Você está na página 1de 18

ARTIGO ARTICLE 659

Médicos e assistência médica:


Estado, mercado ou regulação?
Uma falsa questão

Physicians and health care:


state, market or regulation?
A false issue

Celia Almeida 1

1 Departamento de Abstract A cost crisis in the health care sector has focused discussion on health care services
Administração
and an assessment of the results of investments in the health sector, underlining the importance
e Planejamento em Saúde,
Escola Nacional de Saúde of medical doctors as key actors in this area. This article reviews the main analytical approaches
Pública, Fundação to professionalism in the last decade and discusses the most recent paradigmatic shifts. New ap-
Oswaldo Cruz.
proaches have emerged for correlating the medical division of labor (contained in specialized
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
sala 715, Rio de Janeiro, RJ fields which are becoming more and more fragmented) with structural and historical changes in
20041-210, Brasil. the professional market, as well as the collective action developed by these interest groups in
calmeida@ensp.fiocruz.br
their relationship to the state. These approaches, more closely linked to political economy, have
made important contributions to this debate, because they allow for a questioning of the kind of
ideological polarization contained in health care reform proposals aimed at a withdrawal of the
state and the rule of the market (with no analytical justification), in addition to shifting regula-
tion to a position outside the historically mutable dynamics between the state, health care
providers, and clients of the health care sector and the public policy arena.
Key words Physicians; Medical Assistance; Health Personnel; Health Policy

Resumo A crise de custos no setor saúde colocou em discussão a assistência médica, assim como
a avaliação dos seus resultados enquanto investimento setorial, sendo que a importância do
principal ator nessa dinâmica – o médico – tem sido ressaltada. Este artigo faz uma revisão das
principais vertentes de análise do profissionalismo médico nas últimas décadas e discute a mu-
dança de paradigma que se operou mais recentemente, quando emergem enfoques que procu-
ram correlacionar as novas divisões de trabalho contidas nas especializações cada vez mais frag-
mentadas com as mudanças estruturais históricas do mercado de trabalho profissional e a ação
coletiva desenvolvida por esses grupos na sua inter-relação com o Estado. Esse último enfoque,
pode-se dizer mais vinculado à economia política, tem aportado importantes contribuições a es-
se debate, uma vez que permite questionar as polarizações ideológicas, e sem fundamento analí-
tico, presentes nas propostas de reforma da assistência médica, que preconizam a retirada do Es-
tado e o reinado do mercado, assim como deslocam a regulação para uma posição externa à pró-
pria dinâmica, mutável historicamente, das relações Estado/profissionais/clientes/sistemas de
saúde.
Palavras-chave Médicos; Assistência Médica; Pessoal de Saúde; Política de Saúde

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


660 ALMEIDA, C.

Introdução são muito mais complexas e não se confundem


com a história das correntes ideológicas, ainda
Historicamente, a oposição Estado versus mer- que profundamente influenciadas por elas.
cado tem dominado as discussões no campo Assim, especificamente no que diz respeito
sanitário e está subjacente tanto aos cálculos à expansão dos programas de assistência mé-
racionais que presidem os interesses dos dife- dica do welfare state, esta teve pelo menos duas
rentes atores na arena setorial, quanto aos am- implicações aparentemente contraditórias: de
plos conflitos ideológicos e político-partidários um lado aumentou os recursos financeiros dis-
que têm acompanhado o debate sobre o tema poníveis para prestar assistência a grandes par-
nos diversos países. celas da população que de outra forma não po-
O impacto da política de saúde nos merca- deriam pagar por ela, ao mesmo tempo que
dos de assistência médica pode ser um guia aumentou a regulação e o controle públicos
efetivo para entender qual o significado histó- sobre os prestadores de serviços, sobretudo os
rico desse conflito recorrente, assim como para médicos.
ajudar a elucidar quais são suas bases de su- Mesmo se considerarmos diferentes siste-
porte e permanência no tempo. mas ‘tipo-ideal’, o controle público sobre as
Essas disputas, para Immergut (1992:35), formas de financiamento e/ou de pagamento
estão centradas no conflito clássico entre com- dos prestadores e o fortalecimento da capaci-
pradores e vendedores, neste caso de serviços dade regulatória (pública e privada), ainda que
de assistência médica. Ou seja, o poder de com- concomitantes à ampliação de mercado, são
pra de um é utilizado para reduzir e controlar componentes estratégicos desses desenvolvi-
preços, sendo reforçado quando se torna o úni- mentos. Além disso, a dimensão mais imediata
co comprador (numa posição monopsônica); e da noção de intervenção estatal diz respeito “às
o poder de venda do outro tende a se concen- formas e à intensidade em que ela afeta o con-
trar de forma monopólica, fortalecendo-se trole privado dos serviços de saúde” (Donnan-
quando consegue diversificar os compradores gelo, 1975:4).
de serviços. Embora sejam descritas na literatura várias
A expansão do papel do Estado na área da maneiras pelas quais o Estado e os prestadores
saúde, sobretudo no pós-guerras, significou, (sobretudo médicos) resolveram suas diferen-
para os seus defensores, a responsabilização ças nesses confrontos através do tempo, pode-
do Estado pela garantia do acesso aos serviços se dizer que, durante o período de rápida ex-
como um direito de cidadania e, para os seus pansão da assistência médica na Europa (de
oponentes, a expropriação da responsabilida- 1930 a 1970), basicamente uma estratégia prin-
de individual pela própria saúde, uma enorme cipal foi utilizada pelos prestadores em todos
drenagem de recursos e um sério impedimen- os casos. O modelo liberal da medicina sempre
to (ou restrição) ao pleno funcionamento do defendeu o livre mercado como o core de prote-
mercado privado no setor. ção de sua autonomia: lutaram contra a entra-
Vale a pena recuar um pouco na história da do Estado no mercado de seguro-doença,
para iluminar alguns aspectos desse processo. contra os esforços subseqüentes de controlar os
Os esforços para consolidar financiamentos custos regulando os honorários e mudando os
coletivos para a atenção médica, a partir do fi- métodos de pagamento para formas mais cole-
nal do século XIX, trouxe para a agenda políti- tivas (como o assalariamento) e contra as proi-
ca a questão do mercado versus Estado, oposi- bições da prática privada para médicos empre-
ção esta que tem mudado de significado no gados no setor público. A independência do
tempo, segundo o período histórico e a conjun- médico sempre foi enfatizada como condição
tura específica de cada época, em cada socie- necessária para assegurar a qualidade da aten-
dade. A questão objetiva da propriedade públi- ção, pois, seguindo o exemplo da mais pura
ca versus a privada mudou significativamente tradição liberal (“a independência econômica
na medida em que o financiamento estatal pas- como pré-condição para a liberdade política”
sou a garantir grande parte da atenção hospita- (Friedman, 1962)), a autonomia econômica do
lar nos dois setores – público e privado. E deve- médico sempre foi considerada essencial para
se estar atento aos rótulos ou vinculações de alcançar resultados não econômicos, isto é, li-
um e outro com determinadas propostas a fi- berdade terapêutica, confiança do paciente, li-
liações ideológicas específicas, pois ainda que berdade em relação à burocracia, manutenção
no plano das idéias essa associação seja possí- da assistência médica como uma ‘arte inter-
vel, a reação às políticas formuladas em perío- pretativa’, em que a conduta terapêutica deve
dos específicos e as estruturas institucionais seguir as necessidades individuais do paciente
que viabilizam as respectivas implementações e não as diretrizes governamentais, e controle

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


MÉDICOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA 661

do profissional sobre o conteúdo e o tempo de profissão e os esforços políticos para estabele-


seu próprio trabalho (Donnangelo, 1975; Im- cer o monopólio legal da prática), das lutas
mergut, 1992). Portanto, a autonomia técnica posteriores sobre issues econômicos, assim co-
se imbrica com a autonomia econômica. mo das novas questões colocadas pela crise do
Sendo assim, a luta dos profissionais sem- welfare e as reformas setoriais mais recentes.
pre foi norteada pelas tentativas de prevenir a A profunda complexificação atual da práti-
posição monopsônica do Estado, rotulando ca assistencial e dos sistemas de serviços de
determinado aspecto do mercado de assistên- saúde é acompanhada de reorganizações das
cia médica como privado e defendendo a sua representações dos grupos de interesse tradi-
preservação: ao manter abertas diferentes for- cionais e da emergência de novos, que passam
mas de prática privada nos sistemas de saúde, a disputar parcelas do mercado de assistência
paulatinamente dominados pelo financiamen- médica, especialmente privilegiado sobretudo
to e pelas formas de pagamento público, a pro- no período após a II Grande Guerra, e atuar co-
fissão protegia sua habilidade de sair do setor mo grupos de interesse e de pressão nas diver-
público, como uma alternativa estratégica. sas arenas setoriais – acadêmica, produtiva (de
Na realidade, a possibilidade de ‘bolsões’ serviços e de insumos), legislativa.
de prática privada no setor público é de fato Logo, cada sistema de serviços de saúde,
causada pela própria dinâmica econômica de antes de ser o resultado de um desenho pré-
estruturação dos sistemas de assistência médi- definido, é o produto de uma infinidade de en-
ca: ao subsidiar esse mercado, o Estado au- frentamentos, negociações e ajustes entre a
mentou a demanda por esses serviços mas, ao burocracia estatal, a categoria médica, os sin-
mesmo tempo, ao pressionar os preços para dicatos, os partidos políticos, os parlamentos e
baixo e controlar seus valores, criou pressões os poderosos grupos de interesse que gravitam
de mercado para o aumento da oferta, que por em torno da indústria da assistência médica. A
sua vez, proporcionou as oportunidades para o evolução das experiências nacionais mostra de
setor privado. Portanto, a estruturação dos sis- fato que os sistemas de saúde são construções
temas de assistência médica tal como os co- surgidas de complexos arranjos produtores de
nhecemos hoje se deu através de profundo im- políticas que resolvem alguns problemas con-
bricamento entre o público e o privado. tingentes, mas incubam novos conflitos que,
Em síntese, a luta pela manutenção de fi- cedo ou tarde, afloram (Labra & Buss, 1995; La-
nanciamentos pluralísticos, com nichos priva- bra, 1995a e b).
dos de mercado, e contra a regulação pública, Embora o médico seja o profissional nu-
integra a própria história de consolidação do clear dos sistemas de saúde, e seja fato que, em
modelo médico liberal, num específico perío- todos os países capitalistas do Ocidente, o pa-
do, quando a autonomia econômica tornou-se pel desempenhado pela corporação médica or-
condição necessária para a autonomia profis- ganizada na sua relação com o Estado é central
sional. Ironicamente, a partir dos anos 80, pa- na definição dos modos como a assistência
receria que o Estado defendia o livre mercado médica é remunerada, os serviços são financia-
na assistência médica, exatamente para con- dos e incorporados à cultura nacional, igual-
trolar a autonomia profissional. mente relevante para compreender a estrutu-
Entretanto, essas duas dimensões da auto- ração e dinâmica dos sistemas de saúde são as
nomia profissional não podem ser confundi- características dos respectivos estados nacio-
das – como apontou Freidson, sobretudo a par- nais e a forma como as diferentes instituições
tir do início do século XX, quando novas frag- políticas produzem as variações nos respecti-
mentações são introduzidas na dinâmica da vos programas setoriais. Em outras palavras,
prática médica, seja com o desenvolvimento como oferecem diferentes oportunidades e/ou
das especializações cada vez mais numerosas, barreiras à participação/pressão dos grupos de
ou com a diversificação das posições de mer- interesse na arena setorial, possibilitando ou
cado ocupadas pelos profissionais – com o de- não, o encaminhamento de suas demandas ou
senvolvimento dos serviços de assistência mé- abrindo espaço para os ‘pontos de veto’ às po-
dica alavancados pelo Estado (médicos assala- líticas governamentais (Immergut, 1992).
riados do setor público, de seguradoras, priva- O legado das políticas passadas (seja de su-
dos, conveniados, credenciados, etc). cesso, seja de fracassos) afeta as políticas sub-
Portanto, é preciso distinguir analiticamen- seqüentes, e a questão das estratégias de refor-
te as questões clássicas do profissionalismo, ma sanitária a serem adotadas para provocar
tais como o processo histórico pelo qual a me- transformações deve levar em consideração a
dicina se estabeleceu como ciência (consoli- herança dos arranjos institucionais que será
dando as chamadas ‘fronteiras cognitivas’ da confrontada com a mudança.

