilizasse o termo vínculo desde o início de seus
trabalhos, deixou evidente a importância que atribuiu a eles, desde o Projeto em
1895 até seus últimos escritos, de maneira que durante todo o seu percurso e todas
as suas teorias havia menção a vínculo ao se considerar a teoria pulsional e, com
isso, possibilitou grande referencia ao que hoje entendemos como vínculo de Amor.
Em seguida temos Melanie Klein, que aborda a valorização do vínculo de
ódio como integrante de toda relação objetal, intra ou interpessoal.
Por longo período nos estudos da psicanálise se dizia que “nada é
querido sem ser primeiro conhecido”, a partir dos estudos de Freud e Melanie Klein
se inverteu para: “Nada é conhecido sem ser primeiro querido” (REZENDE, 2000
P.166), ou seja, os afetos antecedem o conhecimento. Com isto, Wilfred Ruprecht
Bion, propôs uma terceira natureza dos vínculos, ou seja, Conhecimento.

329
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A definição de Vínculo, segundo BION “são elos de ligação, seja


emocional ou relacional, que unem duas ou mais pessoas ou unem duas partes
dentro de uma mesma pessoa”.
Embora pareça redundante a expressão “elos de ligação”, se apresenta
no sentido intersubjetivo que a ligação entre dois ou mais elementos psíquicos
sempre criará novas cadeias de inter-relacionamentos, com subsequentes
desdobramentos. Desta maneira, os vínculos são potencialmente transformáveis e
devem ser compreendido através da inter-relação Continente-Conteúdo.
Relação que a partir de Melanie Klein, fundamenta os estudos de
Winnicott e Bion quanto à necessária vinculação da mãe ou figura maternal para que
a criança desenvolva a capacidade de se relacionar, pois a partir dessas primeiras
relações objetais ao se sentir seguro e cuidado, é que será possível enfrentar as
ansiedades do mundo intrapsíquico e, por conseguinte, mundo externo.
Desta maneira que Winnicott e Bion colaboram ao destacar a importância
de se construir redes de relações intersubjetivas, considerando as experiências
intrapsíquica associadas aos objetos e mundo externo, mudando o conceito de uma
teoria basicamente intrapsíquica para o social, em que o sujeito se torna o resultado
desta interação dinâmica e constante: “O SER HUMANO CONSTITUI-SE SEMPRE
A PARTIR DE UM OUTRO”.
Assim Bion, com fundamentos filosóficos em Kant, estudioso de Freud e
Melanie Klein, busca valorizar as relações humanas, a ética e cria a teoria do
conhecimento (K, de Knowledge), em que os pensamentos não existem sem as
emoções, é o aprender com as experiências afetivas.
Se a capacidade de reverie – capacidade da mãe em receber as
identificações projetivas realista do bebê - for suficiente, a criança terá condições de
fazer uma aprendizagem com as experiências das realizações positivas e negativas
impostas pelas privações e frustrações e, neste caso, ela desenvolve uma função K.
Se a capacidade de reverie da mãe for insuficiente, a criança desenvolve
um vínculo – “K” (a mãe é introjetada pela criança como uma pessoa que a destitui
de seus objetos bons e a obriga a ficar com os objetos maus), ou pode resultar num
vínculo “não K”.
Para Bion o significado das emoções é fundamental para o
desenvolvimento da personalidade, para tanto é importante que haja o pensamento

330
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sobre as emoções que estão vinculadas às intimas relações de vínculos de Amor,


Ódio e Conhecimento.
De tal maneira que a simples definição do que é Vínculo nos leva a no
mínimo a três abrangentes aspectos: “Relacional; emocional e relações humanas
exteriores, que podem assumir as seguintes características”.(ZIMERMAN 2010 p.
28):
1. São elos de ligação que unem duas ou mais pessoas, ou duas ou mais
partes de uma mesma pessoa;
2. Estes elos são sempre de natureza emocional;
3. Eles são imanentes (isto é, são inatos, existem sempre como
essenciais em um dado indivíduo e são inseparáveis dele);
4. Comportam-se como uma estrutura (vários elementos, em
combinações variáveis);
5. São polissêmicos (permitem vários significados);
6. Comumente atingem as dimensões inter, intra e transpessoal;
7. Um vínculo estável exige a condição de o sujeito poder pensar as
experiências emocionais, na ausência do outro;
8. Os vínculos são potencialmente transformáveis;
9. Deve ser compreendido através do modelo da inter-relação continente-
conteúdo.
Em síntese este três vínculos (amor, ódio e conhecimento) são
indissociáveis entre si e dependem, diretamente, tanto da disposição hereditária da
criança como e principalmente da capacidade de reverie da mãe.
Não se pode considerar a maturidade adulta como algo separado do
desenvolvimento anterior. Desenvolvimento este extremamente complexo, que
ocorre desde o nascimento, ou antes deste, até a velhice. É aos poucos, e com o
tempo, que o crescimento confere a criança ou ao adolescente se sentido adulto de
responsabilidade.

A literatura aponta a importância das primeiras relações do bebê, para o


seu pleno desenvolvimento. Ao nascer, a criança precisa de alguém que cuide dela
e decodifique suas experiências corporais, alguém que no seu papel maternante vá
significando, dando palavras e sentido à sua experiência corporal.

331
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Na medida em que a criança cresce “em um ambiente suficientemente


bom” ela tende a amadurecer e ganhar autonomia, saindo de uma posição de
dependência absoluta rumo à independência, caminhando para ganhar identidade
como pessoa, como individualidade, para discriminar e separar-se do Outro.

Segundo SILVA, GUIMARÃES e PEREIRA (2014), no processo de


separação-individuação, depender de alguém constitui uma experiência fundamental
para a construção da autonomia, sendo o sentimento de pertencimento uma peça-
chave para a busca de próprio lugar no mundo e a construção de vínculos saudáveis
um requisito fundamental para o desenvolvimento do sujeito.

Assim, quando submetidas à descontinuidade dos vínculos afetivos, a


ameaças de abandono e à perda de amor, a criança pode desenvolver um padrão
de vinculação afetiva ansiosa, desenvolvendo sentimentos de insegurança e
desconfiança, quanto ao outro e ao meio, podendo sentir-se constantemente
ameaçada pela possibilidade de enfrentar novas separações. Essa característica
pode se perpetuar por todo o ciclo vital, constituindo um padrão repetitivo de
estabelecimento de relações afetivas instáveis.

Para Winnnicott (2011) o indivíduo só pode atingir a maioridade


emocional num contexto em que a família proporcione um caminho de transição
entre o cuidado dos pais (ou substitutos) e vida social, e deve-se ter presente que a
vida social é em muitos aspectos uma extensão das funções da família.

A família é considerada o primeiro locus da proteção e socialização dos


indivíduos.

A partir do século XIX a adolescência passou a ser definida com


características que a diferenciasse da infância e da idade adulta. O adolescente
passa por desequilíbrios e instabilidades extremas. As mudanças psicológicas que
se produzem neste período, e que são correlação de mudanças corporais, levam a
uma nova relação com os pais e com o mundo. Neste período flutua entre uma
dependência e uma independência extrema, e só a maturidade lhe permitirá, mais
tarde, aceitar ser independente dentro de um limite de necessária dependência. É
um período de contradições, confuso, ambivalente, doloroso, caracterizado por
fricções com o meio familiar e social.
332
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Toda adolescência tem, além da característica individual, as


características do meio cultural, social e histórico, ou seja, é um período da vida que
varia de acordo com o contexto social, politico, e econômico de uma sociedade
específica, neste sentido, segundo SILVA,E. M.S. (2010) que poderia ser mais
sensato se referir a adolescências.

A literatura também aponta que a qualidade do desenvolvimento do


adolescente nos primeiros anos de vida vai influenciar a qualidade de vida da
adolescência.

Para Calil (2003) situações de risco podem comprometer o


desenvolvimento, dificultando a adaptação do indivíduo ao ambiente e podendo
aumentar a vulnerabilidade pessoal, refletida nos aspectos físicos e psicológicos da
personalidade. Crescer e se constituir como sujeito num ambiente hostil,
determinado pelas adversidades, acaba predispondo a dificuldades de adaptação
social. Já os fatores de proteção são aquele que garantem um desenvolvimento
saudável e seguro. Dizem respeito às influencias que modificam, melhoram ou
alteram respostas pessoais a determinados riscos de adaptação e adoecimento.
Como fator de proteção, porque promove o desenvolvimento de estratégias para que
o indivíduo possa enfrentar as adversidades impostas a ele, destaca-se a rede de
apoio social – família, escola, pares e a comunidade.

Para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, as


redes de apoio social podem servir de fonte de segurança e redução de stress
diante das situações adversas e ajudar na adaptação e enfrentamento da situação-
problema.

Na ausência da família e da comunidade, o abrigo torna-se a única


referencia afetiva e de apoio e estudos apontam que no caso de crianças e
adolescentes que passam por logos períodos de institucionalização, além dos
vínculos familiares e comunitários fragilizados, eles podem apresentar dificuldades
ao lidar com a vinculação afetiva durante o acolhimento institucional. Afora isso, o
abrigo, como única rede de apoio social pode se tornar um risco se o trabalho de
socialização não visar o desenvolvimento da autonomia e a desvinculação
preparando o jovem para viver em sociedade.

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3 - CAPÍTULO III - ESTUDO DE CASO

CASO 1

A família compunha-se pelo pai (se encontra preso), uma tia paterna (que
foi responsável pela criança e devido a um A.V.C. passou a demandar cuidados
especiais e se encontra acolhido num asilo local), um tio paterno, uma prima e o filho
dela (3 anos) e a criança acolhida (10 anos).
A criança possui dois irmãos por parte de pai que se encontra com a
genitora deles, nesta cidade; e quatro irmãos por parte de mãe, que são filhos de
quatro genitores diferentes, sendo que apenas a filha caçula (um ano de idade) se
encontra na companhia materna, enquanto os demais irmãos, assim como a criança
em tela, foram criados pelos familiares paternos, em diferentes cidades do estado.
Em relação à questão socioeconômica, temos que o pai trabalhava
informalmente como auxiliar de serviços gerais, sem renda fixa, com escolaridade
equivalente ao ensino fundamental. Seu grupo familiar contava com auxílio
governamentais tais como LOAS e bolsa família.
A moradia, em processo de aquisição pelo programa “Minha casa – Minha
vida”, é de alvenaria, possui dois quartos, um banheiro, sala, e cozinha, com
mobiliário mínimo.
A criança menor frequenta creche em período integral e a acolhida no ano
correspondente a sua idade, no ensino público.
No que se refere aos papeis desempenhados pelos membros da família,
temos que a manutenção dos membros da família era garantida pelo trabalho do
genitor e pelos auxílios provenientes dos programas governamentais; a ocupação da
criança era frequentar a escola em período integral e brincar nos arredores da casa.

OBS. A criança foi acolhida devido à prisão do pai e o acolhimento da tia


paterna que era sua referência de cuidados e afetiva num asilo local. Os demais
parentes (um tio e uma prima paterna) que ficaram na casa não tinham interesse,
nem condições de se responsabilizar pela criança.
A família paterna extensa da criança é composta por:
- um tio paterno - casado, com dois filhos, por ocasião do acolhimento do
sobrinho não visitou, nem se dispôs a acolhê-lo;

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- uma tia paterna - casada, com dois filhos, auxiliava nos cuidados em
relação à irmã, por ocasião do acolhimento do sobrinho não visitou, nem se dispôs a
acolhê-lo;

- um tio paterno - 34 anos, casado, com um filho de 10 anos, que visitou a


acabou assumindo a guarda em relação ao sobrinho por ocasião de seu primeiro
acolhimento. A criança ficou na companhia desse tio por cerca de 4/5 meses e o
“devolveu” no Conselho Tutelar devido a problemas de comportamento, após
receber visitas do pai. Na ocasião, o Conselho localizou uma tia materna da criança
que ficou com ela por uma semana, “devolvendo-a” na Casa Abrigo – 2º acolhimento
do infante.

Em sua dinâmica familiar, averiguou-se que o genitor trabalhava


esporadicamente e, quando em casa, era responsável pelos cuidados em relação ao
filho e a irmã (depois que ela sofreu o A.V.C.). Trata-se da segunda detenção por
envolvimento com o tráfico de drogas, não existindo história de uso ou dependência
de substâncias psicoativas.
O relacionamento entre pai e filho era afetuoso, entretanto, observava-se
uma precariedade e negligência geral em relação aos cuidados diários, sendo
apontado pelos profissionais do CREAS que a criança não tinha regras e limites.
A família conta com a rede de serviços assistenciais (CREAS/agentes de
saúde), mas não conta com apoio familiar, sendo que os demais irmãos, que moram
nesta cidade, não se dispuseram a acolher a criança.
Em seu perfil, temos que a criança apresenta dificuldades de
aprendizagem e alterações de comportamento na casa de acolhimento, se
mostrando, ora tímido e retraído, ora agressivo, brigando com outros crianças e
adolescentes acolhidos. Frequentemente tristonho e choroso, anseia por retornar ao
convívio do genitor.
A criança tem como figura de referencia afetiva e de autoridade o pai e a
tia paterna que o criou.
Quanto às quebras/rupturas/ traumas significativos na vida da criança,
podemos apontar o adoecimento da tia (A.V.C.) e a prisão do pai que desencadeou
seu primeiro acolhimento; o segundo acolhimento após 4/5 meses sob a guarda de

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um tio paterno que o “devolveu” ao Conselho Tutelar (Abrigo) e o terceiro


acolhimento quando a detenção atual do pai.

O relacionamento com a figura cuidadora, bom.

O genitor não pode se opor, não teve respaldo familiar para que o
acolhimento não ocorresse.

OBS: - em todas as abordagens efetuadas com a criança durante o


período de acolhimento ficava evidente seu sofrimento pelo afastamento de seus
familiares e o desejo de retornar ao convívio do pai e da tia paterna.
- quando a criança ficou sob a guarda do tio paterno apresentou
dificuldade de adaptação à nova escola, dificuldades de aprendizagem, se mostrava
inibido e com comportamentos regressivos, “perdeu” controle de esfíncteres e
(vesical e anal).

- no último acolhimento houve nova mudança de escola e novamente a


criança apresentou dificuldades de adaptação e de aprendizagem

- no decorrer de todos os acolhimentos institucionais a criança não teve


atendimento psicoterápico junto aos recursos do município

- durante o último acolhimento a instituição considerava que a criança


apresentava muitos problemas de comportamento e indisciplina, não acatando as
regras e limites, ficando reiteradas vezes de “castigo” (suspensão de passar os finais
de semana na casa da família hospedeira, que o acolheu em julho p.p.).

- a opção/decisão por acolhimento em família hospedeira foi realizada


com a participação da criança, levando em conta sua vinculação com o genitor e a
possibilidade de retornar ou não ao convívio dele futuramente.

CASO 2

A família compõe-se pela genitora e duas irmãs, com 9 e 11 anos. Ele


possui uma irmã, com 17 anos, a qual é criada por uma avó afetiva. Obs. O pai vive
sozinho, é usuário de álcool e droga e tem comportamento de rua.

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Em relação a questão socioeconômica, temos que a genitora é


empregada doméstica, atualmente fazendo bicos, cuja renda aproxima de meio
salário mínimo. A família está inscrita no Programa Bolsa Família, do qual recebe
R$200,00.
Recentemente a genitora assumiu novo relacionamento conjugal, o qual
colabora com as despesas da casa.
A moradia de alvenaria é alugada ($400,00), precária e com mobiliário
mínimo, compõe-se de sala, cozinha, 01 banheiro e três quartos.
Quanto ao papel desempenhado pelos membros da família, temos que a
genitora é a provedora dos filhos. O companheiro ajuda na manutenção da casa.
Os filhos tema função de ajudar nas tarefas domésticas e estudar.
A dinâmica familiar é permeada por agressões física, como forma de
correção, pelo autoritarismo e abandono. A genitora culpa o adolescente pelo mau
relacionamento entre ele e ela, eximindo-se de qualquer de qualquer
responsabilidade a respeito.
Em seu perfil, o adolescente é retraído, tem baixa estima, é orgulhoso (o
que dificulta assumir que precisa e de receber ajuda). Apresenta comportamento de
mendicância e furto. Indisciplinado na escola, mas apesar de ter certa rebeldia,
mostra-se obediente as regras da casa de acolhimento.
A figura de autoridade para o adolescente é a genitora, uma vez que o
genitor se mantém ausente da vida do filho.
Em relação as quebras/rupturas/traumas significativos na vida do
adolescente, podemos apontar para a desvinculação da figura paterna e o abandono
da mãe.
O relacionamento com a figura cuidadora é conflituoso, truculento, com
pouquíssima afetividade.
O acolhimento ocorreu em função do adolescente ter sido expulso de
casa pela genitora, configurando o abandono, o qual passou a dormir em um carro
velho, em local de risco.
Na visão da família (mãe) o acolhimento é visto como forma de corrigir os
comportamentos desviantes do filho. Avalia que a manutenção do acolhimento é o
melhor para o filho, até que complete a maioridade, pois não acredita que alterará
seus comportamentos inadequados, sê desacolhido.

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O adolescente se sente bem acolhido e protegido no acolhimento e quer


manter-se nessa condição.

CASO 3

A família, atualmente, é composta por uma irmã de 20 anos de idade, um


irmão de 12 anos de idade e avô materno.
O avô materno encontra-se recluso, a genitora é falecida e a paternidade
desconhecida.
A mãe era usuária de drogas, o irmão recém-nascido foi adotado pela tia
materna, assim como a irmã mais velha foi cuidada sob guarda por essa tia, hoje a
irmã está casada, com um filho recém-nascido e residindo em Assis/SP.
Há alguns meses, a tia materna faleceu e a irmã, que se encontra casada,
assumiu a guarda do irmão mais novo e de uma prima.
Em relação à questão socioeconômica atual, a irmã não exerce atividade
remunerada, pois se casou há pouco tempo possui um filho recém-nascido e o
marido estava desempregado, apenas fazendo bicos.
Não temos informações sobre a moradia da irmã que reside atualmente
na cidade de Assis/SP.
No que se refere aos papeis desempenhados pelos membros da família,
a tia materna era quem havia assumido os irmãos, trabalhava como diarista e era
pensionista por viuvez, mas faleceu recentemente e, no momento, a irmã mais velha
assumiu a guarda do irmão mais novo, o qual possui pensão pela morte do pai
adotivo. O marido da irmã é o atual provedor da família, mas sem rendimentos fixos.
Na dinâmica familiar, averiguou-se que todos os parentes maternos (tios e
primos) localizados não se dispuseram a assumir a guarda do adolescente. Alguns
familiares estão presos e outros são dependentes de substancias psicoativas.
A família apenas assumiu a guarda dos irmãos por não apresentarem
nenhum tipo de limitação/deficiência.
A família não conta com rede de apoio familiar, alguns familiares até se
propõe de realizarem visitas ao adolescente na Instituição de modo eventual, mas
não se dispuseram em acolhê-lo.

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Em seu perfil, temos que o adolescente está com 14 anos de idade, é


portador de deficiência mental, possuía comportamento agressivo para com os
funcionários e demais acolhidos na Instituição de Quatá, sendo transferido para o
Lar Santo Clara de Jaci/SP, há mais de dois anos, devido ter se esgotado os
recursos do município em seu tratamento e frequenta a APAE.
Atualmente, o Lar Santa Clara descreveu que o adolescente apresentou
grandes progressos devido ao tratamento dispensado, não mais possui
comportamento agressivo, é independente em suas atividades diárias como
alimentação, vestuário e banho, necessitando apenas de supervisão e almejou o
retorno dele para a Instituição de origem.
O adolescente se encontra destituído do poder familiar e disponível para
adoção.
Por ter sido acolhido aos dois anos de idade, o menino possui como figura
de autoridade os profissionais da casa de acolhimento.
Quanto às quebras/rupturas/traumas significativos na vida do
adolescente, podemos apontar o falecimento da genitora, a desvinculação da figura
paterna, o acolhimento aos dois anos de idade e, posteriormente, sua transferência
para o Lar Santa Clara, pois tinha a Instituição de Quatá como seu lar e sempre
questiona os profissionais quando voltara para casa.
O relacionamento com a figura cuidadora (materna) era negligente em
razão da dependência dela.
O acolhimento ocorreu aos dois anos de idade após o falecimento da
genitora e nenhum familiar se dispor a assumir a guarda devido à sua deficiência.
A família aprova o acolhimento, por entender que é a única alternativa e o
melhor para ele.
O adolescente tinha apenas dois anos de idade quando fora acolhido,
demonstrou ter a instituição como seu lar, avalia sua transferência para a outra
instituição de forma negativa, apresentando sofrimento e idealizando o seu retorno
ao município de origem.

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CASO 4

A família é composta pela mãe, o irmão de 8 anos e o adolescente


acolhido (12 anos e 10 meses).
O adolescente possui uma irmã que já foi acolhida em razão de
empreender fugas da casa, a qual reside em outra cidade e uma avó, cega, que
mora próximo.
Em relação à questão socioeconômica, temos que a mãe trabalha na
lavoura, com renda de 01 salário mínimo aproximadamente. A genitora possui baixa
escolaridade.
A moradia de alvenaria é pequena, precária e possui mobiliário mínimo. A
Casa é alugada, composta de 01 quarto, cozinha e banheiro.
Os filhos frequentam a escola no ano correspondente as suas idades, no
ensino público.
No que se refere aos papeis desempenhados pelos membros da família,
temos que genitora é a provedora do lar; o adolescente tinha a tarefa de realizar
todas tarefas domésticas e frequentar a escola; o irmão mais novo só estudava.
OBS. Quando o adolescente foi acolhido, a mãe delegou ao filho mais
novo essa função.
Em sua dinâmica familiar, averiguou-se que a genitora passa o dia no
trabalho, retornando no final da tarde. A genitora faz uso de etílicos, atualmente de
modo mais moderado. É resistente aos encaminhamentos dados, sempre se
justificando com a necessidade de trabalhar/ falta de tempo.
O relacionamento entre mãe e filhos é autoritário, pouco afetivo, com
pouco diálogo e permeado por agressões físicas. Ela delega aos filhos aos filhos
que respondam por suas atitudes.
A família não conta com uma rede, efetiva, de apoio familiar, os irmãos da
genitora moram em outra cidade e não se dispuseram a acolher o adolescente; a
avó que mora no município é idosa e deficiente visual.
Em seu perfil, temos que o adolescente é estudioso, obediente na casa
de acolhimento, comunicativo, tem projeto de vida (valoriza o estudo e quer formar-
se). Demonstra anseio por uma vida material melhor. Apresenta-se um pouco

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manipulador e, às vezes, usa o recurso da mentira. Não interage bem com a


genitora e não aceita o modo simples de vida que ela possui.
O adolescente tem como figura de autoridade a genitora, considerando
que tem pai desconhecido.
Quanto a quebras/rupturas/ traumas significativos na vida do adolescente,
podemos apontar a transferência da irmã mais velha para cidade diversa e o
afastamento da mãe, com o seu acolhimento.
O relacionamento com a figura cuidadora era conflituoso, negligente e
abusivo.
O acolhimento ocorreu pelo fato do adolescente ter sofrido agressão por
parte da mãe, resultando que ele próprio quis ser acolhido como modo de se
proteger.
A genitora aprova o acolhimento, por entender que acolhido ele não
estará em risco nas ruas ou sob influência de “más companhias”.
O adolescente avalia o acolhimento como positivo, pois atende seu
anseio de ficar afastado do lar da mãe (de suas imposições e precariedade).

CASO 5

A família é composta por mãe, padrasto, e 04 irmãos bilaterais, destes 03


tem histórico de acolhimento. O genitor reside em outra Comarca onde constituiu
nova família, paga pensão esporadicamente e tem poucos contatos com os filhos. A
genitora reside em Campos Novos Paulista juntamente com o companheiro e juntos
tem 01 filho de 07 anos. Três filhos são egressos do serviço de acolhimento,
atualmente a irmã casou-se e o irmão reside com a genitora.
Em relação às condição socioeconômica identificamos não ser o cerne da
questão, a genitora e o padrasto são trabalhadores rural na colheita de mandioca e o
genitor ajudante geral em empresa, o adolescente trabalha em um quiosque de
lanche com renda de 01 salário mínimo nacional.
Quanto ao papel desempenhado pelos membros temos que a genitora é a
provedora do lar, inclusive o companheiro é seu subordinado no trabalho, o filho
auxilia a família com parte da renda, além de prover suas despesas.

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A dinâmica familiar é permeada de situações de abandono e abuso


sexual. O primeiro acolhimento dos filhos se deu devido à denuncia de abuso sexual
por parte do padrasto com uma das filhas, posteriormente a genitora compareceu ao
conselho tutelar onde assinou um termo “abrindo mão da maternidade” e os
encaminhou novamente ao abrigo, após audiência concentrada diz ter se
arrependido e retomou o poder familiar. Passado aproximadamente 08 meses a
adolescente (filha mais nova) foi novamente acolhida por denuncia de abuso sexual
por parte do padrasto.
Em visita domiciliar a genitora informou que não quer qualquer contato
com a filha, inclusive não aceita fazer visitas ao acolhimento, diz que a menina é
mentirosa e que escolheu seu caminho. Em audiência concentrada foi enfática que
não quer contato, sequer cumprimentou a filha no corredor do fórum.
Em seu perfil a adolescente é tranquila, tem baixa autoestima, se culpa
pelo acolhimento e pelo abuso sofrido. Sente muita saudade da família e acredita
que se tomar cuidado – como trancar a porta do quarto ao dormir, não usar roupas
curtas – o padrasto não irá assediá-la novamente.
A figura de autoridade para a adolescente é a genitora, o pai é ausente e
tem pouco contato, atualmente está em processo de fortalecimento de vínculos com
vista ao desacolhimento.
Quanto às quebras/rupturas/traumas significativos, identificamos o
abandono paterno com a separação do casal, a desproteção da genitora quando
teve conhecimento do abuso e a culpabilização da adolescente pelas mazelas
sofridas.
O relacionamento com a figura cuidadora no serviço de acolhimento é
tranquilo, respeitoso e afetuoso, a adolescente se mostra carente de afeto.
O acolhimento se deu em função das denuncias de abuso sexual e o
abandono familiar, a genitora entregou a filha aos cuidados do Conselho Tutelar e o
genitor ao tomar conhecimento da situação se mostrou inerte.
Na visão da família, (genitora) o acolhimento é visto como corretivo e uma
forma de puni-la por “mentir”. Acredita que se a filha voltar ao seu convívio poderá
prejudicar o seu relacionamento. Não se sente responsável pelos filhos, frisando que
sua responsabilidade se resume ao filho de 07 anos e o adolescente que esta sob
sua guarda, porém somente até completar 18 anos.

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CASO 6

Composição e estrutura familiar: O Núcleo Familiar do Acolhido é


composto pela genitora S.A.P. – 55 anos e padrasto B. A. S. F. – 54 anos; Ressalta-
se que o padrasto deixou a residência no ato do desacolhimento de Murilo, contudo,
não rompeu o relacionamento amoroso com a genitora e a vinculação afetiva com
Murilo.
O Genitor J. C. A. atualmente reside em outro município – Nãos e tem
informações atualizadas da Estrutura Familiar do genitor.
IRMÃ – A. F. P. – 34 anos é casada e tem uma prole de três filhos.
IRMÃO – A. D. P – 31 anos é amasiado e não tem filhos, contudo reside
junto ao casal, o filho de sua amasia.
Quanto à situação sócio econômica a Genitora foi contemplada com a
concessão do B.P.C – Beneficio de Prestação Continuada no valor mensal de um
salario mínimo, também é Beneficiaria do Programa de Transferência que concede
valor mensal de R$ 124,00. Cabe salientar que a concessão do B.P.C foi deferida
após o acolhimento do adolescente, uma vez que a Renda Financeira da Família por
alguns anos foi proveniente apenas da Pensão Alimentícia recebida em nome do
filho no valor de R$ 360,00, caracterizando a situação econômica familiar
extremamente fragilizada, visto que a genitora em virtude dos seus
comprometimentos de saúde não reúne condições para a realização de trabalhos
esporádicos; A situação econômica sofreu melhorias quando a genitora passou a
viver em união estável com o cônjuge.
No que se refere ao papel dos membros da família – segundo
informações prestadas pelo Conselho Tutelar a postura de permissividade e
omissão da genitora dificultou extremamente as intervenções junto à problemática
vivenciada, contribuindo ainda mais para o comprometimento comportamental do
filho. É observado que a Genitora nutre um sentimento de culpa perante todo o
contexto familiar que culminou o acolhimento do filho, todavia, o movimento adotado
para amenizar a problemática, é a concessão demasiada de roupas, sapatos,
alimentos e tudo o que lhe é solicitado, mesmo situações que perpassam regras ou
limites, é concedido pela genitora. Cabe salientar que a genitora sofre algumas
questões de saúde, visto que além do tratamento de Depressão ela realiza também

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o tratamento de Enfisema Pulmonar, doença enfrentada desde seus 18 anos de


idade.
Padrasto – B. A. S. F., trabalha na Usina Agroterenas como “Engatador”
recebendo o Honorário de aproximadamente R$1.700,00. O casal vive em União
Estável há 04 anos e o relacionamento se iniciou após uma visita realizada por
cônjuge e membros da Igreja Renovada a casa do núcleo familiar, pois ela estava
acamada em virtude da Depressão; Nesse ínterim ambos foram se aproximando nos
cultos da igreja e por fim passaram a residir juntos.
OBS: O cônjuge tem um grande apreço pelo acolhido e tal sentimento é
reciproco também por parte do adolescente perante o padrasto, uma vez que, o
acolhido o chama por diversas vezes de pai, se referindo ao mesmo como sua única
figura paterna. Evidencia-se que o padrasto e acolhido tiveram uma única briga,
onde o adolescente estava agredindo a genitora e o padrasto interviu.
O Genitor J. C. A. acompanhou toda a gestação do filho, visitando lhe
quinzenalmente até os 04 anos de idade, porém, se afastou definitivamente quando
Sonia exigiu o pagamento de Pensão Alimentícia ao filho. O reencontro aconteceu
quando o filho tinha por volta de 12 anos de idade e foi incentivada pelo Conselho
Tutelar do Município de Lutécia junto a Psicóloga que atendia Murilo neste período,
a ação visou à tentativa de intervenção junto à problemática comportamental do
acolhido, no entanto o genitor não correspondeu às expectativas vivenciadas pelo
acolhido e Conselho Tutelar, uma vez que o genitor alegou que sua esposa não
tinha conhecimento da existência do filho e que não iria comprometer sua
convivência junto à família em virtude do mesmo.
Irmã A. F. P. nutre tanto pela Genitora quanto pelo irmão caçula, um
profundo sentimento, configurando-se com um esteio defronte a ambos; A genitora
reconhece na filha o apoio, amparo que lhe possibilitou a melhora da depressão,
tendo em vista que quando a genitora permaneceu acamada em virtude da doença,
a primogênita assumiu todas as responsabilidades e cuidados perante a casa e ao
irmão, ambas aparentam possuir um relacionamento muito positivo. Já o
adolescente por sua vez, manifesta ter um carinho grande pela irmã, segundo ele,
por muitas vezes frente aos conflitos com a mãe, a irmã intervinha e era a única
pessoa que ele escutava, acatando suas orientações.

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IRMÃO – O Núcleo Familiar de A. D. P é composto por ele, a cônjuge e


seu filho. Segundo relatos da Genitora, A. D. P ficou preso por 10 anos (18 a 28
anos) por motivo de envolvimento com drogas, no entanto, faz o uso de drogas até
hoje, sugere-se que ele faça o uso do “CRACK”, a genitora alega que ele permanece
alguns períodos sem fazer o uso da droga, mas sempre acaba tendo recaída; A
Genitora sofria frequentes agressões físicas por parte de filho, visto que o filho exigia
que ela o amparasse financeiramente e por muitas vezes ela não detinha condições,
frustrado com a negativa acaba por agredi-la, salienta-se que M.P.A por diversas
vezes presenciou as agressões e interviu em defesa da genitora. Salienta-se que as
agressões sempre aconteciam em horário que o cônjuge estava trabalhando e ela
não relatava a violência ao companheiro.
Segundo informações prestadas pela genitora, a dinâmica familiar sempre
foi muito intensa, devido ao comprometimento do filho A. D. P com o uso e venda de
drogas, quando ainda residiam no município de Paraguaçu Paulista/SP, e que o
levou a ficar preso por 10 anos (18 a 28 anos);
OBS: Evidencia-se que o filho A. D. P ficou acolhido nesta instituição até
os 12 anos de idade, uma vez que ela não detinha condições de cuidar do filho, visto
que a filha permanecia sob os cuidados da avó materna para que a genitora
trabalhasse. O acolhimento do filho A. D. P se deu, segundo ela, em virtude de seus
pais a forçar em escolher entre os dois filhos, pois o casal não assumiria o cuidado
dos dois irmãos.
Quanto ao acolhido, a genitora relata que meados dos seus 10 anos de
idade, a Convivência Familiar acontecia de maneira “tranquila”, no entanto, houve
situações em que foi necessária a intervenção da irmã primogênita nas agressões
físicas que ela tecia perante o filho, agressões que segundo ela aconteciam no
intuito de correção enfrente a “birras”, maus comportamentos pertinentes à idade. As
agressões físicas praticadas pelo acolhido em frente à Genitora iniciaram após os
seus 10 anos, culminando com um período de depressão profunda vivenciada por
ela, uma vez que segundo a Genitora, ela chegou a ficar internada por mais de 01
mês para o tratamento da doença; Ela relata que esse período foi de intenso
abandono tanto em relação ao acolhido quanto ao trabalho, e que no período de
internação, ela nem se quer relatou ao filho onde estava indo, deixando-o sob os
cuidados da filha primogênita.

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A genitora relata que as agressões sofridas pelo acolhido partiam de


agressões verbais e se intensificavam em agressões físicas frequentes como
pontapés, empurrões e tapas. Informa ainda, que ele simplesmente acordava mal e
começava a agredi-la, tal situação se agravou quando o acolhido passou a fazer o
consumo de bebida alcoólica e suposto uso de maconha, todavia, ela não efetivava
o registro da ocorrência junto a Policia Civil, não solicitava o apoio da Policia Militar,
acionando ocasionalmente o Conselho Tutelar.
Conclui-se com a observação, de que o Núcleo Familiar do acolhido
sempre foi chefiado por sua genitora, dado os constantes abandonos sofridos por
seus parceiros, posto que o genitor de A. F. P. e A. D. P não se responsabilizava
pelos cuidados da prole, tendo alto envolvimento com bebida alcoólica, vindo a
falecer; Já M.P.A sugere-se ser fruto de um relacionamento extraconjugal, porquanto
que o genitor passou a custear os alimentos para o filho sem o conhecimento de sua
esposa, negando-se a qualquer aproximação com M.P.A. A genitora por sua vez,
buscou no trabalho rural a fonte de renda para provir para a prole, transferindo os
cuidados maternos por muitas vezes a filha primogênita; Já no município de Lutecia
passou a trabalhar como diarista, contudo, logo veio a adoecer.
Perfil do adolescente: O acolhido M.A.P. possui comportamento
extremamente agressivo/violento quando contrariado, apresentando intensas
dificuldades em conviver socialmente com sua família e figuras de autoridade no
âmbito escolar e comunitário; Faz o consumo de Bebida Alcoólica e também do uso
da maconha.
Foi encaminhado através de Determinação de Internação Compulsória ao
Hospital Psiquiátrico São Francisco em Marília no dia 11/04 com Alta Hospitalar em
02/05; Murilo foi internado por apresentar quadro de Transtorno Opositor Desafiador
(TOD) CID F 91.3, sendo necessária sua internação para ajuste medicamentoso
uma vez que o adolescente nunca aderiu ao tratamento antes ao acolhimento.
O Acolhido não detém uma figura de autoridade, nutrindo vínculos
afetivos fragilizados perante a genitora e a irmã A. F. P. Houve se a tentativa de
construção dessa figura junto ao genitor, contudo o mesmo se negou a propiciar
essa aproximação.
Através da escuta do adolescente, é possível observar a dificuldade
vivenciada (mágoa, ressentimento, revolta) defronte a ausência paterna acoplada à

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negativa do genitor na tentativa de aproximação ocasionada pelo Conselho Tutelar


quando o adolescente tinha por volta de 12 anos de idade. Acoplada a essa
situação, o acolhido relata também da morte dos avós maternos, que se
consolidaram por muito tempo como um esteio ao núcleo familiar. O relacionamento
do adolescente com as figuras cuidadoras sempre foi conflituoso/ abusivo permeado
de negligencia/omissão e falta de afinidade
No que se refere ao comportamento no Serviço de Acolhimento o
acolhido anterior a Internação Compulsória acarretou diversos conflitos no âmbito
institucional, voltando-se às figuras cuidadoras com postura agressiva e violenta de
enfrentamento e desacato, manifestando tendências vingativas e persecutórias
defronte a figuras especifica dentro do serviço; Conquanto, com o inicio do
Tratamento Psiquiátrico, o adolescente passou a permitir-se a estabelecer vínculos
afetivos com os colaboradores.
O Acolhimento Institucional do adolescente foi determinado em razão de
sua conduta, uma vez que o adolescente possui comportamento extremamente
agressivo/violento quando contrariado, apresentando intensas dificuldades em
conviver socialmente com sua família e figuras de autoridade no âmbito escolar e
comunitário, manifestando tendências vingativas, uma vez que tecia ameaças de
agressões físicas aos Conselheiros Tutelares do município de Lutécia como também
a genitora.
Inicialmente, a genitora não reconheceu a necessidade de o adolescente
ser encaminhado ao Serviço de Acolhimento, visto que segundo ela, a problemática
comportamental e agressões físicas praticadas pelo acolhido haviam cessado logo
após a oitiva na Promotoria Pública. Logo, a genitora passou a relatar que o
adolescente precisava sim, ser afastado no núcleo familiar para reconhecer a
importância do tratamento psiquiátrico, todavia, durante o período de acolhimento a
genitora manifestada oscilações de opiniões frequentemente, muitas vezes burlando
as regras da instituição para ocasionar benfeitorias ao acolhido de maneira oculta.
Visão do adolescente a respeito do acolhimento de início o adolescente
aceitou o Acolhimento Institucional muito tranquilamente, conforme relato próprio, no
entanto, afirmava a todo o momento o quão era nervoso e não conseguia se
controlar diante de situações de frustração, adotando sempre a conduta de
agressividade e violência na resolutividade de problemas. Ressaltava ainda o uso

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frequente de bebida alcoólica e o uso da “maconha”, todavia, foi observada que essa
fala, por muitas vezes acontecia no intuito de se empoderar dentro da casa e
amedrontar os demais acolhidos. A permanência do acolhido no serviço foi
caracterizada por ameaças de violência física perante os demais acolhidos, conflitos
intensos com os colaboradores, culminando em sua Internação Compulsória;
Posterior ao retorno da internação, o acolhido coabitou melhor com as regras
institucionais, demais acolhidos e colaboradores, contudo passou a manifestar
extrema ansiedade em retomar o convívio familiar, levando-o a cravar boicotes em
Tratamento Medicamentoso e Acompanhamento Psicológico.

CASO 7

A família é composta pela genitora e a adolescente acolhida. A genitora


tem benefícios recebidos de pensão morte da mãe, em nome de A.C. filha, e
benefício de auxílio doença da própria genitora, residência própria, renda estimada
em 03 salários mínimos.
Quanto à dinâmica familiar as relações são totalmente conflituosas entre
genitora e filha. A genitora culpabiliza a filha por toda situação de risco e
vulnerabilidade. A principal causa do acolhimento foi a situação de violência com
agressões físicas, uso de entorpecente, relacionamentos conflituosos com pessoas
envolvidas em criminalidade com grave consequências, faltas escolar, problemas de
saúde tais como: transtornos mentais, DSTs.
Apresenta um perfil de rebeldia, ausência de limites e relação simbiótica
com genitora.
As principais quebras/rupturas/traumas significativos na historia da
adolescente foi a ausência e indiferença paterna e o descompromisso deste em
relação a filha e a perda dos avós maternos com os quais teve uma convivência
considerada significativa para a adolescente e os via como figura de autoridade.
O relacionamento do adolescente com as figuras cuidadoras é
conflituoso, abusivo, negligente e com pouca afetividade e afinidade.
O motivo do acolhimento foi a negligencia materna, desequilíbrio
descontrole emocional ou seja doentio da genitora, ocasionando problemas de
violência entre mãe e filha com agressão física.
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Durante o período de acolhimento a genitora, demonstrava que se sentia


culpada da filha estar acolhida, mas não acatava nenhuma orientação ou
atendimento requisitados pela rede socioassistencial, fortalecimento de vínculo
familiar ou seu próprio, não tem nenhum controle da situação em saber exercer
autoridade materna, disciplina e limites.
A adolescente oscilava muito a respeito do acolhimento, aparentava as
vezes e no inicio uma certa tranquilidade de estar longe daquela situação com a
genitora, mas, em pouco tempo desencadeou a ansiedade de sair, por sentir-se
privada de passear, namorar, enfim ter uma vida normal de adolescente. Nesta fase
começa então o sofrimento que todos os adolescentes apresentam ao estar
acolhidos, que estarem sendo punidos por seus comportamento, estão confinados
então por sua própria culpa.
A adolescente começou a manipular a genitora a seu favor para assim ter
como sair do acolhimento o quanto antes visto que com tempo e nos atendimento de
toda rede serviços, fomos percebendo que este caso era mais de conflitos,
desestrutura familiar e emocional de ambas as partes e que se tratava de um caso
de saúde mental grave, e não situação de risco e vulnerabilidade para necessidade
permanecer no acolhimento.

3.1 - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ESTUDOS DE CASO

Da avaliação dos casos e discussão em grupos levantou-se que a maioria


das famílias é empobrecida e tem como provedora a mãe/chefe de família, que
também é a figura de autoridade, os trabalhos /responsabilizações geralmente
recaem sobre esta figura. Frise-se aqui que o empobrecimento não diz respeito
somente à ausência de renda, mais também de acesso à politicas públicas de
qualidade.
São famílias que ao longo do tempo foi perdendo a capacidade protetiva e
fragilizando/rompendo os vínculos resultando na falta de continência familiar, ou
seja, não possuem recursos psicológicos e sociais capazes de gerenciar as
questões sociais impostas e os desmandos de uma juventude criada sem
referências positivas, culminando com a transferência das responsabilidades
paterno-maternas ao Estado.
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Dos casos analisados o abrigo ocupa um lugar de suprir as funções


paterno-maternas de disciplina, imposição de limites e frequência escolar e outras.
Por outro lado algumas famílias veem o abrigo como uma punição ou correção ao
adolescente frente a condutas ou atitudes sobre a qual ela se sente impotente. As
famílias atribuem aos adolescentes a responsabilidade, porém não fazem uma auto
crítica sobre sua co-responsabilidade. Em contraponto o Estado corrobora a ação
das famílias, mantendo os serviços de acolhimento em detrimento de politicas
públicas preventivas de qualidade.

Concluindo, todo o aparato legal que institui as medidas de proteção, se


opõe ao pesquisado, tanto na temporalidade quanto nos objetivos do acolhimento
institucional.

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4 - CONCLUSÃO

Embora o ECA tenha trazido a Criança e o Adolescente enquanto sujeito


de Direitos e o acolhimento institucional como medida de proteção excepcional e
provisória, a visão da família em relação a esta medida ainda é como um instituto
punitivo e de transferência de responsabilidade.

Historicamente nos deparamos com famílias empobrecidas e muitas


vezes negligenciadas pelo Estado, que cumpre seu papel parcialmente, não
garantindo politicas públicas capazes de contingenciar as mazelas humanas e
apoiar as famílias na superação e solução dos problemas, contribuindo para uma
população cada vez mais dependente e incapaz de agir por si própria.

Pela revisão de literatura, para que o vínculo familiar ocorra de forma


saudável, as primeiras relações objetais devem se desenvolver numa relação de
afetividade a qual as funções parentais sejam continentes, para isto as famílias
necessitam de suporte tanto emocional quanto social e de apoio do poder público,
através de politicas sociais de qualidade.

No entanto, no decorrer da prática profissional o que se observa é que no


âmbito da família as funções parentais encontram-se prejudicadas sendo que uma
das causas deste prejuízo esta relacionada à carência de suporte de políticas
públicas eficazes. Neste sentido, observamos vários aspectos que implicam no
acolhimento institucional, tais como:

 As famílias que negligenciam, são elas próprias negligenciadas, esta


relação cíclica podem comprometer as vinculações afetivas.

 As mudanças societárias aceleradas - sociais e culturais – causam


conflitos nas famílias que não os permite lidar com a adolescência, resultando num
distanciamento/esgarçamento de vínculos/ comportamentos desviantes/falta de
pertencimento, somando se a isto, o perfil pouco afetivo dos membros familiares.

Neste contexto a família não consegue dar conta e deposita/percebe o


acolhimento como uma instituição que supre as funções parentais, onde o

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adolescente deverá ser “moldado”, ou seja, transfere para o estado o papel parental
e esquece sua co-responsabilidade.

Importante destacar que além das questões sociais que implicam no


acolhimento institucional de adolescentes, a desresponsabilização das famílias
dificultam o trabalho e os encaminhamentos do setor técnico, postergando a
permanência dos adolescentes nos serviços e reforçando a tese familiar de punição.
Logo concluímos que a falta de políticas públicas efetivas no apoio às famílias
somado a ausência de relações parentais continentes e da desresponsabilização
familiar perverte o acolhimento institucional, transformando-o em instituto punitivo e
não protetivo, conforme preconiza o ECA.

352
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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BION, W. R. ELEMENTOS DE PSICANÁLISE. Rio de Janeiro: Imago, 2004.

BOWLBY, J. Formação e rompimento dos laços afetivos. 5ª edição. São Paulo:


Martins Fontes. 2015

FÁVERO, Eunice Teresinha. Questão Social e Perda do Poder Familiar. São Paulo:
Veras, 2007.

Programa de formação para os núcleos de preparação para adoção e


apadrinhamento afetivo. Secretaria de Direitos Humanos/Aconchego. Brasília 2015.
REZENDE, A. M. A IDENTIDADE DO PSICANALISTA: FUNÇÃO E FATORES.
Taubaté/SP: Cabral Edit. Universitária. 2000.

SANTOS, Clara Cruz. Intervenção social junto das famílias com crianças
institucionalizadas. In: MENDES, Tiago de Sousa; SANTOS, Pedro Vaz (orgs.).
Acolhimento de Crianças e Jovens em Perigo. Lisboa: Climepsi Editores, 2014.
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SILVA, Martha Emanuela Soares da. Acolhimento Institucional: a maioridade e o


desligamento. 135f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2010.

ZIMERMAN, D.E. OS QUATRO VÍNCULOS. Porto Alegre - Artmed. 2010.


_________, FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS: TEORIA, TÉCNICA
E CLÍNICA. Porto Alegre – Artmed. 1999.

Winnicott, D.W. A família e o desenvolvimento individual. 4ª edição. São Paulo.


Martins Fontes. 2011

353
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL, OS REFLEXOS NA


JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS E A INTERFACE COM
A ATUAÇÃO DOS SETORES INTERPROFISSIONAIS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – BAURU


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

354
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Joyce Borges Romeiro – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru


Lucia Pereira dos Santos Martarelli – Assistente Social judiciário – Comarca de
Bauru

AUTORES

Ana Paula Gonçalves Calazans – Assistente Social Judiciário - Comarca de Duartina


Carlos Felipe de Freitas Rossi – Psicólogo Judiciário – Psicossocial Clínico da
Comarca de Bauru
Denise Ferraz de Aguiar – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Cruz do
Rio Pardo
Denise Vitório – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Eclea Correa de Lacerda Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Edelmaris Campanhã de Moraes e Lima – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Lençóis Paulista
Eliane Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Lençóis
Paulista
Fabiana de Oliveira Rosolin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pederneiras
Ivandra Carla Carneiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bauru
Laís Elaine Catini Sattin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Lençóis
Paulista
Maria Camila Lopes Lenharo Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Bauru
Rebeca Ferreira Pedroso de Andrade – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Jaú
Silvia Regina Gonçalves Serrano – Assistente Social Judiciário – Comarca de Gália
Solange Aparecida Serrano – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bauru
Vania Aparecida Borim Moretto Delpino – Psicóloga Judiciário – Comarca de Jaú.

355
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

AGRADECIMENTOS

À Instituição Toledo de Ensino pela disponibilização da infraestrutura


necessária à realização dos Encontros do Grupo de Estudos durante o ano.

356
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

No ano de 2017, o Grupo de Estudos de Bauru que tinha como tema


principal assuntos correlatos à Família sentiu necessidade e interesse em estudar as
questões que envolvem o idoso. Pautadas inicialmente pela Lei Federal nº 10.741 de
1º de outubro de 2003, conhecida também como Estatuto do Idoso, representa um
marco jurídico para a proteção da população senil brasileira, considerando sua
peculiar vulnerabilidade, suas demandas, e, acima de tudo, seus direitos.
Esta normativa veio reafirmar garantias e mobilizar ações que fundam
numa visão antropológica das pessoas da terceira idade; que foca em seu
envelhecimento biológico, na dinâmica social e nas politicas públicas, assim, o
Grupo teve como premissa a construção de um espaço de reflexão, estudos,
pesquisa, compartilhamento de experiências que geraram este trabalho de forma
participativa.
Segundo informações disponibilizadas no portal
http://www.brasil.gov.br/saude (BRASIL, 2017), neste ano, o País já detém a quinta
maior população idosa do mundo, com cerca de 28 milhões de pessoas com 60
anos de idade ou mais, população está, ascendente, que é carregada de limitações
e perdas econômicas, sociais e de direitos.
O Brasil não se projetou adequadamente para atender a demanda e
mesmo com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso, depara-se com violações de
direitos, descasos e comportamentos desumanos que desencadeiam
questionamentos sociais.
No âmbito do trabalho interprofissional no judiciário paulista, a trajetória é
fortemente marcada pela atenção à população infanto-juvenil. Todavia, no cenário
de envelhecimento atual, há pouca efetividade da atenção estatal ao seguimento
populacional dos idosos, situação que levou a incorporação de novas atribuições
aos Setores Técnicos de Psicologia e Serviço Social dos Fóruns das Comarcas do
Estado, dentre estas, atenção maior para processos que envolvem pessoas idosas,
demandas que tornam-se frequentes e crescentes a cada dia.
Ao deparar-se com a escassa literatura envolvendo idosos e as
alterações dos valores sociais e morais apresentados pela sociedade em relação à
pessoa na melhor idade, considera-se importante aprofundar o conhecimento acerca

357
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

dessa população como sujeito de direitos. Diante de tal lacuna, apresenta-se a


seguir, as principais reflexões deste Grupo sobre o tema.

1 - O ESTATUTO DO IDOSO

A promulgação da Lei Federal nº 10.741/2003 - Estatuto do Idoso -


inaugurou dois princípios fundamentais para esse segmento populacional: o
princípio da proteção integral e o da prioridade absoluta, os quais pontuam o
respeito e a relevância que o Estado brasileiro deve conferir à sua população idosa.
Pela Lei vigente, no sentido de regular seus direitos, considera-se idoso a
pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos. A legislação deve reforçar os
direitos fundamentais como, direito à vida, à liberdade, ao respeito e à dignidade,
alimentos, saúde, educação, cultura, esporte e lazer, profissionalização e do
trabalho, da previdência social, da assistência social, da habitação e do transporte.
Todavia, parte dos direitos elencados nesta Lei, somente será assegurada aos
maiores de sessenta e cinco anos de idade.
As medidas de proteção ao idoso são aplicáveis sempre que os direitos
forem ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por
falta, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de atendimento e/ou em
razão de sua condição pessoal.
Visando ao atendimento das necessidades do idoso, apresenta-se a
questão da Política de Atendimento que engloba o conjunto de ações não
governamentais, governamentais e da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios.
A fim de assegurar o acesso do idoso, a Lei determina em seu Art. 70,
que o Poder Público poderá criar varas especializadas e exclusivas do idoso,
priorizando a tramitação dos processos e procedimentos na execução dos atos e
diligências judiciárias.
Na seara da proteção, elencam-se na Lei os crimes cometidos contra a
pessoa idosa e suas respectivas penalidades, na esteira do Código Penal – CP
(BRASIL, 1940) e no Código de Processo Penal - CPP (BRASIL, 1941), por
exemplo, são crimes as seguintes condutas:

358
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[...]- a discriminação no acesso a operações bancárias, meios de


transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou
instrumento necessário ao exercício da cidadania, em razão da
idade.
- a não prestação de assistência ao idoso, quando possível fazê-lo
sem risco pessoal, em situação de iminente perigo, ou recusar,
retardar ou dificultar sua assistência à saúde, sem justa causa, ou
não pedir nesses casos o socorro de autoridade pública.
- o abandono do idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de
longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas
necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado.
- a exposição a perigo, a integridade e a saúde física ou psíquica do
idoso, submetendo-o às condições desumanas ou degradantes ou
privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado
a fazê-lo, ou sujeitando-o ao trabalho excessivo ou inadequado.[...]

No sentido de propiciar a proteção ao idoso exposto à situação de risco,


se ele estiver em situação de abandono pela família, for vítima de maus tratos por
parte dos familiares e/ou cuidador e em situação de maus-tratos em instituições de
longa permanência, o Ministério Público configura-se como responsável pela
representação à autoridade judiciária dos crimes e ou violações conforme descrito
nesta Lei.
No Art. 89 consta que qualquer pessoa poderá, e o servidor público
deverá, provocar a iniciativa do Ministério Público, prestando-lhe informações sobre
os fatos que constituirão objeto de ação civil e indicar-lhe os elementos de
convicção.
Nesse sentido, a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério
da Justiça e Cidadania criou um órgão de assistência direta e imediata que tem por
competência legal exercer as funções de ouvidoria: o Disque Direitos Humanos, ou
Disque 100, que funciona ininterruptamente, recebe e examina as denúncias e
reclamações de atos que envolvam violações aos Direitos Humanos de modo
geral, podendo agir de ofício, atuando diretamente ou em articulação com outros
órgãos públicos e organizações da sociedade. As denúncias poderão ser anônimas
ou, quando solicitado pelo denunciante, é garantido o sigilo da fonte das
informações.
Ainda que a legislação vigente preconize a proteção integral ao idoso,
definindo também como dever de todos os cuidados com essa população, é sabido

359
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

que no cotidiano das famílias de quaisquer classes sociais o desrespeito e a


negligência se fazem presentes com muita frequência.

