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Celia Almeida 1
1 Departamento de Abstract A cost crisis in the health care sector has focused discussion on health care services
Administração
and an assessment of the results of investments in the health sector, underlining the importance
e Planejamento em Saúde,
Escola Nacional de Saúde of medical doctors as key actors in this area. This article reviews the main analytical approaches
Pública, Fundação to professionalism in the last decade and discusses the most recent paradigmatic shifts. New ap-
Oswaldo Cruz.
proaches have emerged for correlating the medical division of labor (contained in specialized
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
sala 715, Rio de Janeiro, RJ fields which are becoming more and more fragmented) with structural and historical changes in
20041-210, Brasil. the professional market, as well as the collective action developed by these interest groups in
calmeida@ensp.fiocruz.br
their relationship to the state. These approaches, more closely linked to political economy, have
made important contributions to this debate, because they allow for a questioning of the kind of
ideological polarization contained in health care reform proposals aimed at a withdrawal of the
state and the rule of the market (with no analytical justification), in addition to shifting regula-
tion to a position outside the historically mutable dynamics between the state, health care
providers, and clients of the health care sector and the public policy arena.
Key words Physicians; Medical Assistance; Health Personnel; Health Policy
Resumo A crise de custos no setor saúde colocou em discussão a assistência médica, assim como
a avaliação dos seus resultados enquanto investimento setorial, sendo que a importância do
principal ator nessa dinâmica – o médico – tem sido ressaltada. Este artigo faz uma revisão das
principais vertentes de análise do profissionalismo médico nas últimas décadas e discute a mu-
dança de paradigma que se operou mais recentemente, quando emergem enfoques que procu-
ram correlacionar as novas divisões de trabalho contidas nas especializações cada vez mais frag-
mentadas com as mudanças estruturais históricas do mercado de trabalho profissional e a ação
coletiva desenvolvida por esses grupos na sua inter-relação com o Estado. Esse último enfoque,
pode-se dizer mais vinculado à economia política, tem aportado importantes contribuições a es-
se debate, uma vez que permite questionar as polarizações ideológicas, e sem fundamento analí-
tico, presentes nas propostas de reforma da assistência médica, que preconizam a retirada do Es-
tado e o reinado do mercado, assim como deslocam a regulação para uma posição externa à pró-
pria dinâmica, mutável historicamente, das relações Estado/profissionais/clientes/sistemas de
saúde.
Palavras-chave Médicos; Assistência Médica; Pessoal de Saúde; Política de Saúde
A provisão direta de serviços pelo setor pú- A crise de custos na saúde colocou em dis-
blico politizou a relação entre os prestadores e cussão o funcionamento dos serviços de saú-
o Estado, uma vez que as condições de traba- de, sobretudo a assistência médica, e a avalia-
lho devem ser reguladas e os mecanismos de ção dos seus resultados, e inúmeros são os tra-
controle e contenção de preços acionados. Por balhos que apontam a importância do princi-
outro lado, quando o Estado não emprega dire- pal ator nessa dinâmica – o médico –, sobretu-
tamente os prestadores, o tipo de contrato e o do no que concerne à sua capacidade de inter-
método de pagamento utilizado passam a ser ferir na organização e funcionamento dos sis-
cruciais, e as diversas formas de financiamento temas, tanto pelo lado da oferta, como pelo da
e pagamento de serviços, que em geral inte- demanda, assim como a sua grande resistência
gram os sistemas mistos, fragmentam a atua- a enquadrar-se em qualquer preceito normati-
ção estatal e diminuem (ou complexificam) a vo, visto sempre como cerceador de sua liber-
capacidade reguladora, introduzindo outra dade de julgamento e interferência indevida
forma de politização. Nos sistemas majoritaria- na sua prática profissional – isto é na sua au-
mente privados, a regulação envolve, de forma tonomia.
importante, vários outros atores, inclusive Como ponto central do debate está o espe-
aqueles não especificamente setoriais. E essa cífico profissionalismo presente na atenção à
politização foi profundamente questionada saúde, assim como a mudança de status profis-
nos anos 80, constituindo a especificidade dos sional e credibilidade que significou o proces-
processos reformadores setoriais que foram so de erosão de sua autonomia e o crescente
desencadeados a partir de então. assalariamento do médico (ou desprofissiona-
O objetivo deste artigo é discutir a especifi- lização, proletarização e corporatização, res-
cidade política e historicamente variável da in- pectivamente), desenvolvimentos ocorridos
serção do profissional médico na estrutura- fundamentalmente neste nosso século, em to-
ção/reforma dos sistemas de serviços de assis- das as sociedades modernas.
tência médica. Por meio da revisão da biblio- Paralelamente à maior atenção dos estu-
grafia especializada, analiso as fronteiras mu- diosos para com essa temática, tem-se verifica-
tantes da regulação profissional e das relações do também um deslocamento do paradigma
Estado/profissão médica na formulação/im- teórico (Speranza, 1991). Com base na crítica
plementação das políticas de saúde. Nesse per- da perspectiva estrutural-funcionalista – que
curso, aponto o indisfarçável tom ideológico analisa o desenvolvimento das reestrutura-
presente nos debates atuais sobre as propostas ções, provocadas pelas novas divisões do tra-
de reforma da assistência médica, que, por um balho contidas nas permanentes especializa-
lado, deposita nos médicos a carga maior de ções profissionais, como resposta a necessida-
culpa pelos problemas enfrentados pelos siste- des sempre crescentes (na sociedade) de co-
mas de serviços e, por outro, preconiza o afas- nhecimentos cada vez mais complexos –, pas-
tamento do Estado das questões referidas à as- sa-se a enfoques que procuram correlacioná-
sistência médica a ser prestada à população. las com as mudanças estruturais históricas do
mercado de trabalho profissional e a ação cole-
tiva desenvolvida por esses grupos na sua in-
Profissionalismo e autonomia ter-relação com o Estado. Esse último enfoque,
dos médicos pode-se dizer mais vinculado à economia polí-
tica, tem aportado importantes contribuições
O estudo sobre os médicos sempre foi particu- a esse debate e o percurso teórico dessa passa-
larmente contemplado nas pesquisas voltadas gem é analisado por vários autores (Donnan-
para a sociologia das profissões, mas nas últi- gelo, 1975; Wolinsky, 1988; Light & Levine, 1988;
mas décadas tem merecido atenção especial, Larkin, 1988; Coburn, 1992; Speranza, 1991, en-
inclusive de outras áreas com diferentes recur- tre outros).
