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No verão de 1937, finalmente Isaac encontrou sua futura mulher, Alma. Não podia achar
uma mulher com quem tivesse menos em comum. Vinha de um lar completamente
assimilado, em Munique; filha de um rico comerciante, recebera uma boa educação e
desenvolvera um gosto para literatura embora não falasse uma palavra de iídiche e fosse
completamente estranha ao mundo que populava o imaginário de Bashevis. Era casada,
com dois filhos. Nem era tão boa dona de casa, mas sua devoção era tenaz e o casal
continuou inseparável desde o casamento, em 1940, até a morte de Isaac, em 1991. Alma
dizia: “Eu senti que devia passar o resto de minha vida ao lado dele, portanto tinha de abrir
mão do meu casamento e dos meus filhos, o que representava uma decisão muito difícil e
terrível de se tomar. Mas, às vezes, tem-se que agir e eu nunca me arrependi”. Em 1943,
Bashevis voltou à tona publicando dois ensaios inteligentes e criativos: “A respeito da
literatura iídiche”, análise literária e cultural brilhante que marcava o fim do bloqueio do
autor. Nos anos a seguir, a verdadeira força de sua energia criativa ia-se manifestar.
Bashevis se sentira investido da missão de fazer reviver o passado de seus pais e avós.
Seus personagens falariam na enorme variedade de dialetos poloneses, discutindo seus
conflitos sobre D’us, a comunidade e suas próprias almas judias. Mais tarde diria: “Eu
estava até preparado a nunca ser traduzido, a nunca me tornar conhecido, a permanecer
um escritor iídiche”. O ano de 1945 fora qualitativamente muito rico. No “A Família
Muskat”, Bashevis imortalizava um mundo à beira da aniquilação, captando suas lutas,
fraquezas, inconsistências e nobreza. A história é repleta de insinuações autobiográficas e
familiares, e é dedicada à memória do irmão Israel Yehoshua, vítima, no ano anterior, aos
cinqüenta anos de idade, de um infarto fulminante. Era uma premonição profética sobre o
fim do judaísmo da Europa Oriental, focalizando sua atenção sobre a perda de valores e
de moral.
No mesmo ano, Bashevis publicou três breves histórias: “O pequeno sapateiro”, “Gimpel, o
tolo” e “A sexta-feira breve”, que destacam o clima e a atmosfera do shtetl, que nutriu o
imaginário de Bashevis durante sua estadia em Bilgoray. O clima nas três histórias é lírico
e repleto de ternura. Abba é um modesto sapateiro. Seus sete filhos vivem em Nova
Jersey, onde continuam a tradição profissional da família. Quando a Polônia é invadida
pelos nazistas, os filhos conseguem tirar o pai da Europa e trazê-lo para perto deles. Abba
se sente como o patriarca Jacó, quando chega ao Egito para encontrar seu filho José.
Nota com orgulho que seus filhos preservam as tradições judaicas e observam os ritos dos
antepassados. A mensagem de Bashevis é que Hitler – como o faraó – não conseguiu
destruir a tradição e a resistência dos judeus, e que o judaísmo da Europa Oriental podia
ser transplantado ao solo americano.
“Gimpel, o tolo” é ambientada na era pré-moderna. Gimpel é enganado e ridicularizado por
todo mundo, mas com sua ingenuidade, acaba levando a melhor porque sua fé é
inabalável: “Eu resolvi que ia acreditar em tudo o que me diziam. O que há de bom em não
se acreditar? Hoje você não acredita em sua mulher; amanhã você começa a duvidar do
próprio D’us”. A verdade é subjetiva e a fé é superior à dúvida: “... mais eu vivia, mais
entendia que não havia mentiras. O que não acontece na realidade é sonhado à noite.
Acontece para um se não acontece para outro, amanhã se não hoje, ou daqui a um século
se não o ano que vem”.
“Uma breve sexta-feira” é ambientada numa pequena aldeia fora do tempo. É a história de
um alfaiate e de sua fiel esposa, que vivem unicamente para servir a D’us e para se amar
e respeitar um ao outro. Das tarefas a que se dedicam com amor, a preferida é o preparo
do Shabat. Num Shabat, fizeram sua refeição como de costume e foram dormir.
