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Uma amostra dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux

4. VISÃO DE GRACILIANO RAMOS

OTTO MARIA CARPEAUX

A "mestria singular" do romancista Graciliano Ramos reside no seu estilo. Para salvar
esta frase da apreciação "lugar-comum" é apenas preciso definir o que é estilo: escolha
de palavras, escolha de construções, escolha de ritmos dos fatos, escolha dos próprios
fatos para conseguir uma composição perfeita, perfeitamente pessoal: pessoal, no caso,
"à maneira de Graciliano Ramos". Estilo é escolha entre o que deve perecer e o que
deve sobreviver. Vamos ver o que Graciliano Ramos escolhe.

É muito meticuloso. Quer eliminar tudo o que não é essencial: as descrições pitorescas,
o lugar-comum das frases feitas, a eloqüência tendenciosa. Seria capaz de eliminar
ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo.
Para guardar apenas o que é essencial, isto é, conforme o conceito de Benedetto Croce,
o "lírico". O lirismo de Graciliano Ramos, porém, é bem estranho. Não tem nada de
musical, nada do desejo de dissolver em canto o mundo das coisas; acredito-o incapaz
de escrever a última página de O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, talvez a mais
bela página de prosa da literatura brasileira. O lirismo de Graciliano Ramos é amusical,
adinâmico, estático, sóbrio, clássico, classicista, traindo, às vezes, um oculto passado
parnasiano do escritor. Não quer agitar o mundo agitado; quer fixá-lo, estabilizá-lo.
Elimina implacavelmente tudo o que não se presta a tal obra de escultor, dissolve-o em
ridicularias, para dar lugar aos seus monumentos de baixeza.

Com efeito, o material desse classicista é bem estranho: é o mundo inferior; às mais das
vezes, o mundo infernal. Lá, as almas são caçadas por um turbilhão demoníaco de
angústias, como as almas no vestíbulo do Inferno de Dante:

"Qui sospiri, pianti ed alti guai


Risonavan per l’aer senza stelle...
Diverse lingue, orribili favelle
Parole di dolore, accenti d’ira..."1

É uma tortura sem fim; e o próprio Dante apiedou-se dos que

".... non hanno speranza di morte,


E la lor cieca vita è tanto bassa,
Che invidiosi son d’ogni altra sorte."2
São aqueles dos quais o romancista Graciliano Ramos também se apieda, pois é cheio
de misericórdia. Procura-lhes a "altra sorte", estabilizando classicamente o turbilhão,
eliminando duramente tudo o que não é essencial, erigindo-os em monumentos de
baixeza, como criaturas petrificadas dum maligno Demiurgo, restos fósseis duma
criação malograda, redimidos, enfim, pela criação mortífera da arte. Graciliano Ramos é
o clássico deste mundo da morte.

É um clássico. Mas — contradição enigmática — é um clássico experimentador. A


estréia excepcionalmente tardia, com mais de quarenta anos de idade, deve ter sido
precedida de vagarosos preparativos de um experimentador, e mesmo depois continuou
sempre a experimentar. O nosso amigo comum Aurélio Buarque de Holanda chamou-
me a atenção para a circunstância de representar cada uma das obras de Graciliano
Ramos um tipo diferente de romance. Com efeito. Caetés é dum Anatole ou Eça
brasileiro; São Bernardo é digno de Balzac; Angústia tem algo de Marcel Jouhandeau, e
Vidas secas algo dos recentes contistas norte-americanos. Graciliano Ramos faz
experimentos com a sua arte; e como o "mestre singular" não precisa disso, temos aí um
indício certo de que está buscando a solução de um problema vital.

Eu não disse nada para comparar. Comparações são fáceis e inúteis, produzem apenas
apreciações de clichê, como o "sertanejo culto", sempre repetido. Não chegam a
penetrar no coração da criação pessoal; e é esta justamente a minha modesta ambição.
Para conseguí-lo, vou escolher um processo estranho, estranho como o meu assunto.
Vou construir uma teoria para apanhar a minha vítima; vou construí-la de pedaços de
outras criações, alheias, com as quais Graciliano Ramos não tem nada que ver; vou
colher esses pedaços, entregando-me ao jogo livre das associações. "Gastei meses
construindo esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas que se
confunde com ela." Vou construir o meu Graciliano Ramos.

"Meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa
rede armada nos esteios do copiar, cortando palhas de milho para cigarros, lendo o
Carlos Magno, sonhando". Logo me lembro do pintor incomparável da vida estática,
imóvel, inconsciente, nos "engenhos" escravocratas da Rússia tzarista, daquele
Gontcharov de quem me lembrei quando li a comparação do Brasil escravocrata com a
Rússia servil, em Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Os romances de
Gontcharov pintam classicamente um mundo primitivo amoral, "atrabalhador",
preguiçoso demais para trabalhar, amar, viver. Parecem idílios de pura art pour l’art;
são acusações terríveis contra o regime, contra o Estado russo, que quis movimentar
esse mundo imóvel por pretensas reformas econômicas e sociais. O primeiro romance
de Gontcharov chama-se: Uma história simples; o último: A queda.

O satírico malicioso deste movimento é outro russo, que me ocorre, Saltykov-


Chtchedrine, também partidário da imobilidade conservadora, contra os experimentos
liberais dos tzares de então, e que a todos pareceu um revolucionário, menos à censura,
à qual ele sabia enganar pela sua mestria singular de estilista. Saltykov escreveu uma
maravilhosa História da Rússia romanceada, começando com a chamada, pelo povo
russo, dos três irmãos Ruriks, fundadores da dinastia, para "sistematizar e codificar a
desordem e a violência". À boa maneira das epopéias, os irmãos sonham, na noite
anterior à coroação, a futura história russa, e o sonho é tão terrível que dois dos irmãos
logo se suicidam. Ao terceiro, porém, diz o povo: "Que te importam as mentiras que os
nossos descendentes vão aprender na escola?" E ele funda o Império russo, "o maior
império da história, maior do que Roma; pois em Roma brilhava o paganismo, e entre
nós brilha do mesmo modo o cristianismo, em Roma raivava a plebe, e entre nós as
autoridades." Assim, tudo ficava bem. Até que, um dia, um tzar teve a idéia desgraçada
de reformar o Estado e a civilização. Fundou uma Academia de Letras e promulgou
uma legislação em virtude da qual "foi proibido cozer pão de cimento ou argamassa". O
povo agradecido povoou a cidade de monumentos dos seus príncipes, na esperança de
fazer parar, petrificar, assim, as atividades deles. Mas, pelos benefícios do governo, os
homens transformaram-se em lobos famintos; como numa fábula de Saltykov, o Pobre
lobo, o monstro que não é maligno mas que não pode viver sem carne e que, por isso,
deve matar, e invoca a morte salvadora para as vítimas e para si mesmo.

O monstro lembra-me o terrível Leviatã, de Julien Green, que vive no coração de


inofensivos mestres-escola, filhos-família, rendeiros abastados, para revoltar-se de
súbito, um dia, arremessar-se insaciavelmente, o monstro, por quartos de assassínio,
escadas funestas, becos escuros, até descansar, extenuado, à margem do rio noturno, que
corre lento, sujo, pela cidade, único resto da paisagem primitiva que existia antes deste
mundo artificial e miserável de instituições públicas, jornais públicos, mulheres
públicas, e que ainda existirá quando tudo isto houver acabado. E o monstro desgraçado
curva-se nostalgicamente sobre a água escura, suja, que lhe oferece a última
possibilidade de salvação: o próprio rosto, refletido lá no fundo, é o da morte.

