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A "mestria singular" do romancista Graciliano Ramos reside no seu estilo. Para salvar
esta frase da apreciação "lugar-comum" é apenas preciso definir o que é estilo: escolha
de palavras, escolha de construções, escolha de ritmos dos fatos, escolha dos próprios
fatos para conseguir uma composição perfeita, perfeitamente pessoal: pessoal, no caso,
"à maneira de Graciliano Ramos". Estilo é escolha entre o que deve perecer e o que
deve sobreviver. Vamos ver o que Graciliano Ramos escolhe.
É muito meticuloso. Quer eliminar tudo o que não é essencial: as descrições pitorescas,
o lugar-comum das frases feitas, a eloqüência tendenciosa. Seria capaz de eliminar
ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo.
Para guardar apenas o que é essencial, isto é, conforme o conceito de Benedetto Croce,
o "lírico". O lirismo de Graciliano Ramos, porém, é bem estranho. Não tem nada de
musical, nada do desejo de dissolver em canto o mundo das coisas; acredito-o incapaz
de escrever a última página de O moleque Ricardo, de José Lins do Rego, talvez a mais
bela página de prosa da literatura brasileira. O lirismo de Graciliano Ramos é amusical,
adinâmico, estático, sóbrio, clássico, classicista, traindo, às vezes, um oculto passado
parnasiano do escritor. Não quer agitar o mundo agitado; quer fixá-lo, estabilizá-lo.
Elimina implacavelmente tudo o que não se presta a tal obra de escultor, dissolve-o em
ridicularias, para dar lugar aos seus monumentos de baixeza.
Com efeito, o material desse classicista é bem estranho: é o mundo inferior; às mais das
vezes, o mundo infernal. Lá, as almas são caçadas por um turbilhão demoníaco de
angústias, como as almas no vestíbulo do Inferno de Dante:
Eu não disse nada para comparar. Comparações são fáceis e inúteis, produzem apenas
apreciações de clichê, como o "sertanejo culto", sempre repetido. Não chegam a
penetrar no coração da criação pessoal; e é esta justamente a minha modesta ambição.
Para conseguí-lo, vou escolher um processo estranho, estranho como o meu assunto.
Vou construir uma teoria para apanhar a minha vítima; vou construí-la de pedaços de
outras criações, alheias, com as quais Graciliano Ramos não tem nada que ver; vou
colher esses pedaços, entregando-me ao jogo livre das associações. "Gastei meses
construindo esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas que se
confunde com ela." Vou construir o meu Graciliano Ramos.
"Meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa
rede armada nos esteios do copiar, cortando palhas de milho para cigarros, lendo o
Carlos Magno, sonhando". Logo me lembro do pintor incomparável da vida estática,
imóvel, inconsciente, nos "engenhos" escravocratas da Rússia tzarista, daquele
Gontcharov de quem me lembrei quando li a comparação do Brasil escravocrata com a
Rússia servil, em Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Os romances de
Gontcharov pintam classicamente um mundo primitivo amoral, "atrabalhador",
preguiçoso demais para trabalhar, amar, viver. Parecem idílios de pura art pour l’art;
são acusações terríveis contra o regime, contra o Estado russo, que quis movimentar
esse mundo imóvel por pretensas reformas econômicas e sociais. O primeiro romance
de Gontcharov chama-se: Uma história simples; o último: A queda.
O crítico espanhol José Bergamín gostaria dessas associações. Confirmam a sua teoria
do romance: o leitor perde-se no romance para esquecer o seu mundo, mas encontra-se
lá, reconhecendo que o seu próprio mundo está chamado a desaparecer: "Perderse, para
encontrarse, para perderse." O romance seria um processo de economia mental para
apressar o fim do mundo: "Cada novela es la manifestación de un mundo llamado a
desaparecer, y que antes de desaparecer quiere aparecer, comparecer: y aparece,
comparece en efecto, solicitando esperando ser juzgado".
É a teoria dum espanhol, dum cristão, dum pessimista. A teoria dum espanhol, isto é,
dum homem que toma radicalmente a sério o cristianismo. A teoria dum cristão, isto é,
dum homem que sabe que esta vida não presta. É uma teoria de estética pessimista.
Toda literatura pessimista encontra uma resistência fanática; leitores e críticos não
gostam disso. Sentem vagamente que arte e pessimismo se contradizem. Mas em vez de
estudarem esteticamente a possível contradição, entrincheiram-se em regiões fora da
arte, na filosofia, na ética, para bombardear o romancista com as censuras de "pouca
generosidade" ou de niilismo insaudável. Não admito preconceitos. O pessimismo não é
uma moral nem uma filosofia. É um estado de alma. É preciso esboçar uma psicologia
do pessimismo.