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


662 ALMEIDA, C.

A provisão direta de serviços pelo setor pú- A crise de custos na saúde colocou em dis-
blico politizou a relação entre os prestadores e cussão o funcionamento dos serviços de saú-
o Estado, uma vez que as condições de traba- de, sobretudo a assistência médica, e a avalia-
lho devem ser reguladas e os mecanismos de ção dos seus resultados, e inúmeros são os tra-
controle e contenção de preços acionados. Por balhos que apontam a importância do princi-
outro lado, quando o Estado não emprega dire- pal ator nessa dinâmica – o médico –, sobretu-
tamente os prestadores, o tipo de contrato e o do no que concerne à sua capacidade de inter-
método de pagamento utilizado passam a ser ferir na organização e funcionamento dos sis-
cruciais, e as diversas formas de financiamento temas, tanto pelo lado da oferta, como pelo da
e pagamento de serviços, que em geral inte- demanda, assim como a sua grande resistência
gram os sistemas mistos, fragmentam a atua- a enquadrar-se em qualquer preceito normati-
ção estatal e diminuem (ou complexificam) a vo, visto sempre como cerceador de sua liber-
capacidade reguladora, introduzindo outra dade de julgamento e interferência indevida
forma de politização. Nos sistemas majoritaria- na sua prática profissional – isto é na sua au-
mente privados, a regulação envolve, de forma tonomia.
importante, vários outros atores, inclusive Como ponto central do debate está o espe-
aqueles não especificamente setoriais. E essa cífico profissionalismo presente na atenção à
politização foi profundamente questionada saúde, assim como a mudança de status profis-
nos anos 80, constituindo a especificidade dos sional e credibilidade que significou o proces-
processos reformadores setoriais que foram so de erosão de sua autonomia e o crescente
desencadeados a partir de então. assalariamento do médico (ou desprofissiona-
O objetivo deste artigo é discutir a especifi- lização, proletarização e corporatização, res-
cidade política e historicamente variável da in- pectivamente), desenvolvimentos ocorridos
serção do profissional médico na estrutura- fundamentalmente neste nosso século, em to-
ção/reforma dos sistemas de serviços de assis- das as sociedades modernas.
tência médica. Por meio da revisão da biblio- Paralelamente à maior atenção dos estu-
grafia especializada, analiso as fronteiras mu- diosos para com essa temática, tem-se verifica-
tantes da regulação profissional e das relações do também um deslocamento do paradigma
Estado/profissão médica na formulação/im- teórico (Speranza, 1991). Com base na crítica
plementação das políticas de saúde. Nesse per- da perspectiva estrutural-funcionalista – que
curso, aponto o indisfarçável tom ideológico analisa o desenvolvimento das reestrutura-
presente nos debates atuais sobre as propostas ções, provocadas pelas novas divisões do tra-
de reforma da assistência médica, que, por um balho contidas nas permanentes especializa-
lado, deposita nos médicos a carga maior de ções profissionais, como resposta a necessida-
culpa pelos problemas enfrentados pelos siste- des sempre crescentes (na sociedade) de co-
mas de serviços e, por outro, preconiza o afas- nhecimentos cada vez mais complexos –, pas-
tamento do Estado das questões referidas à as- sa-se a enfoques que procuram correlacioná-
sistência médica a ser prestada à população. las com as mudanças estruturais históricas do
mercado de trabalho profissional e a ação cole-
tiva desenvolvida por esses grupos na sua in-
Profissionalismo e autonomia ter-relação com o Estado. Esse último enfoque,
dos médicos pode-se dizer mais vinculado à economia polí-
tica, tem aportado importantes contribuições
O estudo sobre os médicos sempre foi particu- a esse debate e o percurso teórico dessa passa-
larmente contemplado nas pesquisas voltadas gem é analisado por vários autores (Donnan-
para a sociologia das profissões, mas nas últi- gelo, 1975; Wolinsky, 1988; Light & Levine, 1988;
mas décadas tem merecido atenção especial, Larkin, 1988; Coburn, 1992; Speranza, 1991, en-
inclusive de outras áreas com diferentes recur- tre outros).
sos disciplinares. Por um lado, pela importân- Até os anos 60, os enfoques classificatórios
cia que a participação desses profissionais na baseados na definição de atributos e funções,
estruturação dos modernos sistemas de servi- que distinguem as áreas profissionais dos de-
ços de saúde adquiriu historicamente e, mais mais campos de trabalho da sociedade, domi-
recentemente, por serem responsabilizados naram a cena da sociologia das profissões. Nes-
por grande parte das mazelas que afligem a as- sas vertentes de análise, o que distinguia as
sistência médica nos diversos países: altos profissões era a existência de uma base de co-
custos dos serviços, descontrole nos mecanis- nhecimento científico abstrato e a adesão a um
mos gerenciais, desperdício de recursos, iatro- ideal ético-moral de serviço altruístico, atribu-
genia etc. tos estes funcionalmente essenciais à socieda-

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


MÉDICOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA 663

de. No campo sanitário (onde a profissão médi- estrutural inteiramente diferente na divisão de
ca é considerada a profissão por excelência) es- trabalho setorial, que possibilita o poder de
ta perspectiva traduziu-se na percepção de que avaliar o trabalho dos demais sem ser objeto de
os conhecimentos médicos eram indispensá- direção formal ou avaliação por eles (Wolinsky,
veis para curar as pessoas, cujo bem-estar físico 1988:35, com base em Freidson). A diferença
era condição essencial para a manutenção do está posta, portanto, no fato de que a profissão
desenvolvimento da sociedade; sendo assim, as médica adquiriu autonomia.
atividades médicas constituiriam um requisito Essa dominância profissional significa para
funcional essencial para a sociedade. Freidson que os médicos controlam tanto o
Inúmeras foram as críticas que apontaram conteúdo de sua própria função, quanto o de
as incongruências teóricas deste tipo de análi- outras ocupações que participam na divisão de
se (Becker, 1963, 1964, 1970; Hughes, 1971; Kle- trabalho em campo sanitário, além de que
gon, 1978; Sacks, 1983), sendo duas as princi- exercem poder também sobre os pacientes e
pais: a sua ahistoricidade e uma certa ingenui- sobre os termos e condições de suas atividades
dade sociológica ao assumir-se acriticamente profissionais. Em síntese, o conceito de domi-
como interpretação da realidade a imagem que nância profissional em Freidson pressupõe es-
a profissão têm de si mesma, fundada num si- sas quatro diferentes dimensões, sendo a auto-
logismo abstrato – as profissões por definição nomia (controle sobre o conteúdo do trabalho)
tem uma ética moral de utilidade pública, a sua característica central (Coburn, 1992).
medicina é obviamente uma profissão, em Quais os fundamentos da obtenção dessa
conseqüência deve ter um ideal de servir à po- autonomia e como ela se mantém?
pulação (Björkman, 1990; Speranza, 1991). A aquisição desse status diferenciado en-
As indagações sobre as circunstâncias so- volve dois estágios. Primeiro, enquanto uma
ciais nas quais uma certa ocupação busca, me- profissão que proporciona consultas altamen-
diante estratégias específicas, obter os privilé- te especializadas, deve demonstrar que desen-
gios e o poder aferidos ao status profissional volve um trabalho realmente confiável e valio-
datam dos anos 70 e vários autores apontam so e persuadir o público de sua eficácia (o que
Freidson (1970a e b) como seu principal for- não aconteceu antes do século XIX); pressu-
mulador. Ressaltando que as características até põe, portanto, o convencimento da sociedade
então assinaladas tiveram um valor analítico de que determinado trabalho profissional é
para a definição das profissões, Freidson pro- imprescindível e deve ser controlado por quem
põe uma redefinição que leve em consideração entende do assunto. Isto foi facilitado pela ob-
o poder e o controle social, ou seja, uma recon- tenção do monopólio legal sobre o estabeleci-
ceituação em termos de uma autonomia legiti- mento de requerimentos educacionais, licen-
mada e organizada socialmente, que assegure ciamentos para o exercício profissional, código
às profissões uma posição dominante na divi- de ética, constituição de associações e alguns
são de trabalho. elementos de controles por pares. E, segundo,
Segundo Wolinsky (1988), Coburn (1992) e a concessão da autonomia, que pressupõe a in-
Speranza (1991), entre outros, em uma série de ter-relação entre os poderes político e econô-
trabalhos bastante provocativos, Freidson de- mico e as representações profissionais. Portan-
senvolveu a teoria que ficou conhecida como a to, a fundação da autonomia profissional é cla-
perspectiva da dominância profissional. Sua ramente um processo político e social de con-
análise se inicia com o argumento de que uma cessão legal, não algo que as profissões podem
profissão deve ser definida como uma ocupa- obter por si próprias, e, sendo conferida à pro-
ção que adquiriu autonomia e autogoverno e fissão pela sociedade, leva, por sua vez, à auto-
que é organizada formalmente através de insti- regulação, além de que envolve o Estado no es-
tuições criadas especialmente com o objetivo tabelecimento e manutenção da proeminência
de proteger e garantir essa autonomia. profissional.
Para o autor, em qualquer segmento de tra- A influência da medicina na organização de
balho, somente uma profissão pode ocupar o serviços de saúde e na política de saúde deriva,
lugar dominante e, na ‘indústria dos serviços para Freidson, do monopólio da medicina
de saúde’, a única profissão que adquiriu tal científica na definição de doença, restringindo
autonomia organizada foi a de médico, daí seu a discussão dos serviços de saúde a uma parti-
status privilegiado (Wolinsky, 1988:34-5). Para- cular forma de ver a saúde: mecanicista, indi-
doxalmente, a autonomia do médico é susten- vidualista e orientada para a cura das doenças
tada pela dominância que seus experts exer- segundo o modelo médico. O autor questiona
cem na divisão de trabalho, o que se constitui também que, embora essa dominância tenha
numa distinção crucial, ou seja, uma relação levado ao avanço do conhecimento científico,