Começaram a sentir um certo peso. A esposa ficou preocupada que algo estivesse
queimando no forno, que eles não podiam apagar no dia do descanso. Mas o marido a
convenceu a não abrir a janela para que a casinha não ficasse gelada. Na mesma noite o
casal morreu asfixiado. Reencontraram-se unidos na sepultura como haviam sido em vida.
Um anjo de D’us desceu para guiá-los ao paraíso. A mensagem de Bashevis é que mesmo
que o judaísmo da Europa Oriental tenha desaparecido, sobrevive com seu amor e
santidade no mundo da memória, onde brilha eternamente.
De Bashevis para Singer
Nos anos seguintes, a maior mudança na vida de Singer foi o ingresso no mundo da
tradução para o inglês. As conseqüências seriam enormes e levariam, quase trinta anos
depois, ao Prêmio Nobel. Durante a trajetória, Bashevis, com sua língua afiada, seus
conflitos, seu gênio áspero, se transformaria gradualmente em Isaac Bashevis Singer, ou
simplesmente, Isaac Singer, um curio-so senhor vegetariano que gosta de alimentar os
pombinhos e que personifica com serenidade e gentileza os valores eternos do judaísmo
leste-europeu. A primeira obra a aparecer traduzida em inglês foi a “Família Muskat”, em
1950, que logo se tornou um best-seller. Seguiu-se dois anos depois “Gimpel, o tolo”,
magistralmente traduzida por Saul Bellow, publicada em uma prestigiosa revista, também
um grande sucesso. No início dos anos 60, dois outros livros foram traduzidos: “O Mágico
de Lublin” e “O Escravo”. Neles os protagonistas descobrem o significado da atração pelo
mundo não-judaico. O próprio Bashevis se sentia intrigado pelo ambiente que o envolvia e
era aceito por este, pelo menos superficialmente. Ao mesmo tempo, estava
psicologicamente a mundos de distância do seu novo meio e se sentia dolorosamente
deslocado.
Os críticos e a imprensa em língua inglesa não sempre compreenderam plenamente
Singer. Por exemplo, em “Yentl, o rapaz da Yeshivá”, não entenderam que dizia respeito
ao desejo feminino de estudar em um ambiente que frustrava este tipo de aspiração em
uma mulher. Talvez fosse uma homenagem às mulheres de sua família ou até uma
reprodução da confusão de gênero a que presenciou, que se estendera durante várias
gerações em sua família.
Por sugestão de uma de suas tradutoras, Singer se dedicou, com igual talento, a escrever
histórias infantis. Entre elas, se destacam “A cabra Zlateh” e “O sonho de Menaseh”.
Menaseh é um órfão e sua maior aspiração é poder se reunir a seus pais de quem se
perdera. Um dia descobre um palácio mágico onde encontra sua família. Na primeira sala
encontrou todas as roupas que algum dia tinha usado em sua vida. Na segunda sala
descobriu todos os brinquedos que tivera. Na terceira sala, todas as bolhas de sabão que
já soprara. Na quarta sala, todas as vozes que já ouvira. A quinta sala era reservada a
todas as historinhas que já lhe tinham contado. Na sexta sala eram preservados todos os
seus sonhos. Na sétima sala Menaseh encontrou seu futuro.
A história é uma fantasia tocante sobre a capacidade do ser humano de reter seu passado
especialmente por meio dos sonhos, das palavras e das histórias: tudo continua vivo e
nada se perde no tempo.
No início dos anos setenta, Isaac Bashevis Singer não se identificava mais com Ytzhok
Bashevis, o escritor iídiche áspero que precisava se destacar do irmão. Nem precisava
mais distanciar-se de seu pai, que aparece como uma figura admirável e exemplar. Os
dois estavam mortos há tempos. Singer podia cultivar uma imagem nostálgica, repleta de
calor humano e de sentimento tão cara a seu público. Se afirmava como o cronista da vida
dos imigrantes e a testemunha de um mundo em via de desaparecimento.
O Prêmio Nobel
Em 5 de outubro de 1978, Singer foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. A
Academia Sueca citou no anúncio: “... sua melancolia redentora, seu senso de humor, sua
clareza de visão livre de ilusão (descreve) o mundo e a vida do judaísmo leste-europeu tal
eram vividos em cidades e aldeias, na pobreza e na perseguição, impregnados de uma
piedade sincera e ritos que combinam fé cega e superstição – sua língua era iídiche –
língua de gente simples”.