sos disciplinares. Por um lado, pela importân- Até os anos 60, os enfoques classificatórios
cia que a participação desses profissionais na baseados na definição de atributos e funções,
estruturação dos modernos sistemas de servi- que distinguem as áreas profissionais dos de-
ços de saúde adquiriu historicamente e, mais mais campos de trabalho da sociedade, domi-
recentemente, por serem responsabilizados naram a cena da sociologia das profissões. Nes-
por grande parte das mazelas que afligem a as- sas vertentes de análise, o que distinguia as
sistência médica nos diversos países: altos profissões era a existência de uma base de co-
custos dos serviços, descontrole nos mecanis- nhecimento científico abstrato e a adesão a um
mos gerenciais, desperdício de recursos, iatro- ideal ético-moral de serviço altruístico, atribu-
genia etc. tos estes funcionalmente essenciais à socieda-
de. No campo sanitário (onde a profissão médi- estrutural inteiramente diferente na divisão de
ca é considerada a profissão por excelência) es- trabalho setorial, que possibilita o poder de
ta perspectiva traduziu-se na percepção de que avaliar o trabalho dos demais sem ser objeto de
os conhecimentos médicos eram indispensá- direção formal ou avaliação por eles (Wolinsky,
veis para curar as pessoas, cujo bem-estar físico 1988:35, com base em Freidson). A diferença
era condição essencial para a manutenção do está posta, portanto, no fato de que a profissão
desenvolvimento da sociedade; sendo assim, as médica adquiriu autonomia.
atividades médicas constituiriam um requisito Essa dominância profissional significa para
funcional essencial para a sociedade. Freidson que os médicos controlam tanto o
Inúmeras foram as críticas que apontaram conteúdo de sua própria função, quanto o de
as incongruências teóricas deste tipo de análi- outras ocupações que participam na divisão de
se (Becker, 1963, 1964, 1970; Hughes, 1971; Kle- trabalho em campo sanitário, além de que
gon, 1978; Sacks, 1983), sendo duas as princi- exercem poder também sobre os pacientes e
pais: a sua ahistoricidade e uma certa ingenui- sobre os termos e condições de suas atividades
dade sociológica ao assumir-se acriticamente profissionais. Em síntese, o conceito de domi-
como interpretação da realidade a imagem que nância profissional em Freidson pressupõe es-
a profissão têm de si mesma, fundada num si- sas quatro diferentes dimensões, sendo a auto-
logismo abstrato – as profissões por definição nomia (controle sobre o conteúdo do trabalho)
tem uma ética moral de utilidade pública, a sua característica central (Coburn, 1992).
medicina é obviamente uma profissão, em Quais os fundamentos da obtenção dessa
conseqüência deve ter um ideal de servir à po- autonomia e como ela se mantém?
pulação (Björkman, 1990; Speranza, 1991). A aquisição desse status diferenciado en-
As indagações sobre as circunstâncias so- volve dois estágios. Primeiro, enquanto uma
ciais nas quais uma certa ocupação busca, me- profissão que proporciona consultas altamen-
diante estratégias específicas, obter os privilé- te especializadas, deve demonstrar que desen-
gios e o poder aferidos ao status profissional volve um trabalho realmente confiável e valio-
datam dos anos 70 e vários autores apontam so e persuadir o público de sua eficácia (o que
Freidson (1970a e b) como seu principal for- não aconteceu antes do século XIX); pressu-
mulador. Ressaltando que as características até põe, portanto, o convencimento da sociedade
então assinaladas tiveram um valor analítico de que determinado trabalho profissional é
para a definição das profissões, Freidson pro- imprescindível e deve ser controlado por quem
põe uma redefinição que leve em consideração entende do assunto. Isto foi facilitado pela ob-
o poder e o controle social, ou seja, uma recon- tenção do monopólio legal sobre o estabeleci-
ceituação em termos de uma autonomia legiti- mento de requerimentos educacionais, licen-
mada e organizada socialmente, que assegure ciamentos para o exercício profissional, código
às profissões uma posição dominante na divi- de ética, constituição de associações e alguns
são de trabalho. elementos de controles por pares. E, segundo,
Segundo Wolinsky (1988), Coburn (1992) e a concessão da autonomia, que pressupõe a in-
Speranza (1991), entre outros, em uma série de ter-relação entre os poderes político e econô-
trabalhos bastante provocativos, Freidson de- mico e as representações profissionais. Portan-
senvolveu a teoria que ficou conhecida como a to, a fundação da autonomia profissional é cla-
perspectiva da dominância profissional. Sua ramente um processo político e social de con-
análise se inicia com o argumento de que uma cessão legal, não algo que as profissões podem
profissão deve ser definida como uma ocupa- obter por si próprias, e, sendo conferida à pro-
ção que adquiriu autonomia e autogoverno e fissão pela sociedade, leva, por sua vez, à auto-
que é organizada formalmente através de insti- regulação, além de que envolve o Estado no es-
tuições criadas especialmente com o objetivo tabelecimento e manutenção da proeminência
de proteger e garantir essa autonomia. profissional.
