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BALIBAR
A
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v - FILOSOFIA
DE
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MARX
IPCH /
JORGE ZAHAR EDITQR
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MIO É tienne Balibar
A FILOSOFIA DE MARX
Tradu ção:
LUCY MAGALHã ES
Consultoria :
CARLOS NELSON COUTINHO
UNICAMP
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Balibar, Etienne, 1942 -
A filosofia de Marx / Etienne Balibar ; tradução
Reviravolta da hist ó ria , 48
Lucy Magalhães ; consultor, Carlos Nelson Couti -
A unidade da prá tica , 52 •
nho.
160p.
— Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 1995
——
CDD 320.5312 O “ fetichismo da mercadoria ” , 71
95-0217 CDU 330.85 Necessidade da aparê ncia , 75
Marx e o idealismo , 80
A “ reifica çâ o ” , 85
A troca e a obriga çã o : o simbólico em Marx , 87
A quest ã o dos “ direitos humanos ” , 89
Do ídolo ao fetiche , 93
I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ?
7
8 A FILOSOFí A DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 9
na maior das antifilosofias da é poca moderna . De fato , fraqueza de Marx . Elas questionam a própria essê ncia da
aos olhos de Marx , a filosof í a , assim como ele a aprendera atividade filosófica : seu conte ú do , seu estilo ou seu mé ¬
na escola da tradiçã o que vai de Platã o a Hegel , e at é todo , suas funções intelectuais e pol í ticas. Isso era verdade
incluindo os materialistas mais ou menos dissidentes , como no tempo de Marx , e provavelmente ainda o é hoje. Por
Epicuro ou Feuerbach , era precisamente apenas urna conseguinte , pode-se afirmar que depois de Marx a filosofia
tentativa individual de interpreta çã o do mundo. Isso levava , nã o foi mais como antes. Ocorreu um acontecimento
na melhor das hipó teses , a deixá -lo como estava , e na irreversível , que n ã o é compará vel ao surgimento de um
pior, a transfigurá -lo. novo ponto de vista filosófico, porque n ã o obriga apenas
Entretanto , por mais contr á rio que tenha sido à forma a mudar de id é ias ou de mé todo , mas a transformar a
e aos usos tradicionais do discurso filosófico , n ã o há d ú vida pr á tica da filosofia . Naturalmente , Marx nã o foi o ú nico a
de que o pró prio Marx entrela çou enunciados filosóficos produzir historicamente efeitos desse gê nero. Para nos
com suas análises histórico-sociais e suas proposições de atermos à é poca moderna , basta citar Freud , em um campo
a çã o pol ítica . O positivismo , em geral , o acusou bastante diferente e com outros objetivos . Mas os exemplos seme¬
disso. Toda a quest ã o est á em saber se esses enunciados lhantes sã o na realidade muito raros . A cesura operada
formam um conjunto coerente . Minha hipótese é que nã o por Marx foi mais ou menos claramente reconhecida , aceita
se trata de nada disso , pelo menos se a id é ia de coer ê ncia com maior ou menor boa vontade ; suscitou violentas
à qual nos referimos continua a ser habitada pela id é ia refuta ções e obstinadas tentativas de neutraliza çã o . O que
de um sistema . A atividade teó rica de Marx, tendo rompido só fez com que ela se instaurasse e trabalhasse , com mais
com uma certa forma de filosofia , nã o o conduziu a um convicçã o ainda , a totalidade do discurso filosófico con ¬
sistema unificado , mas a uma pluralidade pelo menos tempor â neo .