2 - NEGLIGÊNCIA E VIOLÊNCIA CONTRA O IDOSO

No Dicionário da Língua Portuguesa (Ferreira, 2008), negligência significa


falta de atenção ou de cuidado; desleixo, incúria. O Art. 18, inciso II, do Código
Penal define como crime culposo, quando o agente deu causa ao resultado por
imprudência, negligência ou imperícia. O conceito do termo em questão é
extremamente amplo, exigindo do profissional que se depara com a demanda um
olhar apurado para perceber suas nuances.
A negligência é caracterizada pela omissão dos familiares ou das
instituições responsáveis pelos cuidados básicos para o desenvolvimento físico,
emocional e social da população a partir dos 60 anos de idade ocorrendo por
privação de medicamentos, descuido com a higiene e saúde, ausência de proteção
contra as variações de temperatura, dentre outros.
Violência, agressão, maus-tratos, abusos contra os idosos são as
expressões que dizem respeito a processos e a relações sociais interpessoais, de
grupos, de classes, de gênero, ou ainda institucionais, que causem danos físicos,
psicológicos e morais à pessoa.
A violência contra os idosos é uma importante demanda que tem
acompanhado o crescimento dessa população, acarretando adoecimento físico
(doenças psicossomáticas, diminuição gradual de suas defesas físicas, alterações
do sono e apetite, desidratação, desnutrição, entre outros) e adoecimento
psicológico (depressão, desordem pós-traumática, agitação, fadiga, perda de
identidade, tentativas de suicídio), quando não culminando com a morte
(BARCELOS & MADUREIRA, 2013; GONDIM & COSTA, 2006 apud SILVA & DIAS,
2016).
Segundo Gaioli & Rodrigues (2008) apud Silva & Dias (2016), os maus-
tratos aos idosos estão cada vez mais evidentes na sociedade, adquirindo dimensão
social e de saúde pública. Para tentar extinguir tais acontecimentos, algumas ações
foram tomadas no âmbito das políticas públicas.
A “Política Nacional de Redução de Acidentes e Violências”, aprovada
como Portaria do Ministério da Saúde, no dia 16 de maio de 2001 (BRASIL, 2005),
360
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

classifica as formas mais frequentes de violência contra o idoso, a saber: abuso


psicológico, violência psicológica ou maus-tratos psicológicos (traduzidos pelas
agressões verbais), abuso sexual ou violência sexual, abandono, negligência, abuso
financeiro ou econômico, autonegligência.
Incluem-se ainda a discriminação, a exclusão do idoso do mercado de
trabalho ou a exploração de sua mão de obra, a poluição sonora e a violência
medicamentosa (definida como o uso inapropriado ou excessivo de medicamentos).
Para Hirsch (2001), os principais fatores de risco para o abuso são a
excessiva dependência do idoso em relação a outrem, para que possa exercer suas
atividades de vida diária; o estresse do cuidador; a história de violência familiar e
psicopatologia do cuidador; dependência do cuidador aos recursos habitacionais ou
financeiros do idoso; personalidade exigente da pessoa senil e a existência de
sanções culturais que dificultem seu acesso.
Segundo Reis (2000) apud Alves (2004), os indicadores mais fortemente
associados ao abuso estão relacionados com o cuidador e seus problemas de
comportamento e também pelo fato dele estar financeiramente dependente do idoso.
Também citam o fato de apresentarem dificuldades ou problemas mentais ou
emocionais. Ainda para os autores, outros indicadores associados ao abuso, dizem
respeito ao idoso e refere-se a fato de ter sido abusado no passado e a ter conflitos
conjugais ou familiares.
O silêncio da vítima está relacionado ao medo de perder o cuidador que
pode leva-lo a ficar sozinho ou ser institucionalizado, evento que pode ocasionar a
perda da privacidade e das relações familiares, além de possibilitar que sofra
recriminações. O temor de ser exposto publicamente ou sofrer intervenções
exteriores, de ser desacreditado e sentir-se responsável pelo comportamento do
abusador também são relatados com frequência.
A cultura brasileira, apoiada pelo Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003),
impõe como obrigação que a família seja responsável pelos cuidados destes
membros. Assim, é previsível que a negligência e o abandono sejam atribuídos a
parentes, geralmente as pessoas mais próximas. Na maioria das famílias com

361
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

problemas de violência, os membros não possuem repertório interpessoal pró-


social54 para lidar com dificuldades.
As relações tensas desenvolvidas no espaço familiar, somadas ao
imaginário social de que a velhice é acompanhada de desprezo e inutilidade, geram
o ambiente propício para que se estabeleçam interações conflituosas e violentas,
seja entre os casais na terceira idade, entre os filhos e idosos ou mesmo entre
cuidadores e pessoas da melhor idade.
As famílias despreparadas para compreender, administrar e tolerar seus
próprios conflitos tendem a ser violentas. Independentemente do agressor ser ou
não um parente, a qualidade da relação entre ele e o idoso depende de crenças,
valores e concepções sobre a velhice e os cuidados que ela demanda.
Destaca-se que a análise dos dados evidencia que as denúncias
referentes à violência contra idoso não se tornam públicas, sendo exemplificada
essa realidade pela pesquisa realizada por Oliveira (2008), na qual constam que os
idosos com autonomia funcional são os que buscaram nas delegacias um espaço
para solucionar seus conflitos. A parcela da violência que chega a tornar-se pública
através da denúncia não pode, em hipótese alguma, ser tomada como
representativa da violência como um todo (SILVA & DIAS, 2016).
Quando se trata de violência doméstica ou familiar, a busca pela polícia
torna-se um processo muito mais lento e complexo, o que impede considerar as
denúncias como fonte exclusiva de dados de violência e agressão e sim apenas
como fonte de informações sobre a que é denunciada.
Diante disso é que os órgãos de proteção necessitam estar atentos aos
pequenos sinais de uma possível violação de direitos e além de agir frente a
demanda apresentada no caso específico, abrir frentes de promoção dos direitos
mediante a implementação de politicas públicas que abranjam o problema de forma
mais efetiva. Nesse sentido, tratam-se das politicas públicas destinadas ao
segmento da população idosa.

3 - POLÍTICA DE PROTEÇÃO SOCIAL AO IDOSO

54
Comportamento que compreende atitudes que as pessoas tomam, voluntariamente, para ajudar os
demais.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ao iniciar a construção dos referenciais a serem apresentados no Grupo


de Estudos, depara-se com inquietações que propiciaram realizar algumas
reflexões.
A possibilidade dos indivíduos viverem mais reflete significativos avanços
da sociedade, principalmente quanto ao acesso à saúde, saneamento, vacinas,
estabilidade financeira, melhoria das condições de moradia e trabalho. O
envelhecimento, a priori, deveria ser encarado como uma conquista civilizatória,
entretanto, sob a égide do atual sistema político e econômico – capitalismo - é
marcado por inquietações e enfrentamentos que precisam ser pensados a longo
prazo.
Como postula Silva, 2016, p. 219:

[...] Nessa perspectiva, o envelhecimento populacional é encarado


enquanto problema social e não como conquista da civilização
humana. A compreensão da longevidade, conquista da humanidade,
requer um redirecionamento das ações do Estado destinadas ao
segmento social idoso e a todas as gerações [...].

Assim, observa-se que os ciclos de vida demandam atenções específicas


do Estado com vistas a ofertar-lhes qualidade de vida, e entre os seguimentos
populacionais vulneráveis, se insere a população idosa.
Neste sentido, pesquisou-se sobre os programas, projetos, serviços e
benefícios destinados à pessoa idosa e resumidamente apresenta-se o resultado na
sequência.
Com relação à política pública de Saúde verificaram-se a existência dos
seguintes programas: no âmbito Federal e geridos pelo Ministério da Saúde:
Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa; Alimentação Saudável; atividade física
(Programa Academia da Saúde); vacinação; atenção domiciliar (Programa Melhor
em Casa); oferta de medicamentos (Programa Farmácia Popular) (BRASIL, 2016).
Na esfera municipal, em Bauru - SP, especificamente, existe o Programa Municipal
de Atendimento ao Idoso – PROMAI.
Quanto à política de Assistência Social registraram-se os serviços,
programas, projetos e benefícios que atendem famílias e indivíduos (entre eles
idosos). Os específicos destinados à população idosa são: Benefício de Prestação
Continuada; Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos; Serviço de

363
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Proteção Social Básica em domicílio para pessoas com deficiência e idosas; Serviço
de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias;
Serviço de Acolhimento Institucional, nas seguintes modalidades: abrigo institucional
e Casa-Lar (BRASIL, 2014). Estes referem-se a coberturas regulamentadas
nacionalmente. Em relação ao Governo do Estado de São Paulo, observa-se a
criação do Programa Amigo do Idoso vinculado à Secretaria Estadual de Assistência
Social.
No tocante à política de Educação, verificou-se a existência de programa
de educação de jovens e adultos, contudo não há um recorte específico para
atendimento a este público. Em alguns campus da Universidade de São Paulo - USP
há o Programa Universidade Aberta à Terceira Idade.
Os estudos sobre a política de Esporte, Cultura e Lazer indicam em
âmbito Federal a existência: do Programa Vida Saudável (prática de exercícios
físicos, atividades culturais e de lazer); o direito de idosos participarem de eventos
culturais e esportivos e de lazer, pagando apenas 50% do valor total e o programa
Viaja Mais - Melhor Idade (BRASIL, 2017).
No campo da política Federal de Habitação, o Programa Minha Casa
Minha Vida – PMCMV estabelece a reserva de pelo menos 3% das unidades
habitacionais do programa para idosos. No âmbito estadual, a Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano – CDHU prevê reserva de 5% e estabelece
o Desenho Universal; há também uma parceria entre a Secretaria de Habitação -
SH, a CDHU, a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social – SEDS e as
Prefeituras dos Municípios Paulistas, com o Programa Vila Dignidade que é voltado
ao atendimento a idosos independentes, de baixa renda.
Lembra-se também que idosos gozam de direitos no transporte público
terrestre: em âmbito nacional, transportes urbanos e semiurbanos: acesso gratuito
para maiores de 65 anos de idade. No município de Bauru esse direito se estende a
idosos entre 60 e 64 anos de idade. Nos transportes interestaduais a Lei obriga que
as empresas reservem duas vagas gratuitas para idosos com renda igual ou inferior
a dois salários mínimos, ou desconto de 50%, no mínimo, quando essas duas vagas
gratuitas estiverem comprometidas.
Frente ao atual contexto político de possíveis alterações no âmbito da
Previdência Social não se aprofundou esta abordagem, todavia, destaca-se que as

364
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

propostas de alteração refletem-se em perdas de direitos à população, inclusive à


idosa.
Observa-se que além das perdas em relação à Previdência Social
registrou-se que os estudos sobre as políticas públicas demonstram os limites
presentes quanto à garantia de direitos para a população idosa. Políticas estas,
ainda insuficientes, muitas vezes descontinuadas e desarticuladas, bem como
programas de governo que podem ser extintos a qualquer tempo.
Silva (2016, p. 229) ressalta:
[...] a conformação de uma agenda pública estatal que absorva as
questões que cercam o processo de envelhecimento em todo o
mundo supõe antes de tudo o reconhecimento a todos os cidadãos
do direito à vida, à dignidade e à longevidade enquanto direitos de
cidadania e dever do Estado [...].

Ainda que existam programas e serviços voltados ao atendimento das


necessidades do idoso, a realidade indica que sempre há algo a ser realizado, uma
vez que a população idosa, nos tempos atuais, tem uma nova roupagem, ou seja, o
idoso de agora nem sempre apresenta características visíveis de uma pessoa com
idade avançada e frágil, possibilitando assim situações de exploração e abuso.
No cotidiano do Judiciário, depara-se com o idoso em diferentes
situações, ora como impossibilitado de cuidar de si mesmo, que depende da ajuda
de outros, ora como responsável pelo sustento de sua família, ainda que com as
limitações impostas pela idade.
Nesse sentido, tendo como referência as demandas que chegam ao Setor
Técnico Judiciário, aborda-se a questão dos avós (idosos) que assumem a guarda
dos netos e as ações de interdições de idosos.

4 - DEMANDAS DO SETOR TÉCNICO QUE ENVOLVEM O IDOSO

4.1 - Idosos como Requerentes de Guarda de Crianças e


Adolescentes

Apesar do reconhecimento em nossa sociedade sobre o envelhecer, os


avós não ocupam espaço privilegiado na discussão. Existe pouca visibilidade desses
365
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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atores sociais nas pesquisas sociológicas. É necessário focalizá-los na família por


meio de relações intergeracionais e de gênero, por intermédio de suas inserções
sociais.
Os avós ganham relevo não somente na questão afetiva com os netos,
mas também como auxiliares na socialização das crianças ou mesmo no seu
sustento, mediante contribuições financeiras. Existem trocas informais na rede
familiar a serem consideradas e os idosos integram o sistema de apoio mútuo, em
especial, nas famílias carentes de recursos financeiros.
Quando a convivência entre avós e netos é intensa, os primeiros podem
se tornar parceiros dos pais na educação das crianças. A maioria se dispõe
voluntariamente a cuidar dos netos; outros consideram isso uma prestação de
serviços e só interferem quando são solicitados e há os que são obrigados a cuidar
porque possuem seus filhos como dependentes econômicos. Os avós cuidadores,
com sua pouca aposentadoria, procuram ajudar nas dificuldades da família.
Mainetti & Wanderbroocke (2013) defendem que no caso brasileiro, em
que as políticas sociais são deficitárias ou inexistentes, a família acaba por
desempenhar um papel relevante no cuidado ao idoso e às crianças. Gravidez na
adolescência, prostituição, violência e drogas são fenômenos que têm crescido entre
o segmento populacional mais jovem e repercutem nas responsabilidades dos
idosos da família, que muitas vezes são os avós. A solidariedade familiar
intergeracional parece estar sendo exigida, cada vez mais, como recurso potencial
para o enfrentamento das demandas sociais e econômicas que desafiam a família
para encontrar saídas. Através dessas relações deve-se examinar o desenho das
fronteiras familiares, hoje condição essencial para a discussão das políticas
públicas.
Diante do aumento da expectativa de vida, muitos podem passar boa
parte da vida na condição de avós e bisavós. O “ninho vazio” talvez não expresse
tão bem a realidade em muitas famílias, pois há na casa, um ninho pleno, com filhos
adultos, eventuais netos ou pessoas mais idosas. Podem coexistir no mesmo
espaço doméstico os papéis de pais, avós e bisavós (IDEM, 2013).
Em face da fragilidade dos laços conjugais, os avós tendem a ser, para os
netos, um polo de estabilidade familiar. O divórcio ou a separação dos filhos acaba

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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por mobilizar uma função implícita de garantir a instituição familiar. Diante disso, a
presença dos avós pode ter um efeito tranquilizador do ponto de vista das crianças.
Há também a geração de avós divorciados ou em situação monoparental,
em muitos casos, estão recasados ou formando novas famílias. Novos arranjos e
novas convivências incluem igualmente os netos, que passam muitas vezes a ter
avós emprestados, step grands parentings (IBIDEM, 2013).
Em casos de regulamentação de guarda, os avós costumam ser as
principais figuras a serem solicitadas. No entanto, a figura dos avós não pode ser
idealizada, pois existem os que são abusivos, negligentes ou destrutivos para a vida
familiar, bem como idosos que são maltratados pela família.
Por conta do aumento da longevidade e a convivência mais prolongada
de três ou mais gerações, o idoso participa mais ativamente da família,
especialmente as mulheres, que costumam ter participação ativa na vida familiar ao
longo do ciclo vital e essa participação é renovada quando se tornam avós, afirma
Oliveira (2013).
Segundo a autora, as avós sucedem aos pais na importância nos papéis
familiares pela ligação afetiva que mantém em relação aos netos e se fazem
presentes na vida dos mesmos pela transmissão de histórias de vida e na tarefa de
cuidar deles no caso de mães que trabalham fora ou oferecendo cuidados e apoio à
família quando do nascimento de uma criança com problemas de saúde ou com
necessidades especiais.
Os motivos pelos quais algumas avós são cuidadoras integrais e
assumem legalmente a guarda dos netos se relacionam muitas vezes aos casos em
que os genitores são adolescentes despreparados para cuidar dos filhos,
desempregados, usuários de drogas, em conflito com a lei, portadores de doenças
mentais, falecidos precocemente, separados, recasados sem a aceitação das
crianças por parte do novo cônjuge ou em casos de abuso infantil e/ou abandono
(IDEM, 2008).
Alguns fatores considerados negativos na criação de netos pelos avós
seriam a sobrecarga financeira, os conflitos com os filhos devido a divergências na
educação das crianças, a queda na qualidade de saúde física e emocional dos avós,
a incidência de depressão e baixa saúde percebida, como também, interferência na
vida social e familiar, cansaço e esgotamento emocional (SANTOS & MELO, 2013)

367
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Em contrapartida, alguns resultados positivos dizem respeito ao


sentimento de renovação pessoal, a oportunidade de ter companhia, a gratificação
por estarem provendo uma nova geração com cuidados e ensinamentos. A maioria
dos avós dizem que os netos trazem alegrias, amor e um objetivo para viver, como
também, a oportunidade de acertar coisas que antes julgaram errar com os próprios
filhos.
Mesmo a responsabilidade pela criação sendo reconhecidamente dos
pais, a educação das crianças é marcada pelas presenças femininas além das
mães. Observou-se que os papéis de mãe e de avó podem ser difusos quando as
avós incorporam a responsabilidade materna, quando os filhos, por algum motivo,
não assumem seus próprios filhos (IDEM, 2013).
Tais aspectos dizem respeito ao lugar ocupado pelas mulheres na
sociedade atual, na qual o envelhecimento delas é acompanhado por filhos adultos
que nem sempre deixam a casa dos pais ao constituírem uma nova família e que
morrem antes de chegar à terceira idade, filhos adultos que não assumem a criação
de seus filhos e consequentemente, netos sendo criados pelas avós, que em grande
parte, ainda não são idosas.

4.2 - Interdição, Curatela e Decisão Apoiada

A ação de interdição segue um procedimento especial com o objetivo de


analisar se um indivíduo é incapaz. Sendo procedentes os pedidos da ação, será
nomeado um curador para o curatelado (interditado). Os poderes do curador serão
definidos na sentença judicial, podendo ser parcial ou total (SARMENTO, 2008).
O Código Civil (BRASIL, 2002) traz em seu bojo os indivíduos que são
parcialmente ou totalmente considerados incapazes:

Art 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os


atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.
Art 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os
exercer:
I – os maiores de dezesseis e os menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem
exprimir sua vontade.

368
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A legislação também especifica as pessoas que podem ingressar com a


ação de interdição. Segundo o novo Código de Processo Civil – CPC (BRASIL,
2015):

Art. 747 A interdição pode ser promovida:


I – pelo cônjuge ou companheiro;
II – pelos parentes ou tutores;
III – pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o
interditando;
IV – pelo Ministério Público.
Parágrafo único. A legitimidade deverá ser comprovada por
documentação que acompanhe a petição inicial.

A legislação prevê que a curatela deve ser atribuída a quem melhor possa
atender aos interesses do interdito, além de buscar tratamento especializado e apoio
apropriado para garantir sua qualidade de vida, prestando contas bienalmente
quando solicitado. Em casos de extrema gravidade, como suspeita de violência, o
curador poderá ser suspenso (SARMENTO, 2008).
Outro ponto importante destacado pela Lei diz respeito à prova pericial,
pois o juiz determina a perícia para avaliar a capacidade do interditando para
praticar atos da vida civil. A perícia é realizada por profissionais de diferentes áreas,
inclusive psicólogos e assistentes sociais judiciários.
O objetivo do laudo pericial é indicar para o juiz, os atos para os quais
haverá necessidade de curatela. Assim, cada interdição deve ser individualmente
analisada para limitar o mínimo possível o exercício dos interesses existenciais do
interditando, garantindo-lhe uma maior integração social incidindo a restrição tão
somente sobre determinados atos e situações pontuais.
Dessa forma, com base nas informações do laudo pericial, o juiz terá
elementos para melhor definir a medida a ser adotada, determinando a interdição
integral ou parcial. A interdição ocasiona a perda total de autonomia do indivíduo e,
caso o idoso apresente certo nível de lucidez, tal situação pode ser geradora do
agravamento de seu quadro de saúde e piora na qualidade de vida, devido à
percepção da perda de sua autonomia. Em tais situações, munido de informações
suficientes, o juiz pode aderir à interdição parcial, que abrange somente aspectos
administrativos do gerenciamento dos bens do curatelado.

369
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Ainda em relação ao laudo pericial, o CPC estabelece:

Art. 473 O laudo pericial deverá conter:


I – a exposição do objeto da perícia;
II – a análise técnica ou científica realizada pelo perito;
III – a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando
ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do
conhecimento da qual se originou;
IV – resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz,
pelas partes e pelo órgão do Ministério Público.

Nas relações entre peritos e assistentes técnicos (profissionais de


confiança da parte e que não estão sujeitos a impedimento ou suspeição), está
previsto no Art. 466 - § 2º do Código do Processo Civil, que o perito deve assegurar
aos assistentes técnicos o acompanhamento das diligências e dos exames que
realizar, com prévia comunicação, comprovada nos autos, com antecedência
mínima de cinco dias. Nesta questão, o Provimento da Corregedoria Geral do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - CG -12/2017 vem complementar o
documento:

O acompanhamento das diligências mencionado no §2º do art. 466


do Código de Processo Civil não inclui a efetiva presença do
assistente técnico durante as entrevistas dos psicólogos e
assistentes sociais com as partes, crianças e adolescentes. Contudo,
havendo interesse do assistente técnico, a ser informado nos autos,
os psicólogos e assistentes sociais do Poder Judiciário deverão
agendar reunião prévia e/ou posterior às avaliações, expondo a
metodologia utilizada e oportunizando a discussão do caso.

Ainda assim, tais questões provocam dúvidas e apreensão entre os


profissionais, no que se refere ao Código de Ética Profissional tanto dos psicólogos
quanto dos assistentes sociais e interferências e/ou questionamentos das
metodologias e intervenções para o estudo e laudos, fomentando
discussões/reflexões acerca desta interação nos autos.
As determinações para avaliações psicossociais nos casos de interdição
cujos casos geralmente envolvem idosos estão mais frequentes não devido à idade,
mas às condições de saúde que abrangem limitações físicas e condições
psicológicas e cognitivas, que englobam a sanidade mental e a capacidade para
administrar e organizar a própria vida.

370
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Portanto, faz-se necessário um olhar diferenciado do profissional para as


questões objetivas e subjetivas nas ações de interdição. É preciso compreender que
as demandas que são apresentadas pelos sujeitos ao Poder Judiciário, não são
apenas problemas individuais, mas expressam o modo como as relações sociais
vêm sendo produzidas e reproduzidas em nossa sociedade e a posição da pessoa
idosa nesta conjuntura.
Vasconcellos (1996, p. 40) aborda:

Embora a velhice seja definida pela Organização Mundial da Saúde


como sendo o período de idade acima dos 65 anos, ou ainda, seja
considerada em função de determinadas alterações corporais, não
necessariamente está definida a nível de sociedade em geral,
exclusivamente através destas marcas biológicas, ou mesmo
temporais, mas sim, também a partir de outros elementos,
construídos por esta mesma sociedade.

Muitas vezes, o direito que se busca proteger com a interdição, não é o


do idoso, em essência, mas daquele ou daqueles que tem interesse na preservação
do patrimônio, para que possa usufruir imediatamente ou através de herança ou
para evitar que o idoso venha a dilapidar os bens. Contudo, torna-se difícil verificar
se a busca pela interdição representa a construção de um cuidado ou a
desconstrução da autonomia privada.
É de suma importância a contribuição dos profissionais (peritos)
habilitados nas áreas sociais e psicológicas (que subsidiam as decisões judiciais)
para a elucidação dos aspectos subjetivos, imperativos e intrínsecos às partes
envolvidas e ao objeto do estudo, que muitas vezes é diverso e até avesso ao que
está relatado nos autos.
Por fim, a interdição civil deve ser apreciada com cautela, pois se retira a
autonomia da pessoa idosa, a qual vem desde o seu nascimento num processo
infindável de construir a si e a sociedade e pode ter sua vida esvaziada de sentido.
Quando se retira de uma pessoa a sua autonomia, não se está retirando apenas
este ou aquele direito, mas sim toda a essência de sua vontade/independência,
sujeitando-a não mais aos seus sentimentos e à sua razão, mas tornando-a
heterônoma, submetendo-a à vontade de outra pessoa (QUINTINO, 2016).
No ano de 2015 foi homologada a Lei 13.146 ou Lei Brasileira da
Inclusão, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência e em seu Art. 116,

371
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

refere-se a Tomada de Decisão Apoiada que também pode ser aplicada no caso da
pessoa idosa.
Trata-se do processo pelo qual a pessoa com deficiência, idosa ou não,
dotada de certo grau de discernimento, elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas,
com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe
apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e
informações necessários para que possa exercer sua capacidade. Neste caso não
há o que se falar em interdição.

372
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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5 - CONCLUSÃO

O trabalho ora apresentado reconhece que se trata de uma modesta


aproximação sobre o envelhecimento populacional e a necessidade de
aprofundamento dos estudos neste campo, em específico dos profissionais de
Serviço Social e Psicologia atuantes no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Refletiu-se sobre o avanço da legislação no campo da proteção jurídica
ao idoso, entretanto, observa-se que isoladamente o campo jurídico não é capaz de
garantir a plenitude nas condições essenciais de proteção a este segmento.
O estudo sobre as politicas públicas destinadas ao idoso, registram
lacunas em relação a serviços, programas, projetos e benefícios. O envelhecimento
populacional tem gerado discussões com vistas a fornecer subsídios para a
construção de uma agenda pública, contudo, observou-se que tal evolução está
muito aquém das necessidades atuais.
A pouca efetividade da atenção estatal com relação a pessoa idosa,
contribui para a sobrecarga das famílias e tais situações colaboram para a
judicialização dos conflitos.
O envelhecimento populacional alcançará grande parte das pessoas, mas
de forma diferenciada com base principalmente em variáveis que se referem às
condições de subsistência e culturais em relação ao tratamento e o lugar social
ocupado pelos idosos nas famílias atuais.
Com relação à inserção no contexto familiar, os estudos indicaram as
contradições e dicotomias em relação à figura do idoso. Ora de participação,
suporte, auxílio financeiro e educação das novas gerações, ora como figura
geradora de sobrecarga das famílias.
O convívio plurigeracional e multigeracional não pode ser visto como
garantia de velhice bem sucedida e, nem mesmo, sinal de relações mais amistosas
entre as sucessivas gerações.
A partir das práticas profissionais dos integrantes do grupo observou-se
que a atuação especificamente em relação aos idosos, reflete a judicialização de
demandas que perpassam a atuação nas Varas de Família, bem como nas Varas de
Infância que vão desde a disputa pela guarda de netos à ações de curatela e
interdição.

373
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Registrou-se que alguns conteúdos abordados em relação ao tema foram


sendo redefinidos e repensados ao longo dos estudos, principalmente no que se
refere à participação dos idosos como integrante de famílias em situação de risco e
vulnerabilidade social, cuja renda do idoso se constitui como a principal fonte de
subsistência.
Observou-se que refletir sobre as questões sociais e psicológicas que
envolvem a figura da pessoa idosa na perspectiva de convivência familiar e social
traz implicações que necessitam de embasamento teórico, metodológico e ético-
político, ainda em construção. Consequentemente, a literatura acerca da atuação
dos profissionais vinculados ao judiciário em relação a esta temática ainda é
limitada.
Assim, conclui-se que novas demandas se apresentam aos Setores de
Serviço Social e Psicologia do judiciário, exigindo dos profissionais constantes
aprimoramentos e atualizações para subsidiar e embasar suas atuações.

374
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 1996.

377
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COMPETÊNCIAS E CAPACIDADES PARENTAIS: UM


OLHAR SOB EXEMPLOS VIVENCIADOS NO COTIDIANO
DO SETOR INTERPROFISSIONAL DO JUDICIÁRIO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – CAMPINAS

“FAMÍLIA”

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2017

378
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Marcia Aparecida Da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca De Campinas

Maria Amália Do Val Simoni – Psicológa Judiciário – Comarca De Campinas

AUTORAS

Adriana Leite De Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca De Americana

Ana Silvia Osti Cuan – Assistente Social Judiciário – Comarca De Capivari

Claudia Maria Zoppe Coregio – Assistente Social Judiciário – Comarca De Serra


Negra

Flavia Hayesa Fernandes – Assistente Social Judiciário – Comarca De Santa


Barbara D’oeste

Gisele Bueno De Godoi – Assistente Social Judiciário – Comarca De Mogi Mirim

Idalina Martins Vieira – Assistente Social Judiciário – Comarca De Monte Mór

Mara Gisela Dariolli Do Prado Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca De


Pedreira-

Maria Aparecida De Vasconcellos Pompeo – Psicóloga Judiciário – Comarca De


Mogi Guaçu

Maria Isabel Monfredini – Assistente Social Judiciário – Comarca De Itapira

Maria Nilza Ferreira De Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca De Águas


De Lindóia

Mariana Nogueira Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca De Mogi


Miriam

Mariana Sarmento Abrahao – Psicóloga Judiciário – Comarca De Araraquara

Veridiana De Paula Simao –Psicóloga Judiciário – Comarca De Campinas

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“Não nascemos pais, tornamo-nos pais. A parentalidade se fabrica com


ingredientes complexos. Alguns deles são coletivos, mudam com o tempo;
outros são históricos, jurídicos, sociais e culturais. Outros são mais íntimos,
privados, conscientes ou inconscientes, pertencem a cada um dos dois pais
enquanto pessoas e enquanto futuros pais, ao casal, à própria história de
cada um” (Marie Rose Moro)

INTRODUÇÃO

O GE Família - Campinas se debruçou neste ano a estudar a função


materna e paterna tendo em vista sua importância na vida da criança, e o desafio
trazido aos profissionais das Equipes Interprofissionais quando se faz necessária
avaliação da competência e da capacidade parental.

A criança ao ser cuidada na família encontra seu lugar de pertencimento,


imperativo à constituição de sua identidade, bem como ao seu processo de
humanização.

Os estudos psicossociais para avaliação de capacidade e de


competências parentais nos convidam a aprofundar nosso conhecimento sobre a
importância das relações parentais para a criança, sobre os pré-requisitos e
habilidades necessárias dos pais, assim como nos convocam a manter um olhar
mais apurado, na medida em que tais estudos, muitas vezes podem contribuir e
favorecer o processo de reflexão pelos próprios pais acerca dos papéis e das
funções parentais que desempenham em relação aos filhos e à parentela em geral.

Não é demais assinalar que a criança precisa de cuidadores que exerçam


as funções parentais e deve contar que a cuidem com prazer e disponibilidade e que
forneçam limites e regras de forma firme e sólida. Além disso, na construção do
vinculo, os pais ou cuidadores, ao desempenharem suas práticas ou estilos
parentais, transmitem valores e ensinamentos aos filhos, os quais vão sendo
solidificados no percurso do processo desenvolvimental.

As concepções sobre parentalidade estão intimamente relacionadas às


redefinições que sofreram o conceito e os novos formatos de famílias diante das
transformações sociais, econômicas e politicas que atravessaram o contexto das
famílias nas últimas décadas.

380
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Atualmente é possível considerar parâmetros para análise do


funcionamento das famílias, pautados em abordagens que considerem a capacidade
de executar tarefas essenciais para o crescimento e o bem estar de seus filhos, o
que nos remete ao tema da capacidade e das competências parentais, referidos
primeiramente à temática da parentalidade.

A definição de parentalidade começa a ser proposta em 1961, pelo


psicanalista francês Paul-Claude Racamier, quando indica que ao termo
maternalidade poderiam ser acrescentados os termos paternalidade e parentalidade.
Porém, o termo parentalidade não foi utilizado por mais de vinte anos, até
reaparecer com René Clément em 1985, surgindo por ocasião de estudos das
psicoses puerperais, consideradas, pelo autor, uma das patologias psiquiátricas
mais severas da parentalidade. Em essência, avaliaram que o conceito
parentalidade abrangia não apenas o fato de ser genitor ou genitora, ou ser e/ou
estar designado como pais para preencher todas as condições, mas “tornar-se pais”,
implicando níveis conscientes e inconscientes do funcionamento mental num
processo de transição em direção à parentalidade. Assim, desde meados de 1980,
“as funções e os papéis parentais estão reagrupados sob a designação de
parentalidade” (Houzel, 2004,p.47).

Segundo Houzel, (2004) para explorar o termo parentalidade é


imprescindível contemplar três eixos: 1) o exercício da parentalidade, que envolve o
exercício de um direito, onde dentro das atuais sociedades de direito legislado, os
aspectos jurídicos do parentesco e da filiação o define; 2) a experiência da
parentalidade, que envolve a experiência subjetiva consciente e inconsciente do fato
de vir a ser pai e de preencher papéis parentais. Destaca-se o desejo pela criança e
o processo de transição à parentalidade; 3) a prática da parentalidade que diz
respeito às atividades cotidianas que os pais devem executar junto à criança,
cuidados além de físicos, também psíquicos, onde cada um tem seu papel.

Segundo Moro (2005), a parentalidade é construída e determinada por


vários fatores relacionados à própria história de vida de cada um dos pais, seus
traumas infantis, a forma como cada um os cicatrizou. Aliados a isso existe outra
série de fatores que pertencem à própria criança que transforma seus genitores em
pais.

381
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Para Cruz (2005), a parentalidade está definida como:

Um conjunto de ações encetadas pelas figuras parentais (pais ou


substitutos) junto dos seus filhos no sentido de promover o seu
desenvolvimento da forma mais plena possível, utilizando para tal os
recursos de que dispõe dentro da família e, fora dela, na
comunidade. (Cruz, 2005, apud Pereira e Alarcão, 2010, p.500)

Nesse sentido, as competências e as capacidades parentais, derivadas


da parentalidade, são dimensões distintas, a saber:

[...] as competências parentais são entendidas como a soma das


atitudes e das condutas favoráveis ao desenvolvimento normal de
uma criança. A sua avaliação assenta no exame dos
comportamentos atuais do prestador de cuidados em relação à
criança, o que ele faz, ....no momento da avaliação. [....] As
capacidades parentais dizem respeito àquilo que o progenitor seria
capaz de fazer, o que nos remete para a forma como os prestadores
de cuidados utilizam os recursos que dispõem para exercer a
parentalidade. (Pereira e Alarcão, 2010, p. 501)

Sob essa ótica, as reflexões que se fizeram neste grupo de estudos, se


pautaram nesses conceitos e nessas temáticas para a compreensão, ou tentativa de
melhor apreensão dos fenômenos socioculturais e emocionais descortinados no
cotidiano através das ações que demandaram estudos psicossociais, tanto aquelas
relacionadas às varas de família como as da vara da infância e da juventude.
Retrato cotidiano das significações de cuidados com os filhos, no desempenho da
parentalidade, desdobrada nas subjetividades, nas expectativas, nas condições, nas
disponibilidades e nas condições deste exercício de cuidado e de proteção.

1 - UM OLHAR PARA AS SITUAÇÕES MOLDADAS NO COTIDIANO

Elementos sociais e culturais participam da fabricação da função parental.


Os elementos culturais têm função preventiva ao permitir antecipar o modo de
tornarem-se pais e, se necessário, o modo de dar um sentido aos percalços
cotidianos da relação pais-crianças, de prevenir a instalação de um sofrimento. Os
elementos culturais se misturam com os elementos individuais e familiares de

382
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

maneira profunda e precoce, trazendo à memória nossos pertencimentos míticos,


culturais e fantasmáticos (Lallemand apud MORO, Marie Rose: 1)

Moro (2005), ainda se refere à transmissão geracional pontuando que os


traumas infantis vivenciados pelos pais podem migrar para os filhos. “Quando o peso
da transmissão é pesado demais e sua tradução excessivamente direta, a filiação se
transforma para a criança em uma patologia do destino” (Coblence, 1996, apud
Moro, 2005, p 263). Para a autora, em circunstâncias favoráveis, esses traumas são
elaborados, mas em alguns casos desfavoráveis, o problema se instala afetando
gravemente a relação da mãe com o bebê.

Tomamos como exemplo uma criança gerada de um estupro tal como


Moro aponta. Sua presença para a mãe é a lembrança viva de acontecimento
traumático, impedindo-a a principio ao menos olhar para ela e de lhe dar um nome.
A capacidade inerente a cada bebê de despertar, aos poucos, a preocupação com
seus cuidados através do choro, da cumplicidade na troca de olhares e,
principalmente, com o apoio de profissionais, favorece com que o trauma seja
elaborado e a construção da parentalidade se consolide de maneira favorável entre
mãe-bebê.

Segundo estudo intitulado “Programa de Competências Parentais para


prevenção de negligências”, realizado por Canedo (2014) a parentalidade é vista
como um tipo de processo familiar no qual responsabilidade de ser pai, assumindo
comportamentos adequados à posição familiar de cada um e abrange as ações dos
pais para com os filhos, com o intuito de promover o desenvolvimento sadio dos
mesmos, respeitando as expectativas dos familiares e da sociedade.

Segundo Canedo (2004), a parentalidade pode ser vista como

positiva quando o comportamento parental tem como base o


interesse superior da criança, assim como o desenvolvimento integral
da mesma, assegurando-se as necessidades básicas e as
capacidades das crianças afiixando-se sempre limites ao seus
comportamentos. (CANEDO, 2014, p 19)

O exercício da parentalidade é um conjunto de papéis estruturantes do


psiquismo humano uma vez que as funções materna e paterna são definidas como:
a capacidade de reconhecer e atender às necessidades de uma criança, intermediar
383
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

seu conhecimento do mundo, e dar limites a esta ligação simbiótica e introduzir a


criança no mundo social e à lei. Estas funções se sobrepõem no exercício parental,
mesclam-se nos papéis dos cuidadores da criança e não são atributos exclusivos e
específicos da mãe e do pai.

Nos casos de ruptura de vínculos, busca-se reassegurar o direito da


criança prosseguir seu desenvolvimento físico e sócio-afetivo da forma mais plena
possível, com o amparo de adultos que possam garantir a continuidade de cuidados.
Procura-se então, o que se denomina o “melhor interesse da criança”. Tais
considerações são relevantes, na medida em que um ato jurídico pode ter
consequências na continuidade da estruturação psíquica da criança, pois uma
decisão judicial pode ter efeito legal, mas não ter validade no plano emocional,
acarretando vitimização.

Neste contexto, é fecunda a reflexão dos papéis parentais e suas


competências, considerando que delas derivam as condições para que tal
desenvolvimento prossiga a contento, pois não bastaria que se reportasse aos laços
biológicos, visto que por si só, esses laços não garantiriam a proteção e entorno
afetivo que a criança necessitaria para atravessar uma fase de descontinuidade,
nesse caso representada o mesmo procede na ruptura de vínculos com pais,
cuidadores de referências e também em situações de acolhimento. Surge então a
parentalidade derivada da condição de filiação biológica em contrapartida com o
exercício da parentalidade de fato, onde os laços de afetividade, cada vez mais, se
sobrepõem em nossa cultura.

Se o vínculo biológico não é suficiente para garantir o laço de


compromisso e afeto entre a criança e seus pais, conclui-se que o processo de se
tornar pai, ou mãe, é uma construção complexa que se dá ao longo de uma relação,
de um tempo e um entorno cultural e, nesse contexto, a adoção é plenamente
possível de ser contemplada como exemplo.

Quando nasce uma criança nascem também um pai e uma mãe com seus
sonhos e medos e a bagagem de sua história e de seus antepassados. A ideia de
quem esta criança é, sua personalidade e identidade se inicia na infância e no
imaginário de seus pais, em seus laços de pertencimento a sua família, nas crenças,
ditos e não ditos transmitidos culturalmente pelas gerações.

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Isto é ao surgir uma gravidez, os pais se vêm às voltas com a formação


de uma nova identidade, onde buscarão referências no passado, não só no material
consciente, como no plano do inconsciente: - que criança fomos, que sentimentos
nutrimos por nossos pais, o que percebemos e carregamos de nossas relações com
eles, o que desejamos realizar de igual, ou mudança etc... Surgem com frequência,
vivências não elaboradas, fantasias, inseguranças, medos, desejos, interdições,
dúvidas sobre quem somos e que pais seremos. A construção da identidade de pais
se faz neste emaranhado emocional, às vezes tranquilo, às vezes turbulento, com
recursos para ser elaborada e resolvida, ou não. Novamente a adoção pode ser
mencionada como exemplo, pois observamos este processo com nitidez no trabalho
desenvolvido em relação ao processo adotivo. No entanto, é bom ressaltar que não
podemos deixar de considerar que todos os filhos, biológicos ou não, também
passam por um processo de adoção bem, ou mal sucedido.

Deste modo, vimos que a gravidez pode trazer à tona muitos sentimentos,
como a questão do pertencimento e da acolhida que se teve no mundo por seus
próprios pais. Uma mulher sozinha no parto e no pós-parto, reclusa na
penitenciária, sem o apoio e alegria de sua família pela chegada de um novo
membro, pode experimentar uma enorme sensação de desamparo. Há relatos de
mães detentas, às quais é negada a possibilidade de acalentar os filhos que choram,
situação desumana para mãe e criança, na contramão da proteção prevista na lei.
Tais questões caminham junto à previsão de condições mais humanizadas, onde se
favorece a relação mãe e filho, pós-nascimento até seis meses de idade. Não por
acaso, na atualidade tem-se refletido e defendido a necessidade de se ter um olhar
especial e diferenciado para a primeira infância, relevando sua importância para um
desenvolvimento sadio.

Contudo, ainda na esteira do cotidiano, deparamo-nos com outras


situações onde a compreensão da delicadeza da trama psicológica e social que
envolve tornar-se pai, ou tornar-se mãe, conduziu à experiências de acolhimento de
mães que passaram por situações de violência, vítimas, por exemplo de estupro, de
forma que puderam ressignificar a existência de seu bebê e superar a rejeição
inicial.
Há de se ressaltar também as dificuldades dos pais refugiados, longe de
suas referências culturais, de sua língua, da acolhida de seus familiares, em meio a
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

total insegurança sobre o presente e futuro de uma criança que irá nascer de quanto
apoio tais famílias necessitariam. Porém, o que se observa com frequência é o
temor e a rejeição por parte de quem poderia lhes dar suporte, além de um avanço
tímido em relação às ações e politicas publicas.
Tomamos conhecimento, através de texto de Marie Rose Moro – Os
ingredientes da parentalidade, do caso de uma jovem mãe do Congo, de 18 anos,
que deu a luz em um hospital em Paris. Foi acolhida por uma psicóloga e um
interprete; no princÍpio, não conseguia olhar para seu bebê. Contou do estupro de
soldados de seu país, após ter presenciado o mesmo com sua própria mãe, que veio
a falecer. Havia desenvolvido medo de escuro e vomitava com frequência, depois de
ser ouvida e expressar suas emoções, pôde passar a se relacionar com seu bebê.
Uma das profissionais que a atendeu foi capaz de lançar a esta jovem um olhar de
mãe, de modo que ela se sentiu autorizada a ser mãe de seu bebê. Em situações
tão difíceis, revela-se a importância dos tutores de resiliência, enquanto pessoas que
podem sustentar a angústia e proporcionar consolo e escuta. Infelizmente, em nossa
experiência profissional, raramente se encontra uma rede de proteção organizada,
que possa contar com profissionais em número suficiente e preparados para esta
função tão importante quando nos deparamos com casos similares ou bem próximos
deste trazido pela autora. Nesse sentido, as ponderações e pontuações quanto à
relevância de uma rede de proteção social articulada, integrada e bem estruturada
pode fazer a diferença para que se produzam e se consolidem resultados exitosos.

Relevante frisar também que a escuta profissional como uma das


propostas interventivas pode favorecer o exercício da parentalidade e das
competências parentais - bem como o encontro de pais e filhos. Lembramos do
caso de uma menina que estava em processo de aproximação com uma família
substituta, mas ela tinha a expectativa/fantasia de ser adotada por uma das
funcionárias do serviço de acolhimento, a qual precisou, simbolicamente, autorizar a
criança a seguir adiante. Quando tal situação foi identificada e verbalizada, o
encontro com a nova família pôde ocorrer.

Notamos outra situação na qual havia a expectativa de um menino de ser


adotado pela mãe social e como não foi observada essa questão essencial, resultou
em uma adoção mal sucedida.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Ao pensarmos em prevenção, a ajuda aos pais que estão por receber


uma criança serve para construir um espaço psicológico para o filho que vai chegar,
liberá-lo de crenças e expectativas cujas raízes se encontram no passado dos pais,
que aprenderão a conhecê-la em sua individualidade e história própria.

Não é demais rememorar que a relação conjugal entra em uma nova


dinâmica no nascimento de um filho, com todos os ajustes a serem feitos, os quais
se estabilizam com maior ou menor sucesso, caso a caso. Seria desejável que uma
criança viesse para solidificar o amor dos pais, mas nem sempre isto acontece. Há
gravidez precoce, relações superficiais, filhos não planejados e não desejados, pais
imaturos e tantas outras circunstâncias a dificultar a inserção saudável da criança na
história de seus pais.

Nesse contexto, a expectativa de que o pai desempenhe um papel mais


efetivo na relação com a criança, do que mero provedor, é outra questão que vem
aumentando em nossa cultura, tornando-se mais simples o pai assumir seu desejo
de exercer as tarefas até então tidas como tipicamente femininas. E, por outro lado,
também mais simples as mulheres, que lutaram por um lugar no mercado de
trabalho, cobrarem maior participação e apoio de seus companheiros nesta questão
da paternidade ativa e participativa.

No fluxo deste movimento cultural observamos, no nosso cotidiano,


variadas questões que se desdobram desse contexto tais como as ações de
negatória de paternidade, nas quais o homem assumiu o registro legal, mas, diante
dos compromissos que dele derivam, principalmente, os financeiros, requerem rever
esta decisão, sobretudo quando já não mantem relacionamento com a genitora
daquela criança. No entanto, ser pai implica em dever de pensão alimentícia e
muitos deles verbalizam que continuariam a assumir a paternidade de um filho não
biológico, mas se sentem injustiçados com a cobrança pecuniária. Há casos onde a
criança é criada em situação em que lhe são apontadas várias e sucessivas figuras
paternas, de modo que, internamente, este lugar fica vazio. Em outros é negada à
criança o conhecimento de sua história de origem, através de um assento de
paternidade que não é real e isso perdura por longo tempo, sendo descoberto
normalmente em situações de conflitos. Há aqueles em que a existência do pai
biológico é revelada de forma traumática à criança, e há situações de adoção

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

unilateral que se encaixam nesses exemplos. Contam-se ainda, os inúmeros casos


tipificados como alienação parental, nos quais a criança se vê envolvida no desejo
dos adultos, submetida às alianças e impedida de uma expressão natural de suas
ideias e fluidez de seus sentimentos.

No processo de parentificação, ocorre também, a participação da criança


com sua carga genética, temperamento, constituição e experiências de gestação.
Tivemos contato com a história de uma criança de abrigo, separada da genitora
muito cedo; recebia com naturalidade o contato com visitas e cuidadores do abrigo,
porém, punha-se a chorar de forma angustiada no contato com sua própria mãe.
Esta, sentindo-se rejeitada e não aderindo à psicoterapia também não conseguia
suportar este olhar da criança sobre si mesma, desembocando na condução do caso
para colocação em família substituta.

Outro exemplo é o de uma criança cuja mãe recusava-se a amamenta-la


e havia passado por agressão de seu companheiro. O bebê desenvolveu alergia ao
leite e derivados e ninava-se a si próprio. Houve algum progresso, ao mudar o
cuidador de referência, mas a alergia persistiu.

Tais situações que nos mostram a delicadeza e a complexidade da


parentalidade e, que muitos dos comportamentos podem ser frutos de relações de
sistemas familiares de gerações anteriores, cujas teorias apontam para ordens de
pertencimento que podem sofrer reflexos de fatos ou crenças, das quais nem
chegamos a tomar conhecimento e ainda assim os reproduzimos.

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2 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estas pontuações constituem uma pequena amostra do grau de


complexidade que a tarefa do profissional do judiciário representa. Sabemos que a
verdade é sempre impossível de ser apreendida totalmente. Cada um que chega ao
Judiciário procura apresentar sua leitura dos fatos, às vezes, com queixas simétricas
um do outro; tais construções de pensamento, muitas vezes repetidas, passam a se
constituir verdades para o sujeito.

O profissional tenta se isentar destes vieses e, principalmente, do seu


próprio, afim de não cair no lugar comum, ou em pseudocertezas; busca separar o
que é real interesse e afeto pelo filho, de outras que se centram em motivações
disfuncionais, além da leitura de contexto e de conjuntura que muitas vezes acabam
desembocando em situações que se complexificam no exercício da parentalidade,
sobretudo naqueles casos em que se fez necessário medida de acolhimento.

Há diversas maneiras de ser pai e mãe, como mostram numerosos


trabalhos de sociólogos e antropólogos e a maior dificuldade dos profissionais que
atuam na área consiste em deixar lugar para que se manifestem as potencialidades
e fazer uma leitura de até que ponto e em quais critérios se embasar para
compreender e avaliar as competências parentais e as possibilidades de que sejam
desempenhadas “minimamente adequada”, nos termos de Pereira; Alarcão (2010, p.
502) que sinaliza ser a “quantidade mínima de cuidado necessária de modo a não
causar dano à criança” .

Deste modo, é possível afirmar que os desafios atuais para a


parentalidade e para as famílias em geral são diversos e complexos. Entendemos
ser urgente favorecer as famílias, em especial quanto ao seu papel no processo de
humanização, uma vez que a tendência de instabilidades nas relações interpessoais
e intrafamiliares contribui para o risco de desadaptação e problemas no
desenvolvimento infantil, com a consequente necessidade de se regular as
transições e aprender a viver de forma menos danosa possível.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

CANEDO, Vanessa Carina Ferreira. Programa de competências parentais para


prevenção da negligência. Porto, p. 18-21, 2014.

HOUZEL, Didier. As implicações da parentalidade. In SILVA, Maria Cecília Pereira,


PONTON, Letícia Solis. Ser pai, ser mãe, parentalidade: um desafio para o terceiro
milênio. São Paulo, Casa do Psicólogo, p.47-51, 2004.

MORO, Marie Rose. Os ingredientes da parentalidade. Revista Latinoamericana de


psicopatologia fundamental, vol. VIII, p. 258-273, 2005.

PEREIRA, Dora; ALARCÃO, Madalena. Avaliação da parentalidade no quadro da


proteção da infância. Temas em Psicologia, vol. 18, p. 499-517, 2010.

SILVA, Maria Cecília Pereira da; Solis-ponton, Leticia. Ser Pai, Ser Mãe -
Parentalidade - Um Desafio para o Terceiro Milênio. Casa do Psicólogo

WALSH, Froma. Processos normativos da família: diversidade e complexidade.


Porto Alegre; Artemed, 2016

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFLEXÕES SOBRE O DIVÓRCIO DESTRUTIVO E SUAS


IMPLICAÇÕES NA PRÁTICA PROFISSIONAL DE
ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - DRACENA


“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Jeise Cristina Alves Sereghetti – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tupi


Paulista
Priscila Alves Martos Casoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de Flórida
Paulista

AUTORAS

Alessandra Pereira da Cruz – Assistente Social Judiciário – Comarca de Teodoro


Sampaio
Angela Maria de Carvalho Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Junqueirópolis
Cristiana Kuniko Urahama Iwama – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Dracena
Fátima Vidotte Ferrari – Assistente Social Judiciário – Comarca de Adamantina
Josy Ferreira Primo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pacaembu
Lizandra Belloni de Paula Lima – Psicóloga Judiciário – Comarca de Dracena
Luciana de Mattos Dias – Psicóloga Judiciário – Comarca de Lucélia
Regina Furtado Costa Campos – Psicóloga Judiciário – Comarca de Pacaembu
Rosângela Vieira de Aguiar do Vale – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Adamantina

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente artigo resulta do trabalho coletivo de sistematização da


temática abordada ao longo da realização deste Grupo de Estudos, em articulação
com as principais reflexões sobre as práticas profissionais nos contextos cotidianos
de trabalho, enquanto assistentes sociais e psicólogas do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo.
Partindo do levantamento de temáticas de interesse e sugestões de
produções teóricas, foi identificada como demanda das profissionais envolvidas
aprofundar conhecimentos e compartilhar reflexões sobre a atuação técnica no
âmbito dos divórcios, sobretudo os altamente litigiosos, envolvendo crianças.
A escolha do tema se deu prioritariamente pelo fato de dialogar com
angústias das técnicas na intervenção em ações da área de Família e Sucessões,
principalmente naquelas em que os genitores, imbuídos do fracasso da relação
conjugal, parecem atropelar os filhos, que além de estarem fragilizados pela
separação dos pais, se veem em um fogo cruzado.
O grupo escolheu como referencial teórico a dissertação “Papéis
conjugais e parentais na situação de divórcio destrutivo com filhos pequenos”,
elaborada pela autora Mariana Martins Juras, para obtenção do título de mestre em
Psicologia pela Universidade de Brasília – UNB, no ano de 2009, que melhor
comtemplou as expectativas das integrantes.
Em linhas gerais, a autora buscou compreender como se apresentam os
papéis parentais e conjugais, em meio a uma dinâmica de divórcio destrutivo, nos
casos de disputa de guarda ou regulamentação de visita, envolvendo filhos
pequenos. Concomitante, investigou as percepções do par parental acerca de seus
papéis; analisou o nível de envolvimento e sofrimento dos filhos e verificou as
estratégias de enfrentamento utilizadas por eles para lidar com a dinâmica familiar
do divórcio destrutivo.
A pesquisa de campo foi realizada no âmbito do Serviço de Atendimento
a Famílias com Ação Cível – SERAF, órgão do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal, local onde a autora primeiramente vivenciou a prática profissional enquanto
estagiária, e posteriormente, elegeu como campo de estudos acadêmicos.