Para o autor, em qualquer segmento de tra- A influência da medicina na organização de
balho, somente uma profissão pode ocupar o serviços de saúde e na política de saúde deriva,
lugar dominante e, na ‘indústria dos serviços para Freidson, do monopólio da medicina
de saúde’, a única profissão que adquiriu tal científica na definição de doença, restringindo
autonomia organizada foi a de médico, daí seu a discussão dos serviços de saúde a uma parti-
status privilegiado (Wolinsky, 1988:34-5). Para- cular forma de ver a saúde: mecanicista, indi-
doxalmente, a autonomia do médico é susten- vidualista e orientada para a cura das doenças
tada pela dominância que seus experts exer- segundo o modelo médico. O autor questiona
cem na divisão de trabalho, o que se constitui também que, embora essa dominância tenha
numa distinção crucial, ou seja, uma relação levado ao avanço do conhecimento científico,
2) A segunda crítica à teoria do domínio pro- aceita que as corporações submetem os seus
fissional de Freidson é a da proletarização das empregados às suas regras, mas faz a ressalva
profissões e se refere às mudanças nas condi- de que nem todas as corporações funcionam
ções de trabalho dos profissionais nas últimas dessa mesma forma, enquanto Navarro (1988)
décadas, sobretudo no que concerne ao assala- refuta a idéia de que os médicos e seus repre-
riamento por grandes organizações. A teoria da sentantes profissionais atuem da mesma ma-
proletarização dos médicos é uma reflexão fei- neira que os trabalhadores em geral, opinião
ta primeiramente por McKinlay (1977), resulta- compartilhada pelo próprio Freidson na sua
do de uma provocativa revisão do trabalho de contestação a estas críticas.
Freidson, no esforço de entender as transfor- Respondendo a essas análises, Freidson
mações institucionais que afetam os centros contra-argumenta que, embora seja real o mo-
médicos e a profissão, mas que tem suas bases vimento de assalariamento (para os médicos,
teóricas no debate que se estabelece entre au- pelo menos, pois os outros profissionais sani-
tores marxistas, weberianos e liberais sobre a tários sempre foram assalariados), assim como
natureza do trabalho profissional nas econo- o da burocratização, essas tendências não sig-
mias avançadas. nificaram alterações profundas na questão
A crítica central a Freidson é exatamente central da dominância profissional: ainda que
não ter levado em consideração as relações en- individualmente os médicos possam ter sua
tre a profissão médica e o capitalismo, os inte- autonomia cerceada, a autonomia da profissão
resses de classe presentes no profissionalismo, continua intacta. Em essência, Freidson reco-
assim como as conseqüências políticas e eco- nhece as modificações apontadas por esses
nômicas da medicalização, uma vez que a me- teóricos, mas enfatiza que são mudanças inter-
dicina tem apenas um modesto impacto na nas à profissão e não externas a ela. Ou seja, a
saúde da população (McKinlay & Archer, 1985). medicina retém seu poder essencial.
Na seqüência dessa argumentação, vem a in- Por outro lado, vários autores chamam a
terpretação de que a expansão capitalista da atenção sobre as três maiores mudanças seto-
medicina, em grandes organizações comple- riais sublinhadas pela teoria da proletarização:
xas, induziu à sua burocratização, como a prin- a crescente complexidade técnica e organiza-
cipal forma de controle social, sendo que o cional da medicina moderna, que é amplamen-
crescente assalariamento dos médicos subme- te difundida pelo mundo (Larkin, 1988; Light &
te o profissional a normas regulatórias e hierar- Schuller, 1986); o aparecimento e rápido cres-
quias administrativas que de fato modelam a cimento das grandes corporações de assistên-
distribuição de serviços. Além disso, os autores cia médica (particularmente grandes cadeias
afirmam que o rápido crescimento do número de hospitais) (Light, 1986), que tentam atrair os
de médicos enfraqueceu seu poder de merca- profissionais com mais comodidades e apoio
do e fortaleceu o dos burocratas, atrelando os institucional ou arriscam perdê-los para os
profissionais a organizações que fogem ao seu competidores não lucrativos; a revolta dos
controle. Afirma-se, dessa forma, a tendência compradores institucionais de serviços (os cha-
de cada vez mais os médicos serem obrigados mados terceiros pagadores), que, a partir dos
a trabalhar em instituições e organizações meados dos anos 70, passam a tentar controlar
complexas, cuja racionalidade se impõe sobre os alarmantes custos da assistência médica.
qualquer trabalhador. Ainda que subjacentes à discussão da pro-
McKinlay & Archer (1985), entre outros, letarização, estas problemáticas não são passí-
transferem para as profissões a análise do capi- veis de ser analisadas com o arsenal teórico da
talismo e sua tendência monopólica, situação teoria da proletarização. Ao contrário, levan-
em que os trabalhadores (sejam profissionais tam a questão da pertinência e aplicabilidade
ou não) vêem-se reduzidos virtualmente ao do conceito de proletarização à profissão mé-
status de proletários, que dependem da venda dica ou mesmo para explicar as temáticas pos-
de sua força de trabalho para sobreviver, pri- tas pelas transformações no campo sanitário, o
vando-se de qualquer controle sobre o proces- que é apontado também por autores marxistas,
so de trabalho; relaciona a proletarização das como Navarro (1988), que, apesar de tudo, ad-
profissões ao corporativismo, que acarretaria a mite que os médicos não perderam o controle
perda das prerrogativas profissionais, uma vez sobre os meios de produção do seu trabalho,
que, como empregados de grandes organiza- vale dizer, sua autonomia.