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


664 ALMEIDA, C.

impediu a sua aplicação efetiva em prol da nhecimento especializado e os consumidores


melhoria das condições de saúde da população. diminuiu e que estes agora não confiam mais
Apesar de bastante inovadora à época e sin- na medicina como antes. Ao mesmo tempo
tonizada com o clima crítico de então, durante que os médicos estariam sendo obrigados a di-
os últimos vinte anos, a reflexão freidsoniana vidir seu poder monopólico (interna e externa-
tem recebido diversas críticas, às quais o autor mente à profissão, com outros experts e mana-
sistematicamente respondeu, além de que vem gers), a medicina estaria perdendo seu prestí-
sendo suplementada (ou suplantada) por vá- gio público, tanto pela ação da crescente espe-
rias outras reflexões, ampliando-se em muito o cialização, do aumento da iatrogenia que sua
debate sobre a temática em pauta. atuação especializada provoca (pelo uso indis-
Três dessas críticas foram especialmente criminado de uma tecnologia sem avaliação
enfatizadas: a da desprofissionalização, a da cuidadosa de resultados), quanto pela difusão
proletarização e a da corporatização dos mé- da idéia de que os médicos estariam mais preo-
dicos: cupados com seu próprio bolso do que com a
1) A teoria da desprofissionalização é defendi- saúde dos seus pacientes.
da basicamente por Haug (1973, 1981, 1988), Freidson (1985) contra-argumentou que a
que, reagindo às idéias de Bell (1976) de que as medicina não perdeu nem o respeito público,
sociedades pós-industriais seriam completa- nem seu monopólio profissional e, se houve al-
mente profissionalizadas, analisa que, ao con- guma perda de prestígio, foi em termos relati-
trário, a desprofissionalização seria a tendên- vos, isto é, uma perda igual à que sofreu qual-
cia do futuro, e avalia que existem evidências quer outra instituição nas décadas recentes.
inequívocas da mudança de status dos médi- Por outro lado, o processo de especialização e
cos e da medicina em muitos países industria- de incorporação tecnológica é muito mais rá-
lizados, traduzida nas perdas do monopólio do pido que a difusão leiga do conhecimento es-
conhecimento, da imagem positiva que con- pecializado e, sendo assim, o gap entre um e
tém motivos altruístas e da capacidade de im- outro teria aumentado e não diminuído. Além
por suas próprias regras. disso, a incorporação tecnológica e a inclusão
A autora (Haug) aponta pelo menos cinco de novos operadores e profissionais não dis-
razões para esse declínio. O monopólio médico pensa jamais o aval final do médico, não enfra-
sobre o corpo de conhecimento que os médi- quecendo, portanto, sua posição de controle.
cos manipulam teria sido desmontado pelos Por fim, e não menos importante, nenhuma
seguintes fatores: a) informatização e conse- das expressões de desconfiança e desrespeito,
qüente maior difusão de informações; b) maior ou mesmo os movimentos de consumidores
nível educacional da população, o que permite em saúde (como os de vítimas de malpractice
ao leigo maior acesso a esse conhecimento es- ou erro médico, negligência ou imperícia),
pecializado, além de insatisfação com os aten- atingiu as práticas institucionais estáveis que
dimentos recebidos e, portanto, maior questio- sustentam a posição do médico: para o autor, a
namento da população em relação aos profis- proeminência legal e dominância institucional
sionais; c) crescente especialização da medici- da profissão mantêm-se intactas.
na e novas formas de agregados especializados De qualquer forma, de fato é inegável que
teriam tornado os médicos mais dependentes o movimento feminista na saúde, ou o movi-
de seus colegas, assim como de outros profis- mento dos consumidores e lesados por atos
sionais paramédicos e experts não-médicos, re- médicos e vários outros movimentos sociais
duzindo-se o poder tanto individual, quanto iniciaram importante mudança cultural que
coletivo da categoria; d) crescimento dos gru- tem alterado hábitos sanitários, favorecido no-
pos de consumidores e de auto-ajuda em as- vas técnicas para gerenciar fatores de riscos
suntos de saúde, assim como dos inúmeros e ou monitorar a qualidade da assistência, ten-
variados novos profissionais não necessaria- do mesmo alterado a prática médica em al-
mente médicos, que trabalham com saúde nas guns assuntos. Por outro lado, a informática
mais diferentes bases de conhecimento e, por tem possibilitado estabelecer padrões e nor-
fim, e) denegridor ataque à altruística imagem mas de práticas consideradas aceitáveis, com-
dos médicos com a divulgação dos sempre parações que permitem ainda identificar os
crescentes aumentos de custos da assistência desviantes e, embora Freidson possa ter razão
médica, colocando em dúvida a responsabili- em termos globais, o efeito líquido é sem dúvi-
dade e comprometimento destes profissionais da uma maior racionalização e monitoramen-
com os bens públicos. to da perícia profissional; dessa forma a per-
Em síntese, os teóricos da desprofissionali- formance médica pode ser sujeita a avaliação
zação argumentam que a distância entre o co- externa.

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


MÉDICOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA 665

2) A segunda crítica à teoria do domínio pro- aceita que as corporações submetem os seus
fissional de Freidson é a da proletarização das empregados às suas regras, mas faz a ressalva
profissões e se refere às mudanças nas condi- de que nem todas as corporações funcionam
ções de trabalho dos profissionais nas últimas dessa mesma forma, enquanto Navarro (1988)
décadas, sobretudo no que concerne ao assala- refuta a idéia de que os médicos e seus repre-
riamento por grandes organizações. A teoria da sentantes profissionais atuem da mesma ma-
proletarização dos médicos é uma reflexão fei- neira que os trabalhadores em geral, opinião
ta primeiramente por McKinlay (1977), resulta- compartilhada pelo próprio Freidson na sua
do de uma provocativa revisão do trabalho de contestação a estas críticas.
Freidson, no esforço de entender as transfor- Respondendo a essas análises, Freidson
mações institucionais que afetam os centros contra-argumenta que, embora seja real o mo-
médicos e a profissão, mas que tem suas bases vimento de assalariamento (para os médicos,
teóricas no debate que se estabelece entre au- pelo menos, pois os outros profissionais sani-
tores marxistas, weberianos e liberais sobre a tários sempre foram assalariados), assim como
natureza do trabalho profissional nas econo- o da burocratização, essas tendências não sig-
mias avançadas. nificaram alterações profundas na questão
A crítica central a Freidson é exatamente central da dominância profissional: ainda que
não ter levado em consideração as relações en- individualmente os médicos possam ter sua
tre a profissão médica e o capitalismo, os inte- autonomia cerceada, a autonomia da profissão
resses de classe presentes no profissionalismo, continua intacta. Em essência, Freidson reco-
assim como as conseqüências políticas e eco- nhece as modificações apontadas por esses
nômicas da medicalização, uma vez que a me- teóricos, mas enfatiza que são mudanças inter-
dicina tem apenas um modesto impacto na nas à profissão e não externas a ela. Ou seja, a
saúde da população (McKinlay & Archer, 1985). medicina retém seu poder essencial.
Na seqüência dessa argumentação, vem a in- Por outro lado, vários autores chamam a
terpretação de que a expansão capitalista da atenção sobre as três maiores mudanças seto-
medicina, em grandes organizações comple- riais sublinhadas pela teoria da proletarização:
xas, induziu à sua burocratização, como a prin- a crescente complexidade técnica e organiza-
cipal forma de controle social, sendo que o cional da medicina moderna, que é amplamen-
crescente assalariamento dos médicos subme- te difundida pelo mundo (Larkin, 1988; Light &
te o profissional a normas regulatórias e hierar- Schuller, 1986); o aparecimento e rápido cres-
quias administrativas que de fato modelam a cimento das grandes corporações de assistên-
distribuição de serviços. Além disso, os autores cia médica (particularmente grandes cadeias
afirmam que o rápido crescimento do número de hospitais) (Light, 1986), que tentam atrair os
de médicos enfraqueceu seu poder de merca- profissionais com mais comodidades e apoio
do e fortaleceu o dos burocratas, atrelando os institucional ou arriscam perdê-los para os
profissionais a organizações que fogem ao seu competidores não lucrativos; a revolta dos
controle. Afirma-se, dessa forma, a tendência compradores institucionais de serviços (os cha-
de cada vez mais os médicos serem obrigados mados terceiros pagadores), que, a partir dos
a trabalhar em instituições e organizações meados dos anos 70, passam a tentar controlar
complexas, cuja racionalidade se impõe sobre os alarmantes custos da assistência médica.
qualquer trabalhador. Ainda que subjacentes à discussão da pro-
McKinlay & Archer (1985), entre outros, letarização, estas problemáticas não são passí-
transferem para as profissões a análise do capi- veis de ser analisadas com o arsenal teórico da
talismo e sua tendência monopólica, situação teoria da proletarização. Ao contrário, levan-
em que os trabalhadores (sejam profissionais tam a questão da pertinência e aplicabilidade
ou não) vêem-se reduzidos virtualmente ao do conceito de proletarização à profissão mé-
status de proletários, que dependem da venda dica ou mesmo para explicar as temáticas pos-
de sua força de trabalho para sobreviver, pri- tas pelas transformações no campo sanitário, o
vando-se de qualquer controle sobre o proces- que é apontado também por autores marxistas,
so de trabalho; relaciona a proletarização das como Navarro (1988), que, apesar de tudo, ad-
profissões ao corporativismo, que acarretaria a mite que os médicos não perderam o controle
perda das prerrogativas profissionais, uma vez sobre os meios de produção do seu trabalho,
que, como empregados de grandes organiza- vale dizer, sua autonomia.
ções, os médicos são apenas mais um tipo de De uma maneira geral, este enfoque, de ba-
trabalhador que têm de submeter-se à racio- se marxista, suscitou muita polêmica e vários
nalidade institucional imposta (McKinlay & são os autores que exploraram essa vertente de
Stoeckle, 1988). Mechanic (1991), por sua vez, análise e que têm procurado novos conceitos