393
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Visando ampliar a compreensão das dinâmicas familiares de divórcio


destrutivo, a autora utilizou o mesmo referencial teórico adotado pelo referido
Serviço de Atendimento, estabelecendo a Teoria Familiar Sistêmica como
norteadora do trabalho.
As referências bibliográficas apresentadas no decorrer da dissertação
compreendem o divórcio destrutivo/conflituoso com olhares distintos, oportunizando
reflexões diversas, tanto sobre os aspectos negativos do divórcio como as
possibilidades de transformação e ressignificação de papéis a partir dos conflitos.
O presente artigo está organizado em três blocos, relacionados ao
processo da pesquisa e aos conteúdos e reflexões identificados como mais
significativos pelo grupo ao longo do estudo. São eles: considerações sobre o
referencial teórico; considerações sobre o método e considerações sobre os
conjuntos de dados.
Por fim, apresentamos nossas reflexões finais, que, longe de um
fechamento, apontam para a abertura de questões emergentes do estudo, que
puderam ser compartilhadas e discutidas neste coletivo, favorecendo assim, o
contínuo processo formativo e de amadurecimento, individual e grupal - dimensões
que entendemos inseparáveis e fundamentais para uma atuação profissional crítica
e bem fundamentada.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - CONSIDERAÇÕES SOBRE O REFERENCIAL TEÓRICO

A dissertação escolhida como objeto de estudo aponta as mudanças de


paradigmas refletidas nas constantes transformações societárias, como as
alterações de ordem social, econômica e tecnológica atravessadoras na forma em
que os sujeitos vivem e se relacionam com o mundo, destacando as mudanças no
contexto das famílias.
A família contemporânea vem sofrendo profundas transformações ao
longo dos tempos, aspectos que repercutem na sua maneira de se organizar haja
vista os vários arranjos existentes. Neste sentido, destacamos a definição de Sarti
(2007, p.27):

[...] família se delimita simbolicamente, baseada num discurso sobre


si própria, que opera como um discurso oficial. Embora culturalmente
instituído, ele comporta uma singularidade: cada família constrói sua
própria história, ou seu próprio mito, entendido como uma formulação
discursiva em que se expressam o significado e a explicação da
realidade vivida, com base nos elementos objetiva e subjetivamente
acessíveis aos indivíduos na cultura em que vivem.

Percebemos que essa concepção permeia a dissertação escolhida, na


qual predomina o uso do termo ‘famílias’ referindo-se às variadas possibilidades de
arranjos familiares vigentes na sociedade contemporânea.
Para tratar sobre o divórcio, a autora utilizou como referencial a Teoria
Familiar Sistêmica, a partir de diversos autores, no intuito de compreender a família
contemporânea e a complexidade de suas relações, visualizando o indivíduo e sua
organização familiar em contexto social mais amplo, devido ao divórcio existir de
modo intrínseco a essa realidade.
Juras (2009) entende predominar na sociedade um olhar preconceituoso
em relação ao divórcio, como um acontecimento negativo na vida do casal. Vale-se
de vários autores que reforçam esse pensamento, bem como, faz contraponto com
outros, que abordam o divórcio como algo natural no ciclo de vida da família, cuja
experiência pode, inclusive, favorecer mudanças positivas na vida do ex-par
conjugal e também dos filhos.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A experiência de estágio apresentada pela autora suscitou-lhe


inquietações que a motivaram a realizar a pesquisa com famílias atendidas pelo
órgão, que vivenciavam o divórcio destrutivo com filhos em idade inferior a 12 anos.
Na abordagem da autora, as crianças nessa faixa-etária são mais vulneráveis,
considerando que não têm maturidade necessária para lidar com essa vivência.
Na compreensão de Glasserman (1989) apud Juras (2009, p.23 e 24) o
divórcio litigioso é classificado como destrutivo quando:

a relação dos ex-cônjuges tem como base constantes conflitos,


permeados por brigas permanentes que objetivam a conservação da
união; impossibilidade de cuidado com os filhos, pois os ex-cônjuges
se encontram por demais envolvidos no litígio; necessidade de
ganhar e desvalorizar a imagem do outro; necessidade de haver a
participação de intermediários litigantes, tais como membros da
família extensa, profissionais da saúde, advogados, policiais, entre
outros, além de repetidas intimações em delegacias e nos tribunais.
Além disso, no divórcio destrutivo não há o reconhecimento da
corresponsabilidade do ex-par conjugal no conflito, observando-se
tendência em ambos de encontrar culpados e cúmplices.

Em sua dissertação, ao apresentar abordagens que evidenciam os


aspectos negativos do divórcio, são destacadas situações em que o ex-par conjugal
não protege os filhos do contexto adversarial e ainda os envolve na lide. Como
contraponto, são apontados autores que entendem o divórcio como uma etapa
‘natural’ no ciclo de vida da família ou na dinâmica do casamento, cuja experiência
pode, inclusive, favorecer mudanças positivas na vida do ex-par conjugal e também
dos filhos, podendo, inclusive, contribuir para a saúde emocional dos envolvidos.
Sob essa perspectiva, a autora sustenta a viabilidade dos profissionais
investirem nas competências das famílias como meio de favorecer a qualidade de
vida de todos. Tal posicionamento foi identificado enquanto ponto de semelhança
referente a leituras existentes no grupo. Foi possível refletir acerca de situações
vividas na rotina de trabalho, cujo processo de elaboração de estudo/avaliação
evidencia que o divórcio/crise pode não se apresentar como uma etapa final e
negativa na vida dos sujeitos, mas como vivência de um momento que pode
favorecer o estabelecimento de relações mais satisfatórias.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A teoria familiar sistêmica, enquanto referencial teórico assumido pela


autora, gerou indagações para as assistentes sociais integrantes do grupo, as quais
mencionaram dúvidas sobre a viabilidade de utilizá-la na prática diária, considerando
que a teoria social crítica é predominantemente utilizada no exercício profissional
deste grupo.
Por parte da Psicologia, considerou-se que, embora pareça que em sua
obra a autora não tenha se aprofundado na visão sistêmica, a utilização foi
condizente com sua proposta, uma vez que a linha adotada permitiu a ela ‘olhar’ a
família em sua complexidade e amplitude, para então contextualizar a demanda do
divórcio litigioso, que exige ir além de um olhar simplista.
Também foram sinalizadas percepções do grupo sobre a atuação do
Direito no divórcio litigioso, destacando que geralmente a dimensão jurídica focaliza
as questões materiais (patrimônio, partilha, bens) em detrimento de um olhar
humanizado. De modo diferenciado, os profissionais dos setores técnicos enfrentam
constantemente o desafio de conciliar sua intervenção com os prazos estipulados e
garantir o compromisso de compreender as famílias e seus sujeitos em suas
subjetividades, identificando suas vulnerabilidades, potencialidades, limites e
competências por meio do estudo técnico - o que se entende como um exercício
complexo que demanda tempo - muitas vezes um tempo não objetivo, e sim atrelado
às subjetividades.
O conjunto de reflexões desencadeadas no grupo também apontou para a
importância da fundamentação teórica dos laudos que servirão como subsídio para
decisão judicial, como meio de sustentar os apontamentos técnicos, elucidar a
questão do tempo e vislumbrar a concretização de direitos a todos os envolvidos.
As experiências práticas do cotidiano profissional sinalizam para a
urgência de políticas públicas voltadas para o fortalecimento de famílias que
vivenciam a separação conjugal com filhos. Considerando que não se trata
simplesmente da dissolução da união entre duas pessoas, envolve, também, a
ruptura de projetos, de sonhos e da própria condição social que o casamento atribui
na dinâmica das relações sociais e comunitárias. Pressupõe, portanto, ressignificar a
vida como um todo, inclusive o papel parental nesse novo contexto.
Compreendemos que, ao contrário do casamento, que se configura em
um dos principais acontecimentos sociais, permeado de celebrações festivas e

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

religiosas, reunindo parentes, amigos e pessoas do entorno do casal, na separação


esvazia-se e se desconstrói a rede de apoio familiar e comunitário, tornando o
percurso solitário para quem a vivencia.
Como pontua a autora, percebemos, na prática, que os filhos
acompanham os pais nessa trajetória. Assim, ainda em processo de construção de
sentido, buscando compreender o processo de separação, muitas vezes os filhos se
veem disputados pelos pais, que os querem por inteiro e de forma exclusiva.
Quando os pais não conseguem entrar em acordo sobre a guarda, visitas
e outros aspectos da vida cotidiana das crianças recorrem a um terceiro. Muitas
vezes esse terceiro interlocutor tem sido a Justiça, para a qual depositam a
confiança na resolução do conflito. No entanto, a lógica judiciária nem sempre
favorece o deslinde, podendo inclusive acirrá-lo.

2 - CONSIDERAÇÕES SOBRE O MÉTODO E METODOLOGIAS

Ao discorrer sobre a natureza da pesquisa, a autora a configura enquanto


qualitativa, definindo-a como aquela que explora informações mais subjetivas
referentes às particularidades dos entrevistados.
A metodologia utilizada foi orientada com base na Pesquisa-ação, onde o
pesquisador não trabalha sobre os outros, mas com eles. Desta forma, JURAS
(2009) destaca que o enfoque da pesquisa é transformar a realidade estudada e
produzir conhecimento relativo a estas mudanças.
Para melhor entendimento do universo/contexto pesquisado, a autora
apresenta a estrutura do Serviço Psicossocial dentro do TJDF, e as integrantes do
Grupo de Estudos observaram diferenças em relação à estrutura e funcionamento
no Tribunal de Justiça Estado de São Paulo.
No TJDF há uma Secretaria Psicossocial, centralizada na capital (Brasília)
e subdividida em serviços por áreas, ou seja, a natureza da ação. O SERAF conta
com uma grande equipe de psicólogos, assistentes sociais e estagiários das
respectivas áreas, para atender especificamente os processos judiciais junto às
Varas de Família do estado todo. Já no TJSP os setores técnicos são
descentralizados, lotados nas comarcas dos diversos municípios do estado, e em

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diversas comarcas do interior, a mesma equipe técnica atua nas Varas de Família e
também nas de Infância a e Juventude.
O estudo psicossocial no SERAF consiste em: leitura do processo judicial
encaminhado pelo magistrado, realização de cerca de oito atendimentos
psicossociais à família envolvida no processo judicial, visitas domiciliares e
institucionais e elaboração de relatório a ser encaminhado ao magistrado que
determinou a realização do estudo. Essa atividade tem dois objetivos principais:
promover intervenção junto às famílias ao longo dos atendimentos psicossociais e
assessorar os magistrados do Tribunal em suas decisões com informações
psicossociais por meio de relatório (JURAS, 2009, p.47)
A autora expõe ainda como os profissionais programam as etapas dos
estudos psicossociais, preocupando-se sempre em fazer em dupla interdisciplinar
(Serviço Social e Psicologia). Propõem que o primeiro atendimento seja realizado
com o par parental, onde além da escuta e diálogo entre as partes, há também a
possibilidade dos técnicos fazerem uma mediação do conflito. Em seguida, realizam
os atendimentos individuais, com o par parental, familiares e as crianças e
adolescentes envolvidos. E o último atendimento, conjunto com o par parental, é
voltado para devolução das percepções profissionais.
O grupo considerou que alguns aspectos são similares ao que cada
técnica realiza em suas comarcas, na elaboração dos estudos psicossociais nas
Varas de Família. Porém, destacando que nem sempre os atendimentos são
realizados em dupla, principalmente nas comarcas menores, que não contam com
psicólogos em seu quadro funcional. Também não predomina entre as profissionais
do grupo o atendimento do par parental conjuntamente, nem a realização de
entrevistas devolutivas.
Outro aspecto discutido foi a questão da mediação, que aparece como
parte intrínseca no desenrolar dos estudos psicossociais no SERAF, e é um
instrumental técnico não utilizado em nosso contexto, inclusive por orientação
normativa do próprio TJSP.
Em relação aos sujeitos da pesquisa, as três famílias selecionadas
apresentavam as seguintes demandas judiciais no contexto do divórcio:
regulamentação de visitas, disputa de guarda e separação litigiosa. Além da

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natureza do processo judicial e seus desdobramentos, também é descrita a história


do par parental das respectivas famílias.
A autora expõe todas as etapas da realização dos estudos psicossociais
em cada caso, discorrendo em ordem cronológica cada procedimento, e destacando
os instrumentos técnicos utilizados: entrevistas semiestruturadas, no formato aberto
e flexível; genogramas; visitas domiciliares; e atendimentos junto às crianças
(desenho da família).
Neste contexto, as integrantes do Grupo de Estudos, trouxeram para
discussão relatórios psicossociais de suas próprias autorias, também sob a
conjuntura de divórcio destrutivo, expondo as metodologias utilizadas, as formas de
enfrentamento, as dificuldades e possibilidades em cada estudo trazido. Assim, foi
possível estabelecer um paralelo entre a prática dos profissionais que compõe o
grupo e do contexto da autora, verificando-se que os instrumentos técnicos
utilizados são semelhantes.

3 - CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONJUNTOS DE RESULTADOS

A autora apresentou os resultados da pesquisa em dois conjuntos: sob o


ponto de vista dos adultos e sob o ponto de vista das crianças.
Do ponto de vista dos adultos foi destacada a dificuldade dos pais em
diferenciar a relação conjugal da parental, evidenciando questões mal resolvidas no
divórcio e prolongando a disputa através de ações judiciais.
A autora destaca que nos divórcios destrutivos a parentalidade é
vivenciada como disputa pelos pais. Em uma dinâmica conflituosa, na qual se
desqualificam e desautorizam-se mutuamente, os pais colocam os filhos em uma
posição triangulada, em que as crianças passam a se responsabilizar pelas
negociações e decisões que caberia aos adultos (pais).
No contexto jurídico o jogo relacional do divórcio destrutivo tende a se
acirrar ainda mais: as famílias se dividem em partes processuais e, em muitos
casos, apresentam dificuldades em elaborar a situação e construir respostas, o que
apontaria para possível fim dos conflitos. Nessa dinâmica, predomina uma tendência
do par parental focalizar o ganho da causa em detrimento do bem estar dos filhos.

400
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A autora analisou a percepção das crianças através de materiais


produzidos em entrevistas e desenhos infantis, categorizados em três zonas de
sentido: a relação da criança consigo mesma, com os pais e com os irmãos.
Nos atendimentos realizados com as crianças, todas revelaram
percepções sobre a situação de conflito dos pais, demonstrando que são sensíveis
ao ambiente familiar e às dinâmicas conflituosas em curso.
Na análise dos desenhos evidenciou-se que todas expressaram o conflito
familiar que estavam vivenciando, de modo que as produções gráficas infantis
levaram a diversas interpretações da relação das crianças com seus pais.
Nesta análise interpretativa, os filhos das três famílias manifestaram de
diversas formas, o sofrimento vivenciado na situação do divórcio destrutivo, seja
através dos desenhos, comportamento e expressões verbais propriamente ditas.
No tocante a relação das crianças com os irmãos, a pesquisa evidenciou
a importância do subsistema fraterno em casos de divórcios destrutivos. Notou-se
que, nos desenhos de família realizados por crianças que possuem irmãos, todos os
membros da fratria foram representados lado a lado, o que foi interpretado como
indicador de união entre os mesmos.
De acordo com Oliveira (2006), o relacionamento fraterno proporciona
uma experiência íntima rica e complexa entre iguais, envolvendo vivências em
comum, que muitas vezes só pode ser compartilhada entre irmãos, embora também
exista espaço para a rivalidade e competição.
As produções infantis evidenciaram que, nas situações em que a família
atravessa momentos traumáticos, como um divórcio destrutivo, os vínculos fraternos
são intensificados, uma vez que os membros vivenciam a mesma situação dolorosa,
buscando apoiarem-se mutuamente.
O terceiro conjunto de resultados analisados configura-se por aspectos
transgeracionais no divórcio destrutivo.
Observou-se nas três famílias as manifestações de tais questões
transgeracionais na forma como lidam com os conflitos. Percebeu-se, por exemplo,
que as famílias de origem ocupam um papel central na vida dos pais e as vozes
hierarquizadas dos avós representavam um peso sobre os papéis parentais.
Neste sentido, Bradt (1995) e Carter e Macgoldrick (1995) afirmam que a
família ampliada deve funcionar como apoio à família nuclear e, em algumas

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famílias, os avós podem apresentar dificuldades em aceitar os filhos como iguais,


impondo sua autoridade sobre estes.
Por outro lado, em uma das três famílias investigadas observou-se um
grande distanciamento dos pais em relação às famílias de origem, principalmente
dos irmãos.
Segundo Bradt (1995), a evitação de contato com a família de origem
pode propiciar que os filhos preencham um vazio, sobrecarregando-os nesta função.
A autora analisa ainda que tanto o envolvimento exagerado das famílias
de origem, assim como o rompimento, são fatores que contribuem para a dinâmica
conflituosa do divórcio destrutivo.
Todos os aspectos apontados por Juras (2009) foram identificados pelas
integrantes do grupo nas reflexões desencadeadas sobre diversos casos atendidos
no cotidiano profissional, evidenciando a importância de uma escuta qualificada em
relação às crianças e adolescentes, que reconheça suas diversas possiblidades de
produções simbólicas e oportunize tais expressões.

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4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões elaboradas ao longo do processo de estudo apontaram


claramente a importância do olhar profissional diante de casos complexos como os
abordados no presente estudo, tanto de assistentes sociais e psicólogos, como os
profissionais do direito.
Destacamos a importância e necessidade de contar com uma visão ampla
frente ao fenômeno do divórcio destrutivo, considerando a corresponsabilidade dos
pais no conflito, as contradições e paradoxos que permeiam a dinâmica típica de tais
casos.
Para tanto, é fundamental identificar e compreender tanto as limitações
como as potencialidades dessas famílias, de modo contextualizado, uma vez que
intervenção profissional pode contribuir para a perpetuação do divórcio destrutivo ou
para a construção de alternativas de resolução de conflito, buscando ressignificar as
relações familiares.
Os danos e prejuízos nos divórcios destrutivos são múltiplos. Cada
sujeito, sejam crianças ou adultos, possui sua singularidade, podendo apresentar
mecanismos mais ou menos saudáveis para lidar com o divórcio. Acolher sem
julgamento tais especificidades é uma condição para a escuta qualificada, que se faz
necessária na atuação técnica psicossocial.
Em nosso cotidiano profissional é crescente o aumento da demanda na
área de Família. Percebemos o esgarçamento das relações familiares, e também a
ausência de políticas públicas direcionadas especificamente para o atendimento de
famílias que vivenciam um contexto de litígio, tornando o processo de judicialização
da vida ainda mais recorrente.
Por vezes, a intervenção profissional de assistentes sociais e psicólogos
judiciários ocorre neste momento delicado, no qual os sujeitos envolvidos estão
despedaçados. Quanto mais fragilizados emocionalmente, mais difícil se torna o
atendimento técnico na direção da sensibilização dos genitores em relação ao
reconhecimento da corresponsabilidade perante o conflito e suas implicações para
com seus filhos. Em nossa prática, não pretendemos o julgamento, tampouco a
culpabilização dos ex-pares conjugais, ao contrário, a intenção é incitar a reflexão e

403
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

oportunizar a construção de estratégias de superação, ou ao menos, de modos mais


saudáveis de lidar com a situação, preservando os direitos de todos.
Diante das demandas apresentadas pelas famílias em litígio, refletimos
constantemente sobre o papel do Judiciário, será que sozinho consegue responder
às necessidades da família naquele momento? Em que medida a sentença judicial
põe fim ao conflito existente? A sentença corresponde às expectativas dos litigantes
e atende ao interesse da criança? E as equipes técnicas, que lugar ocupam nessa
engrenagem institucional?
As recorrentes ações ajuizadas na Família em uma escala crescente de
complexidade e em quantidade (guarda, modificação de guarda, visita, modificação
de visita, alienação parental) indicam a necessidade de romper com velhos
paradigmas.
A vivência do divórcio pressupõe, portanto, ressignificar a vida como um
todo, em sua complexidade de aspectos sociais e subjetivos, destacadamente os
papéis parentais, que passam a ser exercidos, e muitas vezes reconstruídos em um
novo contexto.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

BRADT, J. O. Tornando-se pais: famílias com filhos pequenos. In: B. CARTER & M.
McGOLDRICK (Orgs.). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para
terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. (Trabalho original publicado em
1989).

CARTER, B. & McGOLDRICK, M. (Orgs.) As mudanças no ciclo de vida familiar:


uma estrutura para terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. (Trabalho
original publicado em 1989).

GLASSERMAN, M. R. Clínica del divorcio destrutivo In: J. M. DROEVEN (Org.) Mas


allá de pactos y traiciones: construyendo el dialogo terapéutico. Buenos Aires:
Paidós, 1989.

JURAS, M.M. “Papéis conjugais e parentais na situação de divórcio destrutivo com


filhos pequenos”. Dissertação de Mestrado (Psicologia), Brasília, Universidade de
Brasília, 2009.

OLIVEIRA, A. L. Família e irmãos In: C. M. de O. CERVENY (Org.), Família e... . São


Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

SARTI, C. A. (2007) Famílias enredadas In: ACOSTA, Ana Rojas, VITALE, Maria
Amália Faller (Org.). Famílias: redes, laços e políticas públicas. 3 ed. São Paulo:
Cortez/Instituto de Estudos Especiais/PUC-SP, 2007.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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FAMÍLIAS: SIGNIFICÂNCIAS, CONFIGURAÇÕES E


FUNÇÕES

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - FRANCA


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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COORDENAÇÃO

Ana Maria Alves da Costa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca


Keila Rezende Cunha – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franca

AUTORES

Ariadne Pedrosa de Macedo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Franca


Cássia Beraldi Lucas – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Cláudia Regina Borges – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Cristiane Barbosa Rezende – Assistente Social Judiciário – Comarca de Batatais
Denise Jesuína Faria Tostes – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Josiane Avelar Saborito Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Maria Helena de Oliveira Borges – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca
Marina Pereira Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guará
Mariscler Regivane da Silva Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Morro Agudo
Mateus Beordo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guará
Michelle Barbosa de Oliveira Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Franca
Monica Cássia Fonseca Gimenes – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Franca
Neli Aparecida de Sousa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Franca

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O movimento das instituições e dos atores sociais delineia o


desenvolvimento das famílias e trazem impactos, seja positivos ou negativos, de
mudança em sua estrutura.
O tempo presente não é o mesmo vivenciado em tempos de outrora. O
pacato deu lugar à comunicação e mudanças que vêm à tona na “velocidade da luz”.
Sob este espectro, a família, uma das instituições mais tradicionais, tem
seu percurso sócio histórico reconstruído e porque não dizer reconstituído. Afinal, as
mudanças geradas neste momento se apresentarão como ultrapassadas em outro
momento.
Aliado a outras instituições e atores ela se remodela e “vivencia” a
contemporaneidade; elas se desenvolvem e articulam entre diferentes alternativas
vislumbrando a superação das situações de precariedade e vulnerabilidades sociais,
advindas da sua exposição às transformações do Estado e do mercado, que
adotaram diferentes premissas econômicas, sociais e jurídicas.
Desta forma, as famílias se movimentam a fim de formar uma rede de
proteção social se esbarrando nas migalhas deixadas para a sua sobrevivência e
sendo responsabilizadas para além das suas estruturas.
Ela busca sua identidade nos meandros e vielas de sua reprodução
social, procurando ser reconhecida como espaço de pertencimento social, tanto na
esfera privada, quanto na pública e torna-se dependente da atuação em rede, do
aparato jurídico e da assistência social, entre outros, como fator de proteção.
A família contemporânea mudou e busca seu espaço, como lócus de
estabilidade e proteção das relações, de vivências, dos territórios e identidades e
isto que procuramos debater no presente artigo.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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1 - FAMÍLIA: CONCEITO E LINHAS HISTÓRICAS SOBRE SUA


DINÂMICA E FUNÇÕES

A partir do texto ‘Teoria crítica da família’ de autoria da Profª. Dra. Cristina


Bruschini (2015), desencadeamos reflexão e debate acerca do conceito de família,
cuja apreensão se faz de suma relevância, com vistas a problematizarmos a
aparente naturalidade de suas configurações, percebendo-a como criação humana
mutável.
A autora enfatiza ao longo do seu trabalho a importância deste movimento
de apreensão, quando destaca que abordar sobre família nos remete a uma questão
ampla e contraditória, pois

A tendência à naturalização da família, tanto no nível do senso


comum quanto da própria reflexão científica, que leva à identificação
do grupo conjugal como forma básica e elementar de toda família e à
percepção do parentesco e da divisão de papeis como fenômenos
naturais, criou durante muito tempo, obstáculos de difícil
transposição para sua análise (BRUSCHINI, 2015, p. 52).

Assim, se reporta e busca na literatura de outras ciências como a


antropologia, a sociologia e a psicologia, os elementos para o debate.
Neste sentido, pontua que a antropologia indica a necessidade em nos
atentarmos para duas características marcantes das estruturas familiares: a
variabilidade e a mutabilidade (grifo nosso). E destaca que: “[...] a família, tal qual
a conhecemos atualmente em nossa sociedade, não é uma instituição natural e
assume configurações diversificadas em torno de uma atividade de base biológica, a
reprodução” (BRUSCHINI, 2015, p. 53).
Os estudos dos antropólogos ingleses Young e Willmot, no decurso da
história da família fazem referencias a alguns estágios que a instituição teria
vivenciado, trazendo que inicialmente era uma unidade de produção em casa ou no
campo, com o advento da Revolução Industrial (século XIX) a venda da força de
trabalho passa ser o enfoque maior e já no século XX sua função se dá também em
torno do consumo, onde a vida se torna privatizada.

409
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No cerne destes movimentos a antropologia enfatiza que qualquer


sociedade tem origem a partir de três relações básicas, quais sejam: de
descendência (entre pais e filhos), de consanguinidade (entre irmãos) e de afinidade
(aliança através do casamento), e sua variabilidade consiste em como se dão essas
combinações, onde “[...] as relações de parentesco, o casamento e a divisão sexual
do trabalho, são estruturas universais, que existem em todas as sociedades,
variando apenas a forma em que se combinam” (BRUSCHINI, 2015, p. 63).
O modelo de família nuclear burguesa, que nos parece tão comum e
naturalse prevalece a partir do século XVIII. Fato que corrobora as análises da
antropologia quando destaca a mutabilidade como característica do grupo familiar e,
portanto não se configuraria modelo único ou regra, mas sim um fenômeno
historicamente construído.
Estes elementos identificados trazem indicadores de que a história da
família é descontínua, não linear e não homogênea.

Para a antropologia a família é um grupo de procriação e de


consumo, lugar privilegiado onde incide a divisão sexual do trabalho,
em função da qual determina-se o grau de autonomia ou
subordinação das mulheres. Essa ciência nos fornece provas de que
todas as sociedades se organizam em torno de uma divisão sexual
do trabalho. [...] Como uma construção cultural que se elabora sobre
diferenças biológicas e sobre a tendência que a espécie humana
partilha com outros mamíferos, de dependência prolongada das crias
em relação ás mães, esta divisão sexual define como feminina a
esfera privada, a esfera pública masculina por excelência, estaria
associada à política, à guerra e à caça (BRUSCHINI, 2015, p. 63).

A função afetiva da família apenas ganha notoriedade a partir do século


XVII com a ascensão da burguesia. Para isso alguns acontecimentos tiveram
rebatimentos importantes no delineamento das novas funções e configurações das
famílias como: o novo papel do Estado - com maior intervenção junto à família a
partir do século XV; o desenvolvimento da alfabetização; como também de novas
religiões e ainda as atitudes em relação ao corpo e a tendência à privatização da
família.

410
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Já os estudos da Sociologia predominaram tendo como norte a teoria


funcionalista. A família nesta corrente é compreendida como uma agencia
socializadora, com funções que se concentram na formação da personalidade dos
indivíduos, por isso o enfoque da importância das crianças terem nos primeiros
estágios de desenvolvimento uma relação próxima com a mãe.
Vejamos:

Parsons propõe o estudo da família nuclear como um pequeno


grupo-tarefa, no qual os membros adultos desempenham papeis
altamente diferenciados, assimétricos e complementares, o que
possibilita a presença de modelos masculino e femininos claramente
definidos. Este fato seria extremamente importante no processo de
formação da personalidade infantil: o adulto masculino ou marido-pai
é o líder “instrumental” do grupo, enquanto o adulto feminino
desempenha papéis sociais de natureza “expressiva”, voltados
principalmente para os assuntos internos da família (BRUSCHINI,
2015, p. 57).

Segundo os estudos de Bruschini (2015), a literatura marxista não


privilegiou a temática família. Contudo, Engels ao abordar o tema traz que “[...] o
fator determinante da História é a produção e a reprodução da vida imediata, onde
se incluem tanto a produção dos meios de existência [...], quanto à produção dos
próprios seres humanos ou propagação da espécie” (BRUSCHINI, 2015, p. 59).
Nesta linha de reflexão o entendimento do surgimento da família
monogâmica se vinculava com o objetivo de proteger as propriedades, garantir a
transmissão daquelas a sua prole através da herança, por conseguinte garantir a
paternidade se torna aspecto fundamental, assim como limitar e reprimir o exercício
da sexualidade feminina junto ao grupo.
A Escola de Frankfurt – com Adorno e Horkheime – traz a tona alguns
elementos importantes ao criticar o papel conservador da família e apontar os
indicadores de dominação nele presente.
Agnes Heller em seus estudos analisa os elementos para se pensar a
família como agência de reprodução ideológica. Indica que a vida cotidiana é o
ponto de partida para tanto, uma vez que:

411
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[...] é no ‘fazer’ de todos os dias que surgem e se modificam ou


desaparecem ideias, atos e relações. [...] A vida cotidiana é o
conjunto de atividades que caracteriza a reprodução dos homens
particulares criando, por sua vez, a possibilidade de reprodução
social (BRUSCHINI, 2015, p. 62).

No campo da psicologia, Freud conceitua que a estrutura da mente


humana se dá na infância através de um longo processo de formação da
personalidade e de estabelecimento de vínculos afetivos e emocionais, que ocorre
dentro da estrutura familiar.
Bruschini (2015) destaca as funções da família como as econômicas, a
socializadora e a ideológica, as quais fazem parte do cotidiano familiar.
Ao se reportar para análise de como foi pensada a família no Brasil, ela
observa que as características da família na sociedade agrária e escravocrata do
Brasil colonial focam-se no desempenho das funções econômicas e políticas.
Os padrões culturais portugueses marcam significativamente a sociedade
da época. A família patriarcal centrada no núcleo conjugal, na autoridade masculina
repercute na hierarquia rígida de papeis, no controle da sexualidade feminina e na
regulação da procriação para fins de herança.
A mulher assumia a figura de submissão, esposa, atentava-se para
educação dos filhos. Contudo, tinha papel ativo no gerenciamento do domicilio,
manejo e comando com os escravos e assumia o papel de chefe na ausência do
marido.
Um fato que chama atenção, e observado por Bruschini (2015) é que
estudos recentes indicam que havia outras formas alternativas de família que não
exclusivamente o modelo dominante e eram formadas por artesãos, comerciantes,
agentes fiscais e outros.
O século XIX e suas imperiosas transformações trazem significativos
rebatimentos nas configurações de famílias, tanto no que diz respeito a seus
modelos como suas funções.
Neste mesmo período, vamos presenciar a passagem da família extensa
para o modelo conjugal. Envolto neste momento estão: valorização da capacidade
intelectual dos filhos, inserção da mulher no mercado de trabalho, casamentos se
efetivam pautados nos interesses individuais, maior aproximação entre pais e filhos,

412
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controle da natalidade, maior número de separações e de novos casamentos e


maior redução da autoridade paterna.
Segundo Bruschini (2015), diante de toda esta realidade não há e não
deveria haver uma única definição de família, que por sua vez guarda estreita
relação com o enfoque que será dado em cada pesquisa ou trabalho, como também
qual grupo se objetiva atingir. Sinalizando ainda, que uma das características da
família é o dinamismo, o qual vai determinar a história de cada grupo familiar,
perpassando seu inicio e término. Assim destaca que família é:

[...] um grupo social composto de indivíduos diferenciados por sexo e


por idade, que se relacionam cotidianamente, gerando uma
complexa e dinâmica trama de emoções; ela não é uma soma de
indivíduos, mas um conjunto vivo, contraditório e cambiante de
pessoas com sua própria individualidade e personalidade. A
sexualidade, a reprodução, a socialização são esferas
potencialmente geradoras tanto de relações prazerosas quanto de
conflitivas. A divisão interna de papéis pode ser a expressão de
importantes relações de dominação e submissão, na medida em que
configura uma distribuição de privilégios, direitos e deveres dentro do
grupo.
[...], é também no cotidiano da vida familiar que surgem novas ideias,
novos hábitos, novos elementos, através dos quais os membros do
grupo questionam a ideologia dominante e criam condições para
lenta e gradativa transformação da sociedade. É, portanto, como
espaço possível de mudanças que se deve observar a dinâmica
familiar (BRUSCHINI, 2015, p. 81).

A temática família, quer seja por sua amplitude e contradições, quer seja
pelos desafios que enseja, nos remete a ampliar as reflexões para avanços mais
consistentes tendo em vista a complexidade do modo de vida contemporâneo.
Como evidenciado a família apresenta seu constructo histórico e se
apresenta como espaço plural, com significâncias ao seu tempo e cujo fruto é a sua
edificação através da quebra de paradigmas, que vêm à tona no tempo presente,
permeada por transformações econômicas e sociais, pelas mudanças no aparato
jurídico, que regulamentam e desregulamentam, juntamente com o Estado que
protege, desprotegendo.

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2 - FAMÍLIA: TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICAS E SOCIAIS

A compreensão dos impactos das transformações econômicas e sociais


no âmbito da família contou com o apoio do texto da Profª Dra. Mônica Maria Torres
de Alencar – ‘Transformações econômicas e sociais no Brasil dos anos 90 e seu
impacto no âmbito da família’, tendo como norte o recorte temporal dos anos de
1990.
Alencar (2006) traz que as transformações econômicas e sociais vividas
no país neste período histórico, marcaram de forma profunda o acirramento da
destituição social e da pobreza, de maneira que as formas de organização da
reprodução social dos trabalhadores e das famílias se alteraram significativamente e
que se concretizaram Através da vivencia do desemprego, do trabalho
desqualificado, das remunerações insuficientes, entre outros.
Contexto adverso que demandou que as famílias desenvolvessem e
articulassem diferentes alternativas para superar as situações de precariedade
social, pois sua exposição, em função da lógica do mercado, a levaram a níveis
importantes de vulnerabilidades.
Neste sentido, o esforço das famílias em seu interior se deu com vistas a
suprir uma rede de proteção social fragilizada de modo que ela adquirisse uma
centralidade na garantia da sobrevivência material dos indivíduos.
Paralelamente, neste período (1990) marcado por uma importante crise
econômica, ressurgem discursos e práticas de cunho conservador, difundindo a
ideia de que família é a responsável por prover as necessidades dos indivíduos, com
evidente tendência de transferência de questões de ordem pública para a esfera do
privado.
Tal fato contribui diretamente para a despolitização das questões afetas à
reprodução social dos trabalhadores e busca justificar a retração do Estado no
campo social e, por conseguinte fragiliza a família no desempenho de seu papel
também no âmbito da reprodução social.
As consequências deste cenário se dão, sobretudo no desenvolvimento
de políticas econômicas com impactos negativos sobre as condições estruturais da
produção e do mercado de trabalho. A desregulamentação e a flexibilização do

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

mercado de trabalho acirram o desemprego, a precarização das relações e as


condições de trabalho.
A concentração de renda, a estagnação econômica, a recessão, como
também o aumento da inflação são elementos que aprofundam as desigualdades
sociais e o crescimento de famílias com renda per capita abaixo da linha de pobreza.
O fato do Brasil não se ter completado o padrão de industrialização,
característico do modelo fordista/keynesiano de acumulação e reprodução, agrava o
contexto ora descrito, impactando de forma intensa nas condições de vida e trabalho
das classes trabalhadoras, ou seja, o Brasil chegou ao cenário de crise social e
mudanças estruturais no mercado de trabalho na década de 1990, sem efetivamente
ter garantido e estruturado os pilares básicos do Welfare State55, onde a diretriz
central buscava-se estabelecer um equilíbrio entre as forças do mercado e a
sociedade.
Mattoso (1995) analisando o cenário que foi se desenhando, aponta que o
individuo passa ser culpabilizado inclusive por seu emprego e desemprego.
A configuração dada pelo neoliberalismo com foco no ajustamento fiscal
subordinou a reorientação dos gastos sociais aos objetivos macroeconômicos.
Se o trabalho pode estruturar identidades, ser reconhecido como espaço
de pertencimento social, a sua ausência ou inserção precarizada pode ser fonte de
degradação social, que passa a depender de outros eixos, também precarizados,
para se estruturarem, como a evolução do aparato jurídico e da assistência social
como fator de proteção, mas que apresenta dificuldades em suas consolidações.

3 - A EVOLUÇÃO DO APARATO JURÍDICO E INSTITUCIONAL:


FAMÍLIA E LEGISLAÇÃO NO BRASIL

O aparato jurídico e institucional não ficou estagnado em momento algum,


visto o movimento da sociedade, desta forma a abordagem que realizamos tange
um recorte temporal a partir da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), marco e

55
“O Welfare State ao garantir os bens e serviços destinados à reprodução social, além de assegurar
benefícios aos que perderam a renda do trabalho, mediante o seguro-desemprego, indenizações por
acidente de trabalho, aposentadorias, garantia as condições básicas de vida, ao mesmo tempo que
regulava as forças das desigualdades sociais produzidas pelo mercado” (DRAIBE, 1994).
415
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consolidação da transição do regime autoritário para o democrático, restabelecendo


a inviolabilidade de direitos e liberdades básicas, bem como instituiu uma vastidão
de preceitos progressistas como: a igualdade de gêneros, a criminalização do
racismo, a proibição total da tortura e garantiram direitos sociais como educação,
trabalho e saúde para todos.
A partir da CF/1988 o conceito de família tornou-se plural, reconhecendo
diversos arranjos familiares, a liberdade de constituição, desenvolvimento e
dissolução das entidades familiares, bem como a igualdade dos filhos de origem
biológica ou socioafetiva.
Na sociedade contemporânea as configurações familiares não mais
decorrem apenas do matrimônio. A união estável, entre pessoas do mesmo sexo ou
não, famílias monoparentais e adoções atestam que as mais diversas formas de
relação familiar tornam a vinculação afetiva mais importante para a definição do
conceito de família.
A CF/1988 atribui a todas as entidades familiares a mesma dignidade,
sendo merecedoras de igual tutela, sem hierarquia. Deste modo, o direito de família
é pautado pelo princípio da afetividade na estabilidade das relações sobrepondo-se
às questões de caráter patrimonial ou biológico.
Simões (2014), em seu livro Curso de Direito do Serviço Social na parte II,
item VII - A Família, a Maternidade, a Infância, a Juventude e a Velhice, traz um
histórico sobre a evolução da legislação, com o enfoque social do tema.
O autor retoma as considerações já apontadas sobre o avanço trazido
pela CF/1988 e passa a elencar as legislações complementares posteriores. Na área
da infância e juventude o marco se dá com o Estatuto da Criança e do Adolescente,
Lei nº 8.069, promulgada em 1990, regulamentando os artigos 227 e 228 da
CF/1988.

O ECA institui os direitos fundamentais e as medidas preventivas,


socioeducativas e protetivas que objetivam assegurá-los. Estabelece
as linhas de ação da política de atendimento, como as políticas e
programas sociais, serviços de prevenção, entidades de
atendimento, medidas de proteção e organização pública. Prioriza a
reinserção familiar, como medida de ressocialização, em vez da
tutela de instituições estatais ou conveniadas. Define os atos
infracionais, estabelece os direitos e as garantias processuais e as
medidas socioeducativas, a remissão e as pertinentes aos pais ou
responsáveis. Institui o Conselho Tutelar e a Justiça de Infância e da
416
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Juventude, seus procedimentos, a participação do Ministério Publico


por meio de seus promotores e dos advogados ou defensores,
nomeados pelo juiz. Entre suas inovações destaca-se o instituto da
adoção tal como instituído também pelo novo Código Civil (arts.
1.618 e 1.629), inclusive com novas regras sobre a adoção
internacional (SIMÕES, 2014, p. 227).

Em 1993, surge a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei nº


8.742, que regulamenta os artigos 203 e 204 da CF/1988, que apresenta um
conceito ampliado, no qual a assistência social configura-se como direito do cidadão
e dever do Estado, tornando uma política de Seguridade Social não contributiva.
Somente após 14 anos de aprovação da CF/1988 foi promulgado o novo
Código Civil (CC), Lei nº 10.406, de2002, todavia, ainda carregado de visão
conservadora em relação aos avanços propostos pela Carta Magna.
Vale ressaltar outras legislações complementares e normativas
promulgadas gradativamente, visando assegurar a proteção integral de todas as
configurações familiares e seguimentos. Tais como: Política Nacional de Assistência
Social (PNAS) em 2004; Lei nº 11.340, de 2006 – Maria da Penha - Cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos
do § 8º do art. 226 da Constituição Federal; Lei nº 12.010, de 2009 – Da Convivência
Familiar e Comunitária – que altera o ECA; Lei nº 12.318, de2010 – Alienação
Parental que altera o art. 236 do ECA; Lei nº 13.058, de 2014 – Guarda
Compartilhada, altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 do Código Civil, de2002,
estabelecendo o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispondo sobre
sua aplicação; Lei nº 13.105, de 2015 Código de Processo Civil (CPC).
Para além das legislações e normativas elencadas, a jurisprudência vem
reconhecendo novos paradigmas parentais, tratando de modo igualitário as
relações, independente da origem consanguínea ou socioafetiva.
Como por exemplo, citamos o Supremo Tribunal Federal, em 2011, ao
julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277 e a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, reconheceu a união
homoafetiva como entidade familiar. Ao interpretar o artigo 1.723 do Código Civil,
conforme a Constituição Federal garantiu aos parceiros homossexuais os mesmos
direitos e deveres da união estável, entendida como sinônimo de família. Além disso,
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou Resolução nº 175, de 2013, dispondo
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união


estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo, reiterando a necessidade de
disciplina normativa.
Atualmente, uma das propostas de mudança em trâmite no Senado
Federal, o Estatuto das Famílias, Projeto de Lei 470, de2013, proposto pela
senadora Lídice da Mata, visa regularizar os direitos e deveres no âmbito das
relações familiares, tendo como objetivo reunir em um único documento todas as
normas relacionadas com o direito das famílias, visando maior agilidade da justiça,
atendendo à realidade brasileira.
No entanto, esta construção jurídica depende da contribuição e
demarcação dos pilares da assistência social, pois eles que ambicionam criar as
condições práticas na vida do cidadão.

4 - MARCOS REGULATÓRIOS DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA


SOCIAL

A Assistência Social é direito do cidadão e responsabilidade do Estado,


regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS - Lei nº 8.742, de
1993), através da instituição do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que foi
estabelecido inicialmente por resoluções do Conselho Nacional de Assistência
Social e recebeu tratamento legal apenas em 2011 (Lei nº 12.435, de2011).
Dentre as normativas que definem e estruturam o SUAS podemos
elencar: CF/1988 que trata da Assistência Social na Seção IV, arts. 203 e 204; Lei nº
8.742, de1993 (Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS), que dispõe sobre a
organização da Assistência Social, alterada pela Lei nº 12.435, de2011; Política
Nacional de Assistência Social (PNAS, de2004), aprovada pela Resolução nº 145,
de 2004, do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS); assim como outras
aprovadas sob a sua batuta como, a Norma Operacional Básica de Recursos
Humanos do SUAS (NOB/RH), aprovada pela Resolução nº 269, de 2006;
Tipificação Nacional de Serviços de Assistência Social, aprovada pela Resolução nº
109, de2009, e alterada pela Resolução nº 13, de2014, e a Norma Operacional
Básica do SUAS (NOB/SUAS), aprovada pela Resolução nº 33, de 2012.

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A Política Nacional de Assistência Social aponta como eixos estruturantes


a matricialidade sociofamiliar e a territorialização e traz que a Assistência Social
possui público específico, sendo uma de suas principais funções a Proteção Social.
Nesta perspectiva a Proteção Social divide-se em:
- Proteção Social Básica (PSB), e
- Proteção Social Especial (PSE).

A PSB compreende um conjunto de serviços, programas, projetos e


benefícios da assistência social que visa prevenir situações de
vulnerabilidade e risco social por meio do desenvolvimento de
potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos
familiares e comunitários (BRASIL, 2004/2009).

Integram os serviços da PSB: Serviço de Proteção e Atendimento Integral


à Família (PAIF); Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e
Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio para Pessoas com Deficiência e
Idosas.
A Proteção Social Especial

[...] por sua vez é formada por um conjunto de serviços, programas e


projetos que tem por objetivo contribuir para a reconstrução de
vínculos familiares e comunitários, a defesa de direito, o
fortalecimento das potencialidades e aquisições, além da proteção de
famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação
de direitos, como, por exemplo, em casos de abandono, maus tratos
físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas,
cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação
de trabalho infantil, dentre outras (BRASIL, 2004/2009).

Os serviços da PSE podem ser divididos de acordo com a complexidade,


em Média e Alta Complexidades. São serviços da PSE de média complexidade:
Serviço de Proteção e Atendimento Especializado às Famílias e Indivíduos (PAEFI);
Serviço Especializado em Abordagem Social; Serviço de Proteção Social a
Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa; Serviço de Proteção

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Especial para Pessoas com Deficiência, Idosos e suas Famílias e Serviço


Especializado para Pessoas em Situação de Rua.
Os serviços de alta complexidade são delineados na oferta de: Serviço de
Acolhimento Institucional; Serviço de Acolhimento em Repúblicas; Serviço de
Acolhimento em Família Acolhedora e Serviço de Proteção em Situações de
Calamidades Públicas e de Emergências.
Cabe destacar que a materialização das políticas ocorre através dos
serviços e que é importante refletir sobre a relação entre Estado e família na
constituição das políticas públicas, em especial a da Assistência Social, sabendo-se
que:

Nesse momento, nem as famílias são unidades simples e


homogêneas e nem o Estado é uma unidade monolítica. As formas
de relação que ele assume com as famílias dependem, sobretudo, da
história política e social dos diferentes países. No entanto, é
necessário lembrar que a presença do Estado na família, através das
mais diferentes formas de intervenção, não possui apenas uma face,
ou uma intenção. Pois, ao mesmo tempo em que defende as
crianças da violência doméstica, impõe à família normas socialmente
definidas. Ao defender a família pode descuidar dos direitos
individuais. Enfim, ao fornecer recursos e sustentação às famílias se
colocam em movimento estratégias de controle (MIOTO, 2004, p.50).

E neste amplo e complexo contexto, saber minimamente de que família


estamos fazendo referência, qual sua realidade de vida e seu percurso histórico,
bem como que serviços lhe são oferecidos e como consegue acessar, entre outros
aspectos, são fundamentais, na busca da consolidação e quebra de entraves
apresentados até o momento, vislumbramos a efetivação de sua proteção como
política pública de Estado.

5 - FAMÍLIA E PROTEÇÃO: REALIDADE SOCIOTERRITORIAL E


ARTICULAÇÃO COM AS REDES DE SERVIÇOS

A família é o espaço onde aprendemos a ser, a conviver e a construir a


identidade sendo uma organização em constante processo de transformação, e que
no seu cotidiano media as relações entre o sujeito e a coletividade.

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Na sociedade contemporânea existem novas configurações familiares e


arranjos variados como, por exemplo, famílias monoparentais, reconstituídas,
unifamiliar, com uniões homoafetivas, e outras. Dessa forma o conceito é ampliado e
uma nova função lhe é atribuída: a função protetiva.
Como já apresentado anteriormente, com o ressurgimento do sistema
neoliberal se observa uma perda gradativa da intervenção estatal na prestação de
serviços, e um processo acelerado de empobrecimento das famílias devido à
precarização das relações de trabalho.
Esta realidade que se apresenta torna as famílias ainda mais vulneráveis,
e, por conseguinte exigindo delas estratégias complexas para sobreviverem.
Com o advento da Lei Orgânica de Assistência Social (1993) compondo o
tripé da Política de Seguridade Social e posteriormente a aprovação da Política
Nacional de Assistência Social (2004), este contexto adverso de embates surge um
novo elemento no delineamento das Políticas Públicas Sociais, que é a
territorialização.
Assim, a NOB-SUAS, de2005 destaca o território como base de
organização, cujos serviços devem considerar a proximidade do cidadão e localizar-
se no local da incidência de vulnerabilidades e riscos para os sujeitos coletivos.
Neste enfoque, o território ganha centralidade e se relaciona às políticas
públicas com o entendimento de que a proximidade entre os serviços e os usuários
favoreceria a compreensão da história da comunidade, das peculiaridades ali
instituídas, do movimento dos atores sociais e assim atenderia de maneira integral
as necessidades e características da população local.
Sposati (2016) aponta que o território traz estreita relação com as
vivências e significados destas pelos indivíduos e pela coletividade em seu espaço
conhecido. Pondera também que a territorialidade reflete as diversidades vividas
pelos membros de uma coletividade através de suas relações sociais, de modo que
no território, ficam evidenciadas as expressões da questão social em seu cotidiano,
ou seja, sua condição de sobrevivência, suas relações com o trabalho ou ausência
deste.
O território possui um desenvolvimento próprio que evidencia as
diferenças e especificidades dos conflitos sociais existentes, é o lugar de residência,
das trocas materiais e espirituais, é a identidade de uma comunidade e o seu

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sentimento de pertencimento, é o local onde o direito a ter direitos será concretizado


ou negado.
O conhecimento da realidade e, por conseguinte, do território de uma
determinada população encerra a apreensão do contexto de vulnerabilidade social
que a família está exposta, relacionando à capacidade de acesso que as famílias
têm ao bem estar social, à exposição ao risco, e a capacidade material ou simbólica
que o indivíduo consegue dar para fazer frente ao risco.
A perspectiva que se encerra nesta diretriz traz que os serviços ao serem
implementados próximos ao cidadão, podem antecipar respostas às suas
necessidades e facilitar o acesso à proteção social e fortalecer as redes locais,
prevenir o agravamento das questões de risco e adequar os serviços às
necessidades dos usuários.
Ganha também centralidade o trabalho em rede que tem como premissa
a articulação dos serviços, o planejamento de ações com envolvimento das famílias.
Esta rede de proteção é mais dos atores a quem cabe à defesa da cultura
de direitos, buscando reconhecer sinais de violência contra a família em atitude de
proteção e vigilância social, articulados à assistência social e ao texto jurídico, ora
apresentados, visionando o acompanhamento das mudanças, cada vez mais
rápidas, vividas no cenário contemporâneo e não diferente nesta instituição, a
família.

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6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso realizado no decorrer dos estudos evidencia o quão a


temática família é ampla e traz em suas relações e configurações, especialmente na
vida contemporânea, contextos complexos e contraditórios, que nos impele a buscar
constantes aproximações e conhecimentos.
Os fatores que influenciam e dirigem as remodelações da família tomam o
seu protagonismo, sendo por diversas vezes, despercebido por nós e exigindo da
prática profissional o constante aprimoramento.
As transformações econômicas e sociais vividas no Brasil, de modo
particular a partir da década de 1990, marcaram significativamente o contexto das
famílias impactando suas formas de organização e reprodução social. Neste período
o desemprego, a precarização do trabalho e baixas remunerações potencializaram o
contexto de vulnerabilidade das famílias.
Ao mesmo tempo em que é chamada a proteger seus membros é
responsabilizada e culpabilizada por toda adversidade vivida. Apesar da vasta
legislação com vistas a assegurar direitos, promover o fortalecimento e seu
empoderamento as políticas públicas não alcançam a extensão e complexidade das
demandas impostas pelo tempo presente.
O desafio que nos é posto é desvelar esta realidade, o percurso vivido
pelas famílias, qual território vive o que ele encerra, produz e oportuniza. Aliado a
estas situações precisamos conhecer o processo de socialização das famílias, as
formas de cuidado, as mudanças e relações socioculturais, familiares, a questão do
trabalho. Enfim, conhecer modos de vida.
Nossas ações devem primar na perspectiva da defesa direitos de todos
os cidadãos, por isso ganha importância o debate permanente, o planejamento das
atividades, assim como avaliação do trabalho desenvolvido e a articulação com a
rede socioassistencial de saúde e educação.
Afinal, cada um de nós temos um conceito, ao menos, uma concepção de
família, pois somos fruto de uma, seja qual for seu constructo identitário, pois,
parafraseando o Prof. Pe. Mário José Filho, falar de família, é muito familiar e esta
se desenvolve neste mundo, em seu contexto, sob forte e constante influência das
instituições e dos outros atores sociais.

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violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo
Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Anexo. atual. nov. 2017. Disponível em:
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua
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faixa etária de 18 a 59 anos no Serviço de Convivência e Fortalecimento de
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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427
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

JUSTIÇA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE: PREVENÇÃO,


REDE SOCIAL E PAPEL DO JUDICIÁRIO COMO
FOMENTADOR DA REDE

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR –


JUNDIAÍ – BRAGANÇA PAULISTA
“INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

428
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Cláudia Maria Nóbrega – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista


Fabíola Maria Mota Costa de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Nazaré Paulista

AUTORES

Ana Carolina da Silva Payolla – Assistente Social Judiciário – Comarca de Campinas


Débora Silva Barros de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Cabreúva
Eduarda Vieira Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Edna Maria Brandão – Psicóloga Judiciário – Comarca de Bragança Paulista
Magnólia Mota Zamariolli – Assistente Social Judiciário – Comarca de Piracaia
Maria Helena Pompeu – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pinhalzinho
Tamara Cristina Barbosa Soares – Psicóloga Judiciário – Comarca de Limeira
Sandra Maria de Souza Moraes Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Bragança Paulista

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
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INTRODUÇÃO

Este grupo vem estudando nossa atuação enquanto profissionais técnicos


há vários anos. Por muito tempo nos concentramos nas questões relativas à Vara de
Família. Entretanto, todas nós lotadas nas Varas da Infância e Juventude
consideramos que as questões são igualmente complexas e merecem debate e
discussão. Nesse sentido o tema do grupo passou a ser “Infância e Adolescência”
ampliando as possibilidades de estudo e atualizações frequentes no campo do
Poder Judiciário e suas interfaces.
Quando se trata da Infância e Juventude e se considera o papel do Poder
Judiciário, a questão da garantia de direitos é central. A Constituição Federal de
1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, a implantação do Sistema
Único de Assistência Social – SUAS e a concretização do Conselho Nacional de
Justiça - CNJ estabelecendo controle social sobre o próprio Poder Judiciário são as
matrizes que embasam a atuação das Varas de Infância e Juventude. Vale ressaltar
ainda o papel da Coordenadoria da Infância e Juventude no Estado de São Paulo na
mudança de paradigma que nos trouxe essa centralidade do Sistema de Garantia de
Direitos e do trabalho em rede.
Na esteira da discussão sobre efetivamente garantir direitos, o norte
apontado foi o aspecto da prevenção, em conjunto com a articulação da rede
socioassistencial. Desta forma as análises se voltaram para as cidades que
compõem a região atendida e os desafios começaram a ser problematizados. Ao
longo da discussão, foi possível perceber o quanto a realidade de cada comarca é
diferente: as necessidades, os equipamentos, as formas de atuação, o grau de
interferência e de autonomia da equipe técnica judiciária, bem como o quadro da
rede socioassistencial de cada município.
A análise da realidade trouxe a reflexão acerca de questões específicas
que permeiam o trabalho em rede, tais como risco e vulnerabilidade social, sistema
de garantia de direitos, território e estrutura, para além a articulação das equipes
técnicas judiciárias nos respectivos territórios a seguir discorridas.

