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Os engenheiros da linguagem.

A confecção da sociologia e das ciências humanas.

Quando Durkheim disse que deveríamos tratar os acontecimentos sociais como


“coisas”, ele estava tentando ensinar que o cientista social, então emergente, teria de
tomar a vida humana como os físicos estavam tomando a vida natural. Nada de colocar
no âmbito de acontecimentos da natureza qualquer antropomorfismo. Assim, se a ação
humana fosse tratada como tratamos, no âmbito da física pós-aristotélica, um raio, uma
avalanche, um choque de bolas de bilhar etc., poderíamos estabelecer uma descrição
“objetiva”, e, quem sabe, tirar leis gerais sobre uma tal coisa observada. A ideia básica
dessa sociologia era a de não levantar juízos morais, críticas, ou seja, de modo algum
criar uma narrativa negativa para se contrapor ao ocorrido – como em geral faz a
filosofia, em especial com a utopias, mas também com projetos transcendentes e
transcendentais. A questão era tirar da jogada a narrativa negativa e colocar em seu
lugar uma narrativa positiva. Daí o nome da proposta durkheimiana, já estreada por
Comte: positivismo.

Quem se educou por uma tal escola sempre achou correto, então, o uso de metáforas
vindas das ciências naturais para as ciências humanas. Mas quem se educou na escola
de Tocqueville conseguiu compreender Nietzsche e perceber também o inverso: muitas
de nossas metáforas das ciências naturais, e talvez a própria direção de investigação das
ciências naturais, só avançaram por conta da força do modo de vida social vigente. Ou
seja, o antropomorfismo já teria ocorrido bem antes, nas ciências naturais, de uma
maneira sorrateira. Tocqueville viu isso ao falar de como que povos democráticos, que
primam pela igualdade – americanos à frente – começariam a dar mais confiança para
ideias cada vez mais gerais, cada vez mais capazes de serem ideias de todos,
renunciando ao particularismo, ao detalhismo, às diferenças que, enfim, seriam mais
próprias de nações regradas por princípios aristocráticos, ou seja, por diferenciações.
Ao final do século de Tocqueville, que escreveu A democracia na América em 1835,
Nietzsche consagrou essa descoberta dizendo que leis da natureza, como as de Newton,
de igualação de comportamentos, só foram possíveis por conta das revoluções
igualitárias modernas. Nietzsche nunca deu crédito, na sua cosmologia, a princípios
igualitários. Para ele, os físicos nada eram senão decadentes democratas meio que
inconscientes.

Hoje em dia tendemos a sair dessa dicotomia Comte-Durkheim versus Tocqueville-


Nietzsche. Não estamos mais preocupados com a conversa sobre quem vem primeiro,
se o ovo ou a galinha. Se seguimos Richard Rorty, tomamos a linguagem com
completamente metafórica. E isso sem direção predeterminada. Ou seja, tudo é
metáfora sem que se tenha, na contramão, o puro literal. Não existe o literal. O literal é
uma forma de metáfora morta. Assim, tanto faz se usamos a palavra “chover” para água,
prótons ou notícias ou dinheiro. Chover é chover, que se entenda isso no âmbito da
enunciação, não no âmbito da pura linguagem. Nada de lidar com verbos e nomes sem
o funcionamento vivo da língua. “Choveu dinheiro”. Entendemos isso quase que
tomando literalmente. E se o dinheiro caiu do alto, de um avião, então acrescentamos:
“choveu dinheiro – literalmente”. Mas se dizemos “choveu odor de amor”, então
sabemos que estamos em uma terceira situação, a da linguagem poética, onde a
metáfora não quer e não pode ter contraponto literal, de modo algum.

Aprendemos aos poucos que o rigor de uma narrativa que se pretende científica não se
faz senão pelo modo que seus autores possam estabelecer palavras com significados
destacáveis, especiais, que em geral se chamam conceitos ou então “termos técnicos”.
Não se trata aí de uma disputa de significados, mas de uma disputa de impacto. Há frases
quer são impactantes, nos colocam em situações que chamamos de “rigor”, e outras
que nos impactam a ponto de falarmos que estamos no âmbito do “amor”.

Uma narrativa teórica possui conceitos e termos técnicos. Uma narrativa poética não.
Mas em ambos os casos, nada temos senão metáforas, senão disposições de transporte
de um termo de um campo para outro. Ou da natureza para o humano-social ou do
humano-social para a natureza, ou do fígado para a moral ou da moral para o micro-
físico etc. Fazemos um jogo de ir e vir na linguagem, sem que exista um porto seguro
final. Não existe o literal. Não existe o literal no sentido de o último reduto da linguagem
na qual esta espelharia de fato o que se descreve como que emanando dele, como se o
linguístico estivesse fundido no não linguístico.

Essa maneira de ver as coisas nos cativa hoje em dia. Coloca os fundacionismos de lado.
Mas não elimina nosso desejo metafísico que nos leva a achar que podemos, sim,
encontrar algo que seja mais literal que qualquer outra coisa. O literal é um fantasma
para pós modernos como nós. Quem disse que fantasmas não atemorizam?

Paulo Ghiraldelli Jr., 60, filósofo.

São Paulo, 28/03/2018

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