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


666 ALMEIDA, C.

que permitam melhor explicar a posição dos ra trabalhar nas grandes estruturas organiza-
profissionais e outros grupos nas sociedades cionais do moderno mundo industrial. Mas, o
modernas. Entre nós, merecem menção os es- que parece ocorrer nas grandes corporações,
tudos de Donnangelo (1975) e Donnangelo & com a aparência de racionalização e de buro-
Pereira (1976), considerados clássicos. cracia, é o que foi denominado ‘proletarização
Para os efeitos deste trabalho, basta regis- ideológica’ (Derber, 1982:169-87, apud Light &
trar que vários autores têm compartilhado o Levine, 1988:19), que “significa perda de contro-
problema teórico de tentar considerar o papel le sobre o produto ou fins do próprio trabalho
dos managers e dos doutores empregados pe- enquanto mantém o controle sobre os meios ou
las corporações, assim como as relações entre técnicas de trabalho” (Light & Levine, 1988: 19).
carreiras médicas e capital, plusvalia e meios Alguns autores avaliam que há uma acomo-
de produção, inter-relacionando conceitos teó- dação profissional a essa nova situação, na
ricos que pretendem desvendar as transforma- qual os médicos se dissociam dos objetivos
ções e que passam bem longe da perspectiva institucionais e/ou negam que o controle so-
da proletarização. bre os resultados de suas atividades interfira
3) Finalmente, a terceira crítica à dominância no seu próprio trabalho.
profissional é a tese da corporatização (referi- O conceito de corporatização tem também
da ao empresariamento das atividades médi- outra dimensão que se refere aos impulsos em-
cas), que acompanha a teoria da proletariza- presariais internos à própria profissão, muito
ção, mas a partir de outro referencial teórico, difundidos por toda parte, uma vez que os mé-
mais relacionado às teorias da administração dicos cada vez mais transformam seus consul-
e gerenciamento das organizações complexas tórios em centros ambulatoriais capital-inten-
(McKinlay & Stoeckle, 1988). Refere-se ao fato sivo para diagnósticos e tratamentos, inclusive
de os médicos terem cada vez mais de ser em- desviando serviços dos hospitais.
pregados e se sujeitar a formas de controle das O impacto desses desenvolvimentos na pro-
grandes organizações/instituições, tais como, fissão médica e na dominância profissional tem
revisão de utilização ou qualidade, incentivos sido muito descrito mas não profundamente
através de diferentes estruturas de remunera- analisado e explicado teoricamente. Nos dife-
ção, restrição a práticas-padrão; de terem de rentes arranjos institucionais e organizacionais
aceitar a organização da sua prática segundo existentes hoje no campo da assistência médi-
esses parâmetros e enfrentar a reestruturação ca, as relações dos médicos em diferentes posi-
do mercado de serviços de saúde que signifi- ções em relação ao capital e ao lucro, assim co-
cou a passagem de profissionais autônomos mo a interferência dessa situação na autono-
para pequenos grupos de provedores e daí pa- mia profissional e nos resultados de seu traba-
ra empregados de grandes complexos mul- lho ainda precisam ser mais bem estudadas.
tiinstitucionais ou multiempresariais (Bur- Alguns autores consideram as análises de
nham, 1984; Stoeckle, 1988, apud Light & Levi- Freidson imprecisas e confusas, já que os con-
ne, 1988:19), tendo ao mesmo tempo que sub- ceitos de autonomia e dominância sugerem ní-
meterem-se aos desígnios dos managers. veis diversos de controle, cujas dimensões não
A corporatização diz respeito também ao teriam sido adequadamente especificadas nas
paradoxo dos médicos dependerem de organi- suas reflexões (Coburn, 1992). Coburn, por
zações complexas e de mecanismos de finan- exemplo, argumenta que a realidade evidencia
ciamento para desempenhar seu sofisticado uma situação muito mais complexa na divisão
trabalho, aceitando ainda que essas instituições de trabalho em saúde e muitas das discussões
interfiram nele, medeiem suas relações com os sobre o declínio do poder médico referem-se
pacientes e, potencialmente, ameacem a sua precisamente à perda de controle profissional
credibilidade perante a sociedade como um to- sobre o contexto da atenção médica e, em cer-
do, uma vez que a legitimidade é ao mesmo ta medida, sobre os clientes. Por outro lado, as
tempo expandida e ameaçada, pois que sub- inter-relações da medicina com as demais ins-
sumida nos objetivos globais da organização. tituições societais, que faltam na maioria des-
Embora se atribua à corporatização a emer- sas análises, impedem a percepção da transfor-
gência de fenômenos relacionados com a bu- mação do seu papel com o desenvolvimento
rocratização e a racionalização, não existem econômico e social, assim como a mudança
evidências teóricas ou empíricas de que essa que se operou com a crise econômica, quando
relação seja direta, além de que a tradicional o demolidor ataque neoliberal à organização
ênfase na autonomia e independência que do trabalho médico nos sistemas de serviços
acompanha a formação dos médicos faz com de saúde teve como finalidade última restringi-
que, em princípio, não estejam preparados pa- los e conter seus custos.

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


MÉDICOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA 667

Em síntese, pode-se dizer que os quatro sistema social, mas sim como “grupos de inte-
conceitos aqui repassados sumariamente – do- resse e/ou de pressão não transitórios” que agem
minância profissional, desprofissionalização, também em função da proteção de seus pró-
proletarização e corporatização – iluminam, prios interesses (Freidson, 1970a e b) e que tra-
cada um deles, importantes desenvolvimentos balham em colaboração tão estreita com o go-
na prática médica moderna, mas refletem verno, que torna-se difícil distinguir onde ter-
perspectivas teóricas e políticas que capturam minam as atividades de um e começam as do
apenas uma parte do problema. Sendo assim, outro (Björkman, 1982:423).
trabalhar de forma interconectada pode possi- Alguns autores consideram as associações
bilitar novas perspectivas teóricas com maior profissionais como “arenas preliminares de le-
poder explicativo (Light & Levine, 1988). gislação pública” (Gilb, 1960:140, apud Speran-
De qualquer forma, pode-se identificar um za, 1991:480), uma vez que são elas que elabo-
consenso entre os autores quanto à resistência ram os projetos de lei setoriais; além disso,
dos médicos, através de diferentes estratégias, quando uma lei referente à área profissional
a submeterem-se à proletarização ou perda de chega ao Congresso, as escolhas e definições
controle sobre a sua profissão. mais importantes já foram estabelecidas nos
Em essência, o argumento central perma- acordos fechados nos fóruns pré-legislativos.
nece, ou seja, o core do poder médico – auto- Daí que a maior influência das organizações
nomia técnica, habilidade em controlar seu profissionais é exercida nas comissões técnicas
trabalho e o de outros no setor, monopólio so- específicas, que estabelecem padrões profis-
bre a ‘cura’ das doenças – continua intacto. A sionais, têm composição restrita e executam
medicina ainda pode lançar mão de muitas um trabalho que parece ser apenas técnico, de
fontes de poder para vetar ou direcionar as tal forma que não são muitos os que ambicio-
mudanças que não sejam de seu interesse, pe- nam (ou estão capacitados a) fazer parte delas
lo menos enquanto a profissão for dominante (Freidson, 1986:204-5, apud Speranza, 1991:
no setor e tiver o monopólio sobre a provisão 480).
de serviços de assistência médica, monopólio Longe de serem maniqueístas ou conspira-
este que vem sendo sistematicamente desafia- tórias, essas reflexões foram cruciais para a
do par i passu com a escalada neoconservado- fundamentação da análise sobre o monopólio
ra. A questão central que continua em pauta profissional médico em bases políticas e so-
com o aumento da intervenção (ou regulação) ciais. Dito de outra forma, o profissionalismo
dos governos federais (e de forma similar dos não é um termo meramente descritivo, mas
demais seguradores e terceiro-pagadores) é se um conceito que traz enraizada a capacidade
esse poder é o mesmo do passado e qual a di- das lideranças profissionais de conquistar,
nâmica política que de fato está produzindo manter e expandir status social e poder para
mudanças na sua posição social. seu grupo.
Assim, pode-se convencionar que o poder
profissional apóia-se sobre o conhecimento
A percepção dos médicos como grupo científico especializado (Freidson, 1970a e b),
de pressão e interesse ainda que não seja este seu único determinan-
te, porém o estabelecimento da validade do co-
As análises críticas da bibliografia sobre o pro- nhecimento dos experts é um processo político
fissionalismo médico trouxeram também uma e não somente intelectual (Rushmeier, 1986:
outra contribuição importante, que é a percep- 106, apud Speranza, 1991:479). O que se evi-
ção do profissionalismo médico como uma dencia nessa discussão é que o controle mono-
modalidade, entre outras, de controle ocupa- pólico sobre a produção do conhecimento téc-
cional ( Jonhson, 1972, apud Speranza, 1991: nico-científico e a distribuição de serviços não
479), através da qual se exprime um projeto derivam automaticamente da especificidade
profissional que consta de dois processos: um atribuída ao conhecimento especializado e ao
de criação e controle de mercados de serviços ideal de serviços.
profissionais e outro de mobilidade social co- Da mesma maneira, competência técnica
letiva (Larson, 1977, apud Speranza, 1991:479). especializada, cientificamente reconhecida, e
Com base nessa perspectiva, as profissões, deontologia de serviço de utilidade pública
com suas associações representativas, não são são, de fato, os dois cânones clássicos da defi-
mais consideradas apenas como portadoras de nição de profissão, assim como a base dos
uma ética social superior e de um conheci- princípios da autonomia técnica do médico,
mento científico especializado e, como tal, em nome da qual este profissional decide o
funcionalmente necessários à reprodução do que é melhor para o seu paciente, como seu le-