ções, os médicos são apenas mais um tipo de De uma maneira geral, este enfoque, de ba-
trabalhador que têm de submeter-se à racio- se marxista, suscitou muita polêmica e vários
nalidade institucional imposta (McKinlay & são os autores que exploraram essa vertente de
Stoeckle, 1988). Mechanic (1991), por sua vez, análise e que têm procurado novos conceitos
que permitam melhor explicar a posição dos ra trabalhar nas grandes estruturas organiza-
profissionais e outros grupos nas sociedades cionais do moderno mundo industrial. Mas, o
modernas. Entre nós, merecem menção os es- que parece ocorrer nas grandes corporações,
tudos de Donnangelo (1975) e Donnangelo & com a aparência de racionalização e de buro-
Pereira (1976), considerados clássicos. cracia, é o que foi denominado ‘proletarização
Para os efeitos deste trabalho, basta regis- ideológica’ (Derber, 1982:169-87, apud Light &
trar que vários autores têm compartilhado o Levine, 1988:19), que “significa perda de contro-
problema teórico de tentar considerar o papel le sobre o produto ou fins do próprio trabalho
dos managers e dos doutores empregados pe- enquanto mantém o controle sobre os meios ou
las corporações, assim como as relações entre técnicas de trabalho” (Light & Levine, 1988: 19).
carreiras médicas e capital, plusvalia e meios Alguns autores avaliam que há uma acomo-
de produção, inter-relacionando conceitos teó- dação profissional a essa nova situação, na
ricos que pretendem desvendar as transforma- qual os médicos se dissociam dos objetivos
ções e que passam bem longe da perspectiva institucionais e/ou negam que o controle so-
da proletarização. bre os resultados de suas atividades interfira
3) Finalmente, a terceira crítica à dominância no seu próprio trabalho.
profissional é a tese da corporatização (referi- O conceito de corporatização tem também
da ao empresariamento das atividades médi- outra dimensão que se refere aos impulsos em-
cas), que acompanha a teoria da proletariza- presariais internos à própria profissão, muito
ção, mas a partir de outro referencial teórico, difundidos por toda parte, uma vez que os mé-
mais relacionado às teorias da administração dicos cada vez mais transformam seus consul-
e gerenciamento das organizações complexas tórios em centros ambulatoriais capital-inten-
(McKinlay & Stoeckle, 1988). Refere-se ao fato sivo para diagnósticos e tratamentos, inclusive
de os médicos terem cada vez mais de ser em- desviando serviços dos hospitais.
pregados e se sujeitar a formas de controle das O impacto desses desenvolvimentos na pro-
grandes organizações/instituições, tais como, fissão médica e na dominância profissional tem
revisão de utilização ou qualidade, incentivos sido muito descrito mas não profundamente
através de diferentes estruturas de remunera- analisado e explicado teoricamente. Nos dife-
ção, restrição a práticas-padrão; de terem de rentes arranjos institucionais e organizacionais
aceitar a organização da sua prática segundo existentes hoje no campo da assistência médi-
esses parâmetros e enfrentar a reestruturação ca, as relações dos médicos em diferentes posi-
do mercado de serviços de saúde que signifi- ções em relação ao capital e ao lucro, assim co-
cou a passagem de profissionais autônomos mo a interferência dessa situação na autono-
para pequenos grupos de provedores e daí pa- mia profissional e nos resultados de seu traba-
ra empregados de grandes complexos mul- lho ainda precisam ser mais bem estudadas.
tiinstitucionais ou multiempresariais (Bur- Alguns autores consideram as análises de
nham, 1984; Stoeckle, 1988, apud Light & Levi- Freidson imprecisas e confusas, já que os con-
ne, 1988:19), tendo ao mesmo tempo que sub- ceitos de autonomia e dominância sugerem ní-
meterem-se aos desígnios dos managers. veis diversos de controle, cujas dimensões não
A corporatização diz respeito também ao teriam sido adequadamente especificadas nas
paradoxo dos médicos dependerem de organi- suas reflexões (Coburn, 1992). Coburn, por
zações complexas e de mecanismos de finan- exemplo, argumenta que a realidade evidencia
ciamento para desempenhar seu sofisticado uma situação muito mais complexa na divisão
trabalho, aceitando ainda que essas instituições de trabalho em saúde e muitas das discussões
interfiram nele, medeiem suas relações com os sobre o declínio do poder médico referem-se
pacientes e, potencialmente, ameacem a sua precisamente à perda de controle profissional
credibilidade perante a sociedade como um to- sobre o contexto da atenção médica e, em cer-
do, uma vez que a legitimidade é ao mesmo ta medida, sobre os clientes. Por outro lado, as
tempo expandida e ameaçada, pois que sub- inter-relações da medicina com as demais ins-
sumida nos objetivos globais da organização. tituições societais, que faltam na maioria des-
Embora se atribua à corporatização a emer- sas análises, impedem a percepção da transfor-
gência de fenômenos relacionados com a bu- mação do seu papel com o desenvolvimento
rocratização e a racionalização, não existem econômico e social, assim como a mudança
evidências teóricas ou empíricas de que essa que se operou com a crise econômica, quando
relação seja direta, além de que a tradicional o demolidor ataque neoliberal à organização
ênfase na autonomia e independência que do trabalho médico nos sistemas de serviços
acompanha a formação dos médicos faz com de saúde teve como finalidade última restringi-
que, em princípio, não estejam preparados pa- los e conter seus custos.
Em síntese, pode-se dizer que os quatro sistema social, mas sim como “grupos de inte-
conceitos aqui repassados sumariamente – do- resse e/ou de pressão não transitórios” que agem
minância profissional, desprofissionalização, também em função da proteção de seus pró-
proletarização e corporatização – iluminam, prios interesses (Freidson, 1970a e b) e que tra-
cada um deles, importantes desenvolvimentos balham em colaboração tão estreita com o go-
na prática médica moderna, mas refletem verno, que torna-se difícil distinguir onde ter-
perspectivas teóricas e políticas que capturam minam as atividades de um e começam as do
apenas uma parte do problema. Sendo assim, outro (Björkman, 1982:423).