A ironia é uma arma suprema. "C’est l’ironie" — diz Max Jacob — "qui lui fournit
chaque jour une clé pour sortir de sa prison." 4 É um método para anular a obra do
Demiurgo. "Revogam-se as disposições em contrário". E tornam-se inúteis todas as
revoluções. Em comparação com aquela ironia supra-realista, todas as revoluções,
intimamente ligadas a este mundo de maldição por meio de um otimismo crédulo nas
transformações exteriores, parecem ridiculamente ineptas, impotentes contra "the
ingenious machinery contrived by the Gods for reducing human possibilities of
amelioration to a minimum".5 Acredito que Graciliano Ramos pode conformar-se com
esta frase de Thomas Hardy. Conheço bem ou bastante as suas convicções, para ficar
convencido, da minha parte, de que representam apenas a superfície do seu pensamento.
Não são transformáveis em arte; e isto é significativo. Luís Padilha e o judeu Moisés
não são heróis revolucionários. Cada vez que o romancista cede à tentação de formular
programas de reformas sociais — a professora Madalena fala assim — cai logo na
armadilha do seu inimigo mais detestado: o lugar-comum; no caso, o lugar-comum
humanitário, da "generosidade", que o seu crítico mais incompreensivo lhe aconselhou.
Certamente, a alma deste romancista seco não é seca; é cheia de misericórdia e de
simpatia para com todas as criaturas, é muito mais vasta do que um mestre-escola
filantrópico pode imaginar; abrange até o mudo assassino Casimiro Lopes, até a
cachorrinha Baleia, cuja morte me comoveu intensamente: "Tat twam asi." A
misericórdia do pessimista para consigo mesmo é tão compreensiva que medita todos os
meios de salvação, para deter-se apenas no último: a destruição deste mundo, para
libertar todas as criaturas. "Un mundo llamado a desaparecer." É preciso destruir o
mundo exterior, para salvar a alma.
A realidade, nos romances de Graciliano Ramos, não é deste mundo. É uma realidade
diferente. Após ter lido Angústia até o fim, é preciso reler as primeiras páginas, para
compreendê-las. É um mundo fechado em si mesmo. Que mundo é?
"Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois
um esquecimento quase completo" — confessa Luís da Silva em Angústia. E depois:
"Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos
andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento." E acrescenta: "Não sei se
com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim." É assim com todos nós outros, quando
entramos no mundo empastado e nevoento, noturno, onde os romances de Graciliano
Ramos se passam: no sonho. Os hiatos nas recordações, a carga de acontecimentos
insignificantes com fortes afetos inexplicáveis, eis a própria "técnica do sonho", no
dizer de Freud. Álvaro Lins, no melhor artigo que se escreveu sobre Graciliano Ramos,
observou agudamente a abstração do tempo — "Mas no tempo não havia horas", cita o
crítico —, e acrescenta: "Os outros personagens são projeções do personagem principal.
Julião Tavares e Marina só existem para que Luís da Silva se atormente e cometa o seu
crime. Tudo vem ao encontro do personagem principal — inclusive o instrumento do
crime". Estas palavras do crítico constituem a chave da obra do romancista: descrevem
perfeitamente a nossa situação no sonho, em que tudo é criação do nosso próprio
espírito. Explica-se assim o extremo egoísmo dos heróis de Graciliano Ramos: é o
egoísmo daquele que sonha e para o qual, prisioneiro dum mundo irreal, só ele mesmo
existe realmente. A mentalidade inteiramente amoral do sonho exclui, decerto, toda
"generosidade"; mas a substitui por um sentimento mais vasto de identificação quase
mística com as criaturas da própria imaginação, até a cachorrinha Baleia: "Tat twam
asi."
(Murilo Mendes).
A resposta é bastante difícil. Surge, ainda uma vez, o clichê do "sertanejo culto" e
sugere aos críticos a idéia de que o romancista está furioso contra o ambiente selvagem
do seu passado. Mas não é assim. Não é o sertão o culpado; Vidas secas é o seu
romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é —
superficialmente visto, numa primeira aproximação — a cidade. O herói de Graciliano
Ramos é o sertanejo desarraigado, levado do mundo primitivo, imóvel, para o mundo do
movimento. É o vagabundo ("um pobre nordestino..."); e explica-se o seu ódio
balzaquiano ao mundo burguês, que conseguiu a estabilidade relativa do comércio de
secos e molhados. Esta vagabundagem é o aspecto sociológico do egoísmo do sonho
quando se choca com a realidade. É o desejo violento do vagabundo de restabelecer-se
na terra: "Como a cidade me afastara de meus avós!" Mas é apenas uma explicação em
primeira aproximação: pois Paulo Honório consegue o seu fim, e, contudo, é uma vida
malograda. Por quê? Porque o seu criador quer mais do que terra, casa, dinheiro,
mulher. Quer realmente voltar aos avós. Voltar à imobilidade, à estabilidade do mundo
primitivo. E para atingir este fim, deve antes destruir o mundo da agitação angustiada, à
qual está preso.
Foi a última sabedoria poética do romancista Thomas Hardy, versos duros, populares e
clássicos ao mesmo tempo, rimados em sinal da concordância resignada com o mundo.
É possível que o romancista Graciliano Ramos escreva também, um dia, tais versos,
duros, populares e clássicos ao mesmo tempo, versos tradicionais, como o velho Hardy.
Mas não serão rimados. Serão versos brancos. Pois a primeira rima de Graciliano
Ramos já anunciaria o Fim do Mundo.
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