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


668 ALMEIDA, C.

gítimo representante, e, ao mesmo tempo, é sional) (Freidson, 1982:220-21, apud Speranza,


autorizado como juiz inquestionável de suas 1991:482). Os conflitos diretos entre profissio-
próprias ações. Estas premissas são também os nais e clientes são mais recentes e ainda pouco
fundamentos ideológicos da assistência sani- estudados, de tal forma que não é possível ain-
tária à população, que, para se concretizar en- da incluí-los como variáveis que influenciam o
quanto tal, entretanto, teve que obter a susten- desenvolvimento do profissionalismo, mas va-
tação política para a aprovação estatal da auto- le a pena serem mencionados. Seu aumento se
nomia profissional antes de traduzir-se em po- deve tanto à maior acessibilidade dos leigos à
der profissional e controle de recursos (Björk- informação médica e melhora do nível educa-
man, 1990:317). cional dos clientes, quanto à ação dos movi-
Portanto, na sua essência, o monopólio da mentos reivindicatórios e judiciários de clien-
medicina no setor saúde tem um caráter políti- tes/consumidores, que começaram a pedir
co, não apenas porque a garantia de sua insti- contas aos profissionais sobre seus atos.
tucionalização implica intervenção do Estado, Muito diferente, porém, é o discurso dirigi-
mas principalmente porque estimula e favore- do aos profissionais como entidades coletivas
ce a mudança das formas de representação (corporativas) ou associações representativas,
profissional em direção à centralização e inclu- que envolve pelo menos duas temáticas dife-
sividade. Logo, diz respeito à profissão como rentes (que via de regra se confundem): uma
uma entidade corporativa. Por outro lado, co- que diz respeito às formas organizativas de re-
mo analisa Speranza (1991), o fato de que os presentação (inclusivas ou exclusivas) e outra
médicos não conseguiram atingir um pleno que concerne aos problemas de estratificação
monopólio ocupacional em todas a socieda- interna dos profissionais que integram a asso-
des, isto é, coroar com pleno sucesso seu pro- ciação (com a conseqüente diversidade de in-
jeto profissional, evidencia que na eficácia da teresses).
ação coletiva influi uma série de circunstân- A exigência de obter o monopólio é que es-
cias culturais, sociais, políticas e organizativas, timula as organizações profissionais a serem
que apenas para fins analíticos podem ser se- inclusivas, isto é, tentar representar todos os
paradas. profissionais do setor, quaisquer que sejam
Entre as condições culturais estariam as suas especialidades, o que, por outro lado, po-
propriedades formais do conhecimento técni- de traduzir-se em fator de debilidade política e
co especializado, cuja base cognitiva deve ser de instabilidade, uma vez que a heterogeneida-
suficientemente formalizada e codificada a fim de de interesses internos complica o processo
de permitir uma padronização, o que significa de decision making coletivo. Portanto, a deci-
a pretensão de uniformidade na formação dos são de ser exclusiva ou inclusiva é uma opção
profissionais, mas com alta taxa de diferença política, a ser feita em específicos processos de
individual no cotidiano profissional; ou seja, a negociação, pelas respectivas associações, em
competência deve parecer igual para todos, contextos históricos determinados. Além disso,
mas a sua aplicação, longe de apresentar-se co- numa perspectiva pluralista, a heterogeneida-
mo um fato de rotina, deve enfatizar a exigên- de dos clientes – quando estes possuírem peso
cia de alto grau de discernimento individual, o similar, quando forem pessoas físicas em vez
que é conseguido somente após um longo de grandes sociedades, isto é, atomizados – po-
aprendizado (aquilo que se poderia definir co- de também traduzir-se em posição de força
mo a concessão da ‘medicina como arte’) (Spe- dos profissionais como grupo e constituir uma
ranza, 1991:482). das fontes do seu poder (Speranza, 1991:483).
No que concerne às circunstâncias sociais Um problema completamente diverso está
que influenciam o desenvolvimento do profis- referido à estratificação no interior das profis-
sionalismo, têm particular relevância as rela- sões, fonte potencial de conflitos intraprofis-
ções de poder entre profissionais e clientes e os sionais e que remete à segunda condição social
conflitos intraprofissionais. relevante de influência sobre o profissionalis-
No primeiro caso, é importante distinguir mo, uma vez que atinge o seu core. O autor que
entre o profissional como indivíduo e a profis- enfrentou sistematicamente essa argumenta-
são como uma entidade corporativa. A relação ção foi mesmo Freidson (1983, 1984), quando
que o profissional individualmente estabelece se contrapôs às teorias da desprofissionaliza-
com a clientela depende das características ção e da proletarização das profissões, como
desta, isto é, a atitude muda segundo seja um vimos, com a hipótese de uma crescente estra-
paciente privado ou público, ou ainda uma tificação formal, interna à cada profissão, em
multinacional (e, neste último caso, segura- três papéis distintos: docente-pesquisador uni-
mente a desvantagem estará do lado do profis- versitário, gerente-administrador e praticante.

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


MÉDICOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA 669

Como bem analisa Speranza, os profundos di- sociais e políticos), acumulados pelas profis-
ferenciais de prestígio, renda, poder e autori- sões, em uma lógica de ação capaz de, com ba-
dade, inerentes a esses três diferentes papéis, se nos seus fundamentos epistemológicos,
atestam as dificuldades e os conflitos daí ad- chegar ao poder monopólico em setores espe-
vindos, talvez muito profundos para serem cíficos (Halliday, 1985:435-6, apud Speranza,
contidos no interior da profissão como entida- 1991:487). Entretanto, no caso da profissão
de coletiva. No caso da medicina, como admite médica, os achados empíricos são contraditó-
o próprio Freidson (e a minha prática profis- rios e a lógica geral – quanto mais uma profis-
sional confirma), é muito difícil que os médi- são é organizada numa única associação am-
cos vejam seus colegas não praticantes (admi- plamente representativa, capaz de ampla mo-
nistradores e mesmo pesquisadores) como ver- bilização da categoria, mais influência terá so-
dadeiros médicos e, portanto, verdadeiros co- bre o poder público – parece não funcionar
legas. plenamente, pelo fato de que a necessidade de
A terceira condição que interfere de forma ser inclusiva por si só age como freio à mobili-
decisiva no desenvolvimento do profissionalis- zação, pela maior fragmentação e conseqüente
mo, inclusive determinando o tipo de profis- complexidade do processo decisório interno.
sionalismo resultante, é a cultura política pre- Exemplos, como o dos EUA, confirmam em
valecente em um dado contexto, numa deter- parte essa afirmação, uma vez que, apesar de
minada sociedade, onde a questão central se visto como o país onde os médicos têm maior
refere às relações Estado/profissão, que discu- autonomia, cujas associações são as mais for-
tiremos mais adiante. tes e poderosas, é a sociedade onde a ênfase na
Os autores apontam que o século XIX, de especialização é a mais absoluta, o que levou a
uma maneira geral, foi bastante hostil ao pro- grande fragmentação interna da profissão e
fissionalismo, no sentido em que, mesmo em necessidade de coordenação através de organi-
culturas políticas diversas, o privilégio de os zações complexas onde os médicos são apenas
profissionais (entre eles os médicos) atuarem uma pequena parte, uma vez que dirigidas por
como interlocutores preferenciais do Estado managers profissionais cada vez mais podero-
não se verifica. Os determinantes são variáveis, sos (Light & Levine, 1988).
porém, e a específica história de cada socieda- Em síntese, as divisões internas à profissão,
de particular explica as diferenças de institu- das quais se aproveita ou não o poder estatal,
cionalização do profissionalismo médico en- em conjunturas específicas, são insuficientes
contradas em cada país. para explicar ou obstaculizar um fenômeno
A mudança é radical, entretanto, com a complexo como o profissionalismo, assim co-
emergência do welfare state, onde a inserção mo as teorias corporativas clássicas sozinhas
da profissão médica e sua maior influência no não dão conta de ajudar a entender o processo
setor sanitário tem um duplo caráter (Speran- de policy decision making setorial.
za, 1991:487): de um lado aumenta considera-
velmente o número dos profissionais e do ou-
tro é legitimado ou reforçado o monopólio pro- As fronteiras móveis da regulação
fissional no setor. A crescente oferta pública de profissional
serviços em atividades tradicionalmente consi-
deradas de domínio profissional (como saúde A questão central embutida na discussão do
e educação, onde as faculdades de medicina, profissionalismo em geral, e no sanitário em
reunindo as duas funções, foram as grandes particular, que interessa sublinhar para a me-
beneficiárias) (Heideheimer, 1989) e o fato de lhor compreensão da estruturação e dinâmica
que o Estado torna-se o maior empregador pa- do sistema de serviços de saúde, é referida à
ra os profissionais, além de aumentar bastante auto-regulação profissional dos médicos e sua
o seu número, protege as suas rendas das osci- inter-relação com as demais formas de regula-
lações de mercado. Por outro lado, o Estado ção presentes na sociedade.
atua também como um legitimador e reforça- Embora para os próprios profissionais, e
dor do monopólio profissional, ao avalizar o para alguns autores, a auto-regulação consti-
papel das associações oficiais no reconheci- tua o corolário natural da autoridade profissio-
mento e avaliação dos seus pares (Larkin, nal, ou ainda um atributo inato do profissiona-
1988). lismo, na realidade ela constitui o resultado de
Por último, os autores destacam o caráter um longo processo histórico de construção po-
instrumental dos fatores organizativos na es- lítica e social, onde a inter-relação do Estado
truturação da ação coletiva profissional, que com a profissão médica é fundamental, e se-
permitiu transformar os recursos (culturais, gundo o qual o Estado é a autoridade que pri-