trabalhar de forma interconectada pode possi- Alguns autores consideram as associações
bilitar novas perspectivas teóricas com maior profissionais como “arenas preliminares de le-
poder explicativo (Light & Levine, 1988). gislação pública” (Gilb, 1960:140, apud Speran-
De qualquer forma, pode-se identificar um za, 1991:480), uma vez que são elas que elabo-
consenso entre os autores quanto à resistência ram os projetos de lei setoriais; além disso,
dos médicos, através de diferentes estratégias, quando uma lei referente à área profissional
a submeterem-se à proletarização ou perda de chega ao Congresso, as escolhas e definições
controle sobre a sua profissão. mais importantes já foram estabelecidas nos
Em essência, o argumento central perma- acordos fechados nos fóruns pré-legislativos.
nece, ou seja, o core do poder médico – auto- Daí que a maior influência das organizações
nomia técnica, habilidade em controlar seu profissionais é exercida nas comissões técnicas
trabalho e o de outros no setor, monopólio so- específicas, que estabelecem padrões profis-
bre a ‘cura’ das doenças – continua intacto. A sionais, têm composição restrita e executam
medicina ainda pode lançar mão de muitas um trabalho que parece ser apenas técnico, de
fontes de poder para vetar ou direcionar as tal forma que não são muitos os que ambicio-
mudanças que não sejam de seu interesse, pe- nam (ou estão capacitados a) fazer parte delas
lo menos enquanto a profissão for dominante (Freidson, 1986:204-5, apud Speranza, 1991:
no setor e tiver o monopólio sobre a provisão 480).
de serviços de assistência médica, monopólio Longe de serem maniqueístas ou conspira-
este que vem sendo sistematicamente desafia- tórias, essas reflexões foram cruciais para a
do par i passu com a escalada neoconservado- fundamentação da análise sobre o monopólio
ra. A questão central que continua em pauta profissional médico em bases políticas e so-
com o aumento da intervenção (ou regulação) ciais. Dito de outra forma, o profissionalismo
dos governos federais (e de forma similar dos não é um termo meramente descritivo, mas
demais seguradores e terceiro-pagadores) é se um conceito que traz enraizada a capacidade
esse poder é o mesmo do passado e qual a di- das lideranças profissionais de conquistar,
nâmica política que de fato está produzindo manter e expandir status social e poder para
mudanças na sua posição social. seu grupo.
Assim, pode-se convencionar que o poder
profissional apóia-se sobre o conhecimento
A percepção dos médicos como grupo científico especializado (Freidson, 1970a e b),
de pressão e interesse ainda que não seja este seu único determinan-
te, porém o estabelecimento da validade do co-
As análises críticas da bibliografia sobre o pro- nhecimento dos experts é um processo político
fissionalismo médico trouxeram também uma e não somente intelectual (Rushmeier, 1986:
outra contribuição importante, que é a percep- 106, apud Speranza, 1991:479). O que se evi-
ção do profissionalismo médico como uma dencia nessa discussão é que o controle mono-
modalidade, entre outras, de controle ocupa- pólico sobre a produção do conhecimento téc-
cional ( Jonhson, 1972, apud Speranza, 1991: nico-científico e a distribuição de serviços não
479), através da qual se exprime um projeto derivam automaticamente da especificidade
profissional que consta de dois processos: um atribuída ao conhecimento especializado e ao
de criação e controle de mercados de serviços ideal de serviços.
profissionais e outro de mobilidade social co- Da mesma maneira, competência técnica
letiva (Larson, 1977, apud Speranza, 1991:479). especializada, cientificamente reconhecida, e
Com base nessa perspectiva, as profissões, deontologia de serviço de utilidade pública
com suas associações representativas, não são são, de fato, os dois cânones clássicos da defi-
mais consideradas apenas como portadoras de nição de profissão, assim como a base dos
uma ética social superior e de um conheci- princípios da autonomia técnica do médico,
mento científico especializado e, como tal, em nome da qual este profissional decide o
funcionalmente necessários à reprodução do que é melhor para o seu paciente, como seu le-
Como bem analisa Speranza, os profundos di- sociais e políticos), acumulados pelas profis-
ferenciais de prestígio, renda, poder e autori- sões, em uma lógica de ação capaz de, com ba-
dade, inerentes a esses três diferentes papéis, se nos seus fundamentos epistemológicos,
atestam as dificuldades e os conflitos daí ad- chegar ao poder monopólico em setores espe-
vindos, talvez muito profundos para serem cíficos (Halliday, 1985:435-6, apud Speranza,
contidos no interior da profissão como entida- 1991:487). Entretanto, no caso da profissão
de coletiva. No caso da medicina, como admite médica, os achados empíricos são contraditó-
o próprio Freidson (e a minha prática profis- rios e a lógica geral – quanto mais uma profis-
sional confirma), é muito difícil que os médi- são é organizada numa única associação am-
cos vejam seus colegas não praticantes (admi- plamente representativa, capaz de ampla mo-
nistradores e mesmo pesquisadores) como ver- bilização da categoria, mais influência terá so-
dadeiros médicos e, portanto, verdadeiros co- bre o poder público – parece não funcionar
legas. plenamente, pelo fato de que a necessidade de
A terceira condição que interfere de forma ser inclusiva por si só age como freio à mobili-
decisiva no desenvolvimento do profissionalis- zação, pela maior fragmentação e conseqüente
mo, inclusive determinando o tipo de profis- complexidade do processo decisório interno.
sionalismo resultante, é a cultura política pre- Exemplos, como o dos EUA, confirmam em
valecente em um dado contexto, numa deter- parte essa afirmação, uma vez que, apesar de
minada sociedade, onde a questão central se visto como o país onde os médicos têm maior
refere às relações Estado/profissão, que discu- autonomia, cujas associações são as mais for-
tiremos mais adiante. tes e poderosas, é a sociedade onde a ênfase na
Os autores apontam que o século XIX, de especialização é a mais absoluta, o que levou a
uma maneira geral, foi bastante hostil ao pro- grande fragmentação interna da profissão e
fissionalismo, no sentido em que, mesmo em necessidade de coordenação através de organi-
culturas políticas diversas, o privilégio de os zações complexas onde os médicos são apenas
profissionais (entre eles os médicos) atuarem uma pequena parte, uma vez que dirigidas por
como interlocutores preferenciais do Estado managers profissionais cada vez mais podero-
não se verifica. Os determinantes são variáveis, sos (Light & Levine, 1988).