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1 - CONCEITUANDO RISCO E VULNERABILIDADE SOCIAL

Considerando que os conceitos de vulnerabilidade e risco social


comumente estão presentes nos discursos técnicos e que estes conceitos são
usados pelos órgãos governamentais, faz-se necessário melhor compreendê-los.
Janczura (2012) apresenta opiniões de diferentes autores sobre tais conceitos. A
Politica Nacional de Assistência Social é edificada a partir de uma visão social de
proteção, que supõe conhecer os riscos e as vulnerabilidades da população
atendida. Contudo, ela não traz uma definição clara sobre esses dois conceitos, que
muitas vezes são usados como sinônimos.
Janczura (2012) cita as autoras Yunes e Szymanski (2001) para melhor
defini-los. O risco teria sido usado pelos epidemiologistas em associação a grupos e
populações, e a vulnerabilidade refere-se aos indivíduos e às suas suscetibilidades
ou predisposições a respostas ou consequências negativas. As autoras referem que
o conceito de vulnerabilidade foi formulado nos anos 1930 pelo grupo de pesquisa
de L.B. Murphy, que acabou por definir o termo como “susceptibilidade à
deterioração de funcionamento diante de estresse” (JANCZURA, 2012, p.28-29).
Citando Reppold et al (2002), Janczura (2012) expõe que os fatores de risco ao
desenvolvimento psicológico e social são: o baixo nível socioeconômico, a
remuneração parental, baixa escolaridade, famílias numerosas e ausência de um
dos pais.
Ainda segundo a autora Oliveira (1995) registra que os grupos
“indigentes” e “pobres” se constituem nos maiores contingentes vulneráveis da
sociedade brasileira, sendo que o mecanismo produtor dessa vulnerabilidade,
basicamente, é o mercado de força de trabalho. Para o autor, a diminuição da
vulnerabilidade está ligada à retomada do crescimento econômico dentro de um
novo modelo e em níveis que possam ofertar empregos capazes de reempregar
quem foi desempregado e empregar os que estão ingressando na idade de
trabalhar. O autor observa ainda que, se não ocorrer essa retomada, a concentração
de renda continuará produzindo indigentes do mercado informal de trabalho. Ele
defende que a vulnerabilidade dos grupos sociais somente poderá ser eliminada
desde que se “transite de uma noção de carências sociais para o terreno de direitos
sociais”.

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Janczura (2012) cita Carneiro e Veiga (2004), os quais definem


vulnerabilidade como exposição a riscos e baixa capacidade material, simbólica e
comportamental de família e de pessoas para enfrentar e superar os desafios com
que se defrontam. Para eles, os riscos estão associados, por um lado, com
situações do próprio ciclo de vida das pessoas e, por outro, com condições das
famílias, da comunidade e do ambiente em que as pessoas se desenvolvem. Os
autores expõem que em sociedades baseadas em economia de mercado a pobreza
representa a primeira aproximação da maior exposição a riscos, principalmente em
contextos em que famílias pobres não contam com uma rede pública de proteção
social; acesso a bens e serviços básicos que viabilizem melhores oportunidades
para enfrentar as adversidades.
Ao considerar apenas o aspecto pessoal do risco, deixaríamos de lado o
compromisso coletivo da sociedade com os riscos sociais da população. Nesse
sentido, tendo como enfoque a prevenção, Castel (2005) afirma que se os indivíduos
não estiverem assegurados contra imprevistos causados pelos riscos, viverão na
insegurança, pois o risco social compromete a capacidade dos indivíduos de
assegurar por si mesmos sua independência social. Ele aponta que há uma
dificuldade crescente de se assegurar contra riscos sociais (acidente, doença,
desemprego, incapacidade de trabalho devido à idade ou à presença de uma
deficiência). Na opinião do autor, a reflexão contemporânea sobre a insegurança
deve integrar esse parâmetro: “se ser protegido” é estar em condições de enfrentar
os principais riscos da vida, essa segurança parece hoje duplamente em falta.
Considerando as diferentes perspectivas conceituais, Janczura (2012)
analisa que o risco não pode ser identificado como vulnerabilidade, embora se possa
estabelecer uma relação estreita entre eles. O primeiro conceito se refere à situação
de grupos e o segundo deve ser usado para a situação fragilizada de indivíduos.

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2 - SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

A garantia dos direitos humanos é essencialmente relevante à qualidade


da vida em sociedade, sendo provenientes de uma construção social, advindos de
um processo histórico, com conteúdo ético, dinâmico e de consolidação de espaços
emancipatórios da dignidade humana.
Importante destacar que antes de serem consideradas como direitos, as
carências e aspirações da comunidade apresentavam-se como objeto de opressões,
resistências e articulações dos indivíduos.
No entendimento de Marilena Chaui (2006 p.8)

Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e


específico, mas geral e universal, seja porque o mesmo é válido para
todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora
diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados
direitos das minorias).

Considerando a estrutura societária à qual pertencemos, a efetividade da


garantia de direitos consolida-se ante a somatória de determinadas instituições que
possuem a competência para realizá-la.
São elas:
 Nos diferentes níveis de governo, as Instituições Legislativas;
 As Instituições que compõem o Sistema da Justiça: Judiciário,
Promotoria, Defensoria Pública, Conselho Tutelar;
 As Instituições responsáveis pelas políticas públicas,
governamentais ou não governamentais, que disponibilizam programas de
atendimento e serviços à população nas áreas de saúde, educação, trabalho,
esporte, cultura, assistência social e lazer.
 Os conselhos de composição paritária que efetivam a
representação da sociedade na formulação de políticas e controle das ações
do poder público.
 As instituições midiáticas que disseminam os direitos, fazendo
chegar à população o conhecimento e a discussão sobre estes.
Historicamente fragmentadas, as ações da rede de garantia de direitos
não efetivam seus principais objetivos, já que não trabalham em um projeto comum.
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Pensar em um projeto político amplo cujo objetivo seja viabilizar o desenvolvimento


de ações integradas possibilitaria a construção de “um real” sistema de garantia de
direitos.
Segundo Myrian Veras Baptista (2012 p. 188),

Um princípio norteador da construção de um sistema de garantia de


direitos é a sua transversalidade. Seus diferentes aspectos são
mutuamente relacionados, e as reflexões, os debates e as propostas
de ações no sentido de garanti-los apenas alcançarão a eficácia
pretendida se forem abordados integradamente de forma a fortalecer
as iniciativas das suas diferentes dimensões.

Nesta perspectiva podem-se prever articulações intersetoriais, além de


uma definição clara dos papéis dos diversos atores sociais, situando‑os em eixos
estratégicos e interrelacionados; integralidade da ação, conjugando transversal e
intersetorialmente as normativas legais, as políticas e as práticas, sem conformar
políticas ou práticas setoriais independentes.
Faz-se necessário repensar as ações e inter-relações nas questões em
que as crianças e adolescentes são objeto de proteção e por isso devem-se
operacionalizar os direitos apresentados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
com eficácia, definindo-se claramente os papeis de atuação dos atores sociais
responsáveis, bem como o controle externo e difuso da sociedade civil sobre o
sistema.
Considerando as legislações existentes, a configuração do Sistema de
Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente se estrutura a partir da articulação
e integração em rede das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, a
partir de três eixos estratégicos de ação na área dos direitos humanos: da defesa,
da promoção e do controle de sua efetivação.
Ao considerarmos as modificações permanentes que incidem sobre a
sociedade, somam-se aos eixos principais os eixos específicos de instituição do
direito e de sua disseminação. Desta forma, o sistema de garantia de direitos teria
que contemplar, na sua configuração, cinco eixos: da instituição do direito, da sua
defesa, da sua promoção, do controle de sua efetivação e de sua disseminação (que
seria responsável pela última estratégia referida na deliberação: a mobilização social
em favor da garantia de direitos).

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3 - A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO TERRITORIAL NA


ELABORAÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS NA ÁREA DA INFÂNCIA
E JUVENTUDE:

3.1 - Varas Especializadas e a Doutrina de Proteção Integral

O ECA prevê órgãos de justiça especializados e exclusivos para lidar com


os direitos da infância e adolescência, mas não há obrigatoriedade de criá-los;
consequentemente há um quadro de considerável disparidade em termos dos
equipamentos judiciais disponíveis e os serviços oferecidos à população, o que
acarreta prejuízos ao andamento dos processos e na resolutividade dos casos.
A própria condição especial do público alvo requer trâmite processual não
convencional e exige preparo e estrutura diferenciada para lidar com questões que
se manifestam nos meios familiar e comunitário em que se inserem.
Em relatório do CNJ e do IPEA intitulado “Justiça Infantojuvenil: situação
atual e critérios de aprimoramento” realizado em 2012, com o objetivo de oferecer
subsídios para a decisão sobre onde instalar novas varas especializadas, consta
levantamento das comarcas no país com base em: pobreza, vitimização por
homicídio, trabalho infantil e não frequência à escola, compondo-se indicador
síntese da vulnerabilidade social e da violação dos direitos da infância e
adolescência.
Neste, constatou-se que, se a decisão sobre a instalação de varas
especializadas observar apenas o critério populacional será mantida a situação de
carência de serviços especializados, pois a gravidade dos problemas que atingem a
população infanto-juvenil difere da distribuição meramente populacional.
Conforme Aquino (2013, p.65),

Sendo inviável instalar varas especializadas em todas as comarcas,


é necessário também criar estratégias capazes de potencializar a
abrangência territorial desses serviços, de modo que seja possível
alcançar e atender adequadamente seu público alvo, seja nas
grandes comarcas das capitais e metrópoles brasileiras ou nas
pequenas comarcas do interior.

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Se não forem consideradas as vulnerabilidades e as condições de vida


específicas da população infanto-juvenil no território, os esforços de ampliação da
rede dos órgãos de justiça terão efeito inócuo sobre a garantia de direitos desta
população e certamente haverão despedido tempo e recursos financeiros.

3.2 - Conceito de Território na Política de Assistência Social

A incorporação do conceito de território na Política de Assistência Social


ocorreu com o SUAS em 2005, como conceito base de organização do sistema. A
relevância da dimensão territorial garante efetividade às ações públicas, melhor
compreensão das questões em determinado espaço de convivência social e
atendimento com maior efetividade às demandas.
A Política Nacional de Assistência Social estipula que as ações públicas
devem ser planejadas territorialmente, com vistas à superação de sua fragmentação,
à universalidade da cobertura, ao planejamento e monitoramento da rede de
serviços e à realização da vigilância social das exclusões e estigmatizações
presentes. Visa tanto o enfrentamento como a prevenção de situações de
vulnerabilidade e riscos sociais.
A atuação preventiva no território materializa a descentralização das
ações e da tomada de decisão, impulsionando a participação das pessoas em sua
formulação e gestão.
A dimensão territorial deve fortalecer a lógica da proteção social integral
da criança e do adolescente. De acordo com Santos (2007, p.22), “o território usado
é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence.” O reconhecimento da dimensão territorial, assim entendida, nos remete à
essencialidade da nossa intervenção enquanto integrantes e fomentadores da rede
social da infância e adolescência, a fim de assegurar a concretização dos direitos.

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4 - CONCLUSÃO

Em síntese nossas discussões pontuaram a maneira pela qual o


Judiciário intervém na rede socioassistencial enquanto fomentador e articulador
desta, no sentido de garantir direitos na área da Infância e Adolescência.
Nossos estudos e a análise das realidades vividas nas diversas
comarcas participantes deste Grupo de Estudos nos indicam que no momento
convivemos com duas realidades distintas:
- uma atuação na área da Infância e Juventude pontual e focada em
administrar minimamente os direitos há muito violados de crianças e adolescentes,
sendo a destituição e a dificuldade na reintegração familiar como exemplo,
consequências desta realidade.
- a atuação em rede, centrada na prevenção; entendemos ser esse o
caminho, considerando algumas experiências exitosas, porém percebemos que
enquanto a atuação em rede não for efetivamente parte da política pública, fomentar
e construir esta rede é tarefa árdua repleta de reveses, embora essencial se
pretendermos garantir direitos.

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REFERÊNCIAS

AQUINO, Luseni. O território como referência para (re) pensar o judiciário: o caso da
Justiça da Infância e da Juventude. Relatório IPEA e CNA, 2012.

BAPTISTA, Myrian Veras. Algumas reflexões sobre o sistema de garantias de


direitos. São Paulo: Revista Serviço Social e Sociedade nº 109., p.179-199, 2012.

CHAUI, Marilena. Direitos humanos e educação. In: Congresso sobre Direitos


Humanos. Brasília, 2006. Disponível em:
<http://www.pdfebooksdownloads.com/marilena‑chaui.

JANCZURA, Rosane. Risco ou vulnerabilidade social? Revista Textos e Contextos ,


Porto Alegre, V. 11, n 2, ago/dez, 2012, p.301-308.PUC-RS.

KOGA, Dirce. Aproximações sobre o conceito de território e sua relação com a


universalidade das políticas sociais. Londrina: Revista Serviço Social, v.16, n.1,
p.30-42, 2013.

MELAZZO, E. S. NASCIMENTO, P. F. Território: conceito estratégico na assistência


social. Revista Serviço Social, Londrina, v.16, n.1, p.66-88, jul/dez. 2013.

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A DISPUTA NAS VARAS DE FAMÍLIA: AS DIFICULDADES


DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR E OS PROCEDIMENTOS
TÉCNICOS NA CONDUÇÃO DO ESTUDO PSICOSSOCIAL

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR - LIMEIRA

“A DISPUTA NAS VARAS DE FAMÍLIA”

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2017

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COORDENAÇÃO

Adriana Negretti Cruz Campana – Psicóloga Judiciário – Vara da Infância e


Juventude da Comarca de Rio Claro

Fabiana Aparecida de Carvalho – Assistente Social Judiciário – 3ª Vara Criminal da


Comarca de Limeira

AUTORES

Ana Paula Marchini – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e Juventude da


Comarca de Piracicaba

Beatriz Oliveira Batista Simonetti – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e


Juventude da Comarca de Rio Claro

Carolina de Lima Sampaio – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e


Juventude da Comarca de Piracicaba

Caroline Bonello Valadão Sanchez – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância


e Juventude da Comarca de Piracicaba

Letícia Lofiego Sanchez Chrispi – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e


Juventude da Comarca de Piracicaba

Milla Cristiane Pavão Gonçalves – Assistente Social Judiciário – Vara Criminal da


Comarca de Leme

Talita Maria Muniz Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Vara da Infância e


Juventude da Comarca de Piracicaba

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INTRODUÇÃO

Esse artigo pretende discutir os procedimentos técnicos e


interdisciplinares dos setores técnicos do Tribunal de Justiça de São Paulo,
especialmente os representados no grupo de estudos da Comarca de Limeira.

Ora, as primeiras aproximações do tema que desafiava o coletivo de


profissionais na condução dos estudos em 2017 versavam, de um lado, sobre as
inúmeras situações de litígio e, dentro delas, o sofrimento das crianças e
adolescentes, e de outro, as possibilidades técnicas para minimizá-lo. Os encontros
enredaram-se na perspectiva teórico-metodológica referenciadas com sobreposição
das diferentes experiências profissionais cotidianas do material estudado.

Diante disso, o grupo construiu como questão direcionadora de seus


trabalhos: Quais são os elementos impeditivos para a convivência familiar em casos
altamente litigiosos nas Varas de Família?

O processo de estudo se desenvolveu do modo esperado e, à medida


que nos aproximávamos da curiosidade estabelecida coletivamente, percebíamos
que nenhuma participante do grupo tinha “experiências prontas” sobre o
impedimento de convivência na Vara de Família, mais comum na Vara de Infância.
Para além disso, percebemos que toda a condução técnica que expúnhamos
possuía o sentido inverso: Quais estratégias técnicas podem ser utilizadas para a
garantia da convivência familiar?

Ou seja, o impedimento da convivência familiar nas Varas de Família é


bastante raro e ocorre apenas em caso de risco explícito à criança ou ao
adolescente. Mesmo casos de abuso sexual não necessariamente implicam no
rompimento de contato, pois, a depender do contexto, a convivência pode ocorrer
através de visita assistida.

Sendo assim, passamos a delinear uma construção reflexiva que


fortalecesse a atribuição ética e técnica de garantia dos direitos da criança e do
adolescente, independente da Vara em que tramite o processo, ou seja, o direito da
convivência familiar.

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Desse modo, o presente artigo encontra-se organizado em seis partes:


Introdução; O cenário do divórcio: a ventilação dos afetos; A desconstrução técnica
de motivos frequentemente utilizados no pleito de impedimento de convivência
familiar; Estratégias para garantia de convivência familiar, Considerações e
Bibliografia.

1 - O cenário do divórcio: a ventilação dos afetos

O cenário do divórcio foi um elemento bastante discutido nos encontros,


especialmente à luz de Dolto (2011) que realiza o diálogo entre o desenvolvimento
infantil no contexto da separação conjugal, situação frequente encontrada para
atuação técnica.

Importa destacar que para o desenvolvimento infantil Dolto (2011) se


apoia em um contínuo do corpo, da afetividade e da interação social. Esses foram
elementos ressaltados pelos profissionais do grupo que sinalizaram a dificuldade
percebida entre requerentes e requeridos em conseguir lidar, ao final da
conjugalidade, com a parentalidade que, em tese, não possui fim.

Mesmo após a separação dos pais, os filhos precisam ter a presença e a


participação de ambos em sua vida para que o seu desenvolvimento transcorra
saudável. A autora apresenta a relação corpo-espaço para a criança e a importância
dos seus referencias. Ora,

O corpo da criança construiu-se num determinado espaço, com os


pais presentes. Quando os pais se vão embora, caso o espaço não
seja mais o mesmo [a casa, a escola], a criança não mais se
reconhece nem mesmo em seu corpo, ou seja, em seus referenciais
espaciais e temporais, já que uns dependem dos outros. (DOLTO,
2011, p.18)

Deste modo, a autora infere que se a criança permanecer no mesmo


espaço em que seu crescimento se deu quando os pais ainda eram unidos poderá

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minimizar dissociações acarretadas pelo litígio e alterações que se estabelecerão na


convivência com os mesmos.
Ao realizarmos reflexões a respeito, percebemos que muitos pais
conseguem manter esses espaços para as crianças e adolescentes que passam
pelos estudos profissionais, contudo, muitos não. Observamos que para alguns pais
é necessário mudar da residência, trocar de escola e, assim, da mesma forma que
se modifica a vida dos adultos, também se modifica a vida dos filhos.
Compreendemos, empiricamente, que a mudança de local de residência
e/ou de escola ocorre pela situação econômica, ou mesmo, no auge dos conflitos,
como um elemento de provocação entre requerente e requerido. De acordo com a
autora, quanto mais possível preservar os “espaços” de socialização do filho, maior
a tendência de lidar melhor com a nova situação da separação dos pais.
Ainda consoante à autora, os filhos precisam ser avisados do que está se
preparando no início do processo de separação e o que ficará decidido ao término
56
dele. Ela usa o termo “ventilação dos afetos” que consiste na humanização da
separação, quando, através da fala é possível abrir o dialogo para que a criança
possa exprimir seus pensamentos e sentimentos apropriando-se de palavras para
lidar com o conflito.
Os filhos precisam ser comunicados do que está ocorrendo, pois o não
dito pode causar danos mais significativos ao seu psiquismo, por isso é importante
que os pais sejam claros e lhes informem que, embora não pretendam mais levar a
diante o casamento entre eles, isto não se aplica à paternidade e à maternidade,
assegurando-lhes que não se arrependem de os terem tido.
A criança possui radares ultra-sensíveis para detectar os estados
emocionais dos pais, quando estes não são verbalizados, a angústia e a
insegurança gerada na criança podem ser desorganizadores.
Para a autora, é importante que os filhos saibam que o divórcio foi
legitimado pela Justiça e que isto define uma nova maneira de viver dos pais, o que
não os exime dos direitos e dos deveres em relação aos cuidados e convivência
com a prole, cuja modalidade o juiz terá estipulado. De acordo com as experiências
das profissionais do grupo, a maioria dos casais atendidos chega sem realizar essa

56
Termo que inspirou a titulação do presente item.
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prévia comunicação do divórcio aos filhos, o que tende a tornar o processo mais
difícil de ser compreendido e elaborado.
Nesse sentido, compreendemos que falar com as crianças a respeito da
separação pode oferecer-lhes palavras para tratar do assunto tornando-o mais
humanizável, fazendo com que elas saibam que o divórcio é um mal menor e lhes
possibilite expressarem seu sofrimento, bem como se sentirem autorizadas a
conversar sobre seus problemas com outras pessoas, estranhas à família.
É importante que se saiba que o divórcio pode provocar alterações
diversas na rotina e no meio social dos filhos. Desta vivência podem decorrer
sintomas psicossomáticos, manifestações comportamentais e lingüísticas que
evidenciam um abalo profundo nos filhos pela trama familiar, o que muitas vezes
tem sido mal interpretado pelo genitor contínuo e levado aos tribunais como motivo
para privar, monitorar ou diminuir o seu convívio com o genitor descontínuo.
Frequentemente, para sofrer menos com a ausência imprevista de um
dos pais, os filhos podem recordar-se apenas de lembranças ruins do convívio
anterior, manifestando pouca ou nenhuma vontade de estabelecer a convivência
com o não guardião. Também é comum que os filhos criem uma aliança
inconsciente com o genitor que percebem como mais frágil ou prejudicado, tomando
para si as dores daquele que pensa estar sofrendo mais.
Ainda conforme Dolto, a percepção infantil do tempo cronológico é muito
diferente da de um adulto: uma semana para um adulto pode corresponder a um
mês para uma criança. Trata-se de tempo suficiente para gerar nesta o medo do
abandono e o desapego daquele com quem menos convive.
São vários os aspectos que podem ser identificados como consequências
do cenário da separação, seja para os pais, seja para os filhos. A equipe técnica, via
de regra, acessa esse grupo familiar em um momento bastante doloroso e de
mudanças expressivas para todos. Quando a separação ocorre de modo conflituoso
e as questões de guarda, convivência familiar e pensão tornam-se elementos de
uma enorme lista de disputas, pode ocorrer de um dos pais afirmar que o outro não
possui condições de manter a convivência com os filhos.
De modo geral, percebemos que na maioria dos casos que as
profissionais do grupo já atuou, ainda que essas dificuldades pudessem ter

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fundamentos reais, não alcançavam status de impedimento de convivência, tal qual


discutiremos a seguir.

2 - A desconstrução técnica de motivos frequentemente utilizados


no pleito de impedimento de convivência familiar

A convivência familiar é direito da criança e do adolescente. Quais seriam


as possíveis razões para que não ocorresse? Quais critérios a equipe técnica deve
observar para ser favorável às restrições de convívio?
Tanto a Constituição Federal quanto o Estatuto da Criança e do
Adolescente destacam a convivência familiar como direito fundamental à criança e
ao adolescente imprescindível ao desenvolvimento humano, além de descreverem
os deveres e direitos que devem ser exercidos em igualdade de condições entre os
genitores. Por isso, discutir casos litigiosos e que envolvem a convivência familiar se
torna tão importante.
É notório que o litígio tem se tornado a base de um novo modelo de
relacionamento dos genitores e isso tem acarretado ações que precisam ser
atendidas judicialmente no tocante a pensão e alimentos, guarda e convivência com
os filhos, alienação parental, falsas denúncias. Dentre as demandas algumas
expressam tendências antissociais, manobras perversas, nas quais as mentiras, o
desrespeito ao outro e a dificuldade de conter a própria agressividade são condutas
comuns e, muitas vezes, consideradas normais.
Essas questões acabam por trazer consequências às crianças e
adolescentes que vivem em uma situação de complexidade nos sentimentos
angustiantes, ambíguos e estressantes. Ambos os genitores travam embates em
busca dos próprios direitos, incluindo o da convivência, aliados a sua conveniência,
vitimizando muitas vezes os próprios filhos quando propõe restringir a convivência
com o outro genitor.
Dentre as justificativas para a restrição na convivência parental a que
mais comumente se vê está relacionada à questão financeira, que traz em seu cerne
as consequências da questão social57 vivenciada pelos genitores, além de aspectos

57
Entendida como resultado da equação da sociedade capitalista e de sua renda desigualmente
distribuída, através da exploração do homem sobre o homem.
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socioculturais tais como: A problemática do sucesso ou fracasso da vida profissional


individual; a maneira que cada um entende como o outro deva administrar a pensão;
a necessidade de recursos financeiros versos a disponibilidade do genitor que
precisa custear os filhos; as imposições da desigualdade no mercado de trabalho;
além das constantes crises econômicas que geram milhares de desempregados e a
disputa de gênero.
A igualdade de fato entre homens e mulheres estabelecida nos direitos
fundamentais constantes nas constituições das democracias liberais ocidentais,
infelizmente, não corresponde à realidade nas questões referentes aos cuidados
parentais. Ainda se faz presente uma cultura em que a mãe cuida melhor tendo sido,
tradicionalmente, os cuidados com os filhos uma obrigação atribuída de modo
especial à mulher e aos homens foi associado o papel de provedor da prole.
Em nossos estudos observamos que há uma fantasia de que o guardião
residente fará mau uso do dinheiro da pensão, como se ele mesmo fosse usufruir
dos recursos destinados ao filho, gerando sentimentos que impedem e dificultam a
compreensão real dos fatos e a racionalização da situação que precisa ser decidida
em prol do melhor interesse da criança, a saber: o tipo de guarda, os valores
monetários que garantirão o amparo material, a preocupação em não acarretar
maiores prejuízos aos filhos (além dos que já estão vivenciando com a separação) e
as regras de convivência.
A questão de gênero também pode ser observada nos desdobramentos
da separação do casal e na disputa pelos interesses pessoais e dos filhos. Embora a
Constituição Federal tenha trazido avanços no conceito de família e na igualdade
entre os gêneros, predominam aspectos machistas nas relações entre os genitores.
Nesse sentido as práticas profissionais precisam reforçar a perspectiva da proteção
integral das crianças e dos adolescentes e o exercício da parentalidade.

(...) ao homem foi associado o papel de protagonista das atividades


que a sociedade selecionou como espaço privilegiado de atribuição
de valor, ou seja, aquelas relacionadas à economia de mercado;
enquanto a mulher foi relegada ao espaço da privacidade domiciliar,
imune e opaco à intervenção e à visibilidade externas, protagonista
das atividades relacionadas à economia doméstica. (Wallerstein,
2001).

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Observa-se que os valores que orientam nosso ordenamento jurídico e


social não legitimam a desigualdade de deveres e liberdade para acesso as relações
parentais segundo critérios de gênero. Os direitos ao exercício da parentalidade por
ambos os genitores devem ser vistos como instrumentos para viabilizar tanto o
cumprimento jurídico de cuidado e proteção dos filhos, como a constituição das
relações afetivas familiares.
A atual conjuntura social nos impõe revisar constantemente as avaliações
sobre os critérios mais igualitários de distribuição entre os sexos, as diversas
responsabilidades implicadas na vida em sociedade, principalmente relacionadas à
família e aos cuidados parentais, de modo que possibilite acesso aos direitos e as
garantias, como a convivência familiar e o exercício dos cuidados parentais por
ambos os genitores. Entretanto, ainda

(...) é inegável o peso que as construções sociais de gênero têm


sobre a sociedade, especialmente no que tange ao ‘ser mulher’ como
detentora da responsabilidade pelos trabalhos domésticos e pela
educação dos filhos (Castells, 1999; Lago, 1986).

De maneira geral é a mulher quem sofre com o duplo encargo e no


momento da separação pode se deparar com a precarização do sustento material,
necessitando empreender (mais) no mundo do trabalho para a sua manutenção e de
seus filhos. Consequentemente, esta terá menos tempo disponível para a prole e
não são raros os genitores que utilizam deste argumento para pleitearem a guarda,
justificando que a genitora não dispõe das mesmas condições que ele tem para
ofertar.
Outro motivo que emerge como uma das justificativas para as
proposituras de menor convivência com o genitor não guardião está diretamente
relacionada às mudanças que vêm ocorrendo no modelo tradicional de família
nuclear (pai, mãe e filhos). Quando há inserção de novos membros como
padrasto/madrasta que estarão presentes e convivendo com as crianças, emerge o
temor da exclusão e da comparação, levando os genitores a tomar iniciativas e
decisões imaturas.
Também é importante lembrar das situações de genitoras que, imbuídas
do imaginário social da valorização do instinto materno, apresentam dificuldade em

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compreender a importância e aceitar a figura paterna na subjetividade da criança,


esquecendo-se que ambos os pais estão em um mesmo nível de direitos e deveres
para com seus filhos, confundindo o interesse genuíno da participação do outro
genitor na vida do filho como se fosse uma afronta à sua pessoa.
Dois argumentos bastante apontados pelas partes para a restrição da
convivência familiar são: o uso de substâncias psicoativas por um dos genitores e a
suspeita de abuso sexual contra a criança/adolescente.
Em relação ao uso de substâncias psicoativas - que se caracteriza
também como uma questão sócio histórica situada no campo da saúde pública - o
grupo refletiu que se faz necessário desvelar o quanto essa dependência interfere
nos cuidados dispensados aos filhos, bem como se existe ou não o apoio da família
extensa ou rede de cuidados que possam garantir a proteção integral.
Já sobre as situações que envolvem a suspeita de abuso sexual, as
denúncias sempre são recebidas com muita preocupação, dada a gravidade da
violação de direitos e as consequências para as crianças e os adolescentes. Neste
sentido, elas precisam ser avaliadas com muita cautela e de maneira aprofundada.
Nas ocasiões em que as denúncias não foram apuradas, há que se
identificar os recursos da rede de atendimento socioassistencial para
acompanhamento familiar, de maneira a preservar a convivência concomitante à
proteção da criança e do adolescente.
Percebe-se que este é um tema recorrente nos processos envolvendo
crianças e adolescentes, tanto em Vara de Família como em Vara de Infância e
Juventude, embora os rebatimentos possam ser diversos.
Todos esses elementos foram estudados e apontados tanto teoricamente
como em casos atendidos pelas profissionais do grupo de estudos de Limeira. Nas
experiências compartilhadas não havia nenhum caso em que foi verificada a
necessidade de restrição máxima de convivência. Contudo, existiram casos em que
foram sugeridas visitas acompanhadas por outras pessoas da família, na maioria
das vezes, para garantir o bem estar da criança, por algum tipo de risco oferecido
pelo genitor não guardião.
Acessamos a informação de que os participantes do grupo de estudo da
capital “Casos Altamente Litigiosos” verificaram em sua pesquisa que “a maior parte
dos requerimentos encobrem dificuldades para aceitar a participação do outro

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genitor na vida do filho. Alguns pais alegam que a criança teria começado a
apresentar prejuízos comportamentais tais como: hostilidade, tristeza, inibições e/ou
reações psicossomáticas durante a visita ou após o contato com o genitor
descontínuo. Diante dessas reações dessa criança supõe que a presença do outro
causa prejuízos e acreditam que as visitas deveriam ser espaçadas ou
interrompidas. Desconsideram que (...) essas reações revelam a importância do
genitor descontínuo na subjetividade da criança e expressam a necessidade da
mesma de se aproximar fisicamente” e que, desta forma, a ampliação da
convivência seria benéfica (TJSP, 2016).
Em casos que ocorreram graves conflitos e/ou problemas de
comunicação entre os genitores, torna-se questionável a aplicabilidade da guarda
compartilhada, sendo o tema polêmico e relativamente novo no Brasil, tornando
fundamental a análise do caso por equipes multidisciplinares.
Quando uma determinação judicial estabelece a guarda compartilhada,
fixa a responsabilidade de ambos os genitores pelo bem estar e educação dos filhos,
podendo se configurar como inibidor do agravamento de conflitos. Contudo, este
modelo de guarda nem sempre soluciona, tampouco ameniza, os conflitos
vivenciados no âmbito familiar. Deste modo, seria importante que o poder público
estabelecesse políticas que auxiliassem essas famílias a superarem suas
dificuldades e terem seus papéis fortalecidos.
Quando se verifica as práticas de alienação parental, observam-se
diversas alternativas para conter ou barrar os sentimentos de satisfação do genitor
em suas manobras perversas, sendo o encaminhamento à psicoterapia altamente
recomendado, não apenas ao genitor alienador, mas também às crianças e ao
sujeito que foi alienado, objetivando o reestabelecimento dos vínculos que foram
prejudicados. O princípio da Lei da alienação parental58 se refere à convivência
familiar, sendo as garantias previstas na legislação brasileira, pela doutrina da
proteção integral da criança e adolescente e o sistema de garantia de direitos.
Verifica-se, também, como estratégia de enfrentamento, técnicas de
mediação familiar com psicanalista (ambiente extra-judicial), propondo que este
profissional conduza a intervenção e sensibilize ambas as figuras parentais. Em

58
Lei nº 12.318/2010.
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alguns casos foi instituída a guarda compartilhada, a aplicação de multa e/ou a


inversão da guarda nas situações mais drásticas.

3 - Estratégias para garantia de convivência familiar

Como alternativas para enfrentamento da restrição à convivência é


fundamental pensar nas possibilidades de prevenção por meio de políticas públicas.
Nesse sentido, a política de assistência social oferta, por meio do Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS), o Programa de Atenção Integral à Família
(PAIF), que tem como objetivo prevenir a ocorrência de situações de vulnerabilidade
e riscos sociais por meio de desenvolvimento de potencialidades, do fortalecimento
de vínculos familiares e comunitários, e da ampliação do acesso aos direitos de
cidadania. Para sua efetivação, está previsto o trabalho com famílias e o
fortalecimento de suas habilidades parentais, podendo ser implantada Oficinas de
Parentalidade.
Ainda no âmbito da assistência social, o Centro de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS) abarca o Programa de Atendimento
Especializado às Famílias e Indivíduos (PAEFI) que tem como objetivo trabalhar
famílias que estejam com direitos violados ou quando já ocorreu a ruptura de
vínculo, contribuindo para o fortalecimento da família no desempenho de sua função
protetiva e no exercício da parentalidade. Além do CRAS, também compete ao
CREAS executar trabalhos com famílias e desenvolver Oficinas de Parentalidade59.
A criação de espaços que utilizem métodos alternativos de conciliação e
mediação, objetivando a criação de ambientes não adversariais, consiste em um dos
maiores desafios para a política pública e para o Poder Judiciário. Percebe-se a
preocupação e interesse deste encaminhar soluções que possam ser conciliadas,
utilizando tecnologias mediadoras, como por exemplo, a implantação do Centro
Judiciário de Solução de Conflitos (CEJUSCS), já presente em diversas Comarcas,

59
As Oficinas de Parentalidade, também conhecida como Oficinas de Pais e Filhos, iniciou-se no
judiciário na Comarca de São Vicente e foi instituída pelo Conselho Nacional de Justiça como política
pública, como forma de promover a conciliação entre as famílias, na resolução e prevenção de
conflitos familiares.

450
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na qual a formação e capacitação de conciliadores e mediadores ocorrem pela


Escola Paulista de Magistratura.
As equipes técnicas nesse cenário viabilizam importantes estudos
interdisciplinares e reflexões relacionadas aos sujeitos envolvidos nos processos
judiciais, atendendo às famílias e realizando os encaminhamentos possíveis. Lima
(2016), baseando-se em Fávero (2013), aponta que a contribuição profissional é o
desvelamento e a interpretação crítica da demanda trazida e/ou vivida pelos
indivíduos sociais, reconfigurando os contextos apresentados.
Sinalizaremos algumas considerações técnicas pertinentes para as
avaliações psicossociais com ênfase na garantia do direito a convivência familiar, a
saber:
- Considerar que o momento de ruptura gera elevada tensão, exigências
sobrepostas, do ponto de vista tanto material, como emocional, havendo profundo
desgaste das relações interpessoais;
- compreender a dinâmica familiar e a forma como as partes se
relacionam, tanto antes como depois da ruptura (padrões relacionais);
- qual visão cada genitor possui sobre as necessidades físicas, sociais e
psicológicas dos filhos;
- a importância que cada um atribui ao outro genitor na vida dos filhos;
- que visão os filhos têm dos pais/responsáveis;
- realizar o aprofundamento das entrevistas nos casos mais complexos,
estendendo-as ao grupo familiar e comunitário, bem como realizando visita
domiciliar quando se fizer necessário;
- não se limitar a identificar violações de direitos, mas avaliar
potencialidades, propondo alternativas que minimizem os efeitos negativos sobre
crianças e adolescentes que estejam vivenciando o processo de litígio e/ou ruptura;
Nas perícias relacionadas à retomada ou à ampliação da convivência
familiar ressalta-se a importância de se encontrar alternativas e estratégias que
viabilizem o fortalecimento dos vínculos. Iamamoto (2001) defende a autonomia
técnica profissional no estabelecimento de uma metodologia de trabalho que atenda
a garantia de direitos do usuário.
Neste sentido ressalta-se a importância da escuta da criança e do
adolescente sobre a convivência familiar. Dar voz à criança e ao adolescente pode

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revelar uma realidade até então não percebida ou mesmo reforçar uma situação já
notada pelo técnico, além de possibilitar que, enquanto sujeitos de direitos que são,
participem das decisões que dizem respeito a sua vida.
Os referenciais de cuidados de cada genitor para com os filhos são
elementos fundamentais a serem analisados nos casos litigiosos, para que a
convivência familiar possa ser vivenciada em consonância com a proteção integral,
indicando estratégias para a efetivação dos direitos destes sujeitos.
A contextualização da situação familiar e das pessoas envolvidas no
litígio, relacionadas às queixas apresentadas e às demandas reais, são elementos
de relevância considerados no parecer técnico. Desta maneira, as questões sociais
e psicológicas que se apresentam e as transformações que nelas se revelam são
fundamentais na realização deste trabalho. Por esta razão considerou-se a
importância do estudo social e psicológico acontecer simultaneamente, o que nem
sempre ocorre tendo em vista as discrepâncias entre as agendas das categorias
profissionais por conta do excesso de trabalho e falta de recursos humanos.
O trabalho dos técnicos em situações que envolvem alienação parental
precisa contextualizar os aspectos psicossociais mais amplos e não direcionar seu
trabalho para identificar ou não os atos presentes na lei, devendo se ter cautela para
não estigmatizar ou culpabilizar, mas sim, apontar potencialidades que assegurem a
garantia de direitos.

452
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4 – Considerações

Considerando as reflexões apresentadas até aqui compreendemos que a


síntese possível para o momento constitui-se na afirmação de que o trabalho de
avaliação da equipe técnica possui direcionamento de averiguar brechas possíveis
para a garantia da convivência da criança e do adolescente com ambos os
responsáveis.
Nesse entendimento - salvo em situações de risco explícito - o melhor
interesse da criança manifesta-se na efetivação da oportunidade de desenvolver sua
trajetória, história e identidade tanto em interação com a família materna quanto
paterna.
Alguns elementos foram aventados como frequentes nas alegações de
solicitação de impedimentos de visita, tais como: o uso de substâncias psicoativas,
negligências, abuso físico e violência sexual. Ora, não se deve desconsiderá-los,
sendo que, se forem reais, podem apresentar gravidade para o desenvolvimento
integral e sobrevivência da criança. Contudo, o que se aponta como referência para
o desenvolvimento da avaliação técnica é a averiguação das potencialidades para a
convivência da criança com ambos os genitores.
Uma das possibilidades que foram discutidas no grupo foi a estratégia da
visita acompanhada por um segundo familiar que seja bem vindo tanto pela criança
quanto pelo genitor não residente.
Evidente que não se pretende aqui apresentar nenhum procedimento padrão
a ser executado, ponderando-se que qualquer estratégia deve ser pautada em um
contexto profissional de avaliação técnica, ética e baseada no tempo, espaço e
singularidades do processo a ser trabalhado.

453
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra. 1999.

DOLTO, F. Quando os pais se separam. 1988 Editions du Deuil, Paris, França.


Tradução Vera Ribeiro. 2011 2ª ed.. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro.

LIMA, Edna Fernandes da Rocha. Alienação Parental sob o olhar do Serviço Social:
limites e perspectivas da atuação profissional nas varas de família. Tese de
doutorado PUC-SP, São Paulo, 2016. (Capitulo 3 e 4)

MATIAS M., SILVA A., FONTAINE A. M. Conciliação de papeis e parentalidade:


efeitos de género e estatuto parental. Universidade do Porto, n5, 2011. Disponível
em http://www.exedrajournal.com/docs/N5/06A-Matias-Conciliacao.pdf acesso em
28/11/2017.

PERUCCHI J., BEIRÃO A.M., Novos arranjos familiares: Paternidade, parentalidade


e relações de gênero sob o olhar de mulheres chefes de família. In Psicologia
Clinica, rio de Janeiro, vol 19. Nº2, p.57-69, 2007. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/pc/v19n2/a05v19n2 acesso em 28/11/2017.

TEIXEIRA D. V. Desigualdade de Gênero: sobre garantias e responsabilidades


sociais de homens e mulheres. In Revista de Direito GV São Paulo, jan-jun 2010.

TJSP. Caderno de Estudos. STRONG, M.I.; MUNDURUCA, G. de O. (Coords.).


Casos Altamente Litigiosos. Grupo de Estudos da Capital. Ano 2016

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A CONSTRUÇÃO DAS PRÁTICAS DO ASSISTENTE SOCIAL


E DO PSICÓLOGO NO JUDICIÁRIO:
DESAFIOS E PERSPECTIVAS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – MARÍLIA


“COTIDIANO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Berenice de Lara Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília


Janice Maria do Prado – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília

AUTORES

Adriana Garcia Stefani Cechet – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília


Ana Paula Ferreira de Castro – Assistente Social Judiciário – Comarca Marília
Carlos David de Freitas – Psicólogo Judiciário – Comarca Marília
Juliana Faria – Assistente Social Judiciário – Comarca Marília
Mara Cristina Lourenço Lara Leite Pavanello – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Marília
Maria Abigail Farinazzi – Assistente Social Judiciário – Comarca de Marília
Maristela Colombo – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília
Rodrigo Alves Peres – Psicólogo Judiciário – Comarca Pompeia
Rosângela Prado Muller – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília
Simone Cristina Ribeiro – Assistente Social Judiciário – Comarca Marília
Walkíria Rodrigues Duarte – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pompéia
Yeda Paula Targa Morgante – Psicóloga Judiciário – Comarca de Marília

456
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Se as coisas são inatingíveis... Ora!


Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas.
Mário Quintana, Das Utopias

INTRODUÇÃO

O cotidiano da prática profissional do assistente social e do psicólogo no


TJ-SP foi objeto de estudos do nosso grupo em 2017. Visando ao propósito de
abranger temas relevantes do nosso dia-a-dia no judiciário, entendidos pelo grupo
como demandatários de reflexão e aprofundamento, decidimos, inicialmente, definir
um método de trabalho para nossas atividades, cuja execução no decorrer dos
encontros mensais obteve pleno êxito, segundo avaliação final unânime dos
participantes.
O método, coletivamente escolhido, em observância também às diretrizes
propostas pela EJUS (Escola Judicial dos Servidores), consistiu em: arrolamento de
sugestões de temas pelos participantes; debate sobre a importância, relevância e
interesse destas propostas; seleção, por votação, dos temas a serem estudados.
Entre as estratégias escolhidas, nos valemos de pesquisas bibliográficas, leituras de
literatura acadêmica e/ou científica, ou mesmo de algum outro material de notório
valor cultural, seguidas de apresentações, por grupos, de seminários, palestras e/ou
audiovisual, como disparadores dos debates e reflexões acerca dos temas.
Encerramos com uma avaliação final e a elaboração coletiva deste artigo.
Nossos estudos buscaram uma aproximação com as peculiaridades
dessas profissões – serviço social e psicologia -, e de seu fazer profissional, na
perspectiva de compreender os determinantes históricos, econômicos e políticos
presentes na sua inserção e atuação cotidiana no campo sócio jurídico,
especificamente no Judiciário Paulista.
Para melhor compreensão do contexto em que este estudo se insere,
iniciamos com a apresentação de aspectos da trajetória histórica do Serviço Social e
da Psicologia, e suas inserções enquanto profissões no Poder Judiciário, levando
457
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

em conta a finalidade de oferecer subsídios para a decisão judicial como uma de


suas mais importantes atribuições.
Na sequência, adentramos em árduas reflexões sobre as intensas
mudanças organizacionais, tecnológicas e legais em curso no mundo do trabalho,
buscando as conexões com a precarização das relações de trabalho e também do
setor público brasileiro, identificando reflexos e impactos para os trabalhadores dos
setores técnicos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Por último, com o propósito de iluminar nossas reflexões acerca do
cotidiano profissional enquanto assistentes sociais e psicólogos do TJ-SP que
somos, nos apoiamos em produções teóricas sobre conceito e dinâmica dos grupos,
considerando sua importância para o entendimento do trabalho como espaço para o
exercício criativo, libertador, ou, inversamente, como indutor de alienação,
adoecimento e desumanização.
Ao final, nossas conclusões expressam o enriquecimento dos saberes, o
aprofundamento de vínculos, e a constatação de que, mesmo em meio a tantos
desafios cotidianos a nos abater, é possível alargar os pequenos espaços, alongar
os momentos de refrigério, e assim, realimentar nossa disposição, nosso desejo de
fazer diferença, nossos sonhos e esperança de que um mundo melhor é possível.

1 - HISTÓRICO DA INSERÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL E DO


PSICÓLOGO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já
está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos
estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é
fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte
dele, até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e
exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer,
de dentro do inferno, o que não é inferno, preservá-lo, e abrir espaço.
(Calvino, 1990, p. 148).

No estado de São Paulo, na Comarca da Capital, uma lei de 1924 cria o


cargo de juiz de Menores com a finalidade de cuidar e dar “proteção” aos

458
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

abandonados e julgar os delinquentes, à época crianças e adolescentes das classes


sociais mais desfavorecidas.
Em 1936 surge a primeira Escola de Serviço Social em São Paulo e nos
anos seguintes começa a aproximação destes professores e alunos com o judiciário
paulista através dos Juizados de Menores que assistiam os abandonados e
infratores.
No final de 1940, o Serviço Social inicia formalmente suas atividades no
Tribunal de Justiça de São Paulo, para compor o Serviço de Colocação Familiar. Os
primeiros profissionais foram chamados a ocupar este espaço com a finalidade de
assessorar o juiz nas decisões referentes aos menores.
Na década de 1950 em razão da crescente demanda de trabalho e da
criação do Recolhimento Provisório de Menores, o número de profissionais
aumentou, pois eram estes responsáveis pelos estudos nesta área. Em 1960
ocorreu a descentralização dos serviços; em 1979 com a promulgação do segundo
Código de Menores e a implantação da política do Bem-estar do Menor, que tinha
como ideologia suprir as carências biopsicossociais da infância vulnerável, o serviço
se expandiu para outras comarcas da capital e para o interior.
A prática inicial do serviço social estava fundada no princípio da justiça
social com fortes influências da doutrina social da Igreja Católica, que à época
balizava a formação moral e ética da profissão. No Tribunal de Justiça não foi
diferente e o que havia eram práticas interventivas e normativas muito diferentes da
dimensão investigativa, com bases científicas que se pratica atualmente, com um
posicionamento crítico e político.
Só mais tarde, com a abertura sociopolítica e a redemocratização do
Brasil, cujo marco legal foi a Constituição Federal de 1988, e com a promulgação em
1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que inova com a doutrina de
proteção integral e inaugura importante mudança no paradigma de atenção à
infância, foi que o serviço social sofreu modificações mais profundas em sua
atuação.
Nesse novo paradigma o assistente social foi chamado a realizar análises
estruturais e conjunturais, colocando em foco das discussões a violação de direitos à
qual estão sujeitos os usuários do sistema de justiça, e passou a focar suas ações

459
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

na proteção integral, nos direitos da pessoa humana, no trabalho com as políticas


públicas, gradativamente substituindo a perspectiva anterior.
Em relação à inserção da psicologia, se deu no viés da perícia criminal,
começando a atuação profissional nos exames psicológicos na justiça juvenil, com o
enfoque na testagem para fins diagnósticos, num modelo que se assemelhava ao do
médico e do estudo da psicopatologia.
Segundo Shine (1998), a entrada da profissão se deu informalmente em
1979, através de trabalhos voluntários e, somente mais tarde em 1985 o ingresso
dos psicólogos aconteceu através de concurso publico.
Mais adiante e gradualmente os psicólogos também foram chamados
para outras intervenções para além da tarefa avaliativa, em acompanhamentos,
orientações e encaminhamentos que possam levar a solução de conflitos. Também
foram desafiados a repensar a prática e buscar subsídios nas mudanças do projeto
sócio-político e ético ocorridas com a promulgação do ECA.
A ocupação deste lugar dentro do sistema de justiça, mais
especificamente no Poder Judiciário, leva a reflexões frequentes acerca da
necessidade de estudos e pesquisas na área, e do ensino da Psicologia Jurídica nos
cursos de graduação.
Deste modo, dentro do TJSP ambos os profissionais foram abrindo
espaços, desafiados a dar conta de novas demandas, tanto com os usuários,
atendendo à crescente população que busca o acesso à justiça, como internamente,
com seus trabalhadores - funcionários e magistrados -, implementando projetos e
programas de treinamento e capacitação na área da saúde mental e vocacional.
Posteriormente, os assistentes sociais e psicólogos conseguiram ter as
atribuições oficialmente definidas em provimento datado de 2000, período que
coincide com a organização política das categorias através da criação da
Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça de São
Paulo (AASP-TJSP), que busca trabalhar em duas frentes: - na efetivação dos
direitos da criança, do adolescente e das famílias e; - no fortalecimento dos
funcionários que atendem diretamente essas demandas, através do empoderamento
dos assistentes sociais e psicólogos, e da luta por seus direitos trabalhistas, entre
outros.

460
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em 2005 uma pesquisa realizada por essa associação, publicada com o


título Serviço Social e Psicologia no Judiciário, construindo saberes, conquistando
direitos (FÁVERO; MELÃO; TOLOSA JORGE, 2005), entre outros achados, trouxe à
tona o que se pode chamar de identificação dos profissionais com o público
atendido. Isso se explica considerando-se que o cotidiano dos assistentes sociais e
psicólogos do TJ consiste, basicamente, pelo atendimento à uma parcela da
população desprovida de direitos básicos e que frequentemente tem valores como
a dignidade, negados, portanto estão à margem.
Tal cenário certamente se assemelha muito à realidade de muitos
profissionais dentro da instituição, seja pelas precárias condições materiais e
espaciais de trabalho, seja pelo aspecto relacional no qual não são compreendidos
dentro da estrutura, onde as particularidades são desconsideradas, favorecendo,
também, a vivências de exclusão.
Diante do exposto, é importante pontuar a necessidade de os
profissionais se cuidarem e serem cuidados, quer seja no campo da atualização de
conhecimentos teóricos, no desenvolvimento de pensamento crítico, reflexivo, e
mesmo em relação ao desenvolvimento pessoal, fatores com reflexos diretos na
prevenção do adoecimento, da alienação e, por certo, na garantia um trabalho de
melhor qualidade a quem recorre ao sistema de justiça.

2 - A PRECARIZAÇÃO DO SETOR PÚBLICO NO BRASIL NO


SÉCULO XXI: A CRISE DO CAPITAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS E
SEUS REFLEXOS NA PESSOA-QUE-TRABALHA

Para discutir as condições de trabalho, a qualidade de vida e saúde do


trabalhador e o processo de precarização do trabalho que acomete os trabalhadores
dos setores técnicos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi necessário
refletir sobre as profundas mudanças organizacionais e tecnológicas nos ambientes
de trabalho, incluindo a precarização salarial, ocorrida mais notadamente a partir no
final do século XX e começo do XXI.
Recorremos às últimas décadas de desenvolvimento do capitalismo
global (1980-2010) e vimos que, para Alves (2014), “a precarização do trabalho é um
461
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

traço estrutural do modo de produção capitalista. (...) e não se reduz tão somente à
questão salarial, mas também à precarização existencial e do homem-que-trabalha”.
De acordo com este sociólogo marxista, vivemos uma profunda crise do
capitalismo. A longa depressão iniciada em 2008/2009 é parte da crise estrutural do
capital iniciada em meados da década de 1970. De lá para cá, o capitalismo global
tem promovido mudanças cruciais nas mais diversas instâncias da vida social.
Em 2015 e 2016 o Brasil viveu uma profunda recessão da economia que
fez dobrar o índice de desemprego. O fenômeno do desemprego é a forma mais
terrível de degradação do mercado de trabalho, principalmente no Brasil, onde não
existe historicamente uma rede de proteção social eficaz contra os efeitos danosos
do desemprego. O desemprego torna as pessoas desamparadas, à mercê da
irracionalidade social que prolifera nas metrópoles. Aqui podemos pensar na
violência urbana vitimando contingentes cada vez maiores, o uso disseminado de
drogas e as variadas formas de destruição.
A precarização do trabalho implica também na disseminação do trabalho
flexível por meio das remunerações flexíveis vinculadas a metas de produção. Cada
vez mais as organizações púbicas ou privadas vinculam a forma-salário a metas de
produtividade, contribuindo para o estresse da pessoa-que-trabalha. A precarização
do trabalho se expressa também na jornada de trabalho inflexível onde a pessoa-
que-trabalha reduz seu tempo de vida a tempo de trabalho. Os locais de trabalho
reestruturados, tanto no setor privado como no setor público, incorporam novos
métodos de gestão de caráter toyotista, acoplados às novas tecnologias
informacionais que intensificam o trabalho.
O Brasil é hoje um território privilegiado para observarmos a barbárie
social que caracteriza o capitalismo global no século XXI.
A ampliação da informalidade é o espectro do aumento da nossa miséria
social caracterizada não apenas pela alta desigualdade social, marca distintiva do
Brasil no cenário mundial, mas a crescente concentração de renda. A informalização
do mercado de trabalho representa superexploração da força de trabalho, outra
marca distintiva do capitalismo retardatário no Brasil. O processo de combate às
desigualdades sociais deve se arrefecer também caso um governo neoliberal reduza
ou extinga programas sociais de combate à pobreza absoluta ou pobreza extrema.

462
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A sociedade brasileira é um exemplo candente da degradação das


condições de existência social do trabalho vivo. Por exemplo, não se resolveram
problemas da profunda crise urbana que estressa as pessoas-que-trabalham no
plano da circulação social (o aumento do tempo de trajeto de casa para o local de
trabalho nas grandes cidades). Identificamos um conjunto de novos fenômenos
sociais — “vida reduzida”, crise de sentido humano, carecimentos radicais, etc. —
que compõem o novo e precário mundo do trabalho no Brasil do século XXI.
O efeito social desse cenário é o aumento dos adoecimentos laborais —
depressão, estresse, síndrome do pânico, síndrome de Burnout, etc. - que
“explodiram” na era do neodesenvolvimentismo (2003-2013). Neste contexto Alves
(2014) observa não apenas a dimensão da macroeconomia do trabalho ou a
dimensão da morfologia social do trabalho, mas também a dimensão do
metabolismo social onde, por conta do choque de capitalismo que o Brasil sofreu
nos últimos quinze anos, está permeado de formas de estranhamento social.
Dentre os trabalhadores públicos da sociedade brasileira encontram-se os
assistentes sociais e psicólogos que trabalham numa relação direta com as
expressões da questão social, considerando:

(...) a ampliação dos conflitos sociais e a necessidade de controle


social, o conjunto de profissões que representam o trabalho
ideológico torna-se um campo através do qual os homens tornam-se
conscientes destes conflitos e neles se inserem mediante luta.
(ALVES, 2013).