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


670 ALMEIDA, C.

meiro concede o monopólio e a auto-regulação regulação, uma vez que se trata de um proces-
e depois proporciona (ou retira) os meios para so de negociação no qual as profissões devem,
exercê-lo e defendê-lo (Speranza, 1991:491-5). por meio da luta política, primeiro convencer a
O conceito de auto-regulação comporta elite dominante de que são capazes de regular
duas dimensões analíticas que na prática con- o próprio setor e depois obter a autorização do
fundem-se, porque estreitamente interrelacio- Estado. Este é um longo processo político e so-
nadas. A primeira dimensão é oriunda da per- cial. Além disso, como vimos, a auto-regulação
cepção tradicional da auto-regulação como re- de uma profissão não requer apenas uma in-
ferida aos mecanismos e processos formais de tervenção inicial do Estado, mas a persistência
autogoverno por meio dos quais os profissio- da atividade de regulação estatal a seu favor,
nais controlam a admissão, a preparação e o defendendo-a de outros grupos de interesse
comportamento (trabalhista e ético) dos pró- concorrenciais e, portanto, de princípios regu-
prios membros da corporação, de forma a san- ladores que concorrem com ela (isto é, o mer-
cionar eventuais erros e/ou abusos. A segunda cado).
dimensão pode ser derivada de uma definição Assim, a regulação burocrática ocorre quan-
de auto-regulação mais centrada nos modelos do o Estado, ou as grandes sociedades priva-
de regulação geral da sociedade (Lange & Regi- das, é quem dita as normas que regulam o de-
ni, 1987a e b), isto é, uma específica modalida- senvolvimento do trabalho profissional. A esta
de de formação e gestão da política pública e forma de regulação estão submetidos não ape-
parapública, através da qual são as profissões, nas os empregados de uma organização (públi-
e não o Estado ou o mercado, que determinam ca ou privada), mas também os que trabalham
as características da oferta e a demanda, esta- em tempo parcial ou com determinadas for-
belecendo os critérios e as finalidades das orga- mas de contrato para programas financiados e
nizações, do financiamento e da distribuição organizados publicamente (como, por exem-
dos serviços profissionais (Speranza, 1991:489). plo, o Medicare e o Medicaid nos EUA). Entre-
Obviamente, na prática, as duas dimensões tanto, como assinalam alguns autores (Derber,
imbricam-se de forma inexorável, inclusive 1982; Navarro, 1988), essa burocratização, ain-
porque a segunda extrai força e legitimidade da da que seja um dos resultados indesejáveis do
primeira, e, conseqüentemente, a liberdade welfare state, não significa a perda da autono-
concedida aos profissionais para estabelecer as mia técnica (como ocorre com os trabalhado-
decisões técnicas que regulam seu próprio tra- res manuais), embora a liberdade de decisão,
balho torna-se, ou pode tornar-se, uma autori- em termos globais, seja mais circunscrita. Mes-
zação para determinar também os fins e a alo- mo prescindindo do contexto de trabalho bu-
cação de recursos essenciais ao setor (Speran- rocratizado, algumas temáticas podem ser ob-
za, 1991:490). jeto de regulação estatal mediante critérios ex-
A auto-regulação não é, porém, a única for- ternos gerais sobre as modalidades de trabalho
ma de regulação profissional existente, mesmo profissional, como no caso dos limites e restri-
porque sozinha é insuficiente e está sempre in- ções impostas à pesquisa e à experimentação
tegrada a alguma outra forma de regulação ex- médica em humanos.
terna. A última forma de regulação profissional é
Na literatura sobre as profissões, distin- a regulação do mercado, que nos últimos dez
guem-se três formas diversas de regulação – anos passou a ser referida como desregulação,
burocrática, desregulação (ou regulação de mas com bem pouca precisão analítica. Neste
mercado) e auto-regulação ou controle pelos caso, o controle da atividade profissional é fei-
pares (Freidson, 1983). Tais formas não diferem to por intermédio dos mecanismos de merca-
na essência dos três princípios possíveis de re- do, que pressupõem a abolição do monopólio
gulação social – a autoridade ou controle hie- técnico e introdução de mecanismos de con-
rárquico, a troca e a solidariedade –, cada um corrência no trabalho profissional.
dos quais traduzido, historicamente, em insti- Historicamente, o único período em que o
tuições regulativas diversas, respectivamente – profissionalismo foi regulado principalmente
o Estado, o mercado e a comunidade (Lange & por meio dos critérios de mercado, juntamente
Regini, 1987a, apud Schmitter & Streeck, 1985). com outros da comunidade, foi no final do sé-
Ainda que a auto-regulação profissional culo XVIII e início do XIX, no período imedia-
historicamente tenha perdido suas ligações tamente sucessivo à Revolução Francesa (1789)
com a comunidade social e estreitado seus la- (Heidenheimer, 1989; Speranza, 1991). A dife-
ços com a comunidade dos colegas, que obvia- rença do que ocorre hoje, na chamada desre-
mente não é a mesma coisa, não pode ser con- gulação, é que durante aquele período os crité-
siderada uma quarta modalidade diferente de rios de mercado foram utilizados com base em

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


MÉDICOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA 671

uma ideologia que tinha conotações fortemen- vidades e relações entre atores “tanto as que di-
te populistas, igualitárias e democráticas. E, a zem respeito à esfera da produção quanto a da
partir de então, as profissões dirigiram toda distribuição de recursos econômicos” e como
sua ação, com sucesso variado mas sempre regulação “os diversos modos como um deter-
crescente, ao objetivo de conquistar nichos de minado conjunto de atividades ou de relações
atuação protegidos do mercado, obviamente entre atores é coordenado, os recursos consentâ-
com formas de exclusão da concorrência bas- neos são alocados e os conflitos inerentes, reais
tante diversas nos vários países, mas com re- ou potenciais, são estruturados” (Lange & Regi-
sultados equivalentes: os monopólios profis- ni, 1987a:13). O conceito de regulação inter-re-
sionais reconhecidos pelo Estado. Com isto laciona, portanto, três dimensões: coordena-
não se quer dizer, porém, que o mercado não ção de atividades, alocação de recursos e admi-
tenha qualquer papel na regulação das ativida- nistração de conflitos.
des profissionais, mas simplesmente que os Por outro lado, quando um princípio ou
critérios de mercado não influíram significati- critério de regulação está estreitamente asso-
vamente na dimensão da auto-regulação que ciado a uma instituição particular, existe a ten-
se refere ao controle, preparação e comporta- dência de imaginar que tal instituição se ba-
mento dos próprios membros (mesmo a ques- seia apenas naquele princípio (por exemplo,
tão quantitativa da oferta de profissionais, que imagina-se que o princípio de autoridade e
em larga medida foge ao controle das próprias controle hierárquico seja o único critério de
profissões, não pode ser considerada como regulação utilizado pelo Estado, ou mesmo
permeada unicamente pelo mercado). O mes- que a auto-regulação seja o princípio por ex-
mo não se pode dizer, porém, da dimensão vol- celência da regulação profissional; ou ainda
tada para a formação e gestão da política pú- que mecanismos de troca sejam usados ape-
blica, como veremos mais adiante, onde o de- nas pelo mercado), o que pode ofuscar uma ca-
nominado managed care (por exemplo com as racterística fundamental de qualquer institui-
Health Maintenance Organizations-HMOs, nos ção: todas se baseiam num mix dos três tipos
EUA) é um exemplo expressivo entre outros. de regulação, diferenciando-se na medida em
De uma maneira geral, pode-se afirmar que que um deles se caracteriza como critério do-
a regulação do mercado nunca foi suficiente e minante ou historicamente incorporado nelas
esteve sempre integrada àquela burocrática e como prevalente, mas nunca exclusivo (Lange
mesmo à auto-regulação. & Regini, 1987a:28).
O que é importante destacar nesta discus- Esta constatação leva a outra observação
são é que as fronteiras entre as várias formas teórica e política importante, ressaltada pelos
de regulação são móveis e sujeitas à ação cole- autores: o pressuposto de que certos critérios
tiva das profissões, ainda que não de forma ex- de regulação são impróprios para determina-
clusiva, e a mudança de ênfase numa ou nou- das instituições (por exemplo, de que os meca-
tra forma de regulação (por exemplo da de nismos de intervenção estatal são incompatí-
mercado para a auto-regulação – no século XIX veis com o mercado) é um juízo de valor ideo-
– e, mais recentemente, a partir dos anos 60, da lógico pouco fundamentado analiticamente.
auto-regulação às formas burocráticas) são im- Esta afirmação é, entretanto, altamente di-
pulsionadas historicamente por meio de pro- fundida na literatura recente sobre as relações
cessos políticos e sociais. Assim, a intervenção Estado/sociedade, mesmo em campo sanitá-
de uma terceira parte (Estado ou seguros) nas rio, que tende a enfatizar a invasão de campo
relações entre os médicos e seus pacientes, as ou o obscurecimento das fronteiras próprias
crises e calamidades (econômicas, epidemias, das diversas instituições regulativas como re-
guerras), com as conseqüentes necessidades sultado “de mudanças profundas, contradições
de investimentos especiais e/ou controle dos ou pelo menos instabilidade” (Lange & Regini,
gastos destinados à assistência sanitária, são 1987a:19).
fatores, internos e externos ao setor, historica- Porém, esclarecem os autores, longe de ser
mente determinados, que deslocaram a predo- um sinal de instabilidade institucional, a inva-
minância de uma forma de regulação em favor são de campo ou a presença de princípios con-
de outra. siderados impróprios são a norma em todas as
Além disso, partindo-se da análise de Lan- áreas de atividades e de relações concernentes
ge & Regini (1987a), já mencionados, é possível à produção e à distribuição de recursos. Cada
contaminar de forma positiva o debate e avan- uma dessas áreas, na realidade, baseia seu fun-
çar nessa discussão. cionamento normal na intervenção de um par-
Assim, aqueles autores definem como obje- ticular mix de instituições e de princípios de
to da regulação um conjunto particular de ati- regulação, que interagem entre si, e as disfun-