porém, e a específica história de cada socieda- Em síntese, as divisões internas à profissão,
de particular explica as diferenças de institu- das quais se aproveita ou não o poder estatal,
cionalização do profissionalismo médico en- em conjunturas específicas, são insuficientes
contradas em cada país. para explicar ou obstaculizar um fenômeno
A mudança é radical, entretanto, com a complexo como o profissionalismo, assim co-
emergência do welfare state, onde a inserção mo as teorias corporativas clássicas sozinhas
da profissão médica e sua maior influência no não dão conta de ajudar a entender o processo
setor sanitário tem um duplo caráter (Speran- de policy decision making setorial.
za, 1991:487): de um lado aumenta considera-
velmente o número dos profissionais e do ou-
tro é legitimado ou reforçado o monopólio pro- As fronteiras móveis da regulação
fissional no setor. A crescente oferta pública de profissional
serviços em atividades tradicionalmente consi-
deradas de domínio profissional (como saúde A questão central embutida na discussão do
e educação, onde as faculdades de medicina, profissionalismo em geral, e no sanitário em
reunindo as duas funções, foram as grandes particular, que interessa sublinhar para a me-
beneficiárias) (Heideheimer, 1989) e o fato de lhor compreensão da estruturação e dinâmica
que o Estado torna-se o maior empregador pa- do sistema de serviços de saúde, é referida à
ra os profissionais, além de aumentar bastante auto-regulação profissional dos médicos e sua
o seu número, protege as suas rendas das osci- inter-relação com as demais formas de regula-
lações de mercado. Por outro lado, o Estado ção presentes na sociedade.
atua também como um legitimador e reforça- Embora para os próprios profissionais, e
dor do monopólio profissional, ao avalizar o para alguns autores, a auto-regulação consti-
papel das associações oficiais no reconheci- tua o corolário natural da autoridade profissio-
mento e avaliação dos seus pares (Larkin, nal, ou ainda um atributo inato do profissiona-
1988). lismo, na realidade ela constitui o resultado de
Por último, os autores destacam o caráter um longo processo histórico de construção po-
instrumental dos fatores organizativos na es- lítica e social, onde a inter-relação do Estado
truturação da ação coletiva profissional, que com a profissão médica é fundamental, e se-
permitiu transformar os recursos (culturais, gundo o qual o Estado é a autoridade que pri-
meiro concede o monopólio e a auto-regulação regulação, uma vez que se trata de um proces-
e depois proporciona (ou retira) os meios para so de negociação no qual as profissões devem,
exercê-lo e defendê-lo (Speranza, 1991:491-5). por meio da luta política, primeiro convencer a
O conceito de auto-regulação comporta elite dominante de que são capazes de regular
duas dimensões analíticas que na prática con- o próprio setor e depois obter a autorização do
fundem-se, porque estreitamente interrelacio- Estado. Este é um longo processo político e so-
nadas. A primeira dimensão é oriunda da per- cial. Além disso, como vimos, a auto-regulação
cepção tradicional da auto-regulação como re- de uma profissão não requer apenas uma in-
ferida aos mecanismos e processos formais de tervenção inicial do Estado, mas a persistência
autogoverno por meio dos quais os profissio- da atividade de regulação estatal a seu favor,
nais controlam a admissão, a preparação e o defendendo-a de outros grupos de interesse
comportamento (trabalhista e ético) dos pró- concorrenciais e, portanto, de princípios regu-
prios membros da corporação, de forma a san- ladores que concorrem com ela (isto é, o mer-
cionar eventuais erros e/ou abusos. A segunda cado).
dimensão pode ser derivada de uma definição Assim, a regulação burocrática ocorre quan-
de auto-regulação mais centrada nos modelos do o Estado, ou as grandes sociedades priva-
de regulação geral da sociedade (Lange & Regi- das, é quem dita as normas que regulam o de-
ni, 1987a e b), isto é, uma específica modalida- senvolvimento do trabalho profissional. A esta
de de formação e gestão da política pública e forma de regulação estão submetidos não ape-
parapública, através da qual são as profissões, nas os empregados de uma organização (públi-
e não o Estado ou o mercado, que determinam ca ou privada), mas também os que trabalham
as características da oferta e a demanda, esta- em tempo parcial ou com determinadas for-
belecendo os critérios e as finalidades das orga- mas de contrato para programas financiados e
nizações, do financiamento e da distribuição organizados publicamente (como, por exem-
dos serviços profissionais (Speranza, 1991:489). plo, o Medicare e o Medicaid nos EUA). Entre-
Obviamente, na prática, as duas dimensões tanto, como assinalam alguns autores (Derber,
imbricam-se de forma inexorável, inclusive 1982; Navarro, 1988), essa burocratização, ain-
porque a segunda extrai força e legitimidade da da que seja um dos resultados indesejáveis do
primeira, e, conseqüentemente, a liberdade welfare state, não significa a perda da autono-
concedida aos profissionais para estabelecer as mia técnica (como ocorre com os trabalhado-
decisões técnicas que regulam seu próprio tra- res manuais), embora a liberdade de decisão,
balho torna-se, ou pode tornar-se, uma autori- em termos globais, seja mais circunscrita. Mes-
zação para determinar também os fins e a alo- mo prescindindo do contexto de trabalho bu-
cação de recursos essenciais ao setor (Speran- rocratizado, algumas temáticas podem ser ob-
za, 1991:490). jeto de regulação estatal mediante critérios ex-
A auto-regulação não é, porém, a única for- ternos gerais sobre as modalidades de trabalho
ma de regulação profissional existente, mesmo profissional, como no caso dos limites e restri-
porque sozinha é insuficiente e está sempre in- ções impostas à pesquisa e à experimentação
tegrada a alguma outra forma de regulação ex- médica em humanos.