Todas as personagens de Graciliano Ramos são tais monstros, revoltados, caçados,


nostálgicos da morte, com os quais o Demiurgo, o "presidente dos imortais", brinca. A
expressão "the president of the immortals" é de Thomas Hardy, também um "sertanejo
culto", pequeno intelectual, perdido no "sertão" inglês de Wessex, a paisagem mais
agrária, mais atrasada, mais primitiva, da Inglaterra, onde se passam todos os seus
romances, para onde o velho Hardy enfim se retirou, a viver a vida arcaica e imóvel dos
rochedos e pântanos, abandonando, enfim, o romance para fazer só os seus pequenos
poemas, endurecidos como monumentos pré-históricos, e cujas rimas fielmente
tradicionais anunciam a reconciliação resignada do poeta com o mundo morto:

"Black is night’s cope;


But death will no appal
One who, past doubtings all,
Waits in unhope."3

O crítico espanhol José Bergamín gostaria dessas associações. Confirmam a sua teoria
do romance: o leitor perde-se no romance para esquecer o seu mundo, mas encontra-se
lá, reconhecendo que o seu próprio mundo está chamado a desaparecer: "Perderse, para
encontrarse, para perderse." O romance seria um processo de economia mental para
apressar o fim do mundo: "Cada novela es la manifestación de un mundo llamado a
desaparecer, y que antes de desaparecer quiere aparecer, comparecer: y aparece,
comparece en efecto, solicitando esperando ser juzgado".

É a teoria dum espanhol, dum cristão, dum pessimista. A teoria dum espanhol, isto é,
dum homem que toma radicalmente a sério o cristianismo. A teoria dum cristão, isto é,
dum homem que sabe que esta vida não presta. É uma teoria de estética pessimista.

Toda literatura pessimista encontra uma resistência fanática; leitores e críticos não
gostam disso. Sentem vagamente que arte e pessimismo se contradizem. Mas em vez de
estudarem esteticamente a possível contradição, entrincheiram-se em regiões fora da
arte, na filosofia, na ética, para bombardear o romancista com as censuras de "pouca
generosidade" ou de niilismo insaudável. Não admito preconceitos. O pessimismo não é
uma moral nem uma filosofia. É um estado de alma. É preciso esboçar uma psicologia
do pessimismo.

Penso em Schopenhauer. Não é um sistema filosófico. É um caso psicológico.


Pretendeu ser filósofo, ensinar uma filosofia da salvação do mundo do sofrimento
universal. Mas a sua personalidade o desmentiu. Ao desprezo filosófico do mundo uniu
um instinto ardente de propriedade e de prazer. Dinheiro e mulheres significavam para
ele alguma coisa. Quis utilizar os homens profundamente desdenhados como meros
instrumentos dos seus desejos, e quanto mais eles se recusaram, tanto mais os
desdenhou. Sofria de hipocondria, de graves ataques de pavor noturno, de angústia.
Teve uma misericórdia ilimitada para consigo mesmo. Como psicólogo, reconheceu que
toda misericórdia para com outros é secreta misericórdia para consigo mesmo; e salvou-
se moralmente pela identificação panteística do seu eu angustiado com o mundo
sofredor, pela fórmula budista "Tat twam asi." "Isto és tu." O seu supremo egocentrismo
chegou até a negar a realidade do mundo exterior; considerou a vida um sonho, sonho
horrível do qual existe apenas uma possibilidade de acordar: no outro sonho, na arte. Na
arte, o turbilhão angustiado encontra a calma, a estabilidade do estado primitivo antes
da criação é restabelecida. (Como as palavras rimam, enfim!) A arte é uma astúcia do
espírito humano, para fraudar o mau Demiurgo das suas vítimas, para ironizar a criação
malograda.