2.1- A NATUREZA DO TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL E


PSICÓLOGO NO SETOR TÉCNICO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DE SÃO PAULO

Pode-se refletir que o trabalho do assistente social e do psicólogo se


caracteriza por ser um trabalho ideológico, isto é, um trabalho que opera com
posições teleológicas secundárias (Lukács, 2014), isto é, com a ideologia. Nesse
sentido, o trabalho ideológico representa aquele trabalho que se exerce sobre outras
pessoas, caracterizando principalmente as atividades de serviços – tais como
serviços públicos. Como observou Alves:

463
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

(...) as profissões caracterizadas pelo trabalho ideológico [tais como


assistentes sociais e psicólogos – APC] tem uma característica
fundamental – elas envolvem, extensa e intensamente, a
subjetividade das pessoas-que-trabalham – o trabalho ideológico
com implicação estranhada, possui alta carga de estressamento, que
nas condições da precarização existencial, faz aumentar o
adoecimento laboral (precarização do homem que trabalha). (ALVES,
2014, p. 17) [grifo nosso].

Os profissionais do setor técnico atuam como peritos no Tribunal de


Justiça do Estado de São Paulo, em processos das Varas de Família e Infância,
cumprindo prazos estipulados pelo juiz responsável, e emitem laudos específicos de
suas áreas de atuação (social e psicológico). São profissionais auxiliares do
magistrado, em fatos que versam sobre questões técnicas ou cientificas, as quais o
juiz não domina e não possui conhecimento, e contribuem na decisão judicial.
Conforme o Art. 156 do Código de Processo Civil, Lei 13105/2015: “O juiz será
assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou
científico”.
Vimos que, além disso, o trabalho profissional do assistente social e do
psicólogo assume uma dimensão ética, relacionada à liberdade, à autonomia de
decisões, à defesa dos direitos humanos e da cidadania.
Com a “judicialização da miséria social” ao longo do tempo novas
demandas foram surgindo no Tribunal de Justiça como resposta às expressões da
questão social no Brasil. Os profissionais da área técnica judiciária sofrem com as
pressões e são chamados, apesar do escasso investimento do Estado em
capacitações especializadas e/ou supervisão técnica, a atuar em situações de alta
complexidade, em casos de litígios graves e situações complexas, para dirimir as
contradições, com ênfase na mediação de conflitos e conciliação, que têm sido uma
tendência no judiciário.
Outro fator importante a ser destacado é a reestruturação produtiva do
trabalho da organização judiciária no Brasil, especificamente no Estado de São
Paulo, caracterizada pela implementação de inovações tecnológicas e
organizacionais, como a implantação do Sistema de Automação da Justiça (SAJ),
que informatizou os processos judiciais. Sob pressão da busca da eficiência do
serviço público, o Estado buscou promover a introdução de novas tecnologias, com

464
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

impactos significativos no trabalho, qualidade de vida e saúde dos seus


trabalhadores (Cadernos FGV Projetos, 2010).
A introdução do processo eletrônico provocou alterações significativas
nos locais de trabalho, o processo eletrônico que substitui o processo de papel
alterou de forma significativa a rotina de trabalho. Por um lado, significou a melhoria
da higienização no manuseio dos processos; entretanto, por outro, houve a
intensificação das rotinas de trabalho sob pressão das demandas judiciais e
exigência dos cumprimentos dos prazos. Portanto, é provável que a modernização
do processo judiciário no plano tecnológico-organizacional tenha trazido impactos na
qualidade de vida e saúde dos trabalhadores públicos da Justiça Estadual.
A voracidade da reestruturação produtiva do Poder Judiciário, expressa,
por exemplo, na pressão por metas e intensificação das tarefas, expõe outro aspecto
da precarização do trabalho: a precarização da saúde do trabalhador ou a
precarização do homem-que-trabalha (ALVES; VIZZACCARO-AMARAL; MOTA,
2011).
Portanto, num cenário de significativo crescimento da demanda judicial
em razão das crises do capital e consequente aumento das questões sociais, onde
os profissionais “linha da frente” do judiciário - assistentes sociais e psicólogos –
atuam, somado aos impactos do processo de trabalho/ reestruturação
organizacional da Justiça no Brasil, torna-se cada vez mais importante investigar as
condições de trabalho e de vida destes trabalhadores.

3 - O GRUPO E SUA IMPORTÂNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA


SUBJETIVIDADE E AUTONOMIA DO INDIVÍDUO

Ao examinar a qualidade de vida dos trabalhadores, e como o trabalho


pode funcionar como eliciador de desequilíbrio biopsicossocial, há que se considerar
a importância de refletir sobre o conceito e dinâmica dos grupos, considerando-se
que o ser humano é gregário por natureza e somente existe em função de seus
inter-relacionamentos grupais. Para tanto, destacamos a definição de Olmsted
(1970, p.12), que entende grupo como “Uma pluralidade de indivíduos que estão em
contato uns com os outros, que se consideram mutuamente e que estão conscientes
de que tem algo significativamente em comum”.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Em relação aos microgrupos também se impõem a necessidade de


distinguir entre grupo propriamente dito e agrupamento. Por “agrupamento” entende-
se um conjunto de pessoas que convive em um mesmo espaço físico e guardam
entre si uma certa valência de inter-relacionamento e uma potencialidade para se se
constituírem um grupo propriamente dito.
O grupo propriamente dito não é um somatório de pessoas; pelo
contrário, se constitui como uma nova entidade, com leis e mecanismos próprios
específicos, em que todos os integrantes estão reunidos em torno de uma tarefa e
objetivos em comum. Neste sentido se influenciam e mantêm uma relação de
interdependência.
Vejamos:

“Um grupo psicológico pode ser definido como duas ou mais pessoas
que se reúnem e satisfazem as seguintes condições: 1) as relações
entre os membros são interdependentes: comportamento de cada
membro influi no comportamento de todos os outros; 2) os membros
aceitam uma ideologia: um conjunto de crenças, valores e normas
que regulam sua conduta mutu”. (KRECH CRUTCHFIELD
BALLACHEY, 1975, P.443).

Sendo assim, quando nos referimos aqui a grupo de trabalho, estamos


considerando um grupo propriamente dito, e não um agrupamento.
A forma de organização dos pequenos grupos, ou seja, o sistema no qual
ele se concebe, está diretamente ligado às expressões individuais de seus
componentes, delimitam as inter-relações e as potencialidades da relação individuo-
coletivo de forma dinâmica.
As normas sociais, conceituadas nesses termos, quando bem
estabelecidas, teriam poder de coerção sobre o indivíduo, fazendo o coletivo
prevalecer sobre o particular. Para que não haja o cerceamento da volubilidade da,
então estabelecida, inter-relação, faz-se necessário à expressão das singularidades
e subjetivação, Morin (2002) atrela a instabilidade como elemento fundamental para
que se o sistema perpetue, considerando-o dinâmico e vivo.
Segundo Durkheim (1893), o conceito de solidariedade mecânica, em que
o fenômeno de identificação, entre os indivíduos, como grupo, está atrelada a um
sentimento comum de pertencimento e identificação entre eles, e atenuação das
particularidades em detrimento do coletivo, leva-os a vincularem seus desejos
466
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

individuais as necessidade do coletivo, entendendo que estas refletiriam suas


próprias demandas. Nesta atmosfera, própria de pequenos grupos, existe uma via
de mão dupla, em que grupo e individuo tem influência um sobre o outro, sendo que
o coletivo tem em comum as particularidades e congruências de cada um que o
compõe, contudo, sem que as causas do grupo deixem de influir sobre o particular.
Em uma relação de interdependência, Morim (2002a, 2003), constrói o
“Principio Hologrâmico”, levando em conta que a formação de uma sociedade
constitui-se de múltiplos vieses; os indivíduos humanos produzem-na com inter-
relações, e a emergência da sociedade produz a humanidade dos indivíduos,
fornecendo-lhes língua e cultura. Propõe-se, portanto, a extinção de um olhar
reducionista ao analisar a correspondência sociedade- individuo. Esta relação nada
tem de estática, e se modifica a partir dos elementos envolvidos e de fatores
externos.
Para Wilfred Bion (1970), a ruptura de mentalidade em um grupo estaria
atrelada às vivências infantis, já Morin leva em consideração, também, as redes de
relações como agentes causadoras dessas rupturas, ou seja, “como uma
modificação local repercute sobre o todo e como uma modificação do todo repercute
sobre as partes” (Morin, 2003, p.25).
Como, entretanto, a autonomia se dá com a consolidação da noção se
sujeito, de modo que o individuo entende-se como “si” colocando-se no centro de
seu mundo, atuante, o processo de auto reconhecimento é necessário para que
ocorra a formação de sua identidade e perceba não apenas suas individualidades,
como sua subjetividade, composta pelos elementos biológicos, fenotípicos, sociais e
culturais que o compõe.
Através da dicotomia proporcionada pelas individualidades, entre ordem e
caos, subjetivação e sujeição, surgem a concepção de interdependência, e que
mantém a singularidade e identidade do grupo. A organização e normas sociais
proveem de “reorganização permanente de um sistema que tende a se
desorganizar”. (MORIM, 2002, P.266).
Quando Morin (2002) utiliza o termo sistema, podemos associar ao termo
uma significação cíclica, atrelada a auto reorganização do grupo. Em contrapartida,
Durkhein (1893) considera que há uma constante reconstrução e reestabelecimento
das ordens vigentes. Esta flexibilidade é decorrente de uma organização de viés

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

sócio cultural, histórico e geográfico, que seriam atribuídos ao subjetivo, às


individualidades. Há uma critica de cunho psicológico, incumbida nas proposições de
Morin, em que a importância da subjetividade coloca-se em pauta, contrapondo
teorias como as de Lewin e Durkheim (1999), que têm como recorrência a
preocupação e instituição do controle social a partir das constituições dos grupos.
Em contraponto, Morin (2002), a todo o momento, resgata a importância
das constituições individuais, ressalta a imprescindível participação do individuo e
sua expressão como tal, dentro deste sistema, acentua a importância das
divergências e oscilações para a longevidade e resistência do sistema. Leva em
conta que os grupos, além da inter-relação, têm influência do ambiente, e isso o
caracteriza como sistema vivo. Fazem-se iminente ao seu bom funcionamento e
persistência, sua constante reorganização, a partir das interações externas e
internas que influem diretamente em si, chamados pelo autor de auto-
ecoorganização.
Em uma perspectiva que considera também o então cunho psicológico e
individual, ou seja, a extensão do micro sobre o macro, a ideia de sobreposição das
normas sociais e do grupo sobre os indivíduos, pode ser contraposta, ao considerar
os aspectos multidimensionais que compõe os valores socioculturais. A expressão
do individuo e sua autonomia concretiza-se na existência das relações antagônicas,
nas manifestações culturais e inter-relações com o meio ambiente, geográficas e
históricas. A possibilidade da coexistência entre a multiplicidade gerada pela
subjetividade compreende as diversas noções como parte integrante das
características de um grupo, execrando a noção de inferência do coletivo para o
individual e reafirmando a formulação intrínseca a relação de mutualidade.
Sendo assim, considerando o trabalho como produtor de subjetividade,
consideramos fundamental análise dos aspectos do grupo que interferem na
autonomia, e consequentemente, na saúde do trabalhador. O grupo de trabalho,
enquanto sistema, pode se constituir de vários pequenos grupos, que se inter-
relacionam, da mesma forma que o sistema não pode ser descolado do contexto
sócio histórico do qual faz parte.
Ao pensarmos na organização do sistema pequeno grupo precisamos
pensar que todos os processos de inter-relação “retroagem sobre o todo e as partes,
gerando aumento e/ou inibição das potencialidades individuais e coletivas, que por

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sua vez, produzem novos processos” (ALVES et al., 2006). Sendo assim, o autor
afirma que a organização do pequeno grupo pode constranger afetiva e
ideologicamente seus participantes. Deste modo, ao pensarmos nos grupos de
trabalho, isto tem impacto direto na saúde do trabalhador.

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4 - CONCLUSÃO

No final do período que compreendeu todas as apresentações e reflexões


temáticas, foi possível avaliar como bom o aproveitamento do “Grupo de Estudo”
deste ano e concluir em meio à troca de ideias, impressões e saberes empíricos da
prática profissional, que todos os esforços empenhados na consecução das
atividades propostas, deram bons resultados.
Os saberes aqui construídos por cada participante, no seu
aproveitamento particular, constituíram-se em valioso conteúdo nas áreas teórica,
técnica e ética da atividade profissional.
No campo teórico, o aprofundamento da compreensão de toda a
historicidade sistêmica pertinente (envolvendo a história sócio-política mundial e
brasileira pari passu com a história da atividade profissional, e com a história da
inserção do psicólogo e do assistente social no Tribunal de Justiça), nos possibilita
uma compreensão ainda mais ampla e rica acerca das articulações das profissões
com o Judiciário e destes com as transformações contextuais da realidade brasileira
e mundial, em franca aceleração no momento histórico que vivemos.
As reflexões suscitadas e a revisão bibliográfica da produção de
importantes autores do Serviço Social, da Psicologia e de áreas afins,
proporcionando-nos aprofundamento na compreensão e na conceituação de
processos e fenômenos cujos manejos se constituem justamente em grande parte
do instrumental necessário da nossa prática nas diversas Varas em que atuamos.
No campo técnico foi possível identificar desafios no tocante às interfaces
da profissão com a realidade do Judiciário, bem como a realidade das práticas dos
operadores do direito, especialmente a magistratura, indicando a necessidade de
maior intercâmbio epistêmico entre a Magistratura e o Setor Técnico e os saberes
legais. Encontramos a necessidade de se buscar desenvolver estratégias viáveis de
enfrentamentos de tais desafios.
Identificamos, por um lado, um considerável progresso alcançado na
nossa capacitação desde o início das atividades do Núcleo de Apoio, e, por outro, a
necessidade da expansão destas atividades, tanto quanto possível, com destaque
para maior acessibilidade a ser possibilitada aos profissionais lotados nas comarcas
no interior do Estado.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Com o crescente processo de judicialização das relações humanas na


sociedade, e com uma vertiginosa ascensão que se observa na demanda pelo
serviço do Judiciário à sociedade, particularmente nas Varas da Família, e da
Infância e Juventude, está evidente a necessidade da geração de novos postos de
trabalho no Setor Técnico, onde o déficit de pessoal, já se fazendo notar,
espantosamente, em alguns casos, adquire, de forma cada vez mais nítida,
indiscutíveis contornos de precarização, do trabalho, no tocante ao profissional,
trabalhador do TJ, e do serviço público, no tocante ao atendimento à população.
Os desafios postos nos levaram ao entendimento das interfaces
existentes entre a precarização das relações de trabalho no mundo globalizado, e
especificamente no Brasil, as questões profissionais no contexto do TJSP, onde a
necessidade de organização coletiva se evidenciou como alternativa capaz para o
enfrentamento às condições adversas do trabalho cotidiano e, assim, fortalecer o
potencial do serviço social e da psicologia na efetivação do acesso à justiça, aos
direitos humanos e sociais.

471
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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473
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O PERCURSO DA CONCRETIZAÇÃO DA ADOÇÃO: DA


HABILITAÇÃO DOS PRETENDENTES À CONSTRUÇÃO
DOS LAÇOS DE FILIAÇÃO ADOTIVA

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR –


PRESIDENTE PRUDENTE
“COTIDIANO DA PRÁTICA PROFISSIONAL”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

474
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Andréia da Silva Cavalcante – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente


Venceslau
Letícia Mara Batalini Menosse Galeti – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Presidente Prudente

AUTORAS

Adriana Lario Ramalho Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Presidente Prudente
Ana Cristina Turino Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Célia Regina Grigoleto Rosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente
Feijó
Denise Ocolati Vitale – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Prudente
Elisangela Carvalho de Lima Paulino – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau
Katiúscia Cristina Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Rancharia
Linda Delaine da Silva Ibañez Tiago – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente
Venceslau
Luci Meire Dias – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirapozinho
Luciana Von Ha de Oliveira Stringheta – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Presidente Prudente
Lucilene Almeida Bertone de Cápua – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Santo Anastácio
Maria Auxiliadora Rolo – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Pedrina Celismara Girotto Dornelas – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Bernardes
Vera Lúcia Vieira Ferreira Screpanti – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Venceslau

475
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

“E o mundo a me exigir decisões para as quais


não estou preparada. Decisões não só a
respeito de provocar o nascimento de fatos,
mas também decisões sobre a melhor forma de
se ser."
CLARICE LISPECTOR (1978)

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudos do Tribunal de Justiça da Região de Presidente


Prudente - O Cotidiano da Prática Profissional, neste ano de 2017 decidiu por
aprofundar e ampliar o fazer profissional referente ao tema estudado no primeiro
bimestre de 2016 (Cadastro de Adoção), focando na construção do percurso
compreendido desde o início do processo de habilitação até a efetivação da adoção,
com o objetivo de aprimorar a sistematização do trabalho a partir do conhecimento
da realidade de cada Comarca participante do GE. Portanto, qualificar e refletir a
prática profissional nesse percurso, assim como a produção de conhecimento
teórico tanto do Serviço Social como da Psicologia.

De forma semelhante, alguns dos participantes do GE, envolveram-se na


elaboração de um artigo sobre a mesma temática dentro de uma premiação de
produções científicas organizada pela associação representativa dos Assistentes
Sociais e Psicólogos do TJSP (AASPTJSP), que também despertou o interesse no
aprofundamento do assunto.

A ocorrência de devoluções de crianças e adolescentes, seja durante o


período de guarda relativo ao estágio de convivência seja após a sentença da
adoção, com toda a repercussão afetiva que traz, em especial para o adotando,
além de adotantes e profissionais envolvidos, mobilizou o grupo a debruçar-se sobre

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

o tema para repensar cada procedimento desse percurso, no sentido de viabilizar


maior segurança e apoio na efetivação da construção da nova família.

O trabalho relativo à adoção em relação à avaliação dos pretendentes, à


colocação da criança em família ou o acompanhamento dessa convivência e
adaptação interpessoal, caracteriza-se por particularidades que exigem dos
Psicólogos e Assistentes Sociais Judiciários um olhar distinto e único, inerente à
atuação nesse espaço de trabalho, se comparado aos profissionais das mesmas
especialidades que atuam em instituições distintas.

Adoção é especificidade das Varas da Infância e da Juventude, instituído


pelo ECA e reforçado pela Lei 12010/2009, desde a avaliação até a colocação da
criança em família substituta na modalidade de adoção.

A metodologia de trabalho adotada este ano continuou no formato de


Oficinas, as quais possibilitam a troca de experiências profissionais de cada área e
das diferentes Comarcas da região participante deste Grupo.

Na busca de material teórico para subsidiar as discussões, foi realizada


uma recapitulação de todos os artigos referentes à adoção nos Cadernos do TJSP
desde o início dos Grupos de Estudos, porque retratam as experiências dos
profissionais do TJ, além do artigo escrito pela equipe técnica da comarca de
Presidente Prudente para a AASP-TJ e outros textos e livros sobre o atendimento de
crianças e famílias adotivas fora do contexto do judiciário.

A falta de sistematização e detalhamento dos procedimentos desse longo


percurso da Adoção dentro do Tribunal, reconhecida de maneira geral, pode
comprometer a qualidade do acompanhamento realizado em todo esse delicado
processo, além de levar a dificuldades operacionais, inclusive na concretização da
adoção entre comarcas distintas.

Pretende-se aqui refletir sobre os procedimentos que compõem o


percurso da adoção na interface com o judiciário, pontuando-se, em linhas gerais, o
conhecimento prévio de que já se dispunha e se destacando o que nos pareceu
novo a partir das leituras e reflexões do grupo de estudos neste ano, assim como o
modo como nossa prática foi afetada concretamente, quando for o caso.

477
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

1 - HABILITAÇÃO

1.1 - AVALIAÇÃO

A atuação da equipe técnica do Judiciário no processo de habilitação para


a adoção inicia-se pela avaliação dos pretendentes, realizado por uma dupla de
profissionais, assistente social e psicólogo judiciários.

O objetivo da avaliação é verificar as condições sociais e emocionais dos


pretensos pais adotivos assim como refletir com estes sobre as peculiaridades da
filiação, em particular da adotiva.

O foco principal da avaliação desta demanda está relacionado a aspectos


subjetivos, gerando muitas discussões entre as duas áreas envolvidas em torno da
cobrança maior sobre os profissionais da Psicologia, para um parecer mais
conclusivo sobre a aptidão dos interessados à paternidade/maternidade adotiva.

Discutiu-se a respeito do objeto de estudo e das especificidades de cada


área no processo avaliativo, ressaltando-se que muitas vezes o “peso” maior do
indeferimento recai sobre a Psicologia, uma vez que as questões subjetivas
assumem maior importância, pois as reflexões estarão ligadas às questões
inconscientes relativas às motivações, às perdas, aos lutos, ou seja, à complexidade
da formação dos desejos.

1.1.1 - AVALIAÇÃO SOCIAL

Considerando que o objeto de trabalho do Serviço Social se debruça


sobre a realidade concreta das questões sociais e os conflitos sociais produzidos
pela sociedade capitalista na reprodução das relações sociais, observa-se certa
tendência dos assistentes sociais em focar na avaliação apenas os aspectos
objetivos, faltando referências teóricas para avançar um pouco mais nas questões
subjetivas relacionadas à demanda da adoção.
A escassez de bibliografia específica do Serviço Social alusiva à
avaliação de pretendentes, e o uso constante do aporte teórico da psicologia como
referência nos laudos, foram apontados como dificuldades, evidenciando-se a
478
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

necessidade de aprofundar o conhecimento do tema e aventurar-se na tentativa de


organização de conteúdos a partir da nossa prática cotidiana.
Pensou-se então em partir do objeto de trabalho do serviço social, num
esforço de visualizá-lo numa perspectiva mais ampliada, como forma de expandir a
contribuição nas perícias ligadas à adoção. Deve-se atentar para o cuidado de não
perder a referência da área de conhecimento, levando em conta a possibilidade de
ocorrerem pontos de intersecção dos saberes na leitura especializada da realidade
pelos profissionais envolvidos.
Segundo FÁVERO (2004, p. 29-30):

O conteúdo significativo do estudo social, expresso em relatórios ou


no laudo social, reporta-se à expressão ou expressões da questão
social e/ou à expressão concreta de questões de ordem psicológica,
[...] Esse estudo envolve diretamente um sujeito, um casal, uma
família [...] cuja história social a ser conhecida passa,
necessariamente pela sua inserção na coletividade. Como seres
sociais, esses sujeitos convivem e sofrem os condicionamentos e
determinações da realidade social local, conjuntural e mais ampla
que os cerca. [...] Portanto, a construção do estudo social contempla
a inclusão do(s) sujeito(s) singular (es), na universalidade mais
ampla na qual se insere(m).

Segundo Silva (2017) as questões objetivas se apresentam como


manifestações da questão social, produzidas e reproduzidas pelas relações na
sociedade capitalista (trabalho, moradia, saúde, educação, terra, assistência social,
violência, questão de gênero, dentre outros) e as questões subjetivas se apresentam
no contexto das relações sociais, ligadas aos impactos que a trajetória de vida e a
sociabilidade imprimem à identidade dos indivíduos em sua singularidade, se
expressando através de sentimentos, emoções e significados em seu contato com o
mundo e com outros indivíduos, conforme vínculos estabelecidos.
Para Graciano (2013), o estudo socioeconômico não se restringe somente
aos indicadores sociais (situação econômica/ número de membros da família/
escolaridade/ habitação/ocupação) para a configuração dos diferentes estratos
socioeconômicos, mas comporta outros elementos constitutivos. Por ter como base
o contexto familiar, deve possibilitar a coleta de informação da realidade
sociofamiliar do indivíduo, abrangendo questões que afetam suas relações sociais,

479
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

em seus aspectos demográficos (raça/ sexo/ idade /estado civil /situação conjugal/
procedência), psicossociais e culturais (religião/ crenças/ discriminações/
preconceitos/ arranjos/ dinâmica familiar/ relações familiares/ relações sociais/
planejamento familiar/ ansiedades, expectativas e preocupações/ problemas de
saúde).
Neste sentido alguns elementos se destacam como importantes no
processo de avaliação: a qualidade das inter-relações estabelecidas na dinâmica
familiar e no convívio social; o posicionamento e envolvimento da família extensa no
projeto de adoção; figuras de maior referência e apoio; conceitos e preconceitos,
sentimentos, expectativas, resistências e disponibilidades no universo pessoal,
familiar e social.
As questões subjetivas, do ponto de vista social, dizem respeito à
construção das relações sociofamiliares e o processo de como se deu a socialização
dos indivíduos, com todas as suas peculiaridades, trajetórias, modelos, vínculos,
arranjos, dinâmica, relações, redes de apoio, que tornam a identidade dos indivíduos
singular.
Observa-se a necessidade de maior aprofundamento no conhecimento de
aspectos culturais dos pretendentes, para, segundo Graciano (2013), se verificar o
grau de enraizamento/ pertencimento social, potencialidades familiares, capacidade
de convivência / acolhimento e aceitação na convivência social e abrangência desta
com diferentes grupos sociais.
Ressalta-se que os pretendentes à adoção, na maioria das vezes,
apresentam condição socioeconômica favorável e praticamente nenhuma
vulnerabilidade, portanto, os aspectos objetivos da avaliação geralmente são
favoráveis ao atendimento das necessidades materiais de uma criança/adolescente.
Sendo assim, são as questões subjetivas que devem ocupar um lugar de destaque
nessa avaliação social e o reconhecimento disso favorece uma escuta qualificada e
comprometida com o outro em atendimento (SILVA, 2017).
Desta forma, a intervenção social se dá na avaliação das potencialidades
e fragilidades dos interessados em proporcionar a convivência familiar às crianças
que tiveram sua história marcada pela violação desse direito fundamental e em
algum momento de seu desenvolvimento foram afastadas de sua família de origem.
Segundo Silva (2017, p.157):

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Trabalhar com famílias é trabalhar com vínculos, termo que passou a


estar presente no cotidiano profissional nos últimos anos:
vínculos de sangue, parentesco, filiação, convivência, afinidade,
cuidado, solidariedade, afetividade que se expressam através da
linguagem, da prática e dos estudos desenvolvidos por assistentes
sociais, num contexto bastante complexo.

A análise, do ponto de vista social, deverá dar conta de apontar se a


convivência familiar oferecida pelos interessados mostra-se favorável ao
acolhimento e desenvolvimento de uma criança/adolescente cuja origem, história de
vida e inserção social lhe são estranhas.

1.1.2 - AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

Entre os procedimentos ligados à adoção na esfera do judiciário, a


avaliação psicológica dos pretendentes está entre os temas mais discutidos,
contando com razoáveis aportes e ampla bibliografia. Tal fato não torna simples a
sua execução, tampouco a isenta de dúvidas e angústias.
O estudo psicológico dos pretendentes é entendido como um
procedimento reflexivo conjunto dos técnicos e candidatos sobre a proposta que
formulam de adotar um ou mais filhos, trabalho que é constituído ainda por um
componente avaliativo (SARAIVA, 2014).
Segundo Saraiva (2014) a avaliação psicológica no Judiciário insere o
componente subjetivo (espaço do sensível e da singularidade, da experiência
irredutível a generalizações e antecipações) no espaço do Direito, no qual, impera a
exigência da objetividade (lugar daquilo que é visível e passível de quantificação).
Nesse sentido, os critérios técnicos de que o psicólogo dispõe para dar
um parecer, possibilitam apenas avaliar um conjunto de elementos em potencial
para a parentalidade, não se podendo antecipar sobre a qualidade de seu exercício
concreto.
No próprio site do Tribunal consta o seguinte esclarecimento no Portal da
Adoção:

Um dos objetivos para a realização dos estudos é o de refletir e


avaliar, junto às pessoas interessadas, os motivos presentes na
decisão e o efetivo preparo, naquele momento, para serem pais e/ou
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mães por meio da adoção. Para isso, é necessário conhecer e


pensar sobre o contexto no qual a criança ou adolescente viverá.

As referências prévias dos membros deste grupo sobre a avaliação


psicológica na habilitação à adoção giravam em torno de conceitos como: motivação
para adoção, luto pela infertilidade, além de aspectos do histórico pessoal ligados ao
estabelecimento de relacionamentos afetivos, assunção de responsabilidades e
referenciais de cuidado (PAIVA, 2004 e 2014; LEVINSON 2004 e 2014; GHIRARDI,
2015; GHIRARDI e FERREIRA, 2016).
Desse modo, trata-se de conhecer e pensar em conjunto com os
requerentes sobre o que está determinando tal iniciativa, os afetos em jogo e o nível
de consciência sobre eles, as idealizações que nutrem sobre um filho,
características pessoais, o histórico familiar e de cuidados vivenciados por cada um,
o vínculo, a história e cotidiano do casal (quando for o caso). Outro aspecto
fundamental diz respeito ao processo de elaboração de luto pela infertilidade
(circunstância vivenciada pela maioria dos pretendentes). Cabe ao profissional levar
em conta o conjunto de elementos que apreende em relação ao que se considera
serem as demandas das crianças à espera de adoção, considerando-se a
compatibilidade entre eles.
Nem sempre a compreensão que o profissional constrói em cada situação
está em sintonia com o que os pretendentes avaliam sobre si mesmos, assim como
sobre a futura experiência que pretendem viver. Os desdobramentos deste impasse
serão tratados, principalmente, a partir dos referenciais do profissional e de como ele
entende seu papel no procedimento em questão, além das condições de reflexão
dos próprios pretendentes. Às vezes se instalam divergências, vividas com
desconforto por ambas as partes.
Do lado dos pretendentes, não há, muitas vezes, disponibilidade para
pensar no que lhe é proposto, falando mais alto a vontade de seguir com o projeto
adotivo.
De outro, o psicólogo se vê diante de uma situação em repetir uma
frustração já vivenciada pelos pretendentes, ainda que não tenha como prever
adequação do desempenho parental futuro, uma vez que a concretização da filiação
coloca em jogo afetos e contextos inesperados, não passíveis de antecipação.

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As discussões e troca de experiências, além das leituras realizadas ao


longo do Grupo de Estudos neste ano, puderam propiciar avanços na compreensão
do papel profissional diante dessa demanda, assim como chamaram a atenção para
as especificidades e expectativas na interface do trabalho do Serviço Social e da
Psicologia neste campo.
Foi possível refletir sobre o lugar e a importância da avaliação no sucesso
da adoção, assim como identificar que o parecer psicológico estava sobrecarregado
de expectativas, explícitas e latentes, que simplificavam e superestimavam suas
possibilidades de apreensão de futuros problemas que poderiam culminar com
devoluções, em detrimento da devida consideração a outras etapas do processo de
habilitação, colocação e acompanhamento do estágio de convivência.
Pode-se também pensar sobre a responsabilidade, alcance e conduta dos
técnicos das diferentes áreas quanto à própria implicação em possível parecer
negativo, tanto na redação do relatório quanto na devolutiva aos pretendentes.
Refletiu-se também sobre a articulação interdisciplinar de modo geral e
suas condições de execução quando realizadas em tempos diversos por
profissionais de diferentes Comarcas e sobre como tirar maior proveito dela. Entre
as sugestões apresentadas, ressalta-se a importância de que o primeiro laudo
realizado aponte com clareza aspectos duvidosos que a outra especialidade
supostamente poderia esclarecer melhor.
Cada participante do Grupo de Estudos assimila as discussões à sua
própria maneira. No entanto, considera-se pertinente salientar algumas modificações
introduzidas em sua prática por membros do grupo a partir do que as discussões
suscitaram.
O aprofundamento da compreensão e a valorização da avaliação como
processo reflexivo pôde interferir no planejamento do procedimento avaliativo do
próprio profissional. Para alguns, esse passou a ser ampliado na abordagem e
recursos utilizados (por exemplo, indicação de tarefas), além de estendido no tempo,
como forma de favorecer as condições de reflexão dos postulantes, e como
consequência, sua implicação subjetiva nos desdobramentos.
Assim, no decorrer deste ano, o Grupo acompanhou o desenrolar da
avaliação de um casal de pretendentes que, num processo conduzido nessa
perspectiva, concluiu espontaneamente sobre a inviabilidade de seu projeto adotivo

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naquele momento. É claro que a desistência espontânea ao longo das reflexões


suscitadas pela avaliação não foi inédita, tampouco se considera que o mesmo se
daria em todos os casos, mas tal reflexão e experiência ampliam e tornam mais
consistente o repertório técnico dos profissionais.
Houve também modificações na escrita do laudo, com a inclusão de
descrição pormenorizada sobre o que pretende a avaliação psicológica na
habilitação para a adoção, assim como de seus limites.

2 - PREPARAÇÃO

O Estatuto da Criança e do Adolescente enfatiza que a Adoção deve


servir principalmente às necessidades da criança e do adolescente e, muito se
avançou desde o advento desta Lei. Contudo, ainda pensando em garantia de
direitos, principalmente no tocante à convivência familiar e comunitária, a Lei
12.010/2009 veio como reforço, fazendo alterações e complementação ao Estatuto
da Criança e do Adolescente.

2.1 - EM RELAÇÃO AOS PRETENDENTES

O § 3 do art. 50 do ECA, incluído pela Lei 12.010/09 determina:

A inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período


de preparação psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica
da Justiça da Infância e da Juventude preferencialmente com apoio
dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de
garantia do direito à convivência familiar, que inclua preparação
psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças
maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de
saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos.

Ainda em relação à preparação, consta no artigo 5º do Provimento CG


Nº.36/2014:

Serão os cursos para pretendentes à adoção realizados pelo Juízo


da Infância e da Juventude e por suas Seções Técnicas de Serviço

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Social e Psicologia, com a possibilidade de parceria com a rede de


atendimento responsável pela implementação do Plano Nacional de
Convivência Familiar e Comunitária, grupos de apoio à adoção,
profissionais especializados e universidades, sendo vedado delegar
esta atribuição a outros órgãos ou serviços.

Para melhor compreensão sobre a trajetória percorrida na busca de


efetivar essa nova exigência e consequentemente nova atribuição aos profissionais
da Vara da Infância e da Juventude, os integrantes desse grupo de estudos
discutiram algumas orientações/normativas, dentre as quais o Comunicado do
Núcleo de Apoio de Serviço Social e Psicologia do Tribunal de Justiça de 2009 e o
Provimento acima referido, além da própria Lei 12.010/09.
Buscou-se refletir ainda sobre as diversas metodologias de trabalho
adotadas, tanto por meio de leitura e discussão de texto que elucidou experiência de
outra localidade (Goiânia), quanto pela troca de informações entre as Comarcas que
compõem o presente grupo, as quais estão subdivididas em dois blocos no tocante à
realização do Curso Preparatório para pretendentes à Adoção: Circunscrição de
Presidente Prudente e Circunscrição de Presidente Venceslau.
Enfatiza-se que não há um único formato para retratar o Curso nas
Comarcas que compõem as Circunscrições supracitadas, e embora cada local
organize de acordo com a sua realidade, considerando a disponibilidade de recursos
(físicos, materiais, humanos e financeiros), a demanda existente e as
especificidades apresentadas pelo público alvo, observou-se que as informações
necessárias ao processo de reflexão junto aos pretendentes à adoção estão
contempladas a todos, em razão das diretrizes existentes.
Desse modo, a comparação entre as experiências obtidas evidenciou
pontos comuns e divergentes, que serão suscintamente mencionados à luz da
legislação pertinente:
Os apontamentos efetuados no artigo 6º do Provimento CG Nº 36/2014
indicam que os encontros devem ter periodicidade não superior a 6 meses, carga
horária de 4 a 8 horas, de 1 a 3 encontros e formados por público de 06 a 40
pessoas, e em caso de não se formar grupos, o Curso poderá ser organizado
conjuntamente com outras Varas da Infância e Juventude, de preferência na mesma
Circunscrição.

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Nestes aspectos a realidade das duas Circunscrições apresenta


semelhança quanto à necessidade de realizar o Curso em parceria com as
Comarcas menores em razão do número mínimo para a formação dos grupos,
embora difiram no formato e na duração do curso.
A circunscrição de Presidente Venceslau condensa o curso em um único
dia, com carga horária de oito horas, pensando-se no deslocamento dos
pretendentes de suas cidades de origem. Quanto às visitas nas instituições de
acolhimento fica a critério dos técnicos de cada comarca, de acordo com o
posicionamento do Juiz responsável, organizar tal procedimento; destacando-se que
há comarcas que propiciam este momento e outras não.
A Circunscrição de Presidente Prudente realiza o curso com algumas
Comarcas vizinhas (Pirapozinho, Regente Feijó e Presidente Bernardes), sendo o
curso realizado em seis encontros de duas horas, além da visita na entidade de
acolhimento.
As discussões apontaram convergência quanto ao fato do Curso de
Preparação não ter caráter avaliativo nem exclusivamente informativo, mas propiciar
um espaço de escuta, informação, reflexão, orientação e troca junto aos postulantes,
acerca do tema Adoção, além das sutilezas e surpresas que a vida em família trará
a partir da chegada do novo filho.
Acrescenta-se como outro ponto em comum, que desde a implantação do
referido curso a responsabilização foi assumida pelos Setores Técnicos das Varas
da Infância e da Juventude, tanto no processo de planejamento e preparação quanto
na fase de execução (conforme preconizado pela legislação). Há a colaboração de
Juízes e Promotores de Justiça na condução do eixo que envolve os aspectos
jurídicos e também a participação de médico pediatra voluntário, que faz explanação
e esclarece dúvidas específicas sobre questões de saúde relacionadas ao formulário
para inscrição no Cadastro de Pretendentes à Adoção.
Sobre firmar parceria com a rede de atendimento responsável pela
implementação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, grupos de
apoio à adoção, profissionais especializados e universidades, destaca-se algumas
iniciativas pontuais:
Presidente Venceslau convida membros do Grupo de Apoio à Adoção de
Presidente Venceslau - GAAPV, aos quais é solicitada a divulgação de seu trabalho

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e convite dos participantes para suas reuniões; já ocorreu a participação na


condição de ouvintes de conselheiros tutelares e profissionais da rede municipal, o
que foi avaliado como negativo (haja vista tratar-se de público com objetivos
diferentes) e, mais recentemente convida-se membros da família extensa, sendo
esta participação avaliada como positiva.
Presidente Prudente, por sua vez, envolve profissionais da entidade de
acolhimento no planejamento e condução dos trabalhos em um dos módulos,
voltado à discussão sobre a fase de Aproximação, bem como no acompanhamento
da visita nas dependências da própria entidade.
Um aspecto suscitado na troca de experiências refere-se à terminologia
utilizada para nomear a programação do Curso, a qual priorizava a linguagem
técnica em detrimento à comum, o que poderia levar os participantes a uma
interpretação equivocada sobre a proposta de trabalho. Somado a isso, percebeu-se
que a humanização da terminologia favorecia maior envolvimento e participação dos
pretendentes, dando mais sentido ao vivenciado por eles. Como exemplo, cita-se o
termo “motivação”, o qual por vezes era entendido pelos pretendentes como uma
dinâmica capaz de motivá-los a algo, e não um assunto específico a ser discutido
com eles e a partir deles.
Sobre os temas abordados concluiu-se que com maior ou menor carga
horária, as Comarcas têm realizado abordagens com temáticas afins, (conforme
orientação do Núcleo de Apoio Psicossocial) onde o diferencial está na
apresentação de dados estatísticos. Presidente Venceslau se utiliza de dados do
Cadastro Nacional de Adoção para apresentar um perfil das crianças disponíveis
para adoção, fazendo um paralelo com o perfil da criança (via de regra) idealizada
pelos pretendentes. Presidente Prudente (cidade de maior porte e número de
adoções) se apropria de dados de sua própria Comarca para conduzir tal discussão
e reflexão.
Sabe-se que além do preparo dos pretendentes para uma adoção bem
sucedida e questões pertinentes a essa, o Curso também tem o objetivo de
apresentar a realidade das crianças e adolescentes que estão à espera de uma
adoção e provocar reflexões quanto ao perfil da criança desejada, bem como o
amadurecimento da possibilidade de aceitação de crianças maiores, grupo de
irmãos, adoção inter-racial, com deficiência e comprometimentos de saúde.

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No tocante a esta importante tarefa reflexiva, as discussões do Grupo


apontaram a necessidade de conduzir o processo com cautela. Ou seja, indicaram a
importância de se avaliar junto aos pretendentes, as reais motivações para
manterem ou alterarem o perfil da criança inicialmente pretendida. Isto porque se
entendeu que dependendo da forma que se conduz “tal sensibilização”, os
pretendentes podem ser induzidos a aceitar/assumir crianças com demandas
diversas às idealizadas e, para as quais não estavam devidamente preparados para
lidar; podendo incorrer em contextos propícios para devolução de crianças.

2.2 - EM RELAÇÃO AOS ADOTANDOS

Paralelo à preparação de interessados à Adoção, cabe também aos


profissionais do judiciário, em associação com as entidades de acolhimento,
realizarem a preparação de crianças e adolescentes para a Adoção.

Nesse sentido preconiza a Lei 12.010/09, em seu artigo 19, § 1º:

Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de


acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no
máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a autoridade judiciária
competente, com base em relatório elaborado por equipe
interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada
pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família
substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta
Lei.

No artigo 28, § 1o “sempre que possível, a criança ou o adolescente, será


previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de
desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá
sua opinião devidamente considerada”.

E de forma contundente no § 5o do mesmo artigo:

A colocação da criança ou adolescente em família substituta será


precedida de sua preparação gradativa e acompanhamento
posterior, realizados pela equipe interprofissional a serviço da Justiça
da Infância e da Juventude, preferencialmente com o apoio dos
técnicos responsáveis pela execução da política municipal de
garantia do direito à convivência familiar.

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O Grupo entende que a preparação da criança/adolescente deve começar


muito antes do início de uma possível aproximação com futuros pretendentes,
realizando ao longo de seu acolhimento, contatos, entrevistas, pesquisas sobre o
entendimento de sua história e suas expectativas; seja pela equipe do judiciário, seja
pela equipe da entidade de acolhimento.

A criança precisa ser preparada tanto para entender sua história e a


perda da família de origem, quanto para se desligar da entidade, assim como para
receber uma nova família, conforme apontam as Orientações Técnicas para os
Serviços de Acolhimento. Tal preparação é importante para facilitar o processo de
adoção, evitar risco de novo rompimento e reedição do abandono e desamparo.

Vale lembrar que durante o acolhimento da criança/adolescente (nos


Autos de Acolhimento/Execução de Medida Protetiva) os profissionais do judiciário
realizam avaliação tanto com a criança como com sua família de origem, onde
dados do histórico da criança, suas características e expectativas seja em relação à
família biológica seja em relação a outras possibilidades, são registradas e levadas
em conta na colocação da mesma em família substituta quando necessário.
Tais contatos entre a equipe judiciária e o acolhido se tornam mais
diretivos e intensos na medida em que ele se torna apto para adoção e que se inicia
a busca por pretendentes.

Nesse sentido é fundamental para que a próxima etapa (Aproximação)


seja bem-sucedida, a verificação da “adotabilidade” do acolhido, ou seja, a
disponibilidade psíquica para estabelecer vínculos com novos pais, o desejo de ser
inserido em uma família, assim como a consciência da impossibilidade do retorno à
família de origem. Em alguns casos, principalmente quando a criança/adolescente
tem fortes vínculos com a família biológica e não deseja ser adotado, deve-se
respeitar tal posicionamento uma vez que aumenta o risco de a aproximação ser mal
sucedida. Não se entende aqui uma impossibilidade para adoção, mas apenas sua
inviabilidade neste momento.

Importante lembrar que o fato da criança estar com situação jurídica


definida não significa que ela se encontra emocionalmente pronta para adoção, pois

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o tempo jurídico é diferente do tempo psíquico da criança. As condições de


“adotabilidade” estão relacionadas à vivência do luto face ao rompimento de vínculos
com família de origem, e tal vivência se faz necessária para a disponibilidade da
formação de novos vínculos afetivos familiares.

Assim como é fundamental que os adotantes elaborem o luto pelo filho


biológico desejado e não nascido, a criança necessita elaborar o luto pela família
biológica perdida, pelos laços afetivos construídos na instituição e às vezes pelos
vínculos fraternos rompidos.

Andrei (1997) ressalta que as entidades de acolhimento geralmente não


dão espaço para vivência do luto, das perdas sofridas pela criança e indiretamente
cobram/esperam que sejam alegres por serem bem tratadas e que sonhem com
uma nova família para si.

Nesse sentido, pode-se supor que se por um lado existe certa dificuldade
das entidades em propiciar que a criança/adolescente acolhido vivencie e elabore
sua tristeza e sua dor, por outro se pode pensar que o acolhimento é um período de
transição necessária para a criança concretizar ou perceber o desligamento da
família de origem e poder sonhar/se abrir para a perspectiva de uma família
substituta.

3 - APROXIMAÇÃO

Esta etapa diz respeito ao momento em que o Judiciário tem uma


criança/adolescente disponível para adoção, seja quando seus genitores biológicos
já foram destituídos, ou estão em processo de destituição com indicação para
colocação em família substituta para adoção. Após realizada a busca por um
pretendente a esta criança específica, inicia-se um contato com o mesmo, e sendo
bem-sucedido, levará ao encontro entre as duas partes.
Por terem particularidades específicas, o Grupo entendeu por bem dividir
esta etapa em dois momentos para efeitos didáticos: Pré Aproximação e
Aproximação propriamente dita.

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A Pré Aproximação compreenderia o período entre o primeiro contato


telefônico com os pretendentes até o primeiro contato pessoal entre eles e a
criança/adolescente disponibilizada pela Vara da Infância.
O primeiro contato, como já dito, seria por telefone (de preferência pelo
técnico que avaliou o pretendente) informando a existência da criança, e marcando a
primeira entrevista deles no Fórum para maior diálogo e informações.
A Comarca de Limeira (GE 2011) faz referência à importância de o
técnico que realizar a busca pelo pretende de outra Comarca, falar primeiro com o
técnico que o avaliou na devida Comarca. Este Grupo ratifica tal importância, na
medida em que o técnico responsável pela aproximação tem mais condições de
avaliar a congruência entre o pretendente e a criança disponível à adoção. Entende-
se que a busca de pretendentes de outras comarcas considere a distância viável
entre as mesmas, pensando em garantir maiores condições de uma aproximação
pelo tempo que se fizer necessário.
A Comarca de Presidente Prudente construiu uma metodologia que
denominou de “doze passos para uma adoção assertiva”. O primeiro contato
telefônico seria o Primeiro Passo. Nesse contato, diferente da maioria das Comarcas
que expõe sobre a existência de uma criança disponível em adoção; aquela equipe
tem adotado uma estratégia de chamar o primeiro da fila do cadastro local
interessado no perfil da criança disponível, com o propósito de atualizar os dados.
Na entrevista inicial com os pretendentes (Segundo Passo), o objetivo
dessa equipe é verificar a continuidade da disponibilidade inicial, a motivação
presente e falar do perfil das crianças que estão disponíveis à adoção, apontando-se
para a iminência de serem chamados para conhecer alguma criança. O técnico
responsável esclarece que farão entrevistas de Preparo para Aproximação, entrega
o DVD Delicada Escolha para propiciar reflexões sobre dificuldades e benefícios da
adoção (principalmente tardia – visto ser este o perfil mais comum), solicita que o
diálogo familiar aconteça, e propõe que os pretendentes construam um Álbum com a
finalidade de se apresentarem à criança esperada (quem são, onde vivem, como
vivem, do que gostam, com quem se relacionam, e como a esperam).
Nas demais Comarcas da Circunscrição o objetivo da primeira entrevista
é verificar a situação atual do pretendente, confirmar suas expectativas e o
relacionamento conjugal (se houver); apresentar o histórico, a situação legal e

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condição atual da criança (saúde, comportamento, escolaridade), confrontar a


criança idealizada com a real, solicitar que pensem na disponibilidade para
concretizarem os contatos com a criança, e agendar uma segunda entrevista.
Limeira (GE 2011), já nessa primeira entrevista, caso verifique interesse
dos pretendentes, tem a dinâmica de apresentar uma foto da criança, e caso os
pretendentes tenham filhos, reforçam a importância de os profissionais responsáveis
pela aproximação, também agendarem entrevistas com os mesmos; o que este
Grupo também revalida. Assim como Prudente propõe aos pretendentes a
organização de um álbum a ser apresentado à criança, com fotos da família nuclear,
família extensa, nova casa, animais de estimação, desenhos, mensagens, etc.
Na segunda entrevista é proposto ao pretendente expor suas reflexões e
o interesse ou não em continuar com os procedimentos para a aproximação. Em
caso positivo, detalha-se o histórico, rotina e características da criança, apresentada
através de foto, e agenda-se um contato impessoal na entidade. Orienta-se que o
contato não seja diretivo, que se apresentem como pessoas da comunidade, ou
como voluntários da Casa, a fim de se averiguar a empatia de ambos os lados, e
preservar a criança de expectativas e de reeditar frustrações e sentimentos de
abandono.
Esta segunda entrevista, na dinâmica da Comarca de Presidente
Prudente seria o Terceiro Passo, no qual também detalham a história e
características da criança, motivos do afastamento familiar e verificam a aceitação
da mesma pelos pretendentes, realizam a escuta dos conteúdos apresentados no
Álbum confeccionado, e agendam um encontro com a equipe técnica do Serviço de
Acolhimento.
O Grupo entendeu que a montagem do álbum pelo pretendente é
interessante por propiciar uma mudança de foco. Nesse sentido esse procedimento
para a aproximação à criança não fica focada somente nela, mas proporciona
também aos pretendentes uma reflexão a respeito da importância de suas atitudes e
decisões; além de ser a oportunidade de estabelecerem um elo entre o “antes e o
depois” do contato com a criança.
O Quarto Passo, na Comarca de Presidente Prudente, acontece na
Entidade sem a participação da equipe forense, onde os pretendentes são
informados detalhadamente sobre as características da criança, seu

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desenvolvimento, a relação com funcionários e acolhidos, sua rotina, saúde e são


apresentados à criança através de fotos. São convidados a refletir e depois se
posicionarem se desejam conhecê-la pessoalmente.
Esta dinâmica nas duas entidades de Presidente Prudente só acontece
nessa cidade e só é possível pelas características daquelas instituições, vez que em
cidades menores o local de funcionamento das entidades não possibilita a ida dos
pretendentes ao serviço de acolhimento sem que o contato pessoal aconteça. As
duas entidades da referida Comarca são as únicas nesta região que trabalham com
o Projeto Fazendo História60. Com tal projeto as crianças são auxiliadas a resgatar
sua identidade, o que contribui com o registro de sua história, fundamental na
preparação para sua colocação em família substituta.
Assim nas demais Comarcas da região, esta etapa é suprimida e os
pretendentes ao comparecer à entidade, conhecem a criança, mas de forma não
diretiva.
O Quinto Passo é o encontro entre pretendentes e criança na entidade,
com supervisão e orientação daquela equipe, e os adotantes se apresentam sem
criar expectativas.
O Sexto Passo (quinta entrevista) seria o retorno dos pretendentes ao
Setor Técnico para informarem sobre a visita, as impressões e sentimentos
provocados, e se posicionarem quanto à decisão de iniciar ou não o processo
de aproximação com a criança.
A partir do interesse manifesto do pretendente inicia-se a Aproximação
propriamente dita (definida anteriormente pela Comarca de Presidente Prudente
como Processo de Aproximação) que compreende o período após a decisão dos
pretendentes no sentido do início da construção de vínculos, ou seja, do primeiro
encontro pessoal até o desacolhimento com a obtenção da Guarda Provisória.
O posicionamento do Grupo é que o acompanhamento psicossocial pela
equipe técnica do judiciário se inicie neste momento e se estenda até o final do
Estágio de Convivência, sugerindo tal procedimento nos Autos caso não haja
determinação judicial a priori.
Entende-se ainda que seria importante que o profissional responsável
pela Aproximação fosse o mesmo até o final do processo do Estágio da
60
Projeto do Instituto Fazendo História (Guia de ação para colaboradores, 2ª ed, 2014), o qual é
realizado através de parceria com a Faculdade de Psicologia da Unoeste de Presidente Prudente.
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Convivência. Percebe-se haver diferenças entre as Comarcas das duas


Circunscrições, sendo que a Aproximação e o Estágio de Convivência são
realizados por profissionais distintos.
Este período de conhecimento recíproco e construção de vínculos, com o
devido acompanhamento profissional, é primordial para a convivência e adaptação
posterior. As orientações e o preparo sobre as fases de adaptação da criança, suas
características e possíveis reações, as formas de lidar com dificuldades específicas,
a distinção entre filiação biológica e adotiva, suas especificidades, diferenças e
significados, auxiliam muito a convivência posterior e ajudam os pretendentes a
adquirirem capacidade de suportar o estranhamento, os enfrentamentos e os
desafios da adaptação.
Entende-se que embora seja fundamental, esta fase se reveste de
dificuldades na medida em que não prevê futuras reações de ambas as partes, que
durante tal período se defendem e não revelam suas reais características neste
ambiente frio que é o judiciário. Ainda assim, entende-se importante enfatizar com
os pretendentes as dificuldades que poderão ocorrer na convivência mais íntima,
após a guarda, no intuito de que o encantamento não se quebre na medida em que
as agruras do relacionamento afetivo aconteçam.
Antes de se iniciar qualquer contato entre a criança e os pretendentes é
importante verificar se as visitas da família biológica foram suspensas, para não
incorrer em expectativas contraditórias.
O Sétimo Passo é o encontro entre adotantes e adotando com maior
interação, troca de álbuns e atividades em comum, promovendo um
entrelaçamento das histórias e legitimando o início desta nova relação.
O Oitavo Passo é o início de encontros sistemáticos entre pretendentes e
criança, que se inicia com visitas na instituição que vão se intensificando em horas e
dias da semana.
O Nono Passo acontece na medida em que as visitas passam a ser
realizadas na casa dos interessados, inicialmente apenas durante o dia e
posteriormente com pernoite em finais de semana e feriados, de forma a
proporcionar o maior tempo de convivência possível.
É proposto ainda que os adotantes acompanhem os atendimentos de saúde e a

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

rotina escolar das crianças/adolescentes, para que compreendam a rotina e


necessidades específicas que apresentam.
A avaliação do fim do período de Aproximação e a possibilidade da
concessão da guarda deve ser realizada pelo Setor Técnico Judiciário em parceria
com a equipe da instituição de acolhimento (artigo 167-ECA). Nesta, observa-se
especialmente a intensificação dos vínculos, a resistência e o sofrimento da criança
no retorno à entidade, o impacto do comportamento da criança na nova convivência
em família, se o adotando identifica os adotantes como referência (mais do que as
pessoas da entidade), e o desejo da criança em fazer parte deste novo núcleo
familiar.
O Termo de Guarda e a mudança de ambiente de rotina da criança seria
o Décimo Passo.
Havendo indicadores favoráveis à guarda da criança aos adotantes, as
Orientações Técnicas dos Serviços de Acolhimento (2009) propõem que se
programe a “despedida” da criança da entidade de acolhimento, funcionários, outros
acolhidos, colegas de escola. Não menos importante, que as crianças que
permanecerem acolhidas também sejam preparadas pela equipe da instituição, para
mais uma vivência de separação.
A equipe de Limeira (2011) aponta uma sugestão que este Grupo
considerou interessante: a saída da criança de preferência numa sexta-feira ou
véspera feriado, e que a convivência nos dois primeiros dias fosse apenas entre a
criança e moradores da casa. Interessante ressaltar que dos artigos dos Grupos de
Estudo do TJ pesquisados, aquela equipe foi a única a definir algumas tarefas
específicas para o Serviço Social e a Psicologia nos procedimentos de Aproximação
e Estágio de Convivência.