terna. A última forma de regulação profissional é
Na literatura sobre as profissões, distin- a regulação do mercado, que nos últimos dez
guem-se três formas diversas de regulação – anos passou a ser referida como desregulação,
burocrática, desregulação (ou regulação de mas com bem pouca precisão analítica. Neste
mercado) e auto-regulação ou controle pelos caso, o controle da atividade profissional é fei-
pares (Freidson, 1983). Tais formas não diferem to por intermédio dos mecanismos de merca-
na essência dos três princípios possíveis de re- do, que pressupõem a abolição do monopólio
gulação social – a autoridade ou controle hie- técnico e introdução de mecanismos de con-
rárquico, a troca e a solidariedade –, cada um corrência no trabalho profissional.
dos quais traduzido, historicamente, em insti- Historicamente, o único período em que o
tuições regulativas diversas, respectivamente – profissionalismo foi regulado principalmente
o Estado, o mercado e a comunidade (Lange & por meio dos critérios de mercado, juntamente
Regini, 1987a, apud Schmitter & Streeck, 1985). com outros da comunidade, foi no final do sé-
Ainda que a auto-regulação profissional culo XVIII e início do XIX, no período imedia-
historicamente tenha perdido suas ligações tamente sucessivo à Revolução Francesa (1789)
com a comunidade social e estreitado seus la- (Heidenheimer, 1989; Speranza, 1991). A dife-
ços com a comunidade dos colegas, que obvia- rença do que ocorre hoje, na chamada desre-
mente não é a mesma coisa, não pode ser con- gulação, é que durante aquele período os crité-
siderada uma quarta modalidade diferente de rios de mercado foram utilizados com base em
uma ideologia que tinha conotações fortemen- vidades e relações entre atores “tanto as que di-
te populistas, igualitárias e democráticas. E, a zem respeito à esfera da produção quanto a da
partir de então, as profissões dirigiram toda distribuição de recursos econômicos” e como
sua ação, com sucesso variado mas sempre regulação “os diversos modos como um deter-
crescente, ao objetivo de conquistar nichos de minado conjunto de atividades ou de relações
atuação protegidos do mercado, obviamente entre atores é coordenado, os recursos consentâ-
com formas de exclusão da concorrência bas- neos são alocados e os conflitos inerentes, reais
tante diversas nos vários países, mas com re- ou potenciais, são estruturados” (Lange & Regi-
sultados equivalentes: os monopólios profis- ni, 1987a:13). O conceito de regulação inter-re-
sionais reconhecidos pelo Estado. Com isto laciona, portanto, três dimensões: coordena-
não se quer dizer, porém, que o mercado não ção de atividades, alocação de recursos e admi-
tenha qualquer papel na regulação das ativida- nistração de conflitos.
des profissionais, mas simplesmente que os Por outro lado, quando um princípio ou
critérios de mercado não influíram significati- critério de regulação está estreitamente asso-
vamente na dimensão da auto-regulação que ciado a uma instituição particular, existe a ten-
se refere ao controle, preparação e comporta- dência de imaginar que tal instituição se ba-
mento dos próprios membros (mesmo a ques- seia apenas naquele princípio (por exemplo,
tão quantitativa da oferta de profissionais, que imagina-se que o princípio de autoridade e
em larga medida foge ao controle das próprias controle hierárquico seja o único critério de
profissões, não pode ser considerada como regulação utilizado pelo Estado, ou mesmo
permeada unicamente pelo mercado). O mes- que a auto-regulação seja o princípio por ex-
mo não se pode dizer, porém, da dimensão vol- celência da regulação profissional; ou ainda
tada para a formação e gestão da política pú- que mecanismos de troca sejam usados ape-
blica, como veremos mais adiante, onde o de- nas pelo mercado), o que pode ofuscar uma ca-
nominado managed care (por exemplo com as racterística fundamental de qualquer institui-
Health Maintenance Organizations-HMOs, nos ção: todas se baseiam num mix dos três tipos
EUA) é um exemplo expressivo entre outros. de regulação, diferenciando-se na medida em
De uma maneira geral, pode-se afirmar que que um deles se caracteriza como critério do-
a regulação do mercado nunca foi suficiente e minante ou historicamente incorporado nelas
esteve sempre integrada àquela burocrática e como prevalente, mas nunca exclusivo (Lange
mesmo à auto-regulação. & Regini, 1987a:28).
O que é importante destacar nesta discus- Esta constatação leva a outra observação
são é que as fronteiras entre as várias formas teórica e política importante, ressaltada pelos
de regulação são móveis e sujeitas à ação cole- autores: o pressuposto de que certos critérios
tiva das profissões, ainda que não de forma ex- de regulação são impróprios para determina-
clusiva, e a mudança de ênfase numa ou nou- das instituições (por exemplo, de que os meca-
tra forma de regulação (por exemplo da de nismos de intervenção estatal são incompatí-
mercado para a auto-regulação – no século XIX veis com o mercado) é um juízo de valor ideo-
– e, mais recentemente, a partir dos anos 60, da lógico pouco fundamentado analiticamente.
auto-regulação às formas burocráticas) são im- Esta afirmação é, entretanto, altamente di-
pulsionadas historicamente por meio de pro- fundida na literatura recente sobre as relações
cessos políticos e sociais. Assim, a intervenção Estado/sociedade, mesmo em campo sanitá-
de uma terceira parte (Estado ou seguros) nas rio, que tende a enfatizar a invasão de campo
relações entre os médicos e seus pacientes, as ou o obscurecimento das fronteiras próprias
crises e calamidades (econômicas, epidemias, das diversas instituições regulativas como re-
guerras), com as conseqüentes necessidades sultado “de mudanças profundas, contradições
de investimentos especiais e/ou controle dos ou pelo menos instabilidade” (Lange & Regini,
gastos destinados à assistência sanitária, são 1987a:19).