A ironia é uma arma suprema. "C’est l’ironie" — diz Max Jacob — "qui lui fournit
chaque jour une clé pour sortir de sa prison." 4 É um método para anular a obra do
Demiurgo. "Revogam-se as disposições em contrário". E tornam-se inúteis todas as
revoluções. Em comparação com aquela ironia supra-realista, todas as revoluções,
intimamente ligadas a este mundo de maldição por meio de um otimismo crédulo nas
transformações exteriores, parecem ridiculamente ineptas, impotentes contra "the
ingenious machinery contrived by the Gods for reducing human possibilities of
amelioration to a minimum".5 Acredito que Graciliano Ramos pode conformar-se com
esta frase de Thomas Hardy. Conheço bem ou bastante as suas convicções, para ficar
convencido, da minha parte, de que representam apenas a superfície do seu pensamento.
Não são transformáveis em arte; e isto é significativo. Luís Padilha e o judeu Moisés
não são heróis revolucionários. Cada vez que o romancista cede à tentação de formular
programas de reformas sociais — a professora Madalena fala assim — cai logo na
armadilha do seu inimigo mais detestado: o lugar-comum; no caso, o lugar-comum
humanitário, da "generosidade", que o seu crítico mais incompreensivo lhe aconselhou.
Certamente, a alma deste romancista seco não é seca; é cheia de misericórdia e de
simpatia para com todas as criaturas, é muito mais vasta do que um mestre-escola
filantrópico pode imaginar; abrange até o mudo assassino Casimiro Lopes, até a
cachorrinha Baleia, cuja morte me comoveu intensamente: "Tat twam asi." A
misericórdia do pessimista para consigo mesmo é tão compreensiva que medita todos os
meios de salvação, para deter-se apenas no último: a destruição deste mundo, para
libertar todas as criaturas. "Un mundo llamado a desaparecer." É preciso destruir o
mundo exterior, para salvar a alma.
A realidade, nos romances de Graciliano Ramos, não é deste mundo. É uma realidade
diferente. Após ter lido Angústia até o fim, é preciso reler as primeiras páginas, para
compreendê-las. É um mundo fechado em si mesmo. Que mundo é?

"Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois
um esquecimento quase completo" — confessa Luís da Silva em Angústia. E depois:
"Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos
andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento." E acrescenta: "Não sei se
com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim." É assim com todos nós outros, quando
entramos no mundo empastado e nevoento, noturno, onde os romances de Graciliano
Ramos se passam: no sonho. Os hiatos nas recordações, a carga de acontecimentos
insignificantes com fortes afetos inexplicáveis, eis a própria "técnica do sonho", no
dizer de Freud. Álvaro Lins, no melhor artigo que se escreveu sobre Graciliano Ramos,
observou agudamente a abstração do tempo — "Mas no tempo não havia horas", cita o
crítico —, e acrescenta: "Os outros personagens são projeções do personagem principal.
Julião Tavares e Marina só existem para que Luís da Silva se atormente e cometa o seu
crime. Tudo vem ao encontro do personagem principal — inclusive o instrumento do
crime". Estas palavras do crítico constituem a chave da obra do romancista: descrevem
perfeitamente a nossa situação no sonho, em que tudo é criação do nosso próprio
espírito. Explica-se assim o extremo egoísmo dos heróis de Graciliano Ramos: é o
egoísmo daquele que sonha e para o qual, prisioneiro dum mundo irreal, só ele mesmo
existe realmente. A mentalidade inteiramente amoral do sonho exclui, decerto, toda
"generosidade"; mas a substitui por um sentimento mais vasto de identificação quase
mística com as criaturas da própria imaginação, até a cachorrinha Baleia: "Tat twam
asi."

O extremo egoísmo do sonho engendra o motivo principal do romancista: cobiça de


propriedade. Propriedade de terra, de mulher, em São Bernardo; aqui e em Angústia, a
forma extrema desta cobiça, o ciúme. Por isso, nos romances de Graciliano Ramos,
esses afetos ultrapassam toda medida; sugerem, ao lado dos afetos análogos na vida
real, a impressão de sentimentos patológicos. E quando o autor considera os monstros
da sua angústia de sonho, lança o seu grito mais elementar: "Dinheiro e propriedade
dão-me sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições."

"Ai quando virá o anjo da destruição


p’ra acabar com a minha memória..."

(Murilo Mendes).

Todos os romances de Graciliano Ramos — e este é o sentido do seu experimentar —


são tentativas de destruição; tentativas de "acabar com a minha memória", tentativas de
dissolver as recordações pelos "estranhos hiatos" dum sonho angustiado. Trata-se de
saber que mundo de recordações se dissolve assim.