virtual de doutrinas , nas quais os seus leitores e sucessores Essa antifilosofia , que seria , em um momento dado, o
se enredaram . Do mesmo modo , ela n ã o o conduziu a um pensamento de Marx , essa n ã o-filosofia que ela certamente
discurso uniforme , mas a uma oscila çã o permanente entre foi aos olhos da prá tica existente , produziu portanto o
o aqu ém e o alé m da filosofia . Por aquém da filosofia , efeito oposto ao que visava . Nã o só ela n ão pôs fim à
entendemos aqui o enunciado de proposições como “ con ¬ filosofia , mas antes suscitou , em seu seio , uma questã o
clusões sem premissas ” , como diriam Spinoza e Althusser . permanentemente aberta , da qual a filosofia pode viver
Por exemplo , esta cé lebre f órmula do 18 Brumá rio de Luís doravante , e que contribui para renová -la . Efetivamente ,
Bonaparte , que Sartre , entre outros , considerou como a n ã o existe algo como uma “ filosofia eterna ” , sempre
tese essencial do materialismo hist ó rico : “ Os homens fazem id ê ntica a si mesma . Na filosofia , h á guinadas, limiares
sua pró pria histó ria , mas n ã o a fazem arbitrariamente , em irreversíveis . O que aconteceu com Marx foi justamente
condições escolhidas por eles , mas em condições direta - 1 um deslocamento do lugar, das quest ões e dos objetivos
mente dadas e herdadas do passado. ” Por além da
2
da filosofia , que se pode aceitar ou recusar, mas que é
filosofia , entendemos um discurso que mostra que ela nã o bastante potente para que n ã o se possa ignor á -lo . Assim ,
é uma atividade aut ó noma , mas determinada pela posi çã o podemos enfim voltar- nos para Marx , e , sem diminu í-lo
que ocupa no campo dos conflitos sociais e principalmente | ou tra í-lo , l ê-lo como filósofo.
na luta de classes . Onde procurar, nessas condições , as filosofias de Marx?
Entretanto , essas contradições , essas oscila ções — Depois do que acabo de propor, a resposta é indubit á vel :
vamos repetir — n ão constituem de modo algum uma em nenhum outro lugar que não seja a totalidade aberta
I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 13
12 A FILOSOFIA DE MARX
1848 ou de 1871, ou para a discussão interna da Associa çã o origem de um afastamento crescente em rela çã o ao hu ¬
Internacional dos Trabalhadores, são também um meio de manismo teó rico anterior. Voltarei posteriormente a esse
inverter a rela ção tradicional entre sociedade e Estado, e tema . Essa ruptura cont í nua me parece efetivamente ine ¬
de desenvolver a idéia de uma democracia radical , que g á vel . Ela repousa em experiê ncias políticas imediatas,
Marx inicialmente esboçara em suas notas cr íticas de 1843, especialmente no encontro com o proletariado alemão e
escritas à margem da Filosofia do direito de Hegel. Os francês (ingl ês no caso de Engels) e no ingresso ativo no
escritos mais polêmicos contra Proudhon, Bakunin ou curso das lutas sociais (que tem como contrapartida direta
Lassalle sã o també m aqueles nos quais aparece o distan ¬ o abandono da filosofia universit á ria ) . Entretanto , o seu
ciamento entre o esquema teó rico de evolu çã o da econo¬ conte ú do depende essencialmente de uma elabora çã o
mia capitalista e a história real da sociedade burguesa , intelectual . Em compensa çã o , houve na vida de Marx pelo
que obrigou Marx a esboçar uma dialé tica original , distinta menos duas outras rupturas igualmente importantes , de ¬
de uma simples inversã o da idéia hegeliana do progresso terminadas por acontecimentos potencialmente desastrosos
do esp írito.. . para a teoria da qual ele se julgava seguro . Assim , esta
No fundo, toda a obra de Marx est á ao mesmo tempo só pôde ser “ salva ” , a cada vez , a preço de uma reformu ¬
impregnada de trabalho filosófico e em posiçã o de con ¬ la çã o , seja operada pelo pró prio Marx , seja feita por outro
fronto com a maneira pela qual a tradiçã o isolou , circuns¬ ( Engels) . Lembremos resumidamente o que foram essas
creveu a filosofia (o que é uma das molas de seu “ crises do marxismo ” avant la lettre. Isso nos fornecerá ,
idealismo ) . Mas isso acarreta uma ú ltima anomalia , que , ao mesmo tempo , um quadro geral para as leituras e as
de certa forma , ele experimentou em si mesmo . discussões que se seguirã o .