4 - ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA

Esta etapa se inicia com o Termo de Guarda com fins de Adoção, sendo
definida pelo Tribunal (Portal da Adoção) como:

O Estágio de Convivência é um período de acompanhamento da


nova família pela Vara da Infância e da Juventude, após a mudança
495
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da criança ou adolescente para a casa dos adotantes, sob Termo de


Guarda com vistas à adoção. Neste momento, poderá ser requerida
a licença-maternidade/paternidade. Durante esse período, a equipe
técnica, composta por assistentes sociais e psicólogos irá
acompanhar, avaliar, orientar, refletir e apoiar o novo núcleo familiar
em formação, observando aspectos relativos à sua integração. O
Estágio de Convivência terá um prazo variado, dependendo das
peculiaridades de cada caso. Quando considerado finalizado, será
deferida a adoção pelo juiz, tornando-se uma medida irrevogável.

O Estágio de Convivência está previsto no ECA – artigo 46: “A adoção


será precedida de estágio de convivência. E ainda sobre o estágio de convivência, a
Lei 12.010/09 especifica em seu artigo 46, § 4o :

O estágio de convivência será acompanhado pela equipe


interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude,
preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela
execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que
apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do
deferimento da medida.

No processo de filiação adotiva a que os pretensos pais percorrem pelas


vias legais, o estágio de convivência é a etapa de quase concretização do tão
esperado filho. O acompanhamento realizado pela equipe técnica judiciária seria o
Décimo Primeiro Passo.
Em fases anteriores, como já apresentadas, os pretendentes passaram
pela avaliação, preparação, quase sempre pela reavaliação, perfazem os caminhos
da aproximação e finalmente assumem a(s) criança(s) sob guarda com fins de
adoção.
Em conformidade com o que apresenta Ghirardi (2015, AMB, 2008, p.30)
o estágio de conivência “tem como fundamento permitir a adaptação da criança em
seu novo entorno familiar e também favorecer o estabelecimento das bases afetivas
entre a criança e o adulto”.
Pensando nesse fundamento, psicólogos e assistentes sociais judiciários
são os profissionais que dentre suas várias atribuições, tem o papel de assessorar o
Juízo através de informações acerca da qualidade das relações, da percepção da
sensação de pertencimento da criança enquanto membro dessa família e o
apropriar-se dos papéis de pais dessa criança.
496
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nessa função, o profissional para além do papel de avaliador, procura


estabelecer com os guardiões uma relação de confiança, possibilitando espaço para
a exposição de suas angústias, medos, incertezas, dificuldades, sentimentos e
frustrações, na tentativa de oferecer suporte, auxiliar e traduzir a vivência deles no
contato com o novo filho.
O encontro entre os técnicos/adotantes/adotados é visto como um espaço
privilegiado para juntos abordar questões em que os novos pais possam se sentir
legitimados para exercerem a paternidade/maternidade de seu(s) filho(s).
A postura adotada pelos técnicos deve ser de empatia para com os
envolvidos, pois se compreende o quanto é difícil tornar-se pai e mãe, entregar-se
afetivamente de forma exaustiva, principalmente nas adoções tardias, a alguém que
até então era totalmente estranho a eles. Estes novos pais podem estabelecer com
os profissionais uma relação de confiança que oportunize abertura para as questões
a serem refletidas.
É sabido que num primeiro momento a relação passa pelo que se chama
de “lua de mel”. Nessa fase a criança inconscientemente age no sentido de revelar
suas melhores qualidades uma vez necessitar ser acolhida e desejada pelos novos
pais. Da mesma forma os pretendentes também tendem a salientar suas qualidades.
Por ser uma fase de adaptação recíproca, indiretamente pode estar
implícita a possibilidade de devolução. Porém, o estudo sobre este tema durante o
ano possibilitou o aprofundamento do significado do Estágio de Convivência,
superando a visão meramente jurídica da questão relacionada à possibilidade da
restituição/devolução durante este período, com um novo olhar, contrapondo-se a
considera-lo como um “test drive” conforme aponta Alberta (2014).
Segundo o que nos apresenta Ghirardi (2015), ao escrever sobre a
devolução, utiliza-se do significado apresentado no Dicionário Aurélio da palavra
devolver – mandar ou dar de volta o que foi entregue, remetido, esquecido; restituir
algo a alguém por não haver legitimidade sobre o objeto. Sugere também uma
apropriação indevida de algo que se entende não lhe pertencer. E complementa
apontando que a palavra traz também a conotação da presença de um possível
engano quanto à apropriação do objeto, que deverá ser reparado por meio de seu
retorno ao emissor. Para que os pais possam enfrentar estes sentimentos, precisam

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

de apoio e informação, para criar outro modo legítimo de reconhecimento do filho,


que vai além do vínculo biológico.
Segundo ABRÃO (2011, p.165)

Para legitimar essa filiação, precisam historiar em vez de rememorar.


Esse é um outro sistema de referência, com outros parâmetros. Os
pais devem criar possibilidades. Isso é o disruptivo e o criador. Eles
precisam criar conceitos a partir da diferença. Não é igualar, é
diferenciar. Não se corrige a fratura, a ruptura, produzida pela
transferência de cuidados da mãe biológica para outra mãe. É
preciso integrá-la, considera-la, absorvê-la e, sobretudo, poder falar
sobre ela.

No começo dessa nova relação paterno-filial coexistem sentimentos


ambíguos e conflitantes, sendo comum que pais adotivos revivam suas dores
referentes à ausência do filho não concebido biologicamente, entre outras.

Ghirardi (2015, p.33) aponta outros aspectos que permeiam esta etapa:

Na origem de toda adoção estão como fundamentos, a entrega ou o


abandono da criança e a motivação de alguém que a adota,
inserindo-a em outra família, a substituta. Nesse sentido, ela parece
começar sempre a partir de perdas: para a mãe que entrega o filho,
para a criança que perde o vínculo com a família original e para os
pais adotivos que vivem a infertilidade. Todas essas desordens estão
ligadas às perdas que a cultura tentará ultrapassar por meio da
legitimização de uma filiação simbólica.

Os estudos realizados ao longo deste ano puderam apontar que do ponto


de vista da criança deve-se propiciar a expressão da ambiguidade de seus
sentimentos, favorecendo o processo de desinvestimento afetivo da família
biológica, de pessoas com as quais tem apego, disponibilizando-se para novas
vinculações.
Por ter sofrido rupturas de vínculos importantes, entregar-se à nova
relação afetiva traz insegurança de sofrer novas perdas significativas e medo de
envolver-se emocionalmente de maneira integral.
Em razão de tal insegurança e na tentativa de certificar-se da
confiabilidade na nova configuração parental, a qual não é dada pela simples
comunicação verbal, a criança poderá apresentar reiteradamente comportamentos
agressivos, regredidos, chantagens emocionais, sentimentos ambivalentes, reações

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

explosivas, entre outras dinâmicas variáveis de acordo com sua fase de


desenvolvimento e vivências anteriores. Esse período de adaptação corresponde à
chamada “fase do teste”. Essa vivência pode ser amenizada se a criança tiver a
oportunidade de entender tal sentimento e a angustia que o mesmo lhe causa; assim
como se os pretendentes entenderem o significado de tais atitudes.
Outras alterações que podem aparecer na fase de adaptação são:
insegurança e culpa, problemas referentes a hábitos alimentares (aumento ou
diminuição do apetite, voracidade, vômitos, náuseas, retirada ou não da
mamadeira), ao sono (bruxismo, terror noturno, pesadelo, agitação, sonambulismo,
insônia, rotina para dormir), rituais, objeto de conforto, hábitos de higiene. Tais
alterações devem ser trabalhadas com os adotantes durante o período de
acompanhamento.
Necessário lembrar que oferecer para a criança a verdade sobre seu
histórico de vida, propicia a concordância entre as sensações vividas a nível
inconsciente, e as informações e questões vivenciadas na realidade. Receber a
verdade pode ser dolorido, mas permite o construir e reconstruir de sua identidade.
Deve-se respeitar a fase do desenvolvimento da criança, fornecendo as informações
de maneira gradual, para que não sejam vivenciadas como algo sem sentido e/ou
devastador.
Entendendo que a palavra tem o poder de significar o simbólico, é
necessário possibilitar um espaço para que a criança possa falar de sua família de
origem e suas vivências passadas; assim como de sua nova família para que possa
compreender a nova rotina, as regras e limites. A estranheza que sente com essa
nova experiência é compreensível, em razão da discrepância das realidades. Ainda
nesse novo núcleo familiar, é importante que a criança se sinta parte da família
extensa, ou seja, que ela ocupe além do papel de filho, o de neto, sobrinho, primo.
É necessário relembrar com os adotandos seu passado, para que tenham
a oportunidade de resignificar sua história, reorganizá-la e reconstruí-la a partir da
nova experiência familiar.
Com relação aos novos pais o acompanhamento poderá abordar a
revivescência do luto pela infertilidade e pelo filho idealizado. Frente a isso se
vislumbra a importância de refazer com os guardiões o percurso que enfrentaram
até então para a chegada do filho real. Nessa oportunidade o profissional pode

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confrontá-los com suas dores e ao mesmo tempo amenizá-las, através de sua


escuta.
O acompanhamento também visa permitir ao adotante falar de seu novo
papel de pai/ mãe, e destacar a importância de manterem além dos papéis
parentais, os conjugais, pois esses precisam ser complementares.
Ajudar a compreender que esse filho requer investimento emocional de
toda a família extensa, possibilitando-lhe ocupar o lugar de membro nessa família.
Elucidar aos adotantes que a criança necessita de um tempo para
apreender o novo, novos pais, novo ambiente, novas formas de se portar a mesa,
nova escola, novas regras. O imediatismo presente nesses pais ocorre devido ao
medo de que esse filho “não dê certo”, ou seja, projetam seus medos de fracasso no
filho.
Oferecer aos adotantes informações sobre as fases de desenvolvimento,
elucidando aos mesmos as possíveis regressões, as quais geralmente ocorrem pela
necessidade da criança de reeditarem com os novos pais vivências anteriores.
Entender como lidam com a história pregressa da criança – se
possibilitam e permitem a criança falar da mesma. Importante desmistificar com os
adotantes as ideias pré-concebidas sobre a mãe / família biológica, para que a
revelação se dê de forma tranquila e integrada.
Fortalecer a capacidade de suportar os ataques de fúria, de rebeldia e
esclarecer a necessidade que a criança tem de fazê-lo na fase do teste.
Desmistificar tanto os comportamentos disruptivos como sendo devidos a
sua condição de adotado, como o suposto peso do laço de sangue na herança
psíquica e moral, bem como a suposta preferência afetiva pela família de origem.
Trabalhar a ansiedade de atribuir ao filho qualidades e expectativas
idealizadas por eles (bom aluno; bom filho, neto, irmão; inteligente; de boa índole) e
a urgência de que as crianças respondam o mais rapidamente às novas
aprendizagens e padrões de comportamento.
Oportunizar aos adotantes o reconhecimento de projeções de suas
“fraturas”, colocadas nos filhos.
Pensar junto com os novos pais sobre a colocação de regras e limites,
pois essas não podem ser tão rígidas e nem tão frágeis. Muitas vezes a rigidez

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

aparece como formar de “por logo as coisas no lugar” e a fragilidade em função da


crença de que “já sofreram tanto, não merecem receber limitações/punições”.
Após esse trabalho de acompanhamento e orientação à nova família, que
pode ser variável (mas não inferior a seis meses) dependendo da idade da criança e
da adaptação da nova família na constituição de vínculos, o último Passo (Décimo
Segundo) seria a avaliação final do Estágio de Convivência e a homologação do
Pedido de Adoção.

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5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais uma vez, o esforço de sistematização das reflexões desenvolvidas


ao longo deste ano no Grupo de Estudos de Assistentes Sociais e Psicólogos do
TJSP nos apresenta um resultado positivo. Novamente, foi possível perceber que a
participação ativa nas discussões, o acesso a material bibliográfico compatível,
aliados à disposição para o questionamento da prática em direção a um fazer ético e
qualificado têm, conjuntamente, uma potência capaz de acolher parte de nossas
angústias profissionais, modificar algumas concepções, reassegurar outras,
vislumbrar novos cenários, o que torna o Grupo de Estudos um espaço significativo
no difícil contexto e diante das complexas demandas com as quais se depara neste
locus de trabalho.
Coincidentemente, psicólogos e assistentes sociais judiciários da
circunscrição de Presidente Prudente puderam contar, pela primeira vez neste ano,
com um trabalho de supervisão realizado por profissionais que são referências na
área de adoção em nosso país: a psicóloga Maria Luiza Ghirardi e a assistente
social Alberta Góes. Salienta-se que tais supervisões foram propostas pelo próprio
TJSP e, em razão da experiência das profissionais responsáveis recaírem sobre a
mesma temática estudada por este Grupo de Estudos, oportunizaram fecunda
articulação entre as discussões que se desenvolviam em cada esfera.
Das conclusões que resultam de todo esse processo, considera-se que a
principal diz respeito à valorização da escuta e da reflexão junto aos envolvidos em
cada uma das etapas entre a habilitação e a adoção, para muito além, portanto, de
nossas suposições iniciais (implícitas) que creditavam o sucesso majoritariamente à
avaliação psicológica dos pretendentes.
Deter-se nas várias etapas que compõem esse processo a partir de sua
interface com o judiciário, possibilitou entrever que cada uma delas encerra
incontáveis elementos que interferem nas experiências particulares de inúmeras
formas. Incluem-se aí aspectos subjetivos dos adotantes, adotados, profissionais
envolvidos, prazos e exigências legais, entre outros. É responsabilidade dos
profissionais do Serviço Técnico Judiciário manter o respeito aos tempos subjetivos,
necessários às vivências de luto, desinvestimentos e reinvestimentos, ao mesmo

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tempo em que se consideram os prejuízos advindos de institucionalização


prolongada e de rupturas repetidas dos laços afetivos.
Com o objetivo de organizar a condução desse processo, criando
recursos para manter a racionalidade em meio à circunstância que é alvo de
pressões e sentimentos de urgência, foi discutida uma experiência que propõe
“passos” para a aproximação entre pretensos pais e filhos. Tal proposta foi
interessante porque, contraditoriamente, verificou-se que, enquanto há uma
profusão de orientações e regulações ligadas à preparação psicossocial, o mesmo
não se dá no campo da aproximação e estágio de convivência, havendo diferenças
importantes na maneira de condução de cada Comarca. Considera-se que tais
estágios podem ser decisivos e que a negligência a eles pode comprometer toda a
situação, aumentando-se os riscos de devolução.
Discutiu-se a importância de que os profissionais façam contato com o
profissional que avaliou o pretendente antes mesmo de realizar o contato com esse
e de iniciar a aproximação com a criança pretendida, seja da mesma Comarca seja
de Comarca distinta.
Embora cada local trabalhe com suas especificidades, entende-se a
necessidade de se aprofundar a avaliação e sistematizar a aproximação ressaltando
a importância da mesma (o que vai contra a nova legislação), antes da concessão
da guarda, de modo que todos os profissionais tenham essa consciência e façam
essa troca.
No momento atual, com a alteração da lei a respeito da adoção no
Congresso Nacional (Lei nº 13.509 de 22/11/2017) se tensiona ainda mais esse
processo, com o objetivo de acelerar os procedimentos para concretização das
adoções, ignorando a complexidade do que está em jogo na constituição dos laços
de filiação adotiva, além de conter a falácia populista de usar o dispositivo da
adoção como suposta resolução de problemas ligados a desigualdades sociais e à
precariedade do Estado.
A abertura de um espaço para escuta daquilo que é da ordem do
subjetivo constitui-se num dos principais compromissos que os componentes do
Serviço Técnico Judiciário assumem ao atuar nos processos de adoção, podendo
ser considerada como seu melhor instrumental.

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Neste sentido, considerar o perfil da criança desejada pelos adotantes,


senão absoluto, pelo menos próximo àquele desejado, apesar do trabalho de
sensibilização recomendado nos cursos de preparação para aceitação das crianças
disponíveis para adoção, é de fundamental importância na prevenção de possíveis
devoluções que possam estar relacionadas à pressão dos pretendentes receberem
crianças maiores às quais eles não estão preparados para lidar.
No percurso da avaliação à concretização da adoção, há muito que refinar
nessa escuta em relação aos diversos envolvidos, com sua multiplicidade de
sentimentos, que variam ao longo do tempo e dos desafios que vão enfrentando na
construção dos novos laços familiares.
A contínua busca de conhecimentos que possam ajudar a iluminar essa
caminhada, a disposição para escuta e reflexão a cada passo, são indispensáveis
para essa medida jurídica excepcional e que formaliza uma constituição familiar
afetiva, distinta dos padrões biológicos/ naturais.

504
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

REFERÊNCIAS

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Primavera Editorial, 2011.

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26/5/97, A Adoção em Terre des Hommes.

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que envolve desde o Cadastro de Pretendentes até a Adoção: reflexões sobre a
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Prudente. 2016

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__________ e FERREIRA, Márcia Porto (orgs.). Laços e rupturas: leituras


psicanalíticas sobre adoção e o acolhimento institucional. São Paulo: Ed. Escuta,
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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506
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

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em Serviço Social, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO (TJSP). Cadernos dos Grupos de Estudos


- Serviço Social e Psicologia Judiciários. Síntese das discussões realizadas pelo
grupo de estudos sobre adoção, 1998, n. 2, p. 115-130, São Paulo: 2005.

______. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia Judiciários.


Estágio de Convivência na Adoção Nacional, n. 2, p. 93-99, São Paulo: 2005.

______. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia Judiciários –


Curso Preparatório Para Adoção – Temas relevantes a serem Abordados, n.7, p.16-
40, São Paulo: 2010.

______. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia Judiciários –


Da Preparação Para Adoção ao Acompanhamento do Estágio de Convivência, n.8,
p.275-289, São Paulo: 2011.

______. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia Judiciários.


“Adoção II”. Preparação de Crianças e Adolescentes para Adoção, n.8, p.79-91, São
Paulo: 2011.

______. Cadernos dos Grupos de Estudos - Serviço Social e Psicologia Judiciários.


“Adoção I”. Preparação de Crianças e Adolescentes para Adoção, n.9, p.18-38, São
Paulo: 2012.

_______. Institucional - Portal da Adoção – perguntas frequentes

507
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A ÉTICA PROFISSIONAL NA RELAÇÃO ENTRE PERITO E


ASSISTENTE TÉCNICO

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR –


PRESIDENTE PRUDENTE II
“A ÉTICA PROFISSIONAL NA RELAÇÃO ENTRE PERITO E
ASSISTENTE TÉCNICO”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO

Danielle Yamashita – Psicóloga Judiciário – Comarca de Presidente Prudente


Silvia Helena Manfrin – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente

AUTORES

Daniele Luiza Armeron Moreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de


Presidente Prudente
Dayane Aparecida Lacerda Oliveira Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca
de Presidente Prudente
Evelyn Navarro Justino Soler – Assistente Social Judiciário – Comarca de Regente
Feijó
Gabriele Molina Ferrari – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente
Igor Costa Palo Mello – Psicólogo Judiciário – Comarca de Presidente Prudente
Ivana Diercken Simoni de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Bernardes
Jacqueline Aparecida Vicente – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Presidente Prudente
Maria Natália Aparecida Soares Rodrigues – Psicóloga Judiciário – Comarca de
Rancharia
Márcia Giselda Juvencio Gervazoni – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Rancharia
Nayara Coimbra Coutinho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Martinópolis
Silvia Cristina Carvalho Santos Vanderlei – Assistente Social Judiciário – Comarca
Martinópolis
Vanessa Milanezi Felipe – Assistente Social Judiciário – Comarca de Presidente
Prudente

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

O presente artigo é produto do registro das leituras e reflexões coletivas a


partir do Grupo de Estudos, (Grupo II) composto por Assistentes Sociais e
Psicólogos da 27º Circunscrição de Presidente Prudente. As comarcas que
compõem a referida Circunscrição são: Presidente Prudente, Iepê, Martinópolis,
Regente Feijó, Presidente Bernardes, Rancharia e Pirapozinho.
A metodologia de trabalho contemplou reuniões mensais realizadas entre
Março e Dezembro de 2017. Em março, houve a definição do cronograma de
atividades sobre o tema e a distribuição em subgrupos formados por técnicos
responsáveis em promover a discussão com os demais integrantes através de
textos, vídeos e outros documentos que versassem sobre o assunto.
Em Abril, as discussões tiveram como base Resoluções, Comunicados do
CFESS (Conselho Federal do Serviço Social) e do núcleo de Apoio Profissional do
TJSP, o Provimento da Corregedoria Geral nº 12/2017, bem com apresentação de
vídeo sobre a presença de assistentes técnicos nos procedimentos realizados por
assistentes sociais e psicólogos.
No mês de Maio, foi a vez dos psicólogos trazerem as Resoluções do
CFP (Conselho Federal de Psicologia) e outros textos para embasar as discussões.
Num segundo momento a Psicóloga judiciário Claudia Amaral Mello Suannes foi
convidada a contribuir com seus conhecimentos sobre o tema, realizando
posteriormente a discussão de um caso.
Em Junho, o debate versou sobre as diferenças entre depoimento x
atendimento técnico e sobre escuta e oitiva, bem como foi discutido um caso
atentando-se para questões pertinentes as relações entre perito, assistente técnico e
advogado.
Em agosto, o encontro também foi dividido em dois momentos; no
primeiro fez-se um resgate dos Provimentos, Comunicados e Resoluções já
trabalhados anteriormente. Percebeu-se a necessidade abarcar o tema alienação
parental e disputa de guarda em Varas de Família, uma vez que se observou que a
presença de assistente técnico é expoente nesse tipo de litígio. No segundo
momento contou-se com a participação do Excelentíssimo Senhor Doutor Silas Silva
Santos, Juiz de Direito da 2ª Vara Cível de Presidente Prudente, que contribuiu,

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

através de seu vasto conhecimento com as discussões, trazendo questões do


Código de Processo Civil, explanando especialmente sobre o princípio do
contraditório e sua relação com a presença do assistente técnico nas perícias.
Em Setembro as discussões se pautaram sobre famílias contemporâneas
e questões de gênero, debatendo-se a alienação parental. Na sequência houve a
apresentação do documentário “a morte inventada”, com apontamentos sobre o
tema.
Em Outubro, iniciou-se o processo de escrita do artigo, dando-se
continuidade nos meses de Novembro e Dezembro.
No final do primeiro mês dos trabalhos do Grupo de Estudos foi editado o
Provimento CG 12/2017 que dispõe sobre a não inclusão do assistente técnico
durante as entrevistas. A princípio, o Provimento veio resguardar a atuação de
psicólogos e assistentes sociais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo com
relação às questões éticas e, embora esta normativa tenha significativa importância,
temos a clareza que não se sobrepõe ao Código do Processo Civil (CPC).

1 - RELAÇÃO PERITO/ASSISTENTE TÉCNICO A PARTIR DO CPC:


OS EMBATES ÉTICOS E AS NORMATIVAS DAS PROFISSÕES

A fim de entender a relação entre perito e assistente técnico, é preciso


compreender qual é o espaço ocupado pelos Assistentes Sociais e Psicólogos no
Poder Judiciário do Estado de São Paulo.
O ingresso nas carreiras de Assistentes Sociais e Psicólogos no judiciário
paulista é feito através de concurso público de provas e títulos, com diversas
atribuições previstas nos comunicados n. 308/2004 e 345/2004. Dentre estas,
destaca-se a função de Perito auxiliar do juiz, procedendo à perícia forense
conforme determinação judicial, denominada como avaliação, de acordo com o
artigo nº 464 do Novo Código de Processo Civil: “A prova pericial consiste em
exame, vistoria ou avaliação”.
O artigo nº 465 do CPC versa que: “O juiz nomeará perito especializado
no objeto da pericia e fixará de imediato o prazo para a entrega do laudo”.

511
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

É a partir do recebimento da determinação judicial que o perito dará início


à leitura dos autos e planejamento do procedimento técnico a ser utilizado
(intimação das partes e outros envolvidos, número de entrevistas, seleção de testes,
visita domiciliar, contato com a rede, dentre outros), e o resultado desta avaliação
social e/ou psicológica se constituirá como mais uma prova dentro dos autos, a qual
subsidiará a decisão do magistrado.
A atuação do perito compreende a escuta de ambas as partes e, quando
se fizer necessário, trazer para a cena outros atores que contribuirão para o estudo
e análise da situação pessoal/familiar que ensejou o ingresso da ação judicial.
Na elaboração da avaliação social e/ou psicológica, a imparcialidade é
condição sine qua non para se buscar a justa medida e a primazia do melhor
interesse da criança, quando constituir-se alvo de disputa por parte de seus
genitores litigantes.
É neste contexto que as partes poderão defender-se no processo,
fazendo valer o princípio do Contraditório que traduz a segurança de que ninguém
pode sofrer os resultados de uma sentença sem a possibilidade de ser parte do
processo, ou seja, sem ter assegurado o direito de defesa e a garantia aos litigantes
de acesso à prova pericial a fim de verificar se ela foi produzida com veracidade,
cientificidade e legalidade.
O trabalho do Assistente Técnico se faz possível a partir desse
entendimento jurídico, o qual deverá atuar como profissional de confiança,
assessorando a parte contratante e acompanhando a realização da Perícia,
destacando-se aqui a Psicológica e Social.
O artigo 466 do CPC, em seu parágrafo 2º diz que “O perito deve
assegurar aos assistentes das partes o acesso e o acompanhamento das diligencias
e dos exames que realizar, com previa comunicação, comprovada nos autos, com
antecedência mínima de cinco dias”, com o objetivo de avaliar a prova produzida
pelo perito do juízo e, ao final, o assistente técnico elaborará seu parecer técnico
referente à perícia.
Entretanto, há de se apontar que a perícia Social e Psicológica, por sua
especificidade, se distingue das perícias técnicas que não tem o ser humano como
objeto de estudo, tais como no caso da Engenharia, da Contabilidade, etc. Esta

512
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

peculiaridade implica numa condição delicada quando se trata da figura do


Assistente Técnico para se garantir o direito ao Contraditório.
A presença deste profissional durante a avaliação psicológica e/social
interfere diretamente no comportamento das partes. Isso acontece porque ao ser
entrevistado pelo perito do juiz, na presença do Assistente Técnico da parte com a
qual litiga, o avaliado certamente responderá aos questionamentos que lhe serão
feitos com certa reserva e máximo de cuidado na intenção de não produzir provas
contra si, o que também lhe é de direito.
Outro aspecto a ser considerado é o constrangimento imposto por esta
situação, de ampla exposição de sua intimidade e que possivelmente interferirá
negativamente no resultado da prova pericial, considerando que o avaliado poderá
utilizar de mecanismos de simulação, dissimulação e omissão de fatos relativos à
problemática vivenciada na tentativa, compreensível, de conduzir a resolução do
conflito a seu favor.
A Corregedoria Geral da Justiça provocada pelas entidades
representativas das categorias (CRESS, CRP AASPTJSP) e pelo núcleo de Apoio
aos Assistentes Sociais e Psicólogos editou o Provimento CG nº 12/2017, que
recomenda:

Parágrafo único. O acompanhamento das diligencias mencionado no


§2º do art. 466 do Código de Processo Civil não inclui a efetiva
presença do assistente técnico durante as entrevistas dos psicólogos
e assistentes sociais com as partes, crianças e adolescentes.
Contudo, havendo interesse do assistente técnico, a ser informado
nos autos, os psicólogos e assistentes sociais do Poder Judiciário
deverão agendar reunião prévia e/ou posterior às avaliações,
expondo a metodologia utilizada e oportunizando a discussão do
caso.

No tocante ao Art.466 do CPC, a Corregedoria Geral da Justiça,


anteriormente ao Provimento CG nº 12/2017, solicitou ao Núcleo de Apoio
Profissional de Serviço Social e de Psicologia da Coordenadoria da Infância e da
Juventude, bem como ao CRESS-SP, posicionamento sobre o referido artigo, como
já mencionado.
Na manifestação emitida pelo Núcleo de Apoio Profissional de Serviço
Social e Psicologia (2017, p. 02) contempla que:
513
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

O trabalho do perito está fundamentado em dois eixos: por um lado,


o da normativa geral (dada pelo Código de Processo Civil) que, entre
outras prerrogativas, estabelece o Direito ao Contraditório e, por
outro, o das normativas específicas do campo do saber do
profissional, que o habilita a realizar avaliações que envolvem
questões de natureza técnica ou científica.

É importante ressaltar que o Núcleo, apesar de reconhecer a


determinação legal representada pelo CPC, enfatiza a necessidade do profissional
atender as normativas da profissão ao atuar na realização das avaliações.
Embora o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) ainda não tenha
emitido uma resolução que discipline a relação do Assistente Social perito e o
assistente técnico, aponta-se que o CRESS-SP (2017, p. 03), especificamente
acerca do que dispõe o Art.466 do CPC, fez conhecido seu posicionamento à
Corregedoria, destacando que:

[...] o disposto no Paragrafo 2° do Art. 466 do Novo Código de


Processo Civil, não prevê sequer a prévia anuência dos/as
periciandos/as, não dialoga com o Código de Ética de profissões que
lidam com as minúcias do sigilo pessoal, dos segredos de família e
de vários outros aspectos das relações socioafetivas que somente
são viáveis quando do estabelecimento de confiança no profissional
perito/a, algo descartável em uma possibilidade de ambiente que
pudesse contar com uma dupla de assistentes sociais e
psicólogos/as peritos/as e uma (ou duas) dupla(s) de assistentes-
técnicos destas áreas do conhecimento, representando os interesses
das partes.

Acresce-se que ao referir-se a um dos Princípios Fundamentais da


profissão, elencado no Código de Ética do Serviço Social (1992) o qual invoca a “[...]
Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”, o
CRESS-SP (2017, p. 04) assim se pronuncia:

Observando este princípio, nem o/a perito/a nem o/a assistente-


técnico/a devem se valer da lei para forçar a participação de
assistentes de defesa nos ambientes de perícia, os quais devem, a
514
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

nosso juízo, se limitar a acessar e intervir tecnicamente no conteúdo


das perícias e no oferecimento de quesitos às mesmas, conforme o
rito processual. Ultrapassar esse limite, como prevê o Novo Código
de Processo Civil, é ensejar espaço institucional para a possibilidade
de violação de vários itens do Código de Ética dos/as Assistentes
Sociais.

O CRESS-SP (2017) fundamenta ainda sua argumentação, utilizando o


disposto no art. 3º, alínea “c” do Código de Ética do Assistente Social que trata como
dever profissional: “[...] abster-se, no exercício da Profissão, de práticas que
caracterizem a censura, o cerceamento da liberdade, o policiamento dos
comportamentos, denunciando sua ocorrência aos órgãos competentes”.
Nessa direção, ao fundamentar a defesa da categoria relacionada ao
artigo retro mencionado (CRESS, 2017, p. 05) argumenta junto à Corregedoria:

É dever do/a perito assistente social saber que, ao assegurar ao/à


assistente técnico/a acesso direto aos/às usuários/as periciando/as,
estará sendo conivente com evidente cerceamento da liberdade
dos/as mesmos/as, no que se refere ao prejuízo na confiança
estabelecida junto ao/à perito/a em revelar informações que pode ou
não (nesse caso, prevalecendo a devida proteção ao sigilo
profissional), serem objeto de análise na perícia. Também ficaria
franqueado o policiamento dos comportamentos dos/as
periciando/as, atitude facilmente construída como apelo moral na
defesa contra os interesses destes.

O Conselho Federal de Psicologia, por sua vez, editou a Resolução


08/2010 que trata a respeito da atuação do psicólogo como perito e assistente
técnico no Poder Judiciário, e no Capitulo I – Realização da Perícia, nos artigos 1º e
2º diz que:

Artigo 1º: “O psicólogo perito e o psicólogo assistente técnico devem


evitar qualquer tipo de interferência durante a avaliação que possa
prejudicar o principio da autonomia teórico-técnica e ético-
profissional, e que possa constranger o periciando durante o
atendimento”.

Artigo 2º:“O psicólogo assistente técnico não deve estar presente


durante a realização dos procedimentos metodológicos que norteiam

515
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

o atendimento do psicólogo perito e vice-versa, para que não haja


interferência na dinâmica e qualidade do serviço realizado”.

Por suas próprias características, a avaliação psicológica implica na


exposição de questões subjetivas do avaliado as quais serão abordadas, via de
regra, a contragosto, considerando que não há uma demanda espontânea e sim
uma determinação judicial para que a perícia aconteça.
Esta mobilização de sentimentos pode fragilizar a parte avaliada e o
manejo do perito do juízo deverá ser no sentido de acolher seu sofrimento com
respeito, tentando compreender suas motivações, buscando preservar sua
dignidade para que se sinta um pouco mais seguro e a relação se dê de forma
menos persecutória.
No caso do assistente técnico, apesar de estar submetido ao mesmo
compromisso ético-profissional que o perito, é possível que exista um conflito de
interesses entre o posicionamento técnico e a representação da parte pela qual foi
contratado.
Por fim o CRESS-SP (2017, p. 07) em sua manifestação destaca que:

Os/as usuários/as do Tribunal de Justiça são seres sociais, seres da


única espécie capaz de criar, desenvolver e manter relações com
base em valores historicamente construídos, principalmente a
liberdade como valor central de sua sociabilidade, a qual lhe permite
tecer enredos de vida social que dizem respeito somente a si e, no
limite, a quem lhe for permitido compartilhar com base na confiança
construída particularmente e não impessoalmente, em virtude de
resultados judiciais das partes.

Neste sentido, a presença do assistente técnico no momento da


entrevista interfere na construção de uma perícia pautada numa relação de maior
confiança por parte do periciado.
Neste sentido, a garantia do direito ao Contraditório se daria por meio da
possibilidade de participação do assistente técnico no planejamento da coleta de
informações que subsidiará a perícia, pelo acesso ao laudo produzido ao final e pela
possibilidade de questionamento acerca dos procedimentos metodológicos.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Por fim, conforme o provimento CG 12/2017, “[...] havendo interesse do


assistente técnico, a ser informado nos autos, os psicólogos e assistentes sociais do
Poder Judiciário deverão agendar reunião prévia e/ou posterior às avaliações,
expondo a metodologia utilizada e oportunizando a discussão do caso”.

2 - AS VARAS DE FAMÍLIAS E SUCESSÕES COMO PALCO DE


LITÍGIOS E O FENÔMENO DA ALIENAÇÃO PARENTAL

Como já mencionado, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, os


assistentes sociais e psicólogos encontram-se inseridos nas Varas da Infância e
Juventude, onde a intervenção se dá nos contextos em que crianças e adolescentes
vivenciam situações de risco e vulnerabilidade social e consequentemente
necessitam de medidas de proteção. Esses profissionais atuam também nas Varas
da Família e Sucessões, cujas demandas dizem respeito a interdições e
principalmente, famílias em situação de conflitos, decorrentes dos processos de
divorcio ou regulamentação/modificação de guarda. Há ainda técnicos que atuam
nas Varas de Violência Doméstica, Varas Criminais, dentre outros.
Contudo, são nas Varas da Família e Sucessões que percebemos a
presença de conflitos altamente litigiosos. As partes, desgastadas pela insatisfação
da vida conjugal e seus desdobramentos, não medem esforços para responsabilizar
o “outro” por todo o caos vivenciado após a frustação do casamento interrompido. A
união, outrora construída a partir de múltiplos ideais (individuais ou conjuntos), torna-
se, após o rompimento, uma arena de disputa, permeada por sentimentos e
ressentimentos, defesas e acusações.
Neste cenário de disputa, onde o arcabouço jurídico oferece às partes
possibilidades de defesa e acusação, por meio da atuação de advogados,
assistentes técnicos e pagamentos de custas processuais, que os contextos
familiares chegam aos setores técnicos de Serviço Social e Psicologia. Após
minuciosa análise, o perito tem condições de desvelar os aspectos objetivos e
subjetivos da trama das relações sociais em suas particularidades, características e
expressões, considerando sempre o que melhor atenda aos interesses das crianças

517
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

e adolescentes (filhos) envolvidos. Sua atuação visa subsidiar, através dos estudos
psicossociais as decisões judiciais.

Não raro, durante as entrevistas com os assistentes sociais e


psicólogos do judiciário, os genitores relatam situações diferentes
daquelas apresentadas nas petições, evidenciando-se que os
advogados, ainda impregnados pela cultura da adversidade e do
litígio, intensificam as divergências entre as partes. A figura do
assistente técnico também emerge neste cenário amplificando a
disputa. (STRONG; MUNDURUCA, 2016, p. 102).

Nestes casos de alto potencial litigioso, o divórcio traz em si, além de


todos aspectos jurídicos, inúmeras consequências psicológicas, emocionais, sociais,
relacionais que, a depender da condução dos genitores, poderão comprometer o
desenvolvimento dos filhos.
Um processo de divórcio traz inúmeras alterações na vida do núcleo
familiar, materializadas, muitas vezes pela mudança na rotina de vida, por vezes de
residência, de padrão de renda, além de sofrimentos de diferentes ordens e
amplitudes que certamente repercutem e se manifestam na conduta dos filhos.
Para além desse sofrimento, esse cenário pode trazer prejuízos aos filhos
na relação com uma das partes, o que autores denominam alienação parental.

[...] devido à dificuldade dos genitores em lidar com as dores que


emergem durante a ruptura do vínculo, tais como a tristeza e o ódio,
estes sentimentos são manifestados através do embate entre o casal
parental no qual os filhos estão no epicentro da disputa e, muitas
vezes, são usados como instrumento de revide. O uso dos filhos
como aliado de um e arma contra o outro, ou seja, a “coisificação do
filho” abre as portas para a alienação parental (STRONG;
MUNDURUCA, 2016, p. 118).

O termo “alienação parental” surgiu em 1985, quando Richard Gardner,


psiquiatra forense, utilizou-o em uma de suas publicações para indicar uma situação
em que um dos genitores atua na tentativa de fazer a criança romper os laços
afetivos que mantém com o outro genitor (CEZAR-FERREIRA, 2016). Embora não
seja uma condição determinante, a maioria dos casos de alienação parental está

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ligada a situações de litigio entre os genitores, principalmente quando envolve


disputa de guarda e visita.
A partir desse entendimento e como forma de disciplinar comportamentos
no que se denomina como interesse dos filhos advindos de casamentos desfeitos, o
Estado criou a Lei nº 12.318/2010 que trata da Alienação Parental e que no seu
artigo 2º define:

Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação


psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por
um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou
adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que
repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à
manutenção de vínculos com este (BRASIL, 2010).

Há constantes discussões acerca do tema e da terminologia utilizada,


principalmente referente a dois principais conceitos: Alienação Parental e Síndrome
da Alienação Parental. Para alguns autores, a definição da primeira é a forma como
a Lei nº 12.318/2010 a apresenta, não fazendo referência ao termo “síndrome”. Já a
segunda, para alguns autores, pode ser considerada como um “estágio avançado”
da Alienação Parental, na qual a criança passa a apresentar alguns comportamentos
específicos, depreciando e se negando ao contato com o genitor alienado e seus
familiares. De acordo com Gardner (apud CEZAR-FERREIRA, 2016, p. 71), tais
comportamentos são:

1. Uma campanha para denegrir o genitor alienado;


2. Racionalizações fracas, absurdas ou fúteis para a depreciação;
3. Falta de ambivalência;
4. O fenômeno do “pensador independente”;
5. Apoio automático ao genitor alienador no conflito parental;
6. Ausência de culpa sobre com relação ao genitor alienado;
7. A presença de encenações ‘encomendadas’;
8. Propagação da animosidade aos amigos e/ou à família extensa do
genitor alienado.

No entanto, essa definição de síndrome vem sendo amplamente


questionada, uma vez que remete à condição de doença, que por sua vez apresenta
sintomas. No presente artigo não vamos nos estender nesta discussão por não ser o

519
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

objeto de estudo, esclarecendo que iremos adotar apenas o termo Alienação


Parental.
Se por um lado há discordâncias entre o uso de terminologias, por outro,
há um consenso entre os profissionais que trabalham com o tema de que a situação
descrita na Lei se configura grave, uma vez que fere os direitos relativos à
construção da personalidade do ser humano. Isso porque o genitor alienador
impede, de modo intencional, que a identidade do filho se forme plenamente.
Sobre o tema, Maciel (2014) explica que a pessoa humana é originária de
outro ser humano e, assim sendo, sua identidade pessoal é definida em função da
sua memória familiar. A mesma autora escreve que “Alijar a parentalidade de uma
pessoa significa cunhar uma orfandade psicológica” (Maciel, 2014, p. 41).
Valente (2014) cita o cientista social polonês Zygmunt Bauman para falar
das mudanças que a concepção de família sofreu ao longo dos anos e como essas
mudanças afetam as questões de parentalidade. Na mesma linha, Singly (apud
JACQUET, 2014, p. 89) pontua:

A alienação parental é fruto das profundas transformações sociais e


normativas que afetaram a família no decorrer das últimas décadas
[...]. A alienação parental evidencia uma das tensões as quais são
confrontadas as famílias nas sociedades ocidentais contemporâneas:
por um lado, a privatização do vínculo conjugal, por outro, a
intervenção crescente do Estado na definição e gestão do vínculo
parental.

De acordo com a autora, a privatização do vínculo conjugal é produto do


fato do casamento ter deixado de ser a instituição que fundamenta a família e
passado a ser um contrato que depende exclusivamente da vontade dos envolvidos,
algo passível de ser desfeito (SINGLY apud JACQUET, 2014).
É apenas quando há a presença de crianças e adolescentes que o
casamento deixa de ser tratado pelo Estado como mero contrato de natureza
privada e sua intervenção se explica justamente pela necessidade de se definir
responsabilidades parentais.

520
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Jacquet (2014), em seu artigo publicado no Livro “Morte Inventada”,


levanta uma questão interessante quando pontua que a lei da alienação parental
está baseada num pressuposto bastante questionável: de que o genitor é um pai
que assume seu papel parental. Sua pesquisa mostrou que a forma como o genitor
irá exercer sua parentalidade para com o filho(a) normalmente tem a ver com o
relacionamento que este estabelece com a genitora da criança. Assim, quanto
menos convive com a companheira ou se estabelece um relacionamento conflitivo
para com essa e com os filhos, a tendência é que isso se repita após a separação.
Embora a alienação parental seja, via de regra, uma prática perpetrada
em contextos de disputas de guarda, pressupondo o rompimento de uma relação
conjugal, é preciso salientar que suas consequências não raramente podem ter
início ainda durante a constância de um casamento.
Nesse sentido, Maldonado (2009) defende que os problemas que afetam
os filhos nem sempre são resultantes da separação em si, mas sim de outros
aspectos de responsabilidade tão somente do casal e que acabam sendo
manifestados por meio dessas crianças e adolescentes, que “sofrem com as sobras
dos conflitos”, ocupando, segundo a autora, uma posição no “meio da linha de fogo”.
Em geral, o genitor guardião e/ou seus familiares são apontados como
aqueles que praticam a alienação parental, enquanto se atribui o papel de vítima ao
outro genitor, comumente reservados à mãe e ao pai, sabendo-se que neste cenário
poderá ocorrer também a inversão desses lugares. Contudo, quanto a este aspecto,
diferentes possibilidades de reflexão podem ser descritas.
Para Valente (2014) é preciso desmistificar a dualidade implicada na
alienação parental, determinada por um alienador e um alienado, atentando-se para
o fato de que a vivência de processos de alienação parental pelos sujeitos, sejam
eles pais, mães ou filhos, não está desvencilhada das transformações sofridas pela
família ao longo do tempo, fomentando, inclusive uma interlocução com a questão
de gênero, uma vez que culturalmente a concepção de cuidado é atribuída
majoritariamente à figura feminina.
Por outro lado, Montaño (2016) embora aponte que não exista “um sujeito
completamente responsável e outro completamente inocente” defende que a
definição dos atores no cenário da alienação parental é fundamental, com vistas à
responsabilização daquele que considera o autor de tal prática. Acrescenta ainda a

521
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

discordância quanto à correlação com a questão de gênero, conferindo às guardas


unilaterais um dos principais motivos para a persistência da alienação parental, à
medida que o “poder” é entregue a somente um genitor.

3 - LITÍGIOS NAS VARAS DE FAMÍLIA: A IMPORTÂNCIA DOS

SABERES PROFISSIONAIS À SERVIÇO DA GARANTIA DE


DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Destaca-se que no presente artigo não há a pretensão de esgotar as


diferentes concepções e tampouco adotar uma única forma de compreensão acerca
dos processos litigiosos nas Varas de Família, mas propor a reflexão das
possibilidades que são colocadas aos assistentes sociais e psicólogos judiciários,
peritos e assistentes técnicos, com atuação nos processos judiciais que apresentam
esta demanda, determinando a condução de suas avaliações.
Independentemente das concepções que envolvem a alienação parental,
faz-se necessário um olhar atento para o melhor interesse da criança e adolescente,
que por vezes, em um cenário permeado por conflitos e rupturas, acaba sendo
personagem secundário, ou sequer é considerado pelos sujeitos envolvidos.

A luta pela posse do filho, disputado como se fizesse parte da divisão


dos bens, quase nunca visa ao benefício da criança; serve em geral,
para determinar quem vencerá a batalha.[...] Enquanto isso, a
criança fica sem saber onde é o seu lugar. (MALDONADO, 2009, p.
184).

Desse modo, entende-se que um dos principais desafios colocados aos


peritos assistentes sociais e psicólogos das Varas de Família, extensivo aos
assistentes técnicos, é o compromisso com a garantia do direito da criança e
adolescente a uma convivência familiar saudável, buscando atenuar os prejuízos de
um contexto familiar litigioso.
Estudos recentes na área da Psicologia sobre a situação de crianças e
jovens inseridos em famílias onde ocorreram divórcios apontam sobre a diversidade
de reações que elas podem apresentar. Entre elas, por exemplo, os casos de
guarda única podem:
522
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

contribuir com o estreitamento de vínculos entre os filhos e o


guardião, conduzindo ao afastamento daquele pai que não
permaneceu com a guarda. Como comprovam levantamentos
nacionais (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2008), as
mães obtêm a guarda dos filhos na maior parte dos casos de divórcio
e de disputas de guarda. Diante de desavenças entre os ex-parceiros
e da atribuição de guarda unilateral, os filhos podem ter a
convivência com o genitor não guardião restrita a visitas esparsas,
que acarretam, por vezes, o esgarçamento parcial ou total da relação
desse pai com a criança (WALLERSTEIN, LEWIS, & BLAKESLEE
apud SOUSA & BRITO, 2011).

Dessa forma é necessário considerar nesse ínterim as expectativas


sociais colocadas sobre os papéis paternos e principalmente maternos, a qualidade
dos vínculos e das relações e ainda a relevância da assiduidade dos contatos entre
o filho e o genitor que não está com sua guarda física.

Brito (2008), em investigação que desenvolveu com filhos de pais


separados, relata que, ao serem questionados a respeito de como
era o contato com o genitor que não permaneceu com a guarda, foi
expressiva a parcela dos entrevistados que considerou o contato
insuficiente, com prejuízos para o relacionamento. Nas entrevistas
realizadas, a autora observou que muitos filhos demonstravam não
se sentir à vontade para abordar uma série de questões – como
escolha profissional, futebol e namoros – com o pai que não
permaneceu com a guarda. Os jovens ressaltaram que não havia
naturalidade no relacionamento com este, não existindo, por
exemplo, o hábito de fazer ligações telefônicas para conversar ou
comentar a respeito de qualquer assunto na medida em que, com a
guarda unilateral, sentiam que o genitor não guardião deixava de
acompanhar seu cotidiano. Não havia clareza, por parte dos filhos
entrevistados, de que, embora separados, tanto o pai quanto a mãe
continuavam responsáveis por sua educação. (SOUSA & BRITO,
2011).

A lei de alienação parental, Lei 12.318 de agosto de 2010, foi criada com
o objetivo de impedir que, em casos de divórcio, um dos genitores dificulte o contato
e o convívio da criança com o outro, como por exemplo, mudar de endereço sem
justificativa ou apresentar falsa denúncia.
Na maioria das vezes as falsas denúncias são relativas a abuso sexual,
havendo grande dificuldade para se obter provas com relação a isso pois, na maioria
das vezes, o abuso ocorre em locais privados e não deixam lesões aparentes. Além

523
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

disso, a demora para realizar o exame de corpo delito prejudica as evidências, que
tendem a desaparecer e o depoimento das crianças, que não conseguem repetir
uma mesma história detalhadamente por várias vezes, acabando por serem
desqualificados pelos defensores dos réus.
Desta forma, tais situações podem ocasionar uma falsa
impressão de impunidade do alienador, uma vez que podem ocorrer acusações
falsas em que existam dificuldades para ser provadas como tal.
No entanto, um abuso que realmente tenha ocorrido, também encontra a
mesma dificuldade em ser comprovado e pode ter gravíssimas consequências,
como a inversão da guarda para o abusador, evidenciando, assim, que diante da
incerteza, a proteção da criança e do adolescente sempre deve ser priorizada.

4 - SABERES INTERDISCIPLINARES: COM A PALAVRA O DIREITO

A fim de tratar da ética na relação entre peritos e assistentes técnicos na


atuação em processos judiciais, especificamente abordando o caso das categorias
profissionais formadas por assistentes sociais e psicólogos, compreende-se, a
princípio, a necessidade de contextualizar a discussão em âmbito ampliado.
Para tanto, julga-se necessário realizar algumas considerações acerca
das condições de legitimação do Poder Judiciário enquanto parcela do Poder de
Estado junto à sociedade atual.
Neste cenário, ainda que ambas as profissões tenham regulamentações
específicas de seus conselhos de classe, e, ainda que a Corregedoria Geral do
Tribunal de Justiça através do Provimento 12/2017 tenha proporcionado um
respaldo jurídico quanto à preservação dos princípios éticos e técnicos nas perícias;
para melhor elucidação o grupo de estudos buscou junto a um dos representantes
da magistratura elementos que trouxessem um maior entendimento sobre a
incidência da normativa jurídica na a atuação dos profissionais nos tribunais.
Para esta abordagem foi convidado o Dr. Silas Silva Santos, exmo. Juiz de Direito
da 2ª Vara Civil de Presidente Prudente.

524
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

4.1 - EXERCÍCIO DOS DIREITOS CIVIS E LEGITIMAÇÃO DO PODER


JUDICIÁRIO NA ORDEM DEMOCRÁTICA CAPITALISTA

Segundo o ordenamento jurídico instituído pela Constituição Federal


brasileira (BRASIL, 1988/2010), o Poder de Estado apresenta uma estrutura tripartite
constituída por três esferas: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Dessas três
esferas de poder, apenas uma delas não tem seus operadores constituídos por meio
de eleições diretas: o Poder Judiciário (SANTOS, 2017).
Concebendo-se o Estado brasileiro como Estado Democrático de Direito
(BRASIL, 1988/2010), aquele que efetiva a norma de que todo poder emana do povo
e é exercido pelo povo e para o povo por meio de representantes por ele constituído,
o fato de haver um desequilíbrio favorável aos outros dois poderes instituídos
(Executivo e Legislativo) no que diz respeito a escolha popular de seus operadores
tende neste contexto a gerar questionamentos acerca da legitimidade das sentenças
proferidas pelos Magistrados do ponto de vista do respeito aos valores
democráticos.
Esse suposto vício de origem na constituição dos operadores do Poder
Judiciário, em especial dos juízes e seus auxiliares, tende a gerar questionamentos
das partes envolvidas em litígios submetidos à apreciação dos Magistrados no
sentido de garantir o máximo de transparência dos procedimentos adotados ao
longo do processo para a apuração de fatos arrolados como provas que devem
necessariamente embasar a sentença proferida.
Essa exigência de garantia de transparência na realização desses
procedimentos teria como suposta função a radicalização democrática do exercício
do direito civil ao contraditório pelas partes em litígio ao longo do processo,
habilitando-as a questionarem através de seus representantes legais constituídos o
possível arrolamento de provas produzidas de forma inadequada nas quais se
basearia a sentença judicial.

aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados


em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ela inerentes; Art. 5º, inciso LV – Constituição
Federal.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Abordando a questão dos direitos do homem, Bobbio (1992, p. 04), para


quem mesmo os direitos naturais dependem de um reconhecimento social produzido
historicamente e fixado em leis que devem reger o funcionamento do Poder do
Estado moderno, afirma que:

No plano histórico, [...] a afirmação dos direitos do homem deriva de


uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do
Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na
relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é
encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos
não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano,
em correspondência com a visão individualista da sociedade,
segundo a qual, para compreender a sociedade, é preciso partir de
baixo, ou seja dos indivíduos que a compõem, em oposição à
concepção orgânica tradicional, segundo a qual a sociedade como
um todo vem antes dos indivíduos. A inversão de perspectiva, que a
partir de então se torna irreversível, [...] vai afirmando o direito de
resistência à opressão, o qual pressupõe um direito ainda mais
substancial e originário, o direito do indivíduo a não ser oprimido, ou
seja, a gozar de algumas liberdades fundamentais: fundamentais
porque naturais, e naturais porque cabem ao homem enquanto tal e
não dependem do beneplácito do soberano [...].

