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FUNDAMENTOS DO DISCURSO RELIGIOSO NÃO-CANÔNICO

José Aristides da Silva Gamito

1. Introdução

A Análise do Discurso Religioso envolve a leitura e a interpretação de textos


canônicos, não-canônicos e de discursos orais. As tradições religiosas são muito
diversas, além das religiões que possuem livros sagrados como o cristianismo, o
judaísmo e o islamismo, as religiões indígenas e africanas se constituem exclusivamente
pela oralidade. Procuramos apresentar as características desses discursos orais e escritos
que podem ser objeto de análise em Ciências das Religiões.

2. As características do cânone literário religioso

A canonicidade surge como necessidade a partir do momento que uma


comunidade religiosa precisa fixar suas regras de fé. O consenso na doutrina é
fundamental para a sobrevivência da instituição.1 As tradições do judaísmo, do
cristianismo e do islamismo começam com um período de oralidade que antecede o
cânone. Nas religiões fora da tradição do Livro Sagrado, os princípios da fé se
constituem constantemente na oralidade. Assim são as religiões indígenas e de matriz
africana. Mesmo em culturas com uso da escrita, a religião nem sempre tinha um
cânone escrito é o caso da Grécia antiga. 2
No processo de redação dos textos religiosos iniciais das tradições monoteístas,
houve uma proliferação de textos, que concorriam de certo modo pela padronização dos
dogmas. Em determinado momento, houve necessidade de fechar por meio do consenso
o cânone. Em outras palavras isso quer dizer que a comunidade religiosa selecionou um
número limitado de texto, tornando-os autorizados para a leitura oficial.

1
BRAKEMEIER, Gottfried. O cânon do Novo Testamento: Paradigma de Unidade da Igreja. Estudos
Teológicos, n. 37, v. n. 3, 1997, pp. 206-207.
2
SANTOS, Sandra Ferreira. Oralidade e Religião: Estudo Comparando a Religião da Grécia Antiga com
o Cristianismo. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, n. 8, Set. 2010, pp. 244-
245.
2

O cânone literário é um conjunto de obras selecionadas como representativas


para uma determinada comunidade ou nação.3 No caso do cânone religioso esta
representatividade diz respeito à doutrina da religião. Este corpus literário contém o
ensinamento oficial daquele grupo religioso. Normalmente, nas literaturas nacionais
estes textos são apresentados como modelos técnicos. Isso nem sempre acontece na
literatura sagrada.
Os textos canônicos religiosos nem sempre são modelos de literatura a serem
imitados quanto à forma, porém, devem ser seguidos quanto à delimitação do conteúdo
da fé. Ele define o que são os dogmas fundantes de uma religião. As literaturas
nacionais são evidenciadas pelas escolas. Já as literaturas religiosas dependem da leitura
e respaldo da igreja ou da sinagoga.4
No caso do cristianismo, depois da morte das testemunhas oculares do ministério
de Jesus, houve necessidade de escrever seus ensinamentos. Porém, surgiu uma vasta
literatura. O processo de canonização dos textos seguiu critérios das comunidades
cristãs que levaram em conta aqueles livros que mais representariam o verdadeiro
(orthodoxos) ensinamento de Jesus. Dentre umas dezenas de evangelhos, o cânone se
fechou no século II em quatro, depois de uma longa discussão. Os textos do Novo
Testamento tinham a função de diretrizes dos fiéis cristãos.5 Os Concílios fixaram o
cânone, tornaram-no oficial. Na verdade, foi uma concorrência de cânones. O cânone
transmitido pela Igreja Católica ao longo do século é um cânone que recebeu a
aprovação e o patrocínio de um grupo dominante. Outros cânones se perderam na
história de comunidades minoritárias que foram chamadas de “hereges”.6 Partindo do
pressuposto da diversidade do cristianismo primitivo.7
Antes da fixação do cânone, no período dos Pais Apostólicos, a memória e a
transmissão oral e escrita preservavam a tradição cristã. Depois, o texto passou a ser
autoridade. Mas a oralidade continua como esta fonte e novos textos surgem. O cânone
convive com textos secundários que preservam importantes discursos da mensagem
cristã. Estes são os textos não-canônicos. Eles não são regras de fé, mas contribuem
para alimentar e fortalecê-la.

3
RODRIGUES, Karina Rebelo. O Cânone Literário e o Ensino de Literatura: Como se dá essa Relação?
Dissertação de Mestrado. Criciúma: Universidade do Extremo Sul Catarinense, 2009, p. 19.
4
RODRIGUES, 2009, p. 19.
5
FILHO, José Adriano. A Formação do Cânone Bíblico: Considerações a partir da Semiótica da
Cultura.Estudos de Religião, v. 29, n. 1 • 87-101 • jan.-jun. 2015,p.91.
6
FILHO, 2015, pp. 91-92.
7
BRAKEMEIER, 1997, p.
3