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


672 ALMEIDA, C.

ções, as contradições ou as mudanças devem samente no tempo e no espaço na regulação


ser investigadas através de outras variáveis, no do profissionalismo. A auto-regulação e a regu-
processo mesmo onde elas se inserem. lação burocrática são diversas, entretanto, ain-
No que diz respeito especificamente à regu- da que tenham vários pontos em comum, uma
lação através de grupos associativos ou de in- vez que a primeira é marcada desde a sua ori-
teresse, uma quarta modalidade de regulação gem pela intervenção (reguladora) do Estado
social foi proposta por Schmitter & Streeck (Speranza, 1991; Heidenheimer, 1989), e a mo-
(1985:67): a concertação organizativa, inspira- bilidade de fronteiras entre elas demonstra
da no princípio associativo, que consiste na quão desviante e ideológica é a afirmação de
“constituição de governos privados aos quais que quanto maior a intervenção estatal menor
são delegadas (pelo Estado) responsabilidades a autonomia profissional e vice-versa.
públicas ... [na] ... tentativa de utilizar interes- Na realidade, a questão é muito mais com-
ses de determinadas categorias para criar e plexa: envolve desde as estratégias que as pro-
manter uma ordem social geralmente aceita”. fissões elaboram para atingir seus objetivos
Lange & Regini (1987a e b) questionam se (convencer a elite dominante e o público de
de fato a concertação organizativa constitui sua imprescindibilidade e obter do Estado for-
uma nova modalidade de regulação ou se é mas de monopólio e auto-regulação), até a
apenas um específico mix das três formas exis- transformação das formas de representação
tentes. E Speranza (1991:494) faz-se a mesma necessárias para tal (de exclusiva a inclusivas);
pergunta no que concerne à auto-regulação os recursos a serem utilizados (competência
profissional nos sistemas sanitários. técnica, desenvolvimento científico, clientes
O que os estudos empíricos demonstram é atomizados, cultura política de welfare state);
que, apesar dos pontos de contato entre a re- os vínculos e obstáculos diversos que devem
gulação através de grupos associativos e a au- ser enfrentados (profissões concorrenciais, fra-
to-regulação, não se pode afirmar que as refle- turas internas, organizações coletivas dos
xões teóricas que servem para explicar uma clientes, culturas políticas igualitárias), mas
possam ser transpostas automaticamente para também, o tipo específico de intervenção esta-
a outra. Entretanto, pode-se ter por hipótese tal implementada em momentos históricos
que, à semelhança da primeira, a segunda não dados.
tem uma “autonomia analítica ... nem tanto
porque represente um mix de Estado, mercado e
comunidade, mas porque constitui uma forma As mutáveis relações entre a profissão
derivada da regulação estatal” (Speranza, 1991: médica e o Estado na formulação/
494). implementação da política de saúde
Os estudos de casos confirmam essa hipó-
tese, como demonstrou Döhler (1990), ao ana- A relação intervenção estatal/autonomia pro-
lisar as mudanças recentes na assistência sa- fissional não tem um sentido único, nem é uni-
nitária em cinco países (EUA, Alemanha Oci- forme ou imutável no tempo, sendo muito mais
dental, Inglaterra, França e Suíça) e evidenciar complexa que um jogo de soma zero, podendo-
que não se comprova a tese habitual de que se afirmar com Johnson ( Johnson, 1982, apud
quanto maior é a distância dos médicos do Speranza, 1991:497) que o profissionalismo,
welfare state (leia-se, menor intervenção esta- quando existe, é um fenômeno que integra o
tal), tanto mais pronunciada será a sua auto- processo de formação do próprio Estado. A his-
nomia e vice-versa; além de que, em muitas tória dessa relação, entretanto, não é apenas o
sociedades (como por exemplo na Inglaterra), resultado nem de uma crescente intervenção
a posição de proeminência dos médicos nos estatal, em campos outrora autônomos, nem
sistemas sanitários foi conseguida não pres- de enfrentamentos entre o Estado e as profis-
cindindo do Estado, e sim por intermédio des- sões, devido a essa intromissão indevida. Da
te. Sendo assim, a dominância e, conseqüen- mesma maneira, o que se tornou poder e fun-
temente, a auto-regulação médica não são in- ções do Estado, em campos específicos, não
versamente proporcionais à intervenção esta- derivam de algum atributo estatal prévio, mas
tal, mas, ao contrário, desenvolvem-se no lon- representam o efeito das relações que o Estado
go prazo segundo o tipo de intervenção esta- mantém com as profissões em sociedades es-
tal (Larkin, 1988). pecíficas.
Portanto, as três formas tradicionais de re- Para Heidenheimer (1989:529), o termo
gulação profissional (burocrática, de mercado profissões de status (status professions) é o
e auto-regulação) não são alternativas entre si, mais apropriado para designar os médicos,
mas sim concorrentes, combinando-se diver- uma vez que captura a característica essencial

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


MÉDICOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA 673

que os distingue (juntamente com os padres e tes perfis das políticas nacionais de saúde. O
advogados) das demais profissões, isto é, se- argumento central defendido por Heidenhei-
rem herdeiros das tradições das chamadas pro- mer (1989) é que as diferentes trajetórias histó-
fissões eruditas (learned professions) da Euro- ricas na relação Estado/profissões podem aju-
pa pré-industrial, em contraste com as profis- dar a explicar as diferenças na política sanitá-
sões ocupacionais (occupational professions), ria nos diversos países.
que são mais recentes e vinculadas a critérios De crucial importância, portanto, é analisar
mais modernos de profissionalização. como as diferentes nações concederam, retira-
Essas profissões de status, segundo o autor, ram e/ou voltaram a formalizar a concessão de
sempre foram de grande importância em vá- autonomia à profissão médica, pois, enquanto
rios tipos de regime: centrais nas questões re- a dinâmica dos novos descobrimentos das pes-
lacionadas às políticas de população, quando quisas e novas tecnologias penetrava cada vez
da construção, eficácia e legitimação dos Esta- mais o setor sanitário, encorajando convergên-
dos absolutistas; foram igualmente cruciais, cias tanto nos métodos científicos a serem uti-
mais tarde, na sustentação e legitimação da go- lizados na assistência, quanto na logística dos
vernabilidade do Estado liberal, assim como se sistemas de serviços de saúde em geral, as rela-
desenvolveram com a transição para os welfare ções entre Estado/profissão, profissão/clientes
states. Ainda que de forma derivada, seu status e clientes-eleitores/governos divergiram signi-
é anterior ao Estado moderno, mas, no caso da ficativamente nos diversos países.
área de saúde, a profissão médica floresceu a No que diz respeito aos consumidores, em
partir da priorização pelo Estado das questões alguns países europeus houve época em que
sanitárias e da destinação de altas somas do foram muito mais organizados que os próprios
orçamento público para financiar as atividades médicos. As Friendly Societies britânicas, por
no campo da saúde. Ou seja, o profissionalis- exemplo, no século XIX, chegaram a reunir cer-
mo médico se desenvolveu par e passo à cons- ca de três milhões de filiados, majoritariamen-
trução do Estado e à modernização capitalista, te trabalhadores usuários dos serviços de saú-
ao mesmo tempo em que a extensão da assis- de, e conseguiram desempenhar um forte po-
tência médica reforçou o welfare e deu susten- der de barganha com os médicos contratados
tação à manutenção da população produtiva para o atendimento de seus membros. Já na
de várias nações (Heidenheimer, 1989:530). Alemanha Ocidental, pioneira na instituciona-
Como Freidson apontou, e recuperado por lização do sistema de pagamento por terceiros
Heidenheimer, o principal problema teórico (ou de terceiro pagador), fundos de doença si-
nas reflexões sobre o profissionalismo é defini- milares aos ingleses foram escolhidos, em
lo a partir de um conceito genérico de profis- 1883, como intermediários na implementação
são, em vez de apreendê-lo como um conceito do seguro-doença compulsório, por meio do
mutável historicamente, com raízes particula- qual os Fundos negociavam com os médicos e
res nas sociedades industriais, que foram for- o governo em nome de seus membros. Esses
temente influenciadas pelas instituições anglo- grupos perderam espaço de negociação frente
americanas. Sendo assim, o conceito freidso- à revolução científica na medicina, o desenvol-
niano das profissões como ‘agentes do conhe- vimento das técnicas gerenciais dos fundos e à
cimento formal’ e a discussão dos “pré-requisi- intermediação das grandes seguradoras co-
tos materiais para essa relação de agenciamen- merciais.
to são bastante úteis (Heidenheimer, 1989:531). Os médicos americanos, por sua vez, me-
Porém, para Heidenheimer, o que falta em ge- diante o poder de fogo da American Medical
ral nessas reflexões é desenvolver, de forma Association-AMA, foram tenazmente contra,
análoga, uma análise dos determinantes políti- não apenas à criação de qualquer seguro esta-
cos das formas alternativas de agenciamento tal, mesmo à moda alemã, mas também se
profissional. opuseram aos grupos voluntários do sistema
Apesar das características similares e inú- de terceiro pagador. Até 1940, os membros da
meras identidades do profissionalismo médico AMA se recusavam a atender pacientes dos pla-
em diversos países, a estruturação profissional nos de seguro de pré-pagamento e, como re-
nos sistemas de saúde específicos mudou his- presália, negavam o uso dos serviços hospita-
toricamente no tempo, em cada sociedade, as- lares àqueles médicos que desafiassem essa
sim como alteraram-se as relações entre médi- norma (Heidenheimer, 1975:16).
cos/clientes e médicos/Estado. Analogamente,
é através de suas inter-relações com o Estado
que a profissão médica tem desempenhado
importante papel na modelagem dos diferen-