A resposta é bastante difícil. Surge, ainda uma vez, o clichê do "sertanejo culto" e
sugere aos críticos a idéia de que o romancista está furioso contra o ambiente selvagem
do seu passado. Mas não é assim. Não é o sertão o culpado; Vidas secas é o seu
romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é —
superficialmente visto, numa primeira aproximação — a cidade. O herói de Graciliano
Ramos é o sertanejo desarraigado, levado do mundo primitivo, imóvel, para o mundo do
movimento. É o vagabundo ("um pobre nordestino..."); e explica-se o seu ódio
balzaquiano ao mundo burguês, que conseguiu a estabilidade relativa do comércio de
secos e molhados. Esta vagabundagem é o aspecto sociológico do egoísmo do sonho
quando se choca com a realidade. É o desejo violento do vagabundo de restabelecer-se
na terra: "Como a cidade me afastara de meus avós!" Mas é apenas uma explicação em
primeira aproximação: pois Paulo Honório consegue o seu fim, e, contudo, é uma vida
malograda. Por quê? Porque o seu criador quer mais do que terra, casa, dinheiro,
mulher. Quer realmente voltar aos avós. Voltar à imobilidade, à estabilidade do mundo
primitivo. E para atingir este fim, deve antes destruir o mundo da agitação angustiada, à
qual está preso.

Os romances de Graciliano Ramos são experimentos para acabar com o sonho de


angústia que é a nossa vida. Uma lenda budista conta dum homem que correu, ao sol do
meio-dia, para fugir à sua sombra, que o angustiava; correu, correu, sempre perseguido
pelo companheiro sinistro, até que encontrou o grande Sábio, que lhe disse: — "Não
continues a fugir! Assenta-te sob esta árvore!" E como ele parou, a sombra desapareceu.
A sombra sobre o mundo de Graciliano Ramos não é a sombra da árvore da salvação,
mas a do edifício da nossa civilização artificial — cultura e analfabetismo letrados,
sociedade, cidade, Estado, todas as autoridades temporais e espirituais, que ele convida
ironicamente — no começo de São Bernardo — a colaborar na sua obra de destruição.
Mas eles mostram-se incapazes de cometer o suicídio proposto. Entrincheiram-se na
"dura realidade", imposta a todas as criaturas do Demiurgo, e que se arroga todos os
atributos da eternidade. O romancista, porém, não se conforma. Transforma esta vida
real em sonho — pois do sonho, afinal, se acorda. Então, as disposições funestas do
Demiurgo seriam revogadas, e o destruidor poderia dizer, com o Gide das Nouvelles
Nourritures: "Table rase. J’ai tout balayé. C’en est fait. Je me dresse nu sur la terre
vierge, derrière le ciel à repeupler."6

O fim é o estado primitivo do mundo — o céu repovoado. Então, a angústia já não


assusta.

"Black is night’s cope;


But death will not appal
One who, past doubting all,
Waits in unhope."

Foi a última sabedoria poética do romancista Thomas Hardy, versos duros, populares e
clássicos ao mesmo tempo, rimados em sinal da concordância resignada com o mundo.
É possível que o romancista Graciliano Ramos escreva também, um dia, tais versos,
duros, populares e clássicos ao mesmo tempo, versos tradicionais, como o velho Hardy.
Mas não serão rimados. Serão versos brancos. Pois a primeira rima de Graciliano
Ramos já anunciaria o Fim do Mundo.

NOTAS

1. "Suspiros, pranto e gritos escutei


Ressoando pelo ar falto de estrelas,
<E assim, chorando, logo me encontrei.> <Não incluído por Carpeaux.>
Estranhas línguas, falas tendo nelas
Palavras só de dor, marcas de ira,
E mãos batendo e rouca voz, flagela..." [J.W.]
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2. "Esses não têm esperança de morte
E sua vida vivem na desgraça,
Tanto que invejam qualquer outra sorte." [J.W.]
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3. "Negra copa a noite avança;
Mas Morte não apavora
Quem passou tudo: - e que agora
Espera sem esperança." [J.W.]
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4. "É a ironia que lhe fornece a cada dia uma chave para sair de sua prisão." [N.E.]
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5. "O engenhoso mecanismo concebido pelos Deuses para reduzir a um mínimo as
possibilidades humanas de melhorar." [N.E.] Voltar
6. "Tábua rasa. Tudo varri. Está feito. Ergo-me nu sobre a terra virgem, ante o céu
por repovoar." [N.E.] Voltar

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