3. Os Textos Religiosos Não-Canônicos

Mesmo que não receberam autoridade de representar o ensinamento “ortodoxo”


de uma religião, muitos textos são transmitidos, lidos e interpretados pelas comunidades
religiosas. Poderíamos falar de textos religiosos não-canônicos em dois grupos: 1º -
Existem aqueles não canônicos que, sejam pela antiguidade ou pelo conteúdo mais
especificamente religioso, possuem uma temática expressamente religiosa; 2º - Há
textos que refletem a religiosidade de um tempo, mas são especificamente religiosos e,
às vezes, nem foram escritos no meio propriamente religioso ou por autoridade
religiosa.
Dentre os primeiros, poderíamos incluir no cristianismo a literatura pastrística,
decisões de Concílios, ensinamentos diversos de autoridades cristãs. No segundo grupo,
estaria toda a literatura que trata indiretamente do tema religião ou mesmo diretamente,
mas fora do campo religioso formal propriamente dito. Estão entre eles, a literatura
secular (romances e poemas) e letras de músicas. Geralmente, tratam do assunto religião
ou fazem intertexto com a literatura canônica religiosa.
No poema “O Operário em Construção” de Vinícius de Moraes, por exemplo, a
temática aparece de modo explícito pelo uso de um intertexto com o Evangelho de
Lucas. Outros textos fazem releitura de passagens bíblicas. Porém, uma imensidão de
textos que tratando de assuntos seculares reflete ou evoca a temática religiosa. Estes
textos são religiosos e são passíveis de análise também pela Análise do Discurso dentro
das Ciências das Religiões.

4. Discursos Religiosos Não Canônicos e a Oralidade

A oralidade continua sendo uma fonte de discurso sagrado mesmo dentro de


comunidades que já possuem um cânone. Portanto, estes discursos estão constantemente
gerando novos discursos sejam orais ou textos. As religiões que preservam seus dogmas
exclusivamente pela tradição oral possuem ritos que caracterizam esses discursos como
religiosos. São discursos que constituem uma tradição e são transmitidos de mestre para
4

discípulos.8 Nas religiões predominantemente orais, o discurso religioso está presente


em todas as instâncias da vida, porém, existe um discurso que é transmitido de modo
cuidadoso com o intuito de preservar a identidade religiosa do grupo. A memória é
fundamental para a perpetuação da religião e no discurso oral se constrói esta memória
cultural.9
A música, a poesia e a contação de histórias têm um ritual próprio que envolve
enunciador e enunciatário através de gestos, posturas e entonação da voz. Estes gêneros
do discurso possuem marcadores que nos fazem reconhecer a linguagem do sagrado.
Estes marcadores são expressões e entonações. A gestualidade tem um papel de
ambientar o discurso. Nas religiões orais, geralmente, há uma indumentária própria para
o líder comunicar com a sua comunidade. Na concepção de Zumthor, a perfomance
acompanha o êxito e a recepção do discurso. Os gestos transmitem figurativamente a
mensagem do corpo. A vocalidade é outro elemento que compõe a mensagem da
oralidade.10 Todos esses elementos permitem identificar a comunicação do sagrado na
oralidade.

5. Considerações finais

Portanto, tanto o discurso oral quanto o discurso escrito são objetos de análise
em Ciências das Religiões. Mesmo nas tradições construídas a partir dos textos a
oralidade é um fenômeno presente recriador e criador em todas elas. A própria leitura
bíblica dentro da liturgia é uma perfomance que remete os fiéis à oralidade, como se de
certo modo, se procurasse reconstituir a enunciação que deu origem àquele texto. É um
modo de aproximação do sagrado que emitiu aquela palavra. A análise de discursos
religiosos não canônicos possibilita ao acadêmico compreender a recepção dos
fundamentos de uma religião pelas diferentes pessoas e por diferentes gêneros de
discurso.

Referências

8
RIBEIRO, Dilma Lopes da Silva.A Busca de Si numa Religião Hoasqueira – Oralidade, memória e
conhecimento na união do vegetal (UDV). Dissertação de Mestrado. Belém: Universidade do Paraná,
2009, p. 93.
9
VALENTE, Heloísa de Araújo Duarte. Música é informação! Música e Mídia a partir de alguns
Conceitos de Paul Zumthor. pp. 4-5. Disponível em: http://www.hist.puc.cl/iaspmla.html . Acesso em 19
jul. 2017.
10
VALENTE, 2017, pp. 2-5.
5

FILHO, José Adriano. A Formação do Cânone Bíblico: Considerações a partir da


Semiótica da Cultura. Estudos de Religião, v. 29, n. 1 • 87-101 • jan.-jun. 2015.

RIBEIRO, Dilma Lopes da Silva. A Busca de Si numa Religião Hoasqueira –


Oralidade, memória e conhecimento na união do vegetal (UDV). Dissertação de
Mestrado. Belém: Universidade do Paraná, 2009.

RODRIGUES, Karina Rebelo. O Cânone Literário e o Ensino de Literatura: Como se


dá essa Relação? Dissertação de Mestrado. Criciúma: Universidade do Extremo Sul
Catarinense, 2009.

SANTOS, Sandra Ferreira. Oralidade e Religião: Estudo Comparando a Religião da


Grécia Antiga com o Cristianismo. Revista Brasileira de História das Religiões.
ANPUH, Ano III, n. 8, Set. 2010.

VALENTE, Heloísa de Araújo Duarte. Música é informação! Música e Mídia a partir


de alguns Conceitos de Paul Zumthor. pp. 4-5. Disponível em:
http://www.hist.puc.cl/iaspmla.html . Acesso em 19 jul. 2017.

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