O prêmio comemorava o trabalho de uma alma nostálgica e humilde que representava
fielmente o belo mas trágico mundo de uma sociedade profundamente moral e pia,
cruelmente extinta pelo holocausto nazista.
Singer recebeu o prêmio com modéstia: “Ontem eu era um escritor iídiche, hoje sou
agraciado com o Nobel, amanhã serei um escritor iídiche. Sou grato (pelo prêmio), mas ao
mesmo tempo sinto pelos escritores maiores do que eu que não o receberam”. No mundo
de língua iídiche, o prêmio foi recebido com alegria: o iídiche alcançava dignidade aos
olhos de um público de não-judeus. “Eu não sou o único vencedor do prêmio. Compartilho-
o com todos meus leitores e com todos os amantes da língua iídiche”.
Na outorga do prêmio, assim soava o discurso de Singer perante a Academia Sueca: “...
reconhecimento da língua iídiche – língua de exílio, sem terra, sem fronteiras, não
sustentada por nenhum governo. (...) O ‘gueto’ não era apenas um local de refúgio para
uma minoria perseguida, mas uma grande experiência de paz, auto-disciplina e
humanismo. Eu fui criado no meio dessa gente” e “não tenho vergonha de admitir que
pertenço àqueles que acreditam que a literatura é capaz de abrir novos horizontes e novas
perspectivas – filosóficas, religiosas, estéticas e até sociais. Na história da literatura
judaica antiga não havia diferença entre o poeta e o profeta... Freqüentemente cultivo a
idéia que quando todas as teorias sociais entram em colapso e quando guerras e
revoluções afundam a humanidade nas trevas, pode surgir o poeta para nos salvar. (...) De
meu irmão e mestre Israel Yehoshua Singer eu ouvi, quando criança, todos os argumentos
que os racionalistas colocaram contra a religião. De meu pai e minha mãe ouvi todas as
respostas que a fé em D’us pode oferecer aos que duvidam e buscam a verdade. Em
nossa casa, as questões eternas eram mais atuais que as últimas notícias no jornal.
Apesar do meu desencantamento e do meu ceticismo, acredito que as nações do mundo
tenham muito para aprender desses judeus”. Disse também que com o dinheiro do prêmio
compraria uma nova máquina de escrever com caracteres iídiches, porque a dele, de 40
anos atrás, se recusava a funcionar quando não gostava do que ele escrevia. Singer
insistia que continuaria a escrever também depois do Prêmio Nobel: “Que outra coisa teria
para fazer um homem da minha idade?” Nos treze anos que transcorreram entre o prêmio
e sua morte, em 1991, apareceram dois romances em inglês, um deles “O Penitente”.
Ele já estava com setenta e quatro anos ao receber o Nobel. Seu público crescia
especialmente porque sua obra começava a ser produzida por outros meios de
comunicação, teatro, cinema e televisão, com a participação ativa do autor. Singer
desaprovou a versão cinematográfica de Yentl, feita por Barbara Streisand. A adaptação
de “Inimigos, uma história de amor”, por Paul Mazursky, foi um grande sucesso
cinematográfico de crítica e público.
Alma, que nos primeiros vinte e cinco anos de casamento foi a provedora da família com
seu emprego na loja de departamentos Lord and Taylor, foi uma mulher exemplar quando
chegou a hora de cuidar do marido doente. Em seus últimos anos de vida, Singer foi vítima
do Mal de Alzheimer. Perdeu a memória e até a capacidade de reconhecer membros da
família.
Isaac Bashevis Singer faleceu em 1991, aos 87 anos de idade. Seu filho, israelense,
Yisrael Zamir queria que ele fosse enterrado em Israel, para que seu túmulo fosse
homenageado por iidichistas, intelectuais e turistas, mas Alma recusou e o enterrou em
Nova Jersey. Alma Singer faleceu em 1996.
Bibliografia:
Janet Hadda, “Isaac Bashevis Singer – a life”: Oxford University Press. New York, 1997.
Fonte: http://www.morasha.com.br/biografias/isaac-bashevis-singer.html