Parte-se aqui da premissa de que é sempre possível distinguir claramente


entre quem oprime e exerce o poder e quem resiste e está submetido a ele.
Há consenso do ponto de vista dos Direitos Fundamentais de que não
existe prova em juízo sem garantia do direito ao contraditório que sustente decisão
coativa. A dialética no processo prevê a participação das partes envolvidas como
forma de garantir legitimidade ao exercício do poder. Existiriam níveis de
contraditório: a) na formação do resultado; b) posterior ao resultado (devolutiva) (S,
2017).
A prova pericial, tal como a testemunhal61, caracterizar-se-ia como
modalidade de prova típica quando produzida garantindo o direito ao contraditório
nos diversos níveis de sua constituição, assumindo valor ímpar como elemento de
sustentação das sentenças judiciais. Diferencia-se de outros tipos de provas, tais
como as atípicas (obtidas por outros meios que não os previstos na produção de

61
Prova testemunhal só é produzida na presença do juiz e das partes.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

provas típicas) e irrepetíveis (anteriores ao processo) que são menos valorizadas


(SANTOS, 2017).
A forma mais evidente de garantia do direito ao contraditório é o acesso
das partes a todas as etapas da elaboração das provas (proposição ou
requerimento, produção e valoração), evitando, por exemplo, a insistência em
realizar a escuta da criança sozinha contra a vontade manifesta pelos responsáveis.
Dessa forma, o argumento de defesa do direito à presença do assistente técnico
devidamente habilitado durante a realização da coleta de informações sustentaria
que se trata de um ônus processual necessário à atribuição de legitimidade do
julgamento (SANTOS, 2017).
Caberia, então, ao perito presidir os atos da perícia, realizar informação
de todas as diligências e apontar na escrita de seu relatório qualquer interferência
prejudicial, incluindo as possíveis ações do assistente técnico. Sua postura poderia
ser utilizada pelo Magistrado como prova atípica que sustenta uma determinada
sentença (SANTOS, 2017).
Com base nesses elementos, o Novo Código de Processo Civil, no
capítulo em que trata dos Auxiliares da Justiça, prevê, no artigo 466, a garantia do
direito das partes em controlar a formação da prova (SANTOS, 2017).
Entretanto, alguns problemas são apontados por assistentes sociais e
psicólogos na presença/participação de assistentes técnicos durante a realização de
procedimentos de coleta de informações para elaboração de laudos periciais. Esses
podem ser classificados em três categorias (ético, jurídico e técnico) (SANTOS,
2017).
Quanto a dimensão ética, quando tratar-se de perito e assistente técnico
da mesma profissão, regida pelo mesmo ordenamento jurídico, não há problema a
priori que impeça a presença/participação. Condutas irregulares com relação a
sigilo, por exemplo, devem ser denunciadas e apuradas pelos órgãos competentes
(SANTOS, 2017).
Quanto ao aspecto jurídico, as intervenções inadequadas que venham a
obstruir ou impedir a realização da perícia devem ser coibidas com o uso dos
recursos previstos no próprio ordenamento jurídico, uma vez que o perito do juízo é
quem preside a perícia e todos os atos a ela relacionados. (SANTOS, 2017).

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Já no que diz respeito ao aspecto técnico, identifica-se o problema da


perda de qualidade da coleta de informações devido a interferências passíveis de
serem evitadas na ausência do assistente técnico. Acirramento do litígio do ponto de
vista do Serviço Social e a análise da transferência do ponto de vista da técnica
psicanalítica são exemplos de como pode haver prejuízos qualitativos a esse
trabalho (SANTOS, 2017).
Colocar-se-ia do ponto de vista da argumentação que defende a presença
do assistente técnico durante a realização das perícias a questão: existe outra
técnica ou metodologia que produza resultados semelhantes? Saliente-se que diante
da dificuldade ou impossibilidade de mudança, todos os prejuízos nos resultados
das perícias deverão ser justificados fundamentadamente nos laudos e pareceres e
reportados ao juiz do processo. (SANTOS, 2017).

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4.2 - ANALOGIA ENTRE GARANTIA DO EXERCÍCIO DOS DIREITOS


CIVIS NO PODER JUDICIÁRIO E DO CONTROLE SOCIAL DAS
POLÍTICAS SOCIAIS

O tema da legitimidade do exercício do poder judiciário encontra


parâmetro nas ações de controle social sob as atividades do poder executivo e
legislativo, por exemplo, em relação a efetivação de políticas sociais públicas.
Ao abordar o tema do controle social das intervenções promovidas pelo
Estado Capitalista em relação as demandas da Sociedade Civil, Correia (2000, p.
11) afirma que o “[...] campo das políticas sociais é contraditório, pois, através delas,
o Estado controla a sociedade, ao mesmo tempo em que incorpora suas demandas”.
Segundo a mesma autora, é por meio da constatação dessa contradição
que se pretende reverter esse controle a favor da sociedade, “[...] radicalizando os
espaços burgueses de democracia e ampliando a esfera pública” (CORREIA, 2000,
p. 11).
Emerge daí um “[...] novo conceito de controle social em consonância
com a atuação da sociedade civil organizada na gestão das políticas públicas no
sentido de controla-las para que atendam as demandas e os interesses da
coletividade [...]”, portanto, conceito não mais restrito ao controle exercido pelo
Estado sobre a Sociedade Civil comum a noções de sociólogos, economistas e
cientistas políticos (CORREIA, 2000, p. 11).
Os conselhos nacionais, estaduais e municipais estabelecidos pelas
diversas políticas públicas de seguridade social no Brasil, posteriores à promulgação
da Constituição Federal (BRASIL, 1988/2010), são importantes instrumentos de
efetiva gestão do Fundo Público que subsidia a ação das diversas esferas de
governo por meio do serviço que prestam à população.
As conferências nacionais, estaduais e municipais representam
momentos importantes de planejamento e avaliação da gestão de recursos do
Fundo Público e das ações por ele subsidiadas ao longo de um período de tempo
específico, havendo, para tanto, a necessidade de uma intensa mobilização à
participação de beneficiários das políticas públicas, representantes de trabalhadores
e da sociedade civil, além dos poderes executivo, legislativo e judiciário.

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É importante dizer também que essas instâncias de participação são


produto de um longo processo histórico de conquistas mediante a luta de sucessivas
gerações de uma multiplicidade de integrantes da sociedade civil pela efetivação dos
direitos junto a esfera do Estado, como aponta a análise de Costa (2015).
Cabe registrar também que:

[...] A constituição de um sujeito ético difere de uma concepção


moderna de um sujeito de direito, quer na sua modalidade de um
direito natural da pessoa humana, quer na sua forma positiva
formalizada nas leis.
Trata-se de um fenômeno de natureza histórica e não de um valor
moral de cunho universal [...] (TÓTORA, 2016, p. 28).

4.3 - ESPECIFICIDADE DA PERÍCIA JUDICIAL ENVOLVENDO


ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS

Os laudos e relatórios produzidos a partir da realização de perícias


judiciais seriam um dos diversos elementos que um Magistrado pode considerar ou
não como parte do conjunto probatório que sustenta sua sentença, portanto, a
necessidade de garantia de transparência ao longo do processo de sua elaboração
seria um dos requisitos incontestáveis para a aceitação de seu produto como parte
do referido conjunto.
Por conta da suposta dependência entre a garantia de transparência na
realização das perícias judiciais e o exercício amplo e irrestrito do direito ao
contraditório, justificar-se-ia a previsão legal de que todo o processo (o planejamento
e a execução da coleta de informações e a escrita do laudo) pudesse ser
acompanhado pelas partes através de seus representantes.
No entanto, os tipos de perícia judicial não são equivalentes. Dentre as
diferenças mais marcantes no que diz respeito ao objeto das perícias aparecem as
características inerentes ao que é apreciado e as metodologias utilizadas para fazê-
lo. Especificamente no caso daquelas que envolvem o estudo da dimensão
psicossocial das partes em litígio, há que se considerar a existência de
idiossincrasias ausentes nas que visam realizar a estimativa de valores imobiliários,
por exemplo.

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Por conta dessas idiossincrasias, a relação entre perito e assistente


técnico passa também a assumir características diferenciadas daquela estabelecida
entre profissionais formados em outras áreas de conhecimentos. São essas
diferenças que conduzem à necessidade premente da discussão da ética na relação
entre Assistentes Sociais e Psicólogos nomeados para o exercício das referidas
funções no contexto dos processos judiciais.
Não estando restrita ao trabalho da perícia, a atuação de Assistentes
Sociais e Psicólogos no contexto do Tribunal de Justiça de São Paulo assume
historicamente o compromisso ético e social de garantia de direitos de crianças e
adolescentes envolvidos em processos judiciais.
Com suas atribuições vinculadas especificamente à Vara da Infância e da
Juventude no contexto do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o trabalho
pericial desses técnicos tem sido solicitado também em processos de disputa de
guarda envolvendo crianças e adolescentes nas Varas de Família e Sucessões
supostamente sob o mesmo pretexto de promover a garantia de seus direitos em
meio a processos judiciais concomitante a oferta de subsídios à sentença do
Magistrado.
Neste contexto, marcado via de regra por intenso conflito entre as partes
legalmente constituídas, nota-se uma tendência ao estabelecimento de uma
contraposição entre o trabalho em função da garantia dos direitos da criança e do
adolescente em meio a disputa de guarda e a produção de evidências que possam
ser utilizadas para sustentar a decisão judicial.
Um dos indicadores dessa tendência aponta a sugestão mais ou menos
implícita por parte de alguns Magistrados de que nos relatórios produzidos pelos
peritos na Vara de Família e Sucessões não haja encaminhamentos para a
realização de qualquer tipo de acompanhamento posterior a sentença, constando
estritamente a conclusão acerca da condição de regime de concessão de guarda.
Estudos apontam, contudo, que situações de litígio e mudança de regime
de guarda, que caracterizam o processo e o desfecho das situações judicializadas
no âmbito familiar envolvendo crianças e adolescentes, podem afetar negativamente
as condições de desenvolvimento socioemocional destes.
Torna-se frequente a experiência entre os técnicos judiciários que
desempenham o trabalho pericial junto a essas situações de que o interesse do

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Magistrado se concentra na produção de provas que sustentem a sua decisão, em


prejuízo por vezes a especificidade da situação humana especial das crianças e
adolescentes envolvidos.
A prioridade à produção de provas possibilita por sua vez que a discussão
recaia sobre os processos de sua elaboração. No caso de assistentes sociais e
psicólogos, grande parte da coleta de informações se dá por meio de contato direto
com os periciandos em situações previstas e protegidas pelo sigilo profissional
dessas categorias, configuradas principalmente por ocasião da realização de
entrevistas e visitas domiciliares.
A questão de garantir acesso às partes a realização desses
procedimentos constitui um desafio na medida em que seres humanos são
particularmente sensíveis ao contato com estímulos físicos e sociais, a ponto de ser
possível afirmar que nenhum elemento na configuração do ambiente em que se
realizam os contatos está a salvo de exercer alguma influência decisiva ao trabalho
pericial. As cores das paredes são capazes de evocar lembranças ao periciando, à
roupa usada pelo perito ele atribui um significado, estar dentro de um
estabelecimento judicial assume um valor positivo ou negativo, o que transforma o
trabalho de tornar neutro o ambiente em que se coleta as informações impossível.
Especificamente em relação ao contato social em situações periciais, a
experiência demonstra a possibilidade do desenvolvimento de fortes inibições a
espontaneidade das ações do periciando concomitante a assunção de
comportamentos padronizados que se supõe estarem adequados ao esperado pelo
perito e, em última instância, pelo Magistrado.
O conceito formal de cidadania política baseado na suposta existência de
harmonia e na emergência sucedânea, respectivamente, dos direitos civis, políticos
e sociais, encontra dificuldades compreensivas ao deparar-se com a organização
social (re)produzida pela estrutura econômica capitalista. Isso porque, ao mesmo
tempo que essa estrutura demanda o reconhecimento de direitos fundamentais da
individualidade (liberdade de circulação, de expressão e de concorrência e
propriedade privada da força de trabalho, dos meios e dos produtos) para todos os
que compõem as chamadas classes fundamentais – proprietários dos meios de
produção e trabalhadores - , concretiza-se apenas em sua forma mais elementar
(liberdades civis) (SAES, 2001).

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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

[...] Esses direitos elementares não são ilusórios; eles


representam prerrogativas reais, conquistadas a duras penas pelas
classes trabalhadoras mediante lutas contra as classes dominantes.
Eles adquirem porém, na sua formulação estatal, uma aparência
universalista e igualitária, que é ilusória, pois sob a forma da troca de
eqüivalentes (salário versus trabalho) assumida pela relação entre
capitalista e trabalho assalariado jaz a desigualdade fundamental
entre os despossuídos (coagidos pela necessidade material a prestar
sobretrabalho) e os proprietários dos meios de produção (que
contam com esses recursos materiais para subjugar as vontades dos
trabalhadores). Desse modo, a concretização da forma-sujeito de
direito mediante a criação de direitos civis implica, de um lado, a
corporificação de liberdades que são reais, ainda que sejam
desigualmente distribuídas entre as classes sociais (liberdades ou
prerrogativas essas que correspondem ao aspecto concreto da
cidadania civil). De outro lado, ela produz um efeito ideológico de
cidadania; ou seja, o sentimento de que essa concessão de
prerrogativas reais igualiza todos os indivíduos, o que irá alimentar
no plano social o próprio ideal da igualdade (SAES, 2001, p. 381-
382).

A partir desta análise em que o ordenamento jurídico estabelece a


prerrogativa de contratação de um assistente técnico às partes, observa-se que o
mesmo preceito revela-se excludente, pois não é acessível a todos devido aos
custos elevados. Torna-se assim, quando as partes apresentam condições
econômicas díspares, mais uma das expressões da questão social, pois ao mesmo
tempo que indica um direito disponível na lei, seu exercício fica impossibilitado pela
estrutura capitalista vigente.

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5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trouxemos a definição de alienação parental, fizemos um passeio pelo


que pensam nossas profissões, buscamos conjugar a tão difícil interdisciplinaridade
entre as ciências do serviço social, psicologia e direito e seus posicionamentos tão
divergentes na busca da verdade.
A posição do Direito é clara: produção de provas, com princípios claros e
objetivos.
A atuação técnica, no entanto, traz outras nuances e entendimentos do
que se define como verdade, considerando suas especificidades, seu objeto que é o
ser humano em relação, associada à mutabilidade das relações humanas.
Temos a clareza que nos é demandado produzir elementos de prova,
ainda que permeados pela subjetividade, mas que possam “dizer o direito”, mesmo
que deixemos registrada a temporalidade da conclusão dos estudos psicossociais
que subsidiarão as decisões judiciais.
Quando trazemos essa discussão para o campo do direito de família, não
diferente das outras varas, o que se pretende das informações técnicas é a
produção de estudos psicossociais que subsidiem uma decisão judicial.
Para o Direito há uma clareza e objetividade nos procedimentos com a
finalidade de produção de provas, o respeito aos ritos processuais, entre eles o
direito ao contraditório, da ampla defesa, sua legitimidade e validade diante das
normativas legais. Conjugar tamanha objetividade com a subjetividade técnica exige
maestria. E de ambas as partes: operadores do direito e técnicos do judiciário.
É pertinente mencionar, ainda que óbvio, que a atuação dos profissionais
técnicos do TJ é acionada quando existem relações de significativo litigio. Alguns
autores e muitos juízes se utilizam da nomenclatura tão em moda nesse momento
histórico para definir os casos altamente litigiosos: a alienação parental.
A alienação parental, como a trouxemos no presente artigo, não atende
aos contornos de uma síndrome, relacionada facilmente a processos de doença,
mas nos utilizamos, ainda que com reservas, do termo, relacionando-o a situações
extremas de atuação do genitor guardião da criança/adolescente que reduzem,
impedem ou impossibilitam o convívio com o genitor que não detém a guarda.

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Nesse contexto de litigio, um importante elemento que entendemos ser


necessário é ter um olhar mais atento para a construção das relações conjugais
ainda na constância do casamento e os rebatimentos desta na ocorrência de
divórcios com alto potencial nocivo aos filhos advindos da relação conjugal desfeita.
Esse olhar nos possibilita desvelar significados e construções de modelos familiares
que repercutem na condução da separação e no cuidado com os filhos.
Nessa tessitura complexa das relações humanas, balizadas pela
interferência do judiciário na resolução de conflitos não dirimidos no âmbito privado,
temos ainda as novas prerrogativas do assistente técnico, trazidas pelo novo CPC, e
que vem sendo figura frequente nos conflitos nas Varas de Família.
Embora o CPC defina a atuação do assistente técnico como especialista
contratado pelas partes, certamente não foi considerada, pelo mundo jurídico, sua
interferência nos processos cujo material é o humano, sua subjetividade, suas
vicissitudes e fragilidades.
Nesse entendimento que se trata de relações que precisam ser
protegidas, seja referente à atuação do profissional, seja dos usuários dos serviços
deste, temos a ação dos conselhos de classe profissionais, que balizam a nós,
assistentes sociais e psicólogos, as questões postas por seus ordenamentos, as
quais são de cunho legal e indicativas do agir profissional, e efetivadas através das
representações das categorias: CFESS/CRESS e CFP/CRP, dentre outros atores
que agregam na defesa dos profissionais.
Conjugar todo esse cenário, com essa multiplicidade de atores e
atuações, demanda dos profissionais técnicos do poder judiciário, assistentes
sociais e psicólogos, o entendimento concreto da instituição em que atuam e dos
poderes e saberes nela envolvidos. Apreender, do ponto de vista técnico, os
elementos necessários à produção de manifestações coerentes, fundamentadas e
que busquem, em primeira e última análise, a proteção das crianças e adolescentes,
partes sempre mais frágeis nos litígios de família.
A presença do assistente técnico nos processos de alto litigio pode e deve
ser mais um elemento para a defesa intransigente dos direitos dos mais frágeis
numa relação processual nas varas de família: os filhos.
Nesse aspecto não deve haver divergências entre os atores e sim uma
composição de entendimentos, seja em relação aos peritos judiciais da psicologia e

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do serviço social, aos assistentes técnicos contratados em ambas as profissões e


operadores do direito.

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Estudos – Serviço Social e Psicologia Judiciários. São Paulo, 2016 (Caderno n. 13)
(p. 97-147). Disponível em:
http://www.tjsp.jus.br/RHF/PortalDoServidor/materia.aspx?id=6119. Acesso em:
07/12/2017.

TÓTORA, S. Velhice: uma estética da existência. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2015.

VALENTE, M.L. Alienação parental: sintoma da modernidade?. In: SILVA, A.M.R. A


morte inventada: alienação parental em ensaios e vozes. Org.: Alan Minas Ribeiro
da Silva e Daniela Vitorino Borba. São Paulo: Saraiva, 2014, p.55-67.

539
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ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE:
PRINCIPAIS CONCEITOS, PROBLEMÁTICAS E
PERSPECTIVAS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR – RIBEIRÃO PRETO


“FAMÍLIA”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017

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COORDENAÇÃO
Camila Ferreira Messias Lelis – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Pitangueiras
Vitor Alex Salerno – Assistente Social Judiciário – Comarca de Pirangi

AUTORAS
Angelica Cristina de Oliveira Micheletti de Andrade – Assistente Social Judiciário
Comarca de Itápolis
Carla Andreza Kelade Mezzina – Assistente Social Judiciário – Comarca de Porto
Ferreira
Cristiane Ferreira Carvalho – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Eliana Binhardi Zanineli da Rocha – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Sertãozinho
Estela Cabral Sargento – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Fernanda Aguiar Pizeta – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Fernanda Neisa Mariano – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Fernanda Renata Paziani Pereira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão
Preto
Gilza Lepri Inacio Rodrigues – Assistente Social Judiciário – Comarca de Borborema
Heloisa Chaves Nascimento de Oliveira – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Ribeirão Preto
Ildebrando Moraes de Souza – Psicólogo Judiciário – Comarca de Cravinhos
Janaina Correa – Psicóloga Judiciário – Comarca de Ribeirão Preto
Juliana Bezzon da Silva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Maria Luisa da Costa Fogari – Assistente Social Judiciário – Comarca de Santa Rita
do Passa Quatro
Maria Stela Setti Moreira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tambaú (in
memorian)
Marli de Seixas Ferro – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho
Priscila Mara de Araujo Gualberto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Porto
Ferreira
Tatiane Patricia Cintra – Assistente Social Judiciário – Comarca de Sertãozinho

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DEDICATÓRIA

“Não sei se a vida é curta ou longa


demais para nós,
Mas sei que nada do que vivemos tem
sentido, se não tocamos o coração das
pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que
acolhe, braço que envolve, palavra que
conforta, silêncio que respeita, alegria que
contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia,
desejo que sacia, amor que promove.
E isso não é coisa do outro mundo, é
o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela não seja nem
curta, nem longa demais, mas que seja intensa,
verdadeira, pura... enquanto durar.”
(“Tocar o coração das pessoas”, Cora
Coralina)

Maria Stela Setti Moreira, Assistente


Social Judiciário integrante deste Grupo de
Estudos, foi a personificação deste poema ao
tocar o coração dos que dela se aproximavam,
com sua presença serena e acolhedora, que
expressava gentileza e cuidado com o outro em
qualquer circunstância, dando mais sentido às
vidas. A ela nosso eterno carinho e gratidão e a
certeza que continuará dando mais sentido às
nossas vidas com a doce recordação de sua
presença.

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INTRODUÇÃO

Este Grupo realizou o estudo dos conceitos de conjugalidade,


parentalidade e coparentalidade de forma a refletir e contribuir com a atuação
profissional de assistentes sociais e psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo em ações que envolvem situações de litígio, multiparentalidade e
paternidade socioafetiva, famílias negligentes e adoção.

1 - CONJUGALIDADE, PARENTALIDADE E COPARENTALIDADE

A conjugalidade e a parentalidade podem se configurar enquanto


aspectos da complexidade humana, competindo aos profissionais que atuam no
judiciário recorrer a várias ciências e conhecimentos para torná-la mais
compreensível e integrada. Nesse sentido, Romanelli (2017) propõe que os
conhecimentos da Antropologia possam contribuir para a ampliação do alcance
sobre as dinâmicas familiares, através da “observação incógnita”, não invasiva e
valorativa, numa perspectiva metodológica de observar situações das pessoas, da
vida, com olhar da profissão, crítico e distanciado, agregada ao acúmulo dos
conhecimentos técnicos e científicos dos assistentes sociais e psicólogos judiciários
em suas vivências profissionais.
Romanelli (2017) parte da premissa de que os conflitos fazem parte da
existência humana e que são perpassados por emoções e subjetividade e, com isso,
compreende que o estudo psicológico e social representa a possibilidade de se
alcançar uma análise menos estereotipada das situações que se apresentam no
sistema de justiça. Para discorrer sobre conjugalidade, delimita os aspectos relativos
primordialmente aos relacionamentos heterossexuais nas sociedades ocidentais
contemporâneas. Ressalta que a conjugalidade passou por mudanças que refletiram
em novas demandas do Direito (LAGO; BANDEIRA, 2009), como a guarda
compartilhada, adoção, união estável, divórcio, sendo que este permitiu a separação
e o (re)casamento, colocando em foco a possibilidade de finitude e os rearranjos nas
relações conjugais.

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A ideia da indissolubilidade da família e o reflexo na permanência da


conjugalidade independente da qualidade do relacionamento do casal perduraram
até meados da década de 1960, quando, nas civilizações ocidentais, a escolha do
parceiro e de permanência ou não da relação conjugal passaram a ser uma questão
do indivíduo, tornando a conjugalidade algo possivelmente efêmero.
Tais mudanças refletiram também nas concepções morais e religiosas
sobre os indivíduos separados, passando da condição de marginalidade para
sujeitos amparados pelas novas leis. A partir dessas mudanças históricas, a
qualidade das relações amorosas e conjugais pode ser compreendida sobremaneira
pelas marcas do individualismo e do interesse pessoal, apesar de ainda ser uma
escolha pautada em determinadas regras sociais ou familiares, dentro de um círculo
de convivência, em que pesam especialmente a escolaridade, o nível
socioeconômico, a religião e a raça (FÉRES-CARNEIRO, 1998).
Já a parentalidade pode ser identificada como uma relação que não é
efêmera, que pode ser precedida pela conjugalidade, mas que não sofre a mesma
interferência relativa às transformações sociais. A relação entre pai e filho é
duradoura, sendo que os vínculos não podem ser rompidos com o fim da
conjugalidade. Dessa forma, destaca-se que as grandes mudanças pelas quais tem
passado a conjugalidade, tais como as novas configurações de família, acabam por
refletir nas questões afetas à parentalidade (GRZYBOWSKI; WAGNER, 2010).
Nas famílias constituídas por pais e filhos, a conjugalidade não exige a
parentalidade, porém a parentalidade geralmente envolve a relação conjugal,
quando não, apresenta-se a parentalidade independentemente da conjugalidade.
Assim, diferentemente da conjugalidade, que depende de escolhas individuais, na
parentalidade biológica, não há possibilidade de escolhas, os laços sanguíneos
estão postos. Contudo, o exercício da parentalidade não depende dos laços de
sangue, mas dos vínculos estabelecidos na convivência e nos cuidados, tornando a
dimensão social e afetiva cada vez mais importante (GRZYBOWSKI; WAGNER,
2010).
A parentalidade, conforme aponta Bazon (2017), se expressa através das
competências parentais, as habilidades dos pais em responder às necessidades das
crianças/adolescentes, e as capacidades parentais, quando os pais recebem ajuda,
e manifestam potencial de cuidado ao se mostrarem disponíveis às necessidades

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dos filhos. Dentre as funções que se espera da família contemporânea está a


transmissão/apropriação da cultura e a formação do sujeito, desempenhando o
papel de promover o desenvolvimento com dignidade de seus membros, em
especial suas crianças e jovens, por meio do exercício da parentalidade,
desempenhada pelos adultos de referência da criança, com vistas a assegurar a sua
sobrevivência e o seu desenvolvimento pleno.
No exercício da parentalidade, as formas de cuidado se manifestam
diferentemente e precisam ser contextualizadas, a partir do entendimento do padrão
de funcionamento desta família, das características dos cuidadores e das
crianças/adolescentes, e da qualidade da relação entre eles. Desse modo, os
indicadores de cuidado na relação de parentalidade não devem ser analisados
isoladamente, pois não permitem uma compreensão integral dessa relação.
Na compreensão psicanalítica, a partir do desejo de ter um filho, ocorrem
processos psíquicos e mudanças subjetivas produzidas nos pais. Alguns autores
apontam que a pré-história da criança se inicia na história individual de cada pai,
bem como nas representações parentais que cada pai tem sobre o seu filho, mesmo
antes de seu nascimento. Essas representações, bem como os sonhos, as
lembranças da própria infância, os medos e profecias sobre o futuro do bebê,
desempenham um papel importante para a natureza dos vínculos estabelecidos
entre pais e filhos. Porém, é a partir do nascimento do filho que o psiquismo dos pais
se transforma definitivamente (STERN, 1997), isto é, as representações parentais
juntamente com a realidade que se impõe na relação entre cada pai com seu filho
real irão construir a relação entre eles. Em outras palavras, o filho faz seus pais e ao
mesmo tempo é constituído por eles. O estabelecimento de laços entre pais e filhos
favorece o seu desenvolvimento afetivo e cognitivo e, ao mesmo tempo, propicia aos
pais o sentimento de serem “suficientemente bons” para aquele filho.
Ao destacar a vinculação entre mãe e filho e o amor materno, Romanelli
(2017) refere que são inúmeros os estudos que analisam a qualidade afetiva dessa
relação, mas o mesmo não ocorre quanto ao amor paterno o que seria importante
aspecto a ser pesquisado e refletido pelas diversas ciências.
De acordo com Passos (2007), toda criança (biológica ou não) precisa ser
adotada pelos pais como filhos e estes como pais pela criança. É o desejo que
determina a configuração familiar e colocará em jogo os lugares e funções que cada

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membro ocupa e desempenha em relação uns aos outros. A relação intersubjetiva


do par conjugal é caracterizada pela distinção das funções simbólicas dos vários
personagens e seus respectivos lugares na estrutura familiar, para além da
existência da diferença anatômica/biológica entre eles, o que coloca em foco a
relevância de se debruçar sobre a maternidade tanto quanto sobre a paternidade.
Nesse exercício da parentalidade, Devreux (2006) propõe a
dessexualização dessas funções, ao igualar os deveres nos cuidados dos filhos
entre mãe e pai. Contudo, a autora objetivou compreender quem se dedica aos
cuidados dos filhos e demonstrou que as mães dedicam um maior número de horas
diárias (praticamente o dobro da carga horária masculina). Assim, concluiu que,
embora os homens reivindiquem a igualdade de direitos parentais, ainda assumem
poucos encargos no atendimento das necessidades cotidianas dos filhos. Destaca
que a coparentalidade é atrelada a uma espécie de jogo político, ao embate dos
gêneros, em que o poder masculino ainda prevalece sobre o feminino, tendo em
vista que o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos continuam sendo exercidos
sobremaneira pelas mulheres e sem o reconhecimento social e a visibilidade devida.
Romanelli (2017) pondera que na atuação dos psicólogos e assistentes sociais no
âmbito da Justiça pode-se ou não favorecer a participação masculina no cuidado e
no maior envolvimento afetivo dos pais com os filhos.
Os sentimentos são construídos nas relações cotidianas. Assim, após as
separações conjugais, se os homens estabelecerem poucos contatos com seus
filhos, a relação entre eles poderá ser fragilizada. Muitos padrastos acabam se
fazendo mais presentes na vida dos enteados do que os próprios genitores, diante
da convivência diária com eles, como pode ser observado no estudo de Watarai
(2010). Romanelli (2017) enfatiza que alguns padrastos têm uma tríplice identidade:
de “pai separado” (convive em dias de visita com os filhos frutos de relação anterior),
de “padrasto” (participativo na rotina dos enteados e que muitas vezes exerce as
funções paternas) e de “pai” (quando convive diariamente com os filhos frutos da
atual união conjugal). A participação dele na primeira infância da criança parece
favorecer a vinculação entre padrastos e enteados. Assim, o autor indaga se os pais
se desinteressaram pelos filhos após a separação conjugal ou se são as condições
pós-divórcio que não favorecem a manutenção e/ou o estreitamento de laços entre
eles.

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A participação dos homens na relação com os filhos é mediada pela


presença materna-feminina, que continua sendo preparada, segundo Romanelli
(2017), para cuidar e amar, enquanto os homens são estimulados a conter suas
emoções, estruturantes do desenvolvimento humano. Frente ao cenário atual das
relações familiares, o pesquisador reflete sobre a amplitude e indefinição daquilo
que se considera o “melhor interesse da criança” nas práticas profissionais, sendo
relevante compreender como as crianças se situam nas relações familiares, e o
benefício ou não da aplicação da guarda compartilhada, considerando que as
tentativas de privilegiar a centralidade na criança/adolescente são difíceis e
arriscadas, pois implicam em consequências na parentalidade.
O exercício da parentalidade é um grande desafio, principalmente quando
posto em situação de conflito no âmbito da Justiça. A partir das transformações
socioculturais e das atualizações da legislação, faz-se relevante que os profissionais
que atuam no Judiciário busquem se instrumentalizar e acompanhar tais mudanças.

2 - PARENTALIDADE NAS VARAS DE FAMÍLIA

A realidade institucional nas Varas de Família ilustra conflitos que se


instauram no contexto de ruptura conjugal que, na maioria das vezes, constituem-se
de forma conflituosa, envolvendo perdas, interrupções em projetos de vida e
mudanças no cotidiano familiar e pessoal. Geralmente, as desavenças que
culminaram na separação do casal ainda se fazem presentes após a interrupção da
relação conjugal, permeando a relação que se é estabelecida entre os filhos e seus
pais (BRITO, 2008).
É comum que os ex-cônjuges atribuam relatos à equipe técnica do Juízo
de Direito destacando possíveis falhas, críticas e questionamentos sobre a
parentalidade do (a) antigo(a) companheiro(a), com vistas a promover tentativa de
desqualificação da figura parental do outro genitor. Todavia, as motivações podem
estar associadas a outras questões mal elaboradas durante e após a separação.
Sendo assim, Brito (2008, p. 27) afirma que “o tempo transcorrido para se ter uma
decisão nos processos pode ser crucial, pois as situações vão se definindo”.

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Como lidar com a parentalidade quando a conjugalidade se desfez? É


nesse imbróglio de sentimentos negativos e positivos que emergem questões
inerentes ao futuro da prole do casal. Conforme Trentin e Pancieri (2014) indicam, a
guarda é o tópico mais delicado nas ocorrências de separação conjugal e, na
realidade brasileira, a guarda dos filhos comumente é concedida à mulher, embora
já esteja garantida por lei a igualdade de direitos entre homens e mulheres nesses
casos.
A modalidade de guarda será delimitada, a partir das condições do
rompimento, podendo ser: unilateral ou compartilhada, considerando os aspectos
sociais, culturais e educacionais dos filhos e dos pais. A guarda unilateral
geralmente é oferecida à parte que melhor atende às necessidades do(a) filho(a), o
que não exclui delimitar a pensão alimentícia e o regime de visitação ao genitor não
guardião para que os vínculos parentais não se rompam. Em relação à guarda
compartilhada, sintetiza-se que seja aquela em que o casal rompeu os vínculos
conjugais, mas o reconhecimento da parentalidade não foi desassociado entre os
genitores, permanecendo suas habilidades e recursos voltados à manutenção do
bem-estar dos filhos, de modo compartilhado. Oliveira (2009, p.09) descreve que na
guarda compartilhada: “[...] apesar de ter uma residência fixa, os filhos podem
transitar livremente entre a casa do pai ou da mãe, dentro das possibilidades de
ambos e dos filhos”. Contudo, há casos em que os conflitos entre os genitores se
mantêm, prejudicando o exercício da parentalidade, e neste cenário, via de regra, o
genitor guardião pode abusar de seu poder sobre a criança e iniciar campanhas que
depreciam a imagem do genitor não guardião, num processo de ressignificação
‘negativa’ das representações da criança em relação ao genitor atacado, a fim de
tolher ou mesmo desvencilhar qualquer vínculo afetivo, ou seja, excluir ou alienar o
genitor de quaisquer possibilidades de desempenho da sua parentalidade.
Recentemente, a esse tipo de abuso foi dado o nome de alienação
parental. Entretanto, ressalta-se que não se pode banalizar e/ou simplificar
fenômenos complexos, como são as relações familiares em situações de litígio,
unicamente para o campo psiquiátrico ou médico-legal. Considera-se que são
necessários mais estudos no Brasil sobre as dificuldades enfrentadas pelos
genitores para o exercício da parentalidade em separações litigiosas, principalmente
quando os conflitos se perpetuam em torno dos filhos.

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As mudanças históricas já elencadas e a lei da alienação parental trazem


ao cotidiano das equipes técnicas as crescentes demandas de trabalho sobre ações
de modificação de guarda e regulamentação de visitas que argúem como
motivadores da lide a suposta prática de alienação parental, pois têm servido como
mecanismo para se questionar a parentalidade do genitor e reverter a guarda, em
contextos nem sempre favoráveis a todos os envolvidos.
O estudo sobre o exercício da parentalidade tem ampliado o seu sentido
nas construções do conhecimento científico sobre o tema. Assim, a concepção do
mito da mãe como maior referência de cuidados à criança em tenra idade tem sido
desconstruída por novos conhecimentos que apontam que o filho pode ser cuidado
pelo pai, por uma figura masculina, desde bebê, mesmo que esteja em período de
amamentação. Nesse sentido, reitera-se a problematização apontada por Devreux
(2006), citada no tópico anterior, sobre a dessexualização da parentalidade.
Apesar desses novos paradigmas com relação aos cuidados e
desenvolvimento infantil, alguns genitores não conseguem dialogar sobre uma
configuração familiar de guarda compartilhada. Nesses casos, aponta-se para a
pertinência de auxílio na organização dos papéis, tempos e espaços de convivência
da criança com cada lado da família, de modo que programas de mediação familiar
são relevantes para o sucesso da parentalidade nesses contextos, pois muitas das
vezes o antigo casal conjugal precisará construir uma nova dinâmica para
compartilhar o que antes não era compartilhado.

3 - MULTIPARENTALIDADE E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Novos arranjos familiares têm se apresentado na contemporaneidade


demandando acolhimento por parte da sociedade, das políticas públicas e do
aparato legal. Decorrência do contexto conservador e religioso que envolve a
concepção de família, normalmente espera-se que os pais biológicos sejam os
responsáveis por facilitar o desenvolvimento de seus filhos nos níveis físico,
psicológico e social. Contudo, o atual contexto social e familiar tem apontado para a
função parental sendo exercida por outros adultos responsáveis pela criança,
independentemente do vínculo consanguíneo.
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Neste contexto, os adultos de referência de uma criança podem ser


compreendidos como aqueles que convivem com ela no dia a dia e são
responsáveis por cuidar, estimular, educar, amar, impor limites, fortalecer a
autonomia e preparar a criança para os desafios e oportunidades da vida presente e
adulta.
Nesta esteira, a Constituição Federal de 1988 “introduziu no ordenamento
jurídico brasileiro o sistema da igualdade de filiação, prevendo assim a
impossibilidade de qualquer discriminação entre os filhos, independentemente da
origem, biológica ou afetiva” (SANCHES; VERONESE, 2012, p.68). Dispõe o artigo
227, parágrafo 6º, da Carta Magna: “Os filhos, havidos ou não da relação do
casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Esta perspectiva encontra-se respaldada no artigo nº 1.593 do Código
Civil Brasileiro, que prevê o parentesco como “natural ou civil, conforme resulte de
consanguinidade ou outra origem”. Entre os tipos possíveis de estado de filiação de
outra origem pode se considerar o socioafetivo.
Passa então a ter reconhecimento o vínculo de filiação socioafetivo,
possibilitado através da inclusão do ente afetivo em seu registro de nascimento por
meio de sentença judicial, caracterizando assim a multiparentalidade tutelada pelo
Direito de Família que legitima a situação fática da convivência familiar, cuidados,
afetos e proteção e possibilita a coexistência jurídica do vínculo biológico e
socioafetivo. Assim, o melhor interesse da criança e do adolescente e, nos casos de
pessoas adultas, o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à
personalidade devem ser também respeitados, e, portanto, se for melhor para o
desenvolvimento pessoal, que se inclua em seu registro o nome do pai biológico e
do socioafetivo.
Diferentemente de outros países, o Direito Brasileiro não faz referência
expressa ao instituto da posse de estado de filho como característico da filiação
socioafetiva. Contudo, este foi apresentado por Anderle (2002) como indicativo do
estado de filiação socioafetiva.
Os elementos que podem constituir o instituto da posse de estado de filho
são determinados pela doutrina como sendo o uso do nome (“nomem”), o trato
(“tractatus”) e a fama (“fama”).

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Segundo Anderle (2002), o uso do nome refere-se à atribuição do nome


do pai ao seu filho. Entretanto, a doutrina não dá maior importância a este elemento,
dizendo não ser essencial para a configuração da posse de estado de filho, visto
que, muitas vezes, o filho não utiliza o nome de seu pai. Entretanto, restam
caracterizados os outros dois elementos, quais sejam o trato e a fama, e, portanto, a
ausência do uso do nome não pode ser considerada capaz de determinar a
desfiguração da posse de estado de filho.
Ainda segundo a mesma autora, o trato refere-se ao modo de tratamento
dispensado à pessoa, sua criação e educação, ou seja, expressa que o presumido
pai tenha exercido tal papel com relação ao outro (ANDERLE, 2002). É considerado
elemento objetivo, porque se caracteriza pelo comportamento do pretenso pai em
relação ao suposto filho. Pode-se, assim, reconhecê-lo pela assistência material e
moral dada ao filho, por exemplo, o carinho, os cuidados, o afeto, a educação, a
saúde.
Neste aspecto, podem subsistir a assistência material e a assistência
moral, ou então somente a material, ou somente a moral, pois, para a caracterização
deste elemento deve-se levar em consideração a situação pessoal do suposto pai.
Pode ocorrer que o pai não tenha condições econômicas para prestar assistência ou
então que o filho dela não necessite. No caso da assistência moral, o pai pode ter
dificuldades em expressar seus sentimentos ao filho, seja por temperamento, seja
por conveniência. Destarte, o uso do termo "filho" e do termo "pai" não são
necessários.
Anderle (2002) refere que a fama é a expressão externa do papel de pai e
de filho para o público, ou seja, a sociedade reconhece tal relação como parental.
Diz-se que é o lado propriamente social da posse de estado. Diante das atitudes do
suposto pai em relação ao seu pretenso filho, as pessoas criaram a convicção de
que se trata mesmo de pai e filho. Tais pessoas, que formam o denominado
"público", podem ser os vizinhos, amigos, empregados e, até mesmo, os parentes
dos interessados, que mesmo podendo ser contraditados, não deixam de ter sua
importância. Neste aspecto, cumpre ressaltar que as expressões "dizem", "ouvi
dizer", "parece" não bastam para restar caracterizada a fama, sendo necessária
convicção destas acerca da relação paterno-filial.

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Uma definição do conceito de socioafetividade perpassa, portanto,


elementos do campo social e do campo afetivo, ou seja, socioafetivo é o
reconhecimento de uma relação afetiva pelos indivíduos vinculados e pela
sociedade.
No contexto legal, em setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal
(STF) aprovou uma relevante tese sobre direito de família, delineando alguns
contornos da parentalidade no atual cenário jurídico brasileiro.
O tema de Repercussão Geral 622, de relatoria do Ministro Luiz Fux,
envolvia a análise de uma eventual “prevalência da paternidade socioafetiva em
detrimento da paternidade biológica”. Ao apreciar a temática subjacente à referida
repercussão geral, o plenário do STF, por maioria, decidiu por bem aprovar uma
diretriz que servirá de parâmetro para casos semelhantes.
A tese aprovada tem o seguinte teor: “a paternidade socioafetiva,
declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de
filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos
próprios”. A tese é explícita em afirmar a possibilidade de cumulação de uma
paternidade socioafetiva concomitantemente com uma paternidade biológica,
mantendo-se ambas em determinado caso concreto e admitindo, com isso, a
possibilidade de existência jurídica de dois pais.
Desta forma, podem-se destacar três principais reflexos da decisão do
STF. Primeiramente, o reconhecimento jurídico da afetividade, já que no julgamento
de repercussão geral 622 houve ampla aceitação do reconhecimento jurídico da
afetividade pelo colegiado, quando explicitamente referendada na tese final
aprovada a paternidade socioafetiva. Não houve objeção alguma ao reconhecimento
da socioafetividade pelos Ministros, o que indica a sua tranquila assimilação naquele
tribunal. A necessidade de o Direito contemporâneo passar a acolher as
manifestações afetivas que se apresentam na sociedade está sendo cada vez mais
destacada, inclusive no direito comparado.
Um segundo reflexo da decisão do Superior Tribunal Federal (STF)
expressou-se na compreensão do vínculo socioafetivo e biológico em igual grau de
hierarquia jurídica, já que houve o reconhecimento da presença no cenário brasileiro
de ambas as paternidades, socioafetiva e biológica, em condições de igualdade
jurídica, ou seja, ambas as modalidades de vínculo parental foram reconhecidas

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com o mesmo status, sem qualquer hierarquia apriorística. A partir disso, não resta
possível afirmar aprioristicamente que uma modalidade prevalece sobre a outra, de
modo que apenas o caso concreto apontará a melhor solução para a situação fática
que esteja em análise. Não havia consenso sobre isso e até então, imperava a
posição do STF, que indicava uma prevalência do vínculo biológico sobre o
socioafetivo nos casos de pedido judicial de reconhecimento de paternidade
apresentado pelos filhos. Esta equiparação prestigia o princípio da igualdade entre
os filhos, prevista no art. 227, parágrafo 6º da CF/88 e reiterado no art. 1596 do
Código Civil e art. 20 do ECA.
E, por fim, um terceiro reflexo apresentou-se na possibilidade jurídica da
multiparentalidade que é um dos novos temas do Direito de Família e vem sendo
objeto de debate em diversos países. Essas situações de manutenção de dois pais
ou duas mães já vinham sendo objeto de algumas decisões judiciais e estavam
figurando com intensidade na doutrina. Há inclusive um enunciado do Instituo
Brasileiro de Direito de Família aprovado sobre o assunto: enunciado nº 09 – “A
multiparentalidade gera efeitos jurídicos”, no X Congresso Brasileiro de Direito de
Família.
Inegável que houve significativo progresso com a referida decisão. Mas
há também alguns pontos que não restaram acolhidos, como a distinção entre o
papel de genitor e pai, bem destacado no voto divergente do Ministro Edson Fachin
ao deliberar sobre o caso concreto, mas que não teve aprovação do plenário. Esta é
uma questão que seguirá em pauta para ser mais esclarecida, sendo que caberá à
doutrina digerir o resultado do julgamento a partir de então.
A decisão do STF certamente remete a outras questões e a novos
desafios, mas nos traz a esperança de uma nova perspectiva para o Direito de
Família brasileiro. Por outro lado, este debate também reflete nas adoções prontas
simuladas.
O debate sobre a socioafetividade aparece nos Tribunais de Justiça
geralmente atrelado aos conflitos, por exemplo, em casos de negatória de
paternidade, regulamentação de visitas de uma madrasta, entre outros, sejam
relações intrafamiliares (padrasto, madrasta) ou envolvendo pessoas de fora da
família (vizinhos, madrinha, etc.). Tal debate implica em trazer para o judiciário um
vínculo socioafetivo de filiação, de convivência, de “desfiliação”.

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A multiparentalidade baseia-se no princípio da dignidade da pessoa


humana e do melhor interesse da criança e do adolescente. Em termos do reflexo na
vida da criança/adolescente, pode ser comparado ao oposto de um processo de
destituição do poder familiar para encaminhamento para adoção. Nesse sentido,
apresenta-se o debate sobre as adoções abertas, em que os genitores permanecem
no registro da criança junto com o nome dos pais adotivos. Trata-se de um debate
ainda restrito, pois não tem havido espaço para reflexões sobre os pais biológicos
saberem o destino que levou a criança.
A paternidade socioafetiva também se apresenta atrelada à
conjugalidade, por exemplo, nos casos em que um padrasto se torna pai afetivo dos
filhos de sua esposa após o casamento e a convivência diária. Nesse caso, pode
haver ainda a negatória de paternidade socioafetiva quando da separação conjugal,
sobre o que deve ser refletido no que se refere às consequências psicossociais para
a criança ou o adolescente. Nesse mesmo sentido, não é comum considerar a
concordância do pai biológico para paternidades socioafetivas que comporão a
multiparentalidade.
A manifestação da multiparentalidade de fato, ou seja, da convivência da
criança com múltiplas figuras parentais, apresenta-se conforme a cultura de cada
sociedade, de cada localidade e de cada território. No caso do Brasil, podem-se
identificar diversidades nesse sentido, por exemplo, crianças convivem com os pais
separados e familiares extensos em uma mesma casa, o que também pode estar
atrelado, para além do aspecto cultural, aos aspectos socioeconômicos.
A multiparentalidade ainda precisa ser compreendida com maior
profundidade nas implicações que pode ter para o futuro da vida dos filhos, por
exemplo, ao se considerar a necessidade de cuidado com os múltiplos pais na
velhice, conforme as prerrogativas do Estatuto do Idoso. De qualquer forma, tem
sido concretizada gradativamente no cotidiano de Varas de Família e Infância e
Juventude e é tema que precisa ser aprofundado por assistentes sociais e
psicólogos judiciários, considerando-se que referências parentais (de cuidado, afeto,
educação e atenção) são importantes para o desenvolvimento integral de crianças e
adolescentes, independentemente do sexo do adulto, mas fundamentalmente com o
foco na qualidade dos vínculos.

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4 - FAMÍLIAS NEGLIGENTES E PARENTALIDADE

No cotidiano profissional nas Varas da Infância e Juventude a avaliação


da parentalidade aparece em diferentes contextos visando à proteção integral dos
direitos das crianças e adolescentes. Os estudos psicossociais, psicológicos e/ou
sociais sobre o exercício da parentalidade nem sempre apresentam parâmetros de
análise com rigor técnico e respaldado por referenciais científicos.
Ao se debruçar sobre o tema de famílias negligentes e parentalidade,
Bazon (2017) apresenta que o conceito de violência é proposto pela Organização
Mundial de Saúde e International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect
(2006) como caracterizado por diferentes modalidades e formas de expressão, com
manifestações no âmbito não só da família, mas considerando a noção ampla de
proteção do indivíduo em relação à sociedade em que vive. Desse modo,
compreende-se a violência a partir de três modos de expressão dirigidos ao
indivíduo: autodirigida, interpessoal e coletiva, sendo que a interpessoal, quando em
relação à criança e ao adolescente, é considerada maus-tratos e vitimização
doméstica, contendo um (a) agressor(a), ou exposição a situações de agressões.
Conforme a perspectiva do contexto bioecológico (BARNETT, 1997), a
modalidade de maus-tratos tem alta prevalência e graves consequências para o
desenvolvimento humano, sendo que alguns problemas de saúde mental estão
associados às expressões de maus-tratos na infância. Diante da alta incidência dos
maus-tratos e o reconhecimento do seu impacto no desenvolvimento humano, faz-se
necessário questionar as intervenções psicossociais com vistas a identificar os
desafios que tal modalidade impõe no decorrer das intervenções profissionais.
Dentre as dificuldades principais, estão a identificação dos maus-tratos e
a intervenção profissional adequada. Para a identificação dos maus tratos,
apresenta-se o desafio de conceituação e definição do diagnóstico, ambos
associados ao nível de desenvolvimento socioeconômico de uma dada sociedade, a
qual modera e/ou tolera tais expressões de acordo com a sensibilidade às diferentes
formas de violência. Segundo as pesquisas trazidas (Bazon, 2017), o Brasil
apresenta baixo nível de sensibilidade às diferentes formas de expressão da
violência e a família, considerada como um contexto privado para resolução dos
problemas acaba por corroborar com a invisibilidade dos maus-tratos intrafamiliares.

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Quanto à notificação e à intervenção profissional, tanto com o objetivo de alterar a


situação no plano conjuntural, como em relação ao apoio às vítimas, o desafio é lidar
com a falta de conceito sobre maus-tratos, visto que a definição do conceito permite
o diagnóstico e evitaria intervenções inadequadas.
Bazon (2017) colocou que a proposta de identificar e avaliar os maus-
tratos baseia-se no saber taxonômico, cuja proposta é de classificação dos
fenômenos a partir de efeitos observáveis e de correlações e semelhanças nos
agrupamentos. Com a definição dos conceitos seria possível compreender a
realidade e a experiência do fenômeno com maior profundidade, clareza e
parâmetros de análise. Segundo a pesquisadora, os conceitos instrumentalizam a
investigação de sinais e sintomas, que oferecem indícios para o estudo e os
possíveis diagnósticos do fenômeno. Somente indicadores não permitem a
conclusão de um diagnóstico. Os indicadores oferecem alertas da ocorrência, sendo
necessário o olhar para as possíveis causas de tais indicadores (Bazon, 2017).
Frente a estes desafios, questiona-se o impacto da cultura de uma dada
sociedade na definição dos parâmetros sobre os cuidados mínimos reconhecidos, as
concepções de negligência e a resposta que esta sociedade oferta às suas
manifestações.
Neste sentido, segundo Bazon (2017), na avaliação da competência
parental, as condições biopsicossociais dos pais, como baixa escolaridade,
criminalidade, uso abusivo de substâncias psicoativas e prostituição apresentam-se
como lacunas que deveriam ser supridas pela comunidade e pelas instituições, e
que ofertadas isoladamente não acessam a população em vulnerabilidade.
As avaliações precisam se atentar aos indicadores presentes no âmbito
da família, da comunidade e na oferta de serviços básicos. A negligência, enquanto
modalidade de violência, mas diferentemente das demais, manifesta-se
fundamentalmente pela ausência de comportamentos esperados e está relacionada
ao oferecimento ou não de formas de apoio social e comunitário, sendo este último
substituído gradativamente pelo apoio institucional, cada vez mais deficitário na
realidade brasileira.
Somado a tal contexto, a cultura sobre as peculiaridades do
desenvolvimento na infância e na adolescência não é compartilhada na comunidade.
Comumente se questiona se os pais se ausentam de suas necessidades por

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ignorância, ou também se manifestam os comportamentos que cada cultura prioriza


como corretos padrões de cuidados.
Com base na perspectiva da multideterminação das competências
parentais, associada aos fatores de risco e de proteção em dada sociedade, Faleiros
(2011) aponta que a negligência é o primeiro estágio de desenvolvimento de formas
crônicas de violência. A possível articulação no tempo entre exposição a diferentes
formas de maus tratos, e as consequências geradas por eles concorre para outras
formas de violências, em recursividade dinâmica.
Ao observarmos o exercício da parentalidade, também se deve
compreender o entorno no qual a família está inserida, se recebe apoio comunitário
e como ela se sente neste apoio. Como posto por Bazon (2017), a perspectiva de
Lacharité et al. (2005) questiona a qualidade da oferta desse apoio, visto que
quando a família o busca, ela reconhece as necessidades de seus membros, e ao
receber o apoio, elas podem se beneficiar ou não, o que poderia contribuir para o
isolamento funcional dessa família sem espaços de interação comunitária e de
auxílio complementar ao exercício da parentalidade.
Compreende-se, portanto, que o histórico de acesso ou não aos apoios
sociais, comunitários ou institucionais pode facilitar ou não a resolução dos
problemas na dinâmica familiar e no exercício da parentalidade. A essa reflexão
somam-se os fatores de competências e habilidades, que também foram resultados
de trajetórias pessoais dos cuidadores.
Com relação à intencionalidade, aspecto normalmente considerado nas
outras modalidades de maus-tratos, a maioria dos pesquisadores considera que a
intenção de causar danos à criança não é um elemento inerente à negligência
(GLASER, 2002; DUBOWITZ et al., 1993; ZURAVIN, 1999). Bazon (2017) cita
trabalhos brasileiros (MARTINS, 2006; MATIAS; BAZON, 2002), que apontam que
as famílias notificadas ao sistema de proteção por negligência, em geral, nem
mesmo apreendem as razões pelas quais estão sendo acompanhadas, não
reconhecem suas práticas como negligentes e não conseguem associar que as
medidas de proteção aplicadas vêm salvaguardar as crianças de tais ações. Os
casos mais graves são os que remetem a padrão estável de cuidado negligente. Um
evento isolado com consequência grave é uma condição relevante, mas pode
evidenciar uma negligência episódica. Diante dessa conjuntura, cabe destacar que a

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responsabilidade do atendimento às necessidades desenvolvimentais da criança e


do adolescente é de todos os que participam do conjunto de determinantes
ecossistêmicos do desenvolvimento da criança (LACHARITÉ; ÉTHIER; NOLIN,
2006; PASIAN et al., 2013). Lacharité, Éthier e Nolin (2006) consideram difícil um
consenso sobre o assunto, nas diferentes sociedades e diante das particularidades
de cada coletividade. Ressaltam haver duas categorias de necessidades, onde as
opiniões convergem em termos de importância: as necessidades de ordem física e
as necessidades de ordem educativa.
Nas necessidades físicas, incluem-se as de ser alimentado, de ser
protegido contra perigos físicos, de receber cuidados médicos adequados. Nas
necessidades educativas, incluem-se viver experiências de aprendizagem que
promovam aquisições no plano desenvolvimental e cultural, experienciar uma
estrutura de autoridade, de limites e de expectativas claras em relação à conduta
infantil.
Bazon (2017) alerta que nenhuma família sozinha consegue cuidar bem
das suas crianças. Somente por meio do apoio social e familiar as práticas
negligentes podem ser identificadas e sanadas. A responsabilidade pertence a todos
os que participam do conjunto de determinantes ecossistêmicos do desenvolvimento
da criança.
Destaca-se que, tal como indica a literatura internacional, existem
efetivamente casos em que os maus-tratos são crônicos e outros em que esses
parecem ser mais circunstanciais. Além disso, os maus-tratos crônicos são uma
trajetória persistente de dificuldades no sistema cuidador-criança-ambiente, onde a
negligência é elemento estrutural.
No contexto desenvolvimental, se constatada modificação das
características psicológicas (percepções, crenças, expectativas, etc.), deve ser
oferecido tratamento àqueles que apresentam enfermidades físicas ou mentais. No
contexto das interações proximais, é fundamental intervir na violência conjugal e/ou
nos conflitos com a família extensa. No contexto social mais amplo, o centro dos
investimentos deve ser a ampliação da rede de apoio formal e informal de ajuda,
especialmente no que concerne ao apoio instrumental – para ajudar com os
cuidados com os filhos.