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


674 ALMEIDA, C.

Para concluir te no tempo e no espaço e, apesar da aparente


convergência, tanto nos métodos científicos a
De toda essa discussão, o que é importante re- serem utilizados na assistência, quanto na lo-
ter pode ser sintetizado como se segue: gística dos sistemas de serviços de saúde em
A natureza e tipo de intervenção estatal na geral, as relações Estado/profissão, profissão/
área sanitária é crucial para a apreensão e com- clientes e cidadãos/governos divergiram signi-
preensão dos determinantes estruturais de ficativamente nos diversos países.
qualquer sistema de serviços de saúde e, longe A crise fiscal do Estado detonou o questio-
de ter um único padrão de desenvolvimento li- namento das premissas que orientaram as po-
near e progressivo, esteve sempre sujeita a va- líticas de saúde expansionistas do pós-guerras,
riáveis históricas, tanto internas, como exter- colocando em discussão o funcionamento dos
nas ao campo setorial, às quais cada sociedade serviços de saúde, com especial ênfase, porém,
respondeu de forma muito própria. no trabalho médico, tendo como finalidade úl-
A centralidade do médico como ator políti- tima a retirada da garantia pelo Estado tanto da
co pode ser atestada em termos históricos em proteção de rendas profissionais (seja por meio
praticamente todos os sistemas de saúde, en- de assalariamento direto, ou de reembolsos,
tretanto, os graus de autonomia e autogoverno subsídios ou incentivos), quanto de nichos pro-
profissional conquistados por esses profissio- tegidos do mercado de serviços de saúde.
nais são resultado do tipo de tutela que o Esta- Em outras palavras, a específica forma de
do outorgou à profissão, em processos políti- modernização capitalista setorial, sob a égide
cos específicos, de longo prazo, cuja dinâmica da hegemonia americana, privilegiando o in-
própria em cada país recomenda cautela com vestimento tecnológico (deslocando, portanto,
qualquer afirmação mais generalizante. A for- o critério prévio de valor científico), desenca-
ma e alcance dessa concessão estatal também deou desenvolvimentos no âmbito profissional
diferiu no tempo e no espaço, em cada socie- e dos serviços de saúde – crescente complexi-
dade, e altera-se continuamente na medida em dade técnica e organizacional; privilégio das
que se transforma o próprio Estado e/ou emer- contínuas especializações e do setor hospita-
gem condições em que se manifeste necessida- lar; aparecimento e crescimento rápido das
de de maior controle e/ou regulação. grandes corporações de assistência médica;
Essa mobilidade de fronteiras (regulatórias aumento contínuo dos custos setoriais – que
e/ou de intervenção estatal) é temperada por exacerbaram as críticas à direita e à esquerda e
variáveis muitas vezes externas ao setor saúde encaminharam o debate no sentido da restri-
e talvez seja a única característica generalizá- ção do poder profissional, como justificativa,
vel para quaisquer sistemas de saúde, cujas di- porém, primeiro para a contenção de custos e
nâmicas são especificidades de cada socieda- depois para a restrição do direito de cidadania
de, inseridos que são nos respectivos sistemas de acesso aos serviços de saúde.
políticos.
A emergência do welfare state foi um divi-
sor de águas importante na relação entre os
médicos, o Estado e a formulação/implemen-
tação de políticas de saúde, uma vez que au-
mentou consideravelmente o número de pro-
fissionais e consolidou os sistemas de serviços
de saúde, sobretudo de assistência médica. A
crescente oferta pública de serviços e o fato de
o Estado tornar-se o maior empregador de pro-
fissionais protegeram suas rendas das oscila-
ções de mercado, por um lado, e reforçaram o
poder monopólico dos médicos, por outro, ao
avalizar o papel das associações profissionais
no policy decision making setorial e no reco-
nhecimento e avaliação dos seus pares. Ou se-
ja, a profissão médica floresceu a partir da
priorização pelo Estado das questões sanitárias
e da destinação de altas somas do orçamento
público para financiar atividades no campo da
saúde. Essa relação médicos/Estado, mediada
pela política de saúde, é mutável historicamen-

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


MÉDICOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA 675

Referências

BECKER, H. S., 1970. Sociological Work. Chicago: Al- HEIDENHEIMER, A. J., 1989. Professional knowledge
dine Publishing. and the state policy in comparative historical per-
BECKER, H. S., 1964. The Other Side: Perspectives on pective: law and medicine in Britain, Germany
Deviance. New York: Free Press. and the United States. International Social Science
BECKER, H. S., 1963. The Outsiders. Glencoe: Free Journal, 122:529-553.
Press. HEIDENHEIMER, A. J., 1975. Health care: delivery
BELL, D., 1976. The Cultural Contradictions of Capi- options and policy constraints. In: Comparative
talism. New York: Basic Books. Public Policy – The Politcs of Social Choice in Eu-
BJÖRKMAN, J. W., 1990. Politizzazione della medicina rope and America (A. J. Heidenheimer, H. Heclo &
e sanitarizzazione della politica: il potere dei C. T. Adams, eds.), pp 13-43, New York: St. Mar-
medici negli Stati Uniti. In: Medici e Stato nel tin’s Press.
Mondo Occidentale – Cultura Politica e Profes- HUGHES, E. C., 1971. The Sociological Eye: Selected
sionalitá Medica (G. Freddi, org.), pp. 305-353, Papers on Work, Self and the Study of Society.
Bologna: Il Mulino. Chicago: Aldine-Atherton.
COBURN, D., 1992. Freidson then and now: an inter- IMMERGUT, E. M., 1992. The Political Construction of
nalist critique of Freidson’s past and present Interest. Cambridge: Cambridge University Press.
views of the medical prodession. International KLEGON, D., 1978. The sociology of professions: an
Journal of Health Services, 22:497-512. emerging perspective. Sociology of Work and Oc-
DERBER, C., 1982. Toward a new theory of profes- cupations, 3:259-283.
sionals as workers: advanced capitalism and LABRA, M. E. & BUSS, P. M., 1995. Introdução. In: Sis-
post-industrial labor. In: Professional as Workers: temas de Saúde; Continuidades e Mudanças (P.
Mental Lsabor in Advanced Capitalisms (C. Der- Buss & M. E. Labra, orgs.), pp 9-28, Rio de Janeiro:
ber, ed.), pp. 193-208, Boston: G. K. Hall and Co. Ed. Fiocruz/São Paulo: Hucitec.
DÖHLER, M., 1990. L’autonomia professionale dei LABRA, M. E., 1995a. As políticas de saúde no Chile:
medici e lo stato sociale: problema o soluzione?. entre a razão e a força. In: Sistemas de Saúde;
In: Medici e Stato nel Mondo Occidentale – Cul- Continuidades e Mudanças (P. Buss & M. E. La-
tura Politica e Professionalitá Medica (G. Freddi, bra, orgs.), pp. 103-152, Rio de Janeiro: Fiocruz/
org.), pp. 49-78, Bologna: Il Mulino. São Paulo: Hucitec.
DONNANGELO, M. C. F. & PEREIRA, L., 1976. Saúde e LABRA, M. E., 1995b. El Sistema de Salud. Santiago:
Sociedade. São Paulo: Duas Cidades. La Epoca.
DONNANGELO, M. C. F., 1975. Medicina e Sociedade. LANGE, P. & REGINI, M., 1987a. Stato e Regolazione
São Paulo: Pioneira. Sociale – Nuove Prospettive sul Caso Italiano.
FREIDSON, E., 1986. Professional Power: A Study of Bologna: Il Mulino.
the Institutionalization of Formal Knowledge. LANGE, P. & REGINI, M., 1987b. Regolazione sociale e
Chicago: Chicago University Press. politiche pubbliche: schemi analitici per lo stu-
FREIDSON, E., 1985. The reorganization of the med- dio del caso italiano. Stato e Mercato, 19:97-121.
ical profession. Medical Care Review, 42:11-35. LARKIN, G., 1988. Medical dominance in Britain: im-
FREIDSON, E., 1984. The changing nature of profes- age and historical reality. The Milbank Quarterly,
sional control. Annual Review of Sociology, 10:1-20. 66(suppl.2):117-132.
FREIDSON, E., 1983. The reorganization of the pro- LIGHT, D. W. & LEVINE, S., 1988. The changing
fessions by regulation. Law and Human Behav- charater of the medical profession: a theorethical
ior, 2/3:279-290. overview. The Milbank Quarterly, 66(suppl.2):10-
FREIDSON, E., 1970a. Profession of Medicine: A Study 29.
of the Sociology of Applied Knowledge. New York: LIGHT, D. W. & SCHULLER, A., 1986. Political Values
Dodd, Mead & Company. and Health Care: The German Experience. Cam-
FREIDSON, E., 1970b. Professional Dominance: The bridge: MIT Press.
Social Structure of Medical Care. Chicago: Ather- LIGHT, D. W., 1986. Corpore medicine for profit. Sci-
ton Press. entific American, 255:38-45.
FRIEDMAN, M., 1962. Capitalism and Freedom. McKINLAY, J. B. & STOECKLE, J. D., 1988. Corporati-
Chicago: Chicago University Press. zation and the social transformation of doctor-
HAUG, M. R., 1988. A re-examination of the hypotesis ing. International Journal of Health Services,
of physician deprofessionalization. The Milbank 18:191-206.
Quarterly, 66(suppl.2):48-56. McKINLAY, J. B. & ARCHES, J., 1985. Towards the pro-
HAUG, M. R., 1981. The sociological approach to self letarianization of physicians. International Jour-
regulation. In: Regulating the Profession (R. D. nal of Health Services, 15:161-95.
Blair & S Rubin, eds.), pp 61-80, Lexington: Lex- McKINLAY, J. B., 1977. The business of good doctor-
ington Books. ing or doctoring as good business: reflections on
HAUG, M. R., 1973. Deprofessionalization: an alter- Freidson’s view of the medical game. Internation-
nate hypothesis for the future. Sociological Re- al Journal of Health Services 7:459-87.
view Monograph, 20:195-211.

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997


676 ALMEIDA, C.

MECHANIC, 1991. Sources of countervailing power


in medicine. Journal of Health Politics, Policy and
Law, 16:485-498.
NAVARRO, V., 1988. Professional dominance or prole-
tarization, neither. The Milbank Quarterly, 66(sup-
pl.2):57-75.
SACKS, M., 1983. Removing the blinkers? A critique of
recent contributions to the sociology of profes-
sions. Sociological Review, 1:1-21.
SCHMITTER, P. & STREECK, W., 1985. Comunitá,
mercato, Stato e associazioni? Il possible contri-
buto dei governi private all’ordine sociale. Stato e
Mercato, 3:47-86.
SPERANZA, L., 1991. Sociologia e political economy
delle professioni. Stato e Mercato, 33:477-501.
WOLINSKY, F. D., 1988. The professional dominance
perspective, revisited. The Milbank Quarterly,
66(suppl.2):33-47.

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(4):659-676, out-dez, 1997

Você também pode gostar