fatores, internos e externos ao setor, historica- Porém, esclarecem os autores, longe de ser
mente determinados, que deslocaram a predo- um sinal de instabilidade institucional, a inva-
minância de uma forma de regulação em favor são de campo ou a presença de princípios con-
de outra. siderados impróprios são a norma em todas as
Além disso, partindo-se da análise de Lan- áreas de atividades e de relações concernentes
ge & Regini (1987a), já mencionados, é possível à produção e à distribuição de recursos. Cada
contaminar de forma positiva o debate e avan- uma dessas áreas, na realidade, baseia seu fun-
çar nessa discussão. cionamento normal na intervenção de um par-
Assim, aqueles autores definem como obje- ticular mix de instituições e de princípios de
to da regulação um conjunto particular de ati- regulação, que interagem entre si, e as disfun-
que os distingue (juntamente com os padres e tes perfis das políticas nacionais de saúde. O
advogados) das demais profissões, isto é, se- argumento central defendido por Heidenhei-
rem herdeiros das tradições das chamadas pro- mer (1989) é que as diferentes trajetórias histó-
fissões eruditas (learned professions) da Euro- ricas na relação Estado/profissões podem aju-
pa pré-industrial, em contraste com as profis- dar a explicar as diferenças na política sanitá-
sões ocupacionais (occupational professions), ria nos diversos países.
que são mais recentes e vinculadas a critérios De crucial importância, portanto, é analisar
mais modernos de profissionalização. como as diferentes nações concederam, retira-
Essas profissões de status, segundo o autor, ram e/ou voltaram a formalizar a concessão de
sempre foram de grande importância em vá- autonomia à profissão médica, pois, enquanto
rios tipos de regime: centrais nas questões re- a dinâmica dos novos descobrimentos das pes-
lacionadas às políticas de população, quando quisas e novas tecnologias penetrava cada vez
da construção, eficácia e legitimação dos Esta- mais o setor sanitário, encorajando convergên-
dos absolutistas; foram igualmente cruciais, cias tanto nos métodos científicos a serem uti-
mais tarde, na sustentação e legitimação da go- lizados na assistência, quanto na logística dos
vernabilidade do Estado liberal, assim como se sistemas de serviços de saúde em geral, as rela-
desenvolveram com a transição para os welfare ções entre Estado/profissão, profissão/clientes
states. Ainda que de forma derivada, seu status e clientes-eleitores/governos divergiram signi-
é anterior ao Estado moderno, mas, no caso da ficativamente nos diversos países.
área de saúde, a profissão médica floresceu a No que diz respeito aos consumidores, em
partir da priorização pelo Estado das questões alguns países europeus houve época em que
sanitárias e da destinação de altas somas do foram muito mais organizados que os próprios
orçamento público para financiar as atividades médicos. As Friendly Societies britânicas, por
no campo da saúde. Ou seja, o profissionalis- exemplo, no século XIX, chegaram a reunir cer-
mo médico se desenvolveu par e passo à cons- ca de três milhões de filiados, majoritariamen-
trução do Estado e à modernização capitalista, te trabalhadores usuários dos serviços de saú-
ao mesmo tempo em que a extensão da assis- de, e conseguiram desempenhar um forte po-
tência médica reforçou o welfare e deu susten- der de barganha com os médicos contratados
tação à manutenção da população produtiva para o atendimento de seus membros. Já na
de várias nações (Heidenheimer, 1989:530). Alemanha Ocidental, pioneira na instituciona-
Como Freidson apontou, e recuperado por lização do sistema de pagamento por terceiros
Heidenheimer, o principal problema teórico (ou de terceiro pagador), fundos de doença si-
nas reflexões sobre o profissionalismo é defini- milares aos ingleses foram escolhidos, em
lo a partir de um conceito genérico de profis- 1883, como intermediários na implementação
são, em vez de apreendê-lo como um conceito do seguro-doença compulsório, por meio do
mutável historicamente, com raízes particula- qual os Fundos negociavam com os médicos e
res nas sociedades industriais, que foram for- o governo em nome de seus membros. Esses
temente influenciadas pelas instituições anglo- grupos perderam espaço de negociação frente
americanas. Sendo assim, o conceito freidso- à revolução científica na medicina, o desenvol-
niano das profissões como ‘agentes do conhe- vimento das técnicas gerenciais dos fundos e à
cimento formal’ e a discussão dos “pré-requisi- intermediação das grandes seguradoras co-
tos materiais para essa relação de agenciamen- merciais.
to são bastante úteis (Heidenheimer, 1989:531). Os médicos americanos, por sua vez, me-
Porém, para Heidenheimer, o que falta em ge- diante o poder de fogo da American Medical
ral nessas reflexões é desenvolver, de forma Association-AMA, foram tenazmente contra,
análoga, uma análise dos determinantes políti- não apenas à criação de qualquer seguro esta-
cos das formas alternativas de agenciamento tal, mesmo à moda alemã, mas também se
profissional. opuseram aos grupos voluntários do sistema
Apesar das características similares e inú- de terceiro pagador. Até 1940, os membros da
meras identidades do profissionalismo médico AMA se recusavam a atender pacientes dos pla-
em diversos países, a estruturação profissional nos de seguro de pré-pagamento e, como re-
nos sistemas de saúde específicos mudou his- presália, negavam o uso dos serviços hospita-
toricamente no tempo, em cada sociedade, as- lares àqueles médicos que desafiassem essa
sim como alteraram-se as relações entre médi- norma (Heidenheimer, 1975:16).
cos/clientes e médicos/Estado. Analogamente,
é através de suas inter-relações com o Estado
que a profissão médica tem desempenhado
importante papel na modelagem dos diferen-
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