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Nessa direção, é também fundamental promover ajuda especializada aos


cuidadores e à criança, sobretudo se essa apresenta dificuldades no
desenvolvimento. Esse nível de intervenção ocorre com vistas ao interesse da
própria criança, mas também afeta a qualidade da relação com cuidador/família.
Aprofundar as reflexões sobre a atuação profissional de psicólogos e
assistentes sociais no judiciário com famílias consideradas negligentes contribuiu
para organizar uma sistemática teórica de análise sobre cada caso submetido a
estudo e principalmente para provocar o questionamento sobre o que se definem
como atitudes negligentes, apontando para a necessidade de que os estudos
sociais, psicológicos e psicossociais considerem a complexidade das realidades e
contextos que são objeto de sua análise.

5 - PARENTALIDADE NA ADOÇÃO

O processo de tornar-se pai/mãe adotivo inicia-se de uma concordância


entre os cônjuges, ou de uma pessoa individualmente, ao decidirem formar uma
família. Machado, Féres-Carneiro e Magalhães (2015) apontam que na
parentalidade e filiação adotiva, o processo de construção dos laços afetivos passa
por processos psíquicos, como a elaboração do sentimento de pertença, o que
viabiliza o reconhecimento de si e o diferenciar-se do outro. Defendem que a
premissa básica

na construção da parentalidade e da filiação adotiva é a existência de


paradoxos como a ruptura e vínculo e o luto e investimento libidinal.
A parentalidade e a filiação adotivas são possíveis somente quando
há, necessariamente, uma descontinuidade com a família de origem
da criança adotiva (p. 443).

Para essas autoras, não é necessariamente a infertilidade ou outras


razões em si que tornam os laços afetivos de parentesco vulneráveis, mas sim “as
fantasias e os mecanismos de defesa que operam na tentativa do sujeito não entrar
em contato com a dor presente na constituição do desejo da adoção” (MACHADO;
FÉRES-CARNEIRO; MAGALHÃES, 2015, p. 450). Entendem que a recusa
defensiva em lidar com essa dor pode ameaçar a solidificação do sentimento de

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pertencimento e do reconhecimento de seu próprio lugar na vida de cada membro


da família.
Diferentemente de uma gravidez biológica, que tem hora para finalizar
previamente conhecida, a adoção deve ser uma preparação de dentro para fora e o
encontro com o filho adotivo não ocorre no parto, mas em um momento repentino,
não programado, e do qual participam profissionais psicólogos e assistentes sociais.
Observa-se na atualidade uma maior ocorrência de ampliação do perfil da
criança/adolescente desejado pelos pretendentes à adoção, que aparenta ser
proposta em geral de maneira consciente. Entretanto, reflete-se que a maioria dos
pretendentes não deixa de querer a criança recém-nascida, ou seja, ampliam a faixa
etária para idades maiores, mas não deixam de colocar como idade mínima o
recém-nascido. Com isso, alguns assistentes sociais e psicólogos judiciários têm
percebido que podem ocorrer dificuldades em perfis muito ampliados, já que a
diferença entre crianças recém-nascidas e crianças com sete a dez anos, por
exemplo, são significativas no processo de construção de novos vínculos parentais,
desafiando os pretendentes em suas expectativas geralmente discrepantes nesses
perfis.
Costa (2007) apontou que, na adoção de crianças mais velhas, a
construção dos laços afetivos paternos/maternos ocorre “na” e “através” das
relações com os filhos. Diferentemente de tornar-se pai/mãe de um bebê, que exige
cuidados para sua sobrevivência e favorece a rápida vinculação afetiva, a adoção de
crianças maiores nem sempre é tranquila e fácil. Trata-se de um processo de
adaptação da criança em um novo contexto de relações. É comum que uma criança
mais velha se posicionem diante da nova realidade com as vivências relacionais
anteriores, negociando a afetividade e a construção do amor filial, posicionando-se
nas relações de forma mais ativa que um bebê, muitas vezes testando a autoridade
materna e/ou paterna para certificar-se do quanto é aceita. A autora destaca que a
habilidade do uso da linguagem e a história pregressa vivenciada pela criança
mostram outro ser que não é incompleto, exigindo dos adultos diferentes modos de
vincular-se afetivamente, o que pode gerar tensões onde a parentalidade pode ser
negociada com ameaças de devoluções, tornando eminente a possibilidade de
ruptura das relações.

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Housset (2001) aponta que o processo de vinculação afetiva na adoção


de crianças mais velhas exige dos pais adotivos paciência, perseverança e
sensibilidade para responder as necessidades, muitas vezes pouco conhecidas, das
crianças em diferentes idades. Costa (2007) enfatiza a importância de se conhecer a
história da criança e favorecer espaços de conversa sobre o passado e as vivências
anteriores dela, mesmo com relação à compreensão que ela tem sobre sua origem e
o que motivou a sua adoção, pois considera que os sentidos atribuídos ao passado
podem dificultar o processo de adoção e da construção da parentalidade.
Observa-se, portanto, que o acompanhamento de processos de adoção
envolve questões psicossociais de alta complexidade e carece de políticas públicas
para a preparação e apoio dos pretendentes à adoção. Sobre essa preparação,
alguns aspectos se tornam relevantes para que os pretendentes possam apropriar-
se da vivência da adoção de maneira a sensibilizar-se com as suas particularidades
e que possam acolher uma criança ou um adolescente como filho de maneira
integral, sustentável e definitiva. Entre esses aspectos, identificam-se: a importância
de conteúdos mais vivenciais para a preparação de pretendentes; a análise
pormenorizada do desejo intra e interpsíquico de exercer o papel parental pelos
pretendentes; a necessidade de os pretendentes à adoção aprenderem a ter
segurança do vínculo parental para transmitirem segurança para o filho, pois quando
o(s) adotante(s) não consegue(m) se desprender da supremacia dos laços de
sangue, da valorização do biológico, das expectativas do filho idealizado, isso pode
dificultar a construção do vínculo.

6 - HOMOPARENTALIDADE E ADOÇÃO

Embora a adoção por casais de mesmo sexo seja uma realidade, há


preconceito e estigma de que essa configuração familiar afete o desenvolvimento do
adotando, isto é, de que a orientação sexual dos adotantes interfira negativamente
nos referenciais parentais da criança/adolescente, ou ainda que seja determinante
na orientação sexual dos filhos.
Exploram-se pouco os fatores sociais e culturais do processo de
constituição do exercício da parentalidade, relacionando-o frequentemente de
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maneira superficial e direta a identidades de gênero feminino (mãe) e masculino


(pai). Como exemplo, pode-se refletir sobre a naturalização provocada pelo senso
comum de que a licença maternidade deve ser necessariamente maior do que a
licença paternidade.
Segundo Passos (2007), a parentalidade não está associada ao sexo,
mas sim, à função simbólica que os adultos constroem junto às necessidades da
criança. Nesse sentido, se a identidade sexual dos pais fosse determinante para
orientação sexual dos filhos, como poderíamos explicar o fato de uma pessoa
homossexual ser gerada e criada por pais heterossexuais?
As funções da família são construídas de acordo com as demandas dos
sujeitos, constituídas pelos investimentos recíprocos do grupo familiar e sustentadas
pelas ações do cotidiano. Para Passos (2007), as funções parentais se organizam
em três sentidos principais, marcados pela reciprocidade: de um membro do casal
em relação ao outro; de cada um dos pais em relação à criança e dessa em relação
a cada um dois pais. Sendo assim, a qualidade das trocas entre a criança e seus
pais é que será determinante para sua constituição psíquica. As trocas devem se
pautar na verdade e transparência sobre a origem da criança, expressando o quanto
foi desejada. Portanto, a função parental não está contida no sexo, mas sim, na
maneira como os adultos desejam exercer o papel parental para uma criança e da
qualidade das trocas afetivas entre a criança e seus pais.

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7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A oportunidade de aprofundar nas temáticas afetas à conjugalidade e à


parentalidade permitiu compreender que os movimentos sociohistóricos provocaram
transformações nas suas formas de expressão, além dos novos desafios na
interação com condições de vida, conjugalidade, filiação e construção de vínculos
socioafetivos em suas nuances na sociedade ocidental contemporânea, composta
por sujeitos e subjetividades que são foco da atuação de assistentes sociais e
psicólogos no judiciário.
Entre um dos principais desafios está a reflexão sobre como compreender
a complexidade da necessidade da criança pelo direito à convivência familiar
considerando as contradições entre vínculos e rupturas, mudanças e permanências,
como no caso da parentalidade socioafetiva de um lado, representando vinculação
parental, e a destituição do poder familiar de outro, representando ruptura de
vínculos, ambas como duas faces de uma mesma problemática.
O trabalho no âmbito do judiciário submete assistentes sociais e
psicólogos a situações nas quais a ênfase recai sobre os conflitos psicossociais e as
tensões interpessoais. Assim, desafia esses profissionais a considerarem os
sentimentos do grupo familiar em suas múltiplas facetas, também compostas pelos
sentimentos amoroso (amor filial e amor parental), de solidariedade e pelos afetos
positivos, que pouco são analisados e discutidos nos estudos sociais, psicológicos e
psicossociais.
Outro desafio posto pela contemporaneidade encontra-se na
intensificação da maleabilidade da parentalidade, que tem sido cada vez menos
associada apenas a vínculos consanguíneos. Como essas nuances de vínculos tão
importantes, como as figuras de referência parental para a forma de compreender a
filiação e a infância, reverberam na cultura ocidental e nas subjetividades que a
compõem? E quais as implicações desses fenômenos no trabalho de assistentes
sociais e psicólogos judiciários?
As demandas da contemporaneidade também provocam os profissionais
de Serviço Social e Psicologia a se posicionarem diante de uma realidade na qual as
famílias, sejam elas de camada pobre ou média, estão desamparadas, sem relações
de parentesco de apoio, o que pode se dizer ser uma tendência socioeconômica

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geral atrelada ao individualismo da sociedade atual. Além disso, a rua, que há


algumas décadas era espaço fundamental de socialização e compartilhamento de
cuidados, atualmente é local de perigo, risco social e vulnerabilidade, exigindo que a
análise social e psicológica também considere as questões sociais relacionadas aos
espaços urbanos e rurais.
Por fim, problematiza-se que o trabalho de assistentes sociais e
psicólogos judiciários possui como um de seus principais produtos finais os
relatórios, escritos e encartados nos processos. Tais documentos reverberam
amplamente nas decisões judiciais, o que aponta para a relevância deste trabalho
na condução dos conflitos familiares judiciais, bem como para a necessidade de que
os estudos desses profissionais sejam realizados com sistemática teórica e
metodológica condizentes com suas áreas de atuação e que sejam construídos com
embasamento substancial considerando as peculiaridades de cada caso, mas
principalmente o contexto macrossocial em que a situação em estudo se
desencadeia, toma forma e pede o respaldo social e psicológico para que os
encaminhamentos sejam pautados na redução dos conflitos e na proteção integral
de crianças e adolescentes.

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TRENTIN, Tatiane Crestani; PANCERI, Regina. As relações familiares e processo
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568
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

DO DEPOIMENTO SEM DANO À LEI DA


ESCUTA/DEPOIMENTO ESPECIAL (LEI Nº 13.431/2017):
IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA PROFISSIONAL DE
PSICÓLOGOS E ASSISTENTES SOCIAIS JUDICIÁRIOS

GRUPO DE ESTUDOS DO INTERIOR –


SÃO JOSÉ DO RIO PRETO
“CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM DIFERENTES
SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADES”

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO


2017
569
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

COORDENAÇÃO
Mariana Sato dos Reis – Assistente Social Judiciário – Comarca de José Bonifácio
Priscila Silveira Duarte Pasqual – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do
Rio Preto

AUTORES
Ana Carolina Petrolini André – Psicóloga Judiciário – Serviço Psicossocial Clínico de
São José do Rio Preto
Brás Miguel Barbosa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva
Carolina Silva Gaspar – Psicóloga Judiciária – Comarca de Votuporanga
Claudinéia Pereira – Assistente Social Judiciário – Comarca de Potirendaba
Cláudio Luís Garcia da Silva – Psicólogo Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Daniele Feres Adami – Assistente Social Judiciário – Comarca de Votuporanga
Diviane Luiza Santana – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José do Rio
Preto
Edna Bentina Garcia da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
do Rio Preto
Elaine Cristina dos Santos de Souza – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Tanabi
Emeline Duo Riva – Psicóloga Judiciário – Comarca de Catanduva
Evelisi Tavoloni – Psicóloga Judiciário – Comarca de São José do Rio Preto
Luciana de Oliveira – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tabapuã
Marli Salvador Correa da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Novo
Horizonte
Mirian Cristina Scapa – Assistente Social Judiciário – Comarca de Catanduva
Renata Fazani Sabbatini Pessoa – Assistente Social Judiciário – Comarca de
Urupês
Rosangela Cristina Alves – Assistente Social Judiciário – Comarca de Tabapuã
Sheila Barreiros Pereira Metz – Assistente Social Judiciário – Comarca de São José
do Rio Preto
Tatiana Aparecida da Silva – Assistente Social Judiciário – Comarca de Guaíra
Thais Del Giudice Maurutto – Psicóloga Judiciário – Comarca de Tanabi
570
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

INTRODUÇÃO

A temática deste grupo de estudos intitulado “Crianças e Adolescentes


em Diferentes Situações de Vulnerabilidades” tem permitido discussões ampliadas
sobre o contexto da infância e juventude, que são analisadas e estudadas com base
em referencial teórico e científico e pautadas na experiência prática dos profissionais
do setor técnico do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Análises e estudos sobre as definições de risco, vulnerabilidade, fatores


de risco e proteção, assim como resiliência já foram discutidos entre os participantes
em momento anterior. Nesta perspectiva, durante este ano, o grupo sentiu a
necessidade de aprofundar os estudos sobre o sistema de garantia de direitos da
criança e do adolescente a partir da publicação da Lei nº 13.431, de 04 de abril de
2017, que em breve passará a vigorar.

Diante da complexidade envolvendo a situação de violência sexual de


crianças e adolescentes e da implantação de um novo sistema de oitiva desta
parcela da população jurisdicionada, o assunto suscitou incertezas e dúvidas,
especialmente diante do posicionamento dos conselhos de classe e da carência de
informações sobre o fluxo de atendimento, de capacitações para a aplicação de
técnicas e dos protocolos sugeridos para este tipo de trabalho entre os profissionais
que atuam ou estão vinculados, de alguma forma, ao sistema de Justiça.

Há alguns anos, o depoimento sem dano, assim denominado inicialmente,


tem sido assunto debatido entre operadores de Direito e entidades que trabalham na
proteção dos direitos da criança e do adolescente e entre aqueles que atuam direta
ou indiretamente com esta demanda. Esse modelo é reflexo de práticas
internacionais aplicadas em vários países, entre eles o Canadá.

Observamos que a justificativa para a implantação deste modelo de


depoimento, agora nomeado como “especial”, consiste em garantir à criança e
adolescente um ambiente mais acolhedor para ser ouvida, ao mesmo tempo que
visa reduzir o número de vezes em que deve fazer o relato do abuso da qual foi
vítima. Porém, o resultado concreto é que dará maior celeridade aos processos

571
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

criminais em que crianças aparecem como vítimas e fornecerá dados concretos para
a punição do agressor.

Esta prática, desde que começou a ser implantada, trouxe em seu bojo
uma série de polêmicas, sofrendo críticas principalmente dos conselhos de classe
tanto do Serviço Social quanto da Psicologia, que a acusam de não ser protetiva e
visar apenas a punição do agressor em detrimento da proteção à infância e
juventude. Questiona-se o ônus para a criança submetida à produção de provas
contra seu agressor, levando-se ainda a questionar a efetividade deste caminho
como forma de punir aquele que ofende.

Resta saber se no estado de São Paulo, no qual os resultados sobre o


depoimento especial são ainda preliminares e cujo sistema não está implantado em
todas as comarcas, efetivamente essa nova forma de trabalho funcionará, vez que
uma parcela importante dos assistentes sociais e psicológicos do tribunal não
considera este trabalho como garantia de direitos e proteção às crianças, assim
como não identifica esta forma de atuação condizente com sua prática profissional.

Há um longo caminho a percorrer, mas a expectativa é a de que crianças


e adolescente possam continuar tendo voz no âmbito da Justiça, porém que tenham
garantidos seus direitos de proteção e dignidade

1 - BREVE HISTÓRICO DO DEPOIMENTO SEM DANO/DEPOIMENTO


ESPECIAL

O depoimento especial teve seu marco inicial normativo com a


Convention on the Rights of the Child (Convenção sobre os Direitos da Criança),
promulgada em 1990 (SANTOS et al, 2013; OFFICE OF THE UNITED NATIONS
HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS, 1990) e também promulgada pelo
governo brasileiro (BRASIL, 1990).
O documento “Cartografias Nacional das experiências alternativas de
tomada de depoimento especial de crianças e adolescente em processos judiciais
no Brasil: estado da arte” cita o artigo 12 da referida convenção. Este oferece bases

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ao sistema de justiça brasileiro para que o direito da criança de ser ouvida em juízo
seja garantido e sua opinião considerada. Eis o artigo:

1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver


capacitada a formular seus próprios juízos o direito de
expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos
relacionados com a criança, levando-se devidamente em
consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade
da criança.
2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particu-
lar, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou
administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por
intermédio de um representante ou órgão apropriado, em con-
formidade com as regras processuais da legislação nacional.

Tomamos conhecimento ainda da Resolução 2005/20 do Conselho


Econômico e Social das Nações Unidas. Nesta resolução foram delineados os
parâmetros internacionais para a aplicação de metodologias alternativas de oitivas
com crianças, por meio das diretrizes para a justiça em assuntos relativos a crianças
e adolescentes vítimas e/ou testemunhas de crimes. Essa resolução apresenta
princípios e definições operacionais, especifica os direitos de crianças e
adolescentes nestas circunstâncias e oferece elementos para a sua implementação.
Os princípios que estabelece são: dignidade, não discriminação, interesse superior,
proteção, desenvolvimento harmonioso e participação. (NASCIMENTO, 2012;
SANTOS et. al, 2013)
No cenário internacional, existem modelos similares há mais tempo ao
que está sendo construído no Brasil, como Canadá, França, Argentina e África do
Sul.
Rocha (2017) cita a referida Cartografia, a qual relata práticas de oitiva
especial que se iniciaram na década de 1980 e tiveram lento crescimento até 2000.
Com a resolução de 2005/20, o número de experiências duplicou no mundo.
Segundo Rocha (2017), na América Latina, o marco de implantação
dessas experiências ocorreu na Argentina, que regulamentou no ano de 2003 a
utilização da Câmara de Gesell, por meio da lei federal 25.852/2003, de autoria do
Dr. Carlos Rozanski, juiz federal. O uso dessa Câmara já ocorria com fins
terapêuticos desde abril de 1990, influenciando países da América do Sul e Central.
573
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Todos esses modelos têm como proposta a participação de um


intermediário, ou seja, uma pessoa de confiança, que irá facilitar os relatos em
audiências que envolvam crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de
violência, principalmente a sexual, normalmente em salas distintas onde se
encontram os operadores de direitos.
No Brasil, a primeira experiência, modelo para a implementação do
depoimento sem dano em outros lugares do país, se dá no estado do Rio Grande do
Sul, especificamente na Segunda Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, em
2003.
De acordo com Cezar (2008), a primeira audiência do projeto realizou-se
em 06 de maio de 2003, por iniciativa individual do juiz e do promotor de justiça da
época. Nesta audiência, participaram uma psicóloga lotada na segunda Vara, a
autora do livro Abuso sexual: a inquirição de crianças e uma magistrada
observadora, aposentada na época.
Na ocasião, segundo Cezar (2008), percebeu-se a conveniência de tal
forma de inquirição, em razão da tranquilidade da vítima. Além disso, observou-se
apenas a necessidade de aperfeiçoar-se a tecnologia utilizada em relação aos
recursos audiovisuais e não da metodologia prática da escuta utilizada.
Cezar aponta que no ano de 2004, o projeto assumiu caráter institucional
no Rio Grande do Sul com a aquisição de novos equipamentos para a sala de
audiência. De abril de 2003 até 2008 foram realizadas na Segunda Vara da IJ de
Porto Alegre mais de mil e duzentas inquirições e outras centenas em outras
comarcas do estado.
Com relação ao Estado de São Paulo, o Projeto Paulista, descrito no
Protocolo CIJ n. 00066030/2011, estabeleceu a implementação em 05 varas do
estado em caráter experimental.
Nascimento (2012) aponta que o Projeto Paulista tinha a pretensão de
conciliar os direitos de vítimas e agressores. Assemelha-se a experiência gaúcha,
com algumas diferenças. O esforço do Projeto é de que a criança preste um único
depoimento ou no máximo dois.
Nascimento (2012) diz que segundo o juiz da Coordenadoria da Infância e
Juventude da época da implementação do Projeto, uma vez caracterizada a

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

violência, o órgão responsável pelo primeiro atendimento deveria elaborar um


documento que seria compartilhado entre as demais instituições.
Vale ressaltar que não há regras expressas na lei brasileira que
contemplem a especificidade do depoimento de crianças e adolescentes, visto
serem pessoas em condições peculiares de desenvolvimento. Contudo, Rocha
(2017) lembra que os dispositivos legais (Código do Processo Penal) admite que
crianças/adolescentes auxiliem o juízo na condição de testemunhas, apenas
dispensando os menores de 14 anos de prestar o compromisso de dizer a verdade.
Rocha (2017) cita que a prática brasileira do depoimento especial foi
objeto de pesquisa realizada entre 2011 e 2012, com coletas de dados do sistema
judicial, culminando na publicação “Cartografias Nacional das experiências
alternativas de tomada de depoimento especial de crianças e adolescente em
processos judiciais no Brasil: estado da arte”, o qual apresente o mapeamento
desses dados estatísticos.
Rocha (2017) aponta que foram identificadas 42 experiências
desenvolvidas em 15 estados brasileiros e Distrito Federal. Os autores da
Cartografia afirmam que a experiência iniciada no Rio Grande do Sul constituiu um
divisor de águas na temática do testemunho infantil.
A lei brasileira do depoimento especial foi prevista no Projeto de Lei n
3791/2015 e em 21 de fevereiro de 2017 realizou-se a votação da Subemenda
Substitutiva Global ao referido PL, sendo aprovada pela Câmara dos Deputados sua
redação Final. Assim, em 04 de abril de 2017 a lei n. 13.431 foi sancionada, que
entrará em vigor após um ano de sua publicação.

2 - LUTAS DAS CATEGORIAS

2. 1 - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA

Em abril de 2006, o Conselho Regional da Sétima Região-RS solicitou


orientações ao Conselho Federal de Psicologia a respeito de tecnologia já utilizada
no Juizado da Infância e Juventude da Capital gaúcha, denominada “Depoimento
sem Dano”. Após tal consulta, os procedimentos a que são submetidos crianças e
adolescentes supostamente vítimas de violência passaram a ser tratados com ainda

575
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

maior prioridade pelos Conselhos Federal e Regionais desta categoria profissional,


tendo sido desencadeados amplos debates referentes a este tema (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009, pág. 7).
Tais debates resultaram em um posicionamento contrário do Conselho
Federal de Psicologia ao método do Depoimento Especial. Isto porque, neste
percurso, cresceu a percepção de que o procedimento em questão, ao buscar
simplesmente a coleta de provas para uma condenação criminal, transforma-se em
uma fonte de novas violações e sofrimentos psíquicos para as crianças e
adolescentes (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009, pág. 8)
Assim, o Conselho Federal de Psicologia manifestou apreensão diante da
percepção de que “uma intervenção descontextualizada, sem continuidade, sem
acompanhamento prévio e posterior e, não raro, efetuada anos após a violência,
cause danos, sofrimento e revitimização” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2009, pág. 8)
Especificamente no tocante à Psicologia, o Conselho Federal ressalta que
não é função desta categoria profissional a inquirição, por meio da qual uma verdade
meramente judicial deva ser extraída, com o objetivo único de obter provas para a
penação de determinadas pessoas. Ou seja, nosso compromisso é direcionado para
a escuta das demandas e desejos da criança.
Nesta linha de pensamento, o referido conselho estabeleceu a Resolução
de nº 010/2010, a qual instituiu a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças
e Adolescentes na Rede de Proteção, objetivando proteger tal população de uma
possível revitimização. Em suas considerações iniciais, a resolução coloca que a
escuta psicológica se diferencia da inquirição judicial, do diálogo informal, da
investigação policial, entre outros (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2010).
Todavia, o ato normativo em questão foi suspenso judicialmente em todo
o território nacional, no ano de 2013, obstando os Conselhos de Psicologia de
fiscalizarem as práticas dos profissionais que promovem a escuta de crianças e
adolescentes envolvidos em situação de violência (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, 2013).
A suspensão desta resolução trouxe para o Sistema de Conselhos da
Psicologia o desafio de reconstruir suas orientações e resoluções sobre a temática,
procurando atender as demandas do Sistema de Justiça por meio da valorização do

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

fazer psicológico enquanto instrumento de acolhimento e proteção de crianças,


adolescentes e famílias. (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DO PARANÁ,
2016, p. 02)

2.2 - CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL

O debate sobre o “Depoimento sem Dano”, hoje Depoimento Especial,


colocou-se para o conjunto dos assistentes sociais, desde o ano de 2007, quando foi
iniciado o uso dessa metodologia de trabalho no estado do Rio Grande do Sul. A
partir de então, o conjunto composto pelo Conselho Federal de Serviço Social e
pelos Centros Regionais de Serviço Social, atuantes nos estados brasileiros
(CFESS/CRESS) promoveu debates, seminários, pareceres técnicos, culminando na
Resolução CFESS nº 554/2009, que vedava a participação de assistentes sociais no
“Depoimento sem Dano” por considerar que tal atividade não se constitui como
atribuição da profissão, em conformidade com os artigos 4º e 5º da Lei 8662/93 que
tratam das competências do Assistente Social.
Ressalta-se que a tomada de posicionamento do conjunto
CFESS/CRESS surgiu a partir do aprofundamento do tema, ante a necessidade de
conhecimento sobre a metodologia desenvolvida no Depoimento Especial, e as
implicações para o exercício profissional, bem como para as crianças e
adolescentes vítimas de violência sexual e o princípio da proteção integral as
crianças e adolescentes previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
Lei nº 8.069/1990.
Na análise do Conselho Federal de Serviço Social para que se tenha a
concretização dos princípios da prioridade absoluta e da proteção integral é
necessário que haja o fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança
e do Adolescente (SDGCA), com plena articulação das instâncias públicas e da
sociedade civil, aplicação de instrumentos normativos, e funcionamento dos
mecanismos de promoção, defesa e controle o que poderá vir garantir e assegurar
os direitos das crianças e adolescentes.
Na composição do SGDCA observa-se o Sistema de Justiça, e em suas
reflexões o CFESS aponta que estudos denotam que neste sistema as estatísticas
sobre a “violência praticada contra crianças e adolescentes são pouco confiáveis,
577
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

ocorre demora na conclusão dos processos e em uma minoria dos casos há


acompanhamento à vitima, seja psicossocial ou de aplicação de medida protetiva
por parte dos órgãos integrantes do SGD” (CFESS, 2010. pág. 5).
Neste sentido, assinala-se, ainda, que a instrução processual pode ser
causador de danos psíquicos à vitima, causando sua revitimização, pois crianças e
adolescentes passam a ser vistas como uma fonte de informação, e o processo
penal acaba por voltar-se mais para o acusado do que para a vítima, não sendo
capaz de minimizar ou reparar o dano sofrido por estes sujeitos em estágio de
desenvolvimento.
Assim, uma das principais críticas da categoria consiste no fato de que na
metodologia do Depoimento Especial, tornou-se o principal meio de prova acusatória
para punição do agressor. Desta forma, a criança perde a centralidade da proteção
integral, deixando de ser vista como sujeito de direito, de prioridade absoluta, visto
que são revitimizadas ao serem colocadas na condição de produtoras de provas.
O conjunto CFESS/CRESS considera que a metodologia do Depoimento
Especial engendra um conflito de prioridades que inviabiliza a proteção das crianças
e adolescentes. Ou seja, há uma incompatibilidade entre a Proteção Integral da
Criança e do Adolescente, preconizada no ECA e a obrigatoriedade destes de
produzir provas para responsabilizar o agressor/abusador através de sua inquirição
na referida metodologia.
Observa-se a necessidade de reflexões com o objetivo de se rever e
repensar o sistema de justiça, no qual a criança é ouvida para produção de provas.
Em seus posicionamentos o CFESS levanta a seguinte questão:

Se a criança e o adolescente constituem sujeitos de direitos em


condição peculiar de desenvolvimentos e, portanto, prioridade
absoluta, em que medida na metodologia “DSD”, estes sujeitos
ocupam este lugar tão arduamente conquistado nos marcos legais?

O conjunto CFESS/CRESS entende que no Depoimento Especial o


profissional exercerá a função de “intérprete” do Juiz, sem que tenha direito de
exercer sua autonomia técnica. Ressalta que o Depoimento Especial não pode ser
confundido com o estudo social, pois neste último, o profissional pode definir
tecnicamente quais procedimentos, abordagens e instrumentos serão utilizados.
578
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Nesse sentido, considera-se que o estudo social é o método mais indicado para se
garantir uma avaliação autônoma e garantidora de direito.
Apesar do posicionamento do CFESS/CRESS, a Resolução 554/2009
(que vedava a participação do assistente social no DSD), foi suspensa, em
30/04/2013, por determinação de sentença pelo Juiz da 1ª Vara Federal da Seção
Judiciária do Ceará. (CFESS, 2009, pág.1).
Em 04 de abril de 2017 foi aprovada a Lei 13.431/2017 que estabelece e
normatiza o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, vítimas
de violência e, faz alterações no ECA. No título III estão dispostas as definições da
escuta especializada e do depoimento especial e suas aplicabilidades.
Diante da legislação supracitada, em 07 de agosto desse ano o CFESS,
através de seu site na internet, reafirmou seu posicionamento contrário ao
Depoimento Especial, avaliando que a Lei não obriga a participação de assistentes
sociais nesta metodologia, o que certamente ainda será alvo de muita discussão. Na
referida lei aparece a figura de “profissionais especializados”, que terão a função de
atuar junto às crianças e adolescentes e deverão explicar todos os procedimentos a
serem realizados para no procedimento de depoimento especial.
O CFESS/CRESS, a partir de então, recomenda que os profissionais
façam uso da autonomia profissional para continuar resistindo a assumir esta
atividade como uma das atribuições e competências da categoria que prima pela
Doutrina da Proteção Integral da criança e do adolescente. Além disso, o conjunto
CFESS/CRESS orienta que os assistentes sociais tenham atuações profissionais
cada vez mais qualificadas, com avaliações técnicas que possibilitem criar
condições objetivas para uma intervenção técnico-ético-política em consonância
com o projeto ético politico profissional.

2.3 - ASSOCIAÇÃO DOS ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGOS


DO TJ/SP (AASPTJ-SP)

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo instaurou o Depoimento


Especial em 30 de maio de 2011, através do protocolo CIJ nº 00066030/2011.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

A partir de então, a AASPTJSP juntamente com os Conselhos Federais e


Regionais de Psicologia e de Serviço Social e com base na Resolução nº 554/2009
do CFESS e na Resolução nº 10/2010 do CFP (ambas suspensas pelo Poder
Judiciário) tem se posicionado de forma contrária à metodologia de inquirição de
crianças supostamente vítimas de abuso ou violência sexual.
No ano de 2013, a Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP) ingressou com Pedido de
Providências junto ao Conselho Nacional de Justiça, “questionando a participação
dos assistentes sociais e psicólogos no depoimento especial” (AASPTJSP, 2017,
pág. 01).
Nesse ínterim, o TJSP reconheceu através do CSM nº 2236/2015 a
autonomia técnica das categorias profissionais. Diante disso, o Pedido de
Providência não foi extinto sem resolução do mérito.
Em 04 de abril de 2017, foi editada a Lei 13.431, que tornou obrigatório o
Depoimento Especial, estabelecendo que a metodologia “reger-se-á por protocolos”,
trazendo novamente destaque ao Protocolo 00066030/2011. Nesse sentido, a AASP
ressalta a possibilidade preconizada no referido protocolo, de que a Equipe Técnica
Judiciária, por meio de parecer fundamentado, desaconselhe o procedimento do
Depoimento Especial para a criança/adolescente (AASPTJSP, 2017, pág03).
Ademais, com base no Art. 4, inciso IV da Lei 13.431/2017, a AASP
orienta os profissionais a se respaldarem na violência institucional, quando entender
que esta acarretará revitimização da criança ou do adolescente. Outros pontos
argumentativos são o direito da criança/adolescente ter sua intimidade protegida e
condições pessoais garantidas, o direito de permanecer em silêncio e de ser
“resguardado e protegido de sofrimentos, com direito apoio, planejamento de sua
participação”. Nessa vertente, a associação considera que o técnico pode realizar
uma avaliação prévia através de entrevistas com crianças e responsáveis, com
vistas a assegurar os seus direitos, inclusive o de ser ouvida.
Em seu último informativo, a AASP reafirma seu entendimento de que o
Depoimento Especial fere a autonomia dos assistentes sociais e psicólogos.
Recomenda no ítem 02:

[...] que os associados que forem instados a participar do


Depoimento Especial invoquem o contido no item “C-1”, subitem “1-
580
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

e” do Protocolo CIJ 0006603/2011, para realizar a análise prévia das


condições da criança/adolescente participarem do método, como
medida protetiva recomendada pelo próprio Tribunal de Justiça.
(AASPTJSP, 2017, pág. 04).

3 - A PRÁTICA DO DEPOIMENTO ESPECIAL E SUA IMPLANTAÇÃO


NO BRASIL

O Depoimento Especial é implantado no Brasil na esteira de um


movimento internacional. A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou, em 2000,
o Protocolo Facultativo para a Convenção dos Direitos da Criança, estabelecendo
parâmetros para a oitiva, o qual foi promulgado pelo governo brasileiro em 2004. No
mesmo sentido, o Parlamento Europeu e o Conselho da Europa editaram a Diretiva
2011/92 EU com recomendações específicas sobre a oitiva especial.
Na América Latina, o depoimento especial teve início na Argentina, em
2003, com a criação da Câmara Gesell, através da Lei Federal n.25.852/2003
daquele país. Em 2006, o Peru inaugurou a sala de entrevista única.
São reportadas as principais formas desta técnica:
a) Sistema CCTV (Closed Circuit Television), circuito fechado de televisão
e gravação dos depoimentos, no qual a criança permanece em uma sala com o
entrevistador, seu depoimento é gravado em vídeo e assistido em outra sala pelos
profissionais do processo judicial e partes envolvidas, e
b) Câmara Gesell: uso de duas salas divididas por espelho unidirecional,
no qual o depoimento da criança ao entrevistador é assistido pelos operadores do
Direito através do vidro/espelho.
No Brasil, sua implantação teve início em 2003, na 2ª Vara da Infância e
Juventude de Porto Alegre (RS), sob a responsabilidade do Juiz José Antônio Daltoé
Cezar.
Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou a Recomendação
n.33/2010, reconhecendo e orientando quanto à necessidade de depoimento
especial adaptado à criança.
Entre os anos de 2011 e 2012, foi realizada uma pesquisa acerca das
experiências brasileiras com depoimento especial, já mencionada anteriormente,
resultando na elaboração da Cartografia Nacional das Experiências de Tomada de
581
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESCOLA JUDICIAL DOS SERVIDORES - EJUS

Depoimento Especial, no qual foram registradas 42 experiências em 15 estados do


país e Distrito Federal.
Na referida pesquisa, constataram que 55% das salas de depoimento
especial estavam localizadas na Região Sul do Brasil, 17% na Região Sudeste, 15%
na Região Nordeste, 8% na Região Centro-Oeste e 5% na Região Norte.
No começo de 2017, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já
havia implantado em 26 comarcas salas para o depoimento especial.
A lei 13.431/17, publicada em 05/04/2017, veio definitivamente instaurar a
Escuta Especial e o Depoimento Especial como um procedimento obrigatório na
justiça brasileira como meio de ouvir crianças e adolescentes vítimas de violência.
A participação da ONG Childhood Brasil no processo de implantação do
depoimento especial merece destaque, pois desde o início tem sido a principal
organização a se empenhar na implantação das salas especiais por todo o país,
através de convênios firmados entre diferentes Tribunais de Justiça dos estados.
No Mato Grosso não há exigência quanto à formação do profissional para
realizar a escuta, mas exige que seja capacitado no uso de entrevista cognitiva. Foi
criada uma Central de Depoimento Especial, com sede nas comarcas maiores, que
se deslocam para comarcas menores quando necessário.
Em trabalho de pesquisa realizado pela professora do Rio de Janeiro,
Leila Brito, ela constata a falta de uniformização em diferentes lugares onde estas
salas foram implantadas:

Porto Alegre – RS
sala especial de audiência
inquirição por assistentes sociais e psicólogos
fone de ouvido com assistentes sociais ou psicólogos.
sala espelhada (semelhante a câmera de Gesell)
criança bem posicionada para facilitar a filmagem
transcrição do depoimento nos autos
brinquedos não ficam visíveis para a criança para que ela “fique quieta no lugar”,
facilitando a filmagem. Caso ela relute, são oferecidos os brinquedos
outros setores, além da Vara da Infância ouvem a criança, como delegacias e
órgãos especializados

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Natal – RN
o equipamento de escuta estava quebrado à época (2011) e a psicóloga havia
entendido que devia prosseguir fazendo as perguntas à criança no lugar do Juiz

Curitiba - PR
a criança é quem ficava com o fone de ouvido e acabava ouvindo tudo que se
passava na sala de audiência
sala sem estímulos
inquirição direta feita pelo juiz
o psicólogo acompanha a criança na sala somente para fazer companhia, não faz
perguntas
serviço especializado em delegacia com brinquedos e áudio onde a criança também
era entrevistada antes de ir para a Vara da Infância. Em algumas cidades do interior
a criança assinava o depoimento

Brasília – DF
antes da audiência havia uma entrevista da criança com assistentes sociais e
psicólogos
as perguntas feitas pelo Juiz eram elaboradas junto com os técnicos
o fone de ouvido ficava com os profissionais
na sala de depoimento ficavam os profissionais que tinham feito a avaliação
psicossocial anteriormente com a criança
dois profissionais participavam da audiência, sendo que um deles permanecia na
sala com os operadores do direito e outro com a criança na sala especial
gravação em áudio
delegacia especializada e Vara da Infância faziam a escuta (duas tomadas de
depoimento da criança)
espaço temporal grande entre o fato ocorrido até a realização do depoimento

São Paulo – SP
denominado como “atendimento não revitimizante”

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prontuário padronizado o qual era preenchido onde a criança-vitima fosse atendida


pela primeira vez (escola, hospital, delegacia)
atendimento da equipe interdisciplinar com a criança antes da audiência, os quais
eram filmados e gravados
telefone para perguntas na sala da audiência
início da audiência com relato livre da criança e, posteriormente perguntas
complementares feitas tanto pelo profissional quanto pelo Juiz através do telefone
gravação de áudio
transcrição literal das falas

São Luís – MA
criação do “centro de pericias técnicas” para ouvir a criança, o qual funcionava no
mesmo espaço da Delegacia, porém independente. Os centros contavam com
muitos brinquedos e a presença de equipe interdisciplinar, inclusive médico
na delegacia ouvia-se apenas os casos envolvendo adolescentes-vitimas. As
crianças eram atendidas no “centro de pericias”
os técnicos entrevistavam a criança e/ou adolescente no centro de pericia e/ou na
delegacia. Os técnicos não participavam de audiência de depoimento sem dano
o primeiro atendimento sempre era realizado com o responsável que levou criança
os técnicos não atendiam o acusado

Campina Grande – PB (escuta móvel)

ônibus estacionava na praça da cidade para a audiência com as crianças e


adolescentes (vítimas)
depoimento com filmagem e áudio

Também foi verificada que a metodologia usada sofre muitas variações:


salas com ou sem câmeras; com ou sem brinquedos; com ou sem gravações de
áudio;

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atendimento: experiências somente com as crianças e adolescentes (vítimas);


atendimento as crianças e também responsáveis pela queixa; atendimento a todos
envolvidos, incluindo o acusado
a criança era ouvida diversas vezes (Vara da Infância, Delegacia, Vara Criminal,
Setor Técnico, Centro de Pericia, Ministério Público), contrariando o objetivo
principal do projeto em ouvi-la uma única vez
profissionais confusos entre o que era o termo inquirição, depoimento, escuta e
avaliação psicossocial
falta de capacitação dos profissionais e juízes
várias salas estavam com equipamentos quebrados para fazer o depoimento
especial, improvisando-se outras formas de coletar os dados.
as provas materiais eram tidas como secundárias em favor do “testemunho da
criança”
lapso de tempo significativo entre o fato e o depoimento, prejudicando a questão da
“proteção”.

Por fim, a pesquisadora levanta questionamentos importantes sobre o próprio


Depoimento Especial:
problema ético para os profissionais na inquirição das crianças, pois não utilizam
instrumentos, técnicas e referenciais teóricos próprios da área, mas especialmente
da área jurídica
estudo no Brasil para padronização de um roteiro de entrevista. Fala-se em aplicar o
protocolo utilizado nos EUA conhecido como “Nichd”. Este promete revelar em 20
minutos a verdade, o que é muito questionável, pois não é tão simples diferenciar
“verdade de mentira”, “ fato e fantasia”, perde-se a singularidade de cada caso
a transcrição literal das falas não se leva em questão “o que não é dito pela criança”
é ético colocar brinquedos para a criança falar mais, não seria uma forma de
sedução?
a questão do “sigilo” utilizando-se o áudio e filmagens está garantido?
o fato de não atender o acusado possibilita conhecer o caso integralmente ou
poderá faze-lo produzir provas contra si?
existe mesmo a revitimização da criança porque ela repete várias vezes a história?

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desconsidera-se os danos causados para a criança com o depoimento e


condenação do agressor
como podemos garantir para a criança que será melhor pra ela o depoimento?
direito de falar da criança se transforma na obrigação de falar. A criança pode não
querer falar? Ou pode dizer “não sei”?
O Tribunal de Justiça de São Paulo, a partir da publicação da lei 13.431/17, Lei da
Escuta Especial, iniciou a capacitação dos profissionais psicólogos e assistentes
sociais para a implantação em todo o estado. Apesar de que a Lei não se refere
especificamente a estes profissionais, observamos que eles têm sido
preferencialmente utilizados para a execução dos projetos.
Até o momento foi realizada uma capacitação com a RAJ de Bauru, São José do Rio
Preto e Presidente Prudente e dentre algumas avaliações de profissionais que
tivemos acesso ouvimos que há um impressão da necessidade de tornar o
profissional apto a realizar os procedimentos conforme prevê a Lei, sem no entanto
prepará-lo adequadamente.
A capacitação foi considerada superficial e confusa quanto aos protocolos, à
autonomia do profissional, a obrigatoriedade da vítima em falar, entre outras
questões. Também sobre como a Rede de Proteção vai efetivamente ser incluída
nos cuidados com a vítima, antes e depois da escuta.

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4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o ano de estudos oportunizados pelos encontros em grupo,


muitos foram os questionamentos, dúvidas e incertezas suscitadas pelas
discussões, sobretudo no que concerne à efetividade da proteção da
criança/adolescente dentro da perspectiva proposta pela referida Lei.
Reconhece-se que a nova modalidade de escuta surgiu em meio à
complexidade que envolve os processos em que figuram crianças como vítimas,
sobretudo no que tange a violência sexual. Ainda que o objetivo do procedimento
seja a proteção dos infantes e adolescentes, considera-se que a função de
materialização de provas, ou seja, aferição dos fatos e punição do responsável é
elemento central de sua utilização na esfera penal. Neste aspecto, reflete-se sobre a
complexidade que envolve a responsabilização da criança pela punição do suposto
agressor, vez que a maioria dos casos de violência sexual ocorre no âmbito
intrafamiliar, conforme revelam os estudos especializados neste tema. Ou seja, em
geral são pessoas do círculo íntimo de convivência da criança que cometem tais
formas de agressão (NOGUEIRA; PEREIRA, 2004, p. 51).
Estes autores remarcam que a violência sexual é marcada por
estabelecimento de vínculo de confiança e poder, e nem sempre configura uma
violência explícita, mas por se tratar de caso de corrupção do vínculo, os atos
podem inclusive configurar expressões amorosas ambíguas, de difícil constatação.
Colocada no lugar de dar conta dessa formalidade processual, sendo
responsabilizada pela punição do agressor, a criança ou o adolescente pode ser
paralelamente inserida num contexto de desproteção, ou seja, esta prática judiciária
pode representar uma nova violência do ponto de vista emocional, o que contraria o
direito à proteção integral. Tal perspectiva é diferente da exercida pelos técnicos de
Psicologia e Serviço Social que, em seus papéis, comprometem-se com a garantia
de direitos e a proteção integral da criança e do adolescente. Forma-se, portanto,
uma confusão entre a competência desses setores técnicos com a jurídica.
Considera-se que a escuta psicológica se constitui uma possibilidade do
profissional oferecer cuidados e potencializar certos modos de subjetivação,
contribuindo com o desenvolvimento do sujeito para além de seu sofrimento, assim
como com a garantia de seus direitos. Ao mesmo tempo, essa escuta também se

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relaciona com a garantia de direitos das famílias dessas crianças e adolescentes


vítimas, e dos supostos agressores. Lembrando-se, conforme supramencionado,
que a violência contra a infância e juventude é principalmente um fenômeno
intrafamiliar, reconhece-se a complexidade do trabalho do psicólogo com o tema
abuso sexual, vez que permeia questões intrínsecas ao humano, como é o caso do
incesto, por exemplo. Assim, trabalhar com esta problemática insere o profissional
num contexto vasto e delicado, em que o afeto é ponto fundamental existente nestas
relações, mesmo que por vezes entremeado por manifestações violentas ou de
ambiguidade para com a vítima criança ou adolescente.
No que tange à escuta da criança enquanto procedimento processual,
não se deve ignorar o contexto que vem à posteriori, isto é, conteúdos emocionais
serão suscitados e deverão ser trabalhados para que haja, de fato, proteção integral.
É fundamental que aconteça o oferecimento de cuidados psicológicos efetivos à
criança e seus familiares neste momento, quando as repercussões emocionais
vierem à tona e demandarem, evidentemente, elaborações. Para tanto, o trabalho
em rede torna-se única fonte de solução. Contudo, dentro de nossas práticas
profissionais observamos o quanto a fragilidade destes trabalhos têm sido crescente,
tanto pela ausência de capacitação dos profissionais, quanto pelo abandono político,
isentando-os de atenção e investimentos.
Como poderia ser possível o trabalho unificado do Tribunal de Justiça
com a rede de proteção, durante e após a Escuta especial? Este e outros
questionamentos requerem maiores estudos e, claro, um trabalho árduo e complexo
para que o procedimento da Escuta especial venha a se configurar num dispositivo
protetivo.
É necessária uma construção interdisciplinar e intersetorial para abordar a
questão da violência contra crianças e adolescentes. Implica enfrentar inúmeras
violações de seus direitos, de suas famílias e dos (supostos) agressores que se dão
ao longo de toda a rede, como a ausência ou baixa qualidade de serviços e
atendimentos ou mesmo a ocorrência de excessivas intervenções e de diferentes
serviços e profissionais. Neste âmbito, o grupo de
Outro fator que causa dúvidas e estranhamento aos profissionais
judiciários que compõem a equipe técnica quanto à utilização do depoimento que
visem à promoção, a proteção e a defesa dos direitos de crianças e adolescentes de

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todas as formas de violação. Contudo, dentro das práticas profissionais observa-se o


quanto a fragilidade desse trabalho tem sido crescente, tanto pela ausência de
capacitação dos profissionais, quanto pelo abandono político, isentando-o de
atenção e investimentos.
Ademais, a respeito dos serviços ofertados pela rede socioassistencial,
cada vez mais se mostram fragilizados em virtude da falta de investimento, bem
como da necessidade de um trabalho unificado e articulado visando proporcionar às
crianças e suas famílias serviços de apoio adequados ao longo de todo o processo
judicial.
Diferentes estudos apontam a necessidade de maiores investimentos na
rede de promoção e proteção, a fim de garantir o atendimento de qualidade,
capacitação dos profissionais, celeridade nos serviços, ampliação de conhecimento
no funcionamento da rede e humanização da escuta das crianças e adolescentes
envolvidos em situação de violência, especialmente de violência sexual.
Para além do embate existente na discussão sobre a oitiva judicial de
crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência sexual, discute-se a
necessidade e os desafios para a garantia da proteção integral desses indivíduos.
Nesse sentido, salienta-se a preponderância da proteção e bem estar das crianças e
adolescentes em detrimento de qualquer preocupação com a prova testemunhal.
A responsabilização do autor da agressão se faz necessária, contudo a
criminalização não deve ser a única resposta do Estado a essa violação, a medida
do enfraquecimento da responsabilização Estatal e social.
Diante desse cenário questiona-se como efetivamente se dará o trabalho
unificado do Tribunal de Justiça com a rede de proteção, durante e após a Escuta
especial? Este e outros questionamentos requerem maiores estudos e, claro, um
trabalho árduo e complexo para que o procedimento do Depoimento Especial venha
a se configurar num dispositivo protetivo.
É necessária uma construção interdisciplinar e intersetorial para abordar
a questão da violência contra crianças e adolescentes. Implica enfrentar inúmeras
violações de seus direitos, de suas famílias e dos (supostos) agressores que se dão
ao longo de toda a rede, como a ausência ou baixa qualidade de serviços e
atendimentos ou mesmo a ocorrência de excessivas intervenções e de diferentes
serviços e profissionais.

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Neste âmbito, sugeriu-se a produção de pesquisas pelos técnicos do


Judiciário, no sentido de apresentar a realidade de cada Comarca aos juízes
responsáveis, com aferição do fluxo da violência, possibilitando a construção de um
caminho em conjunto com a rede de cada município.
Outro fator que causa dúvidas e estranhamento aos profissionais
judiciários que compõem a equipe técnica quanto à utilização do depoimento
especial, refere-se à possiblidade da recusa profissional ao cumprimento da
determinação de sua inclusão e condução do depoimento especial, definido no rito
processual de ações criminais.
Isto porque, ao longo da discussão histórica em torno da temática, os
conselhos das categorias se posicionaram coletivamente em resoluções e pareceres
contrários ao procedimento de escuta especial, tendo em vista os possíveis riscos
de danos a crianças e adolescentes e também às prerrogativas e atribuições dos
profissionais de Serviço Social e Psicologia62.
No cenário atual, com a vigência da Lei 13.431/2017, tais profissionais
são inseridos no procedimento de depoimento especial, sob o fundamento de que
detém expertise profissional ao desempenho da referida atividade, que o sucinta
novas dúvidas, seja em relação à autonomia profissional neste novo processo de
trabalho, seja quanto à garantia de efetiva e integral proteção de crianças e
adolescentes vítimas e/ou testemunhas de violência.
Intrínseco a isto, embora a resolução CFESS de n° 554/2009 (que vedou
aos assistentes sociais a participação no depoimento sem dano) esteja suspensa
desde o ano de 2014, até o momento, o posicionamento do citado órgão permanece
inalterado em relação à participação de assistentes sociais nas equipes
responsáveis pela inquirição especial/DSD63.
Diante disto, reforçam-se os questionamentos quanto à devida ou não
participação de profissionais da equipe técnica do sistema de justiça nos
procedimentos de depoimento especial, dada a complexidade da violência que
historicamente perpassa a vida de milhares de crianças /adolescentes e suas
famílias.

62
Nota Técnica sobre a participação de assistente social no depoimento sem dano. CRESS –SP.
2016. p. 9.
63
C3FESS Manifesta. Agosto 2017.
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Dessa maneira, para além do espaço sociocupacional existem diferentes


questões éticas correlatas à atuação de assistentes sociais e psicólogos, as quais
merecem melhor aprofundamento de reflexões, à medida que a superação do
processo de violência e proteção de crianças e adolescentes extrapola a definição
ou não de culpabilidade.

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REFERÊNCIAS

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02 de novembro de 2017.

BRASIL. Lei nº13.431, de 04 de abril de 2017. Estabelece o Sistema de Garantia de


Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência e Altera a
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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2009.

______. Institui a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e


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Disponível em
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CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA (CRP). Depoimento Especial de


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______. Reflexões Ético-políticas sobre a metodologia “Depoimento sem Dano”


(DSD) junto a crianças e adolescentes vítimas de violência, abuso e exploração
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NASCIMENTO, André. Depoimento sem dano: o Projeto Paulista. In: Violência


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POLISOLI, Cátula; DOBKE, Veleda; DELL’AGLIO, DALBOSCO, Débora Depoimento


Especial: Para Além do Embate e pela Proteção das Crianças e Adolescentes

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Vol. 22, nº 1, 25 -38.

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TORRCA DE BRITO, Leila, FERNANDES, Tatiana. Entrevista: A escuta de crianças


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