Corte e rupturas
1 Depois de 1848
Mais do que outros, Marx escreveu na conjuntura. Essa
A primeira coincide com uma mudan ça de época para todo
decis ã o n ã o exclu ía nem a “ paciê ncia do conceito ” , de
o pensamento do s éc. XIX : é o fracasso das revolu çõ es
que falava Hegel , nem o rigor das conseq úê ncias . Mas ela
14 A FILOSOFIA DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA OU FILOSOFIA DE MARX ? 13
Tr ês fontes ou quatro mestres ? ( redigido em 1847)3 para compreender que Marx aderira
Durante muito tempo , a apresentaçã o do marxismo como concepção de integralmente à convicção de uma crise geral iminente do
mundo cristalizou -se em torno da f órmula das “ três fontes do marxismo” : capitalismo , gra ç as à qual , tomando a frente de todas as
a filosofia alemã, o socialismo francês, a economia política inglesa. classes dominadas em todos os pa íses (da Europa ) , o
Isso tem origem no modo pelo qual Engels , em Anti-Dü bring (1878) proletariado instauraria uma democracia radical , que leva ¬
dividiu a sua exposiçã o do materialismo hist ó rico e esboçou a histó ria
ria , em curto prazo , à aboliçã o das classes e ao comunismo .
das ant íteses do materialismo e do idealismo , da metaf ísica e da dialética .
Kautsky sistematizaria esse esquema em uma conferência de 1907: Les A for ç a e o entusiasmo das insurreiçõ es da “ primavera dos
trois sources du marxisme . UOeuvre historique de Marx (trad franc. , povos ” e da “ rep ú blica social ” só podiam aparecer-lhe
Spartacus , s.d.), em que a “ ciencia da sociedade , partindo do ponto de como a execu çã o desse programa .
vista do proletariado” era caracterizada como “ a sintese do pensamento Maior ser á a queda . . . Depois dos massacres de junho ,
alemão, do pensamento francês e do pensamento inglês” , o que n ã o
tinha por fim apenas estimular o internacionalismo, mas apresentar a
a ades ã o de uma parte dos socialistas franceses ao bona -
teoria do proletariado como uma totaliza çâo da história europé ia , partismo , a “ passividade dos operá rios” diante do golpe
instituindo o reino do universal. Lê nin a retomaria em uma conferência de Estado assumiam um significado particularmente frus ¬
de 1913, Les trois sources et les trois parties constitutives dumarxisme trante . Voltarei a tratar do modo pelo qual essa experiê ncia
( in Oeuvres completes, Moscou -Paris, 1.19) . Mas ó modelo simbólico de
uma reunião das partes da cultura nã o tinha , na verdade , nada de novo.
fez vacilar a id é ia marxiana do proletariado e de sua
Ele traduzia a persistê ncia do grande mito da “ triarquia europé ia ” , missã o revolucion á ria . A amplitude das revolu ções teó ricas
exposto por Moses Hess (que dera esse t ítulo a um dos seus livros em que ela acarretou para Marx n ã o pode ser subestimada .
1841) e retomado por Marx em seus escritos de juventude, onde se Era o abandono da no çã o de “ revolu çã o permanente ” que
introduziu a noção de proletariado.
A partir do momento em que se afastou o sonho de operar a totaliza çâo
exprimia com precisã o a idé ia de uma passagem iminente
do pensamento segundo o arqu é tipo das “ três partes do mundo ” da sociedade de classes para a sociedade sem classes , e
(significativamente reduzidas ao espa ço europeu ), a questã o das “ fontes” o correspondente programa pol í tico , a “ ditadura do pro ¬
do pensamento filosófico de Marx, isto é , das rela ções privilegiadas que letariado ” (oposta à “ ditadura da burguesia ” ) . 4 Era o eclipse
ela manteve com a obra de teóricos do passado, tornou -se uma questã o
aberta. Em um livro recente (// filo di Arianna, Quindici lezioni di
duradouro do conceito de ideologia, mal tinha sido defi¬
filosofia marxista, Mil ã o, Vangelista , 1990), Costanzo Preve deu o nido e posto em pr á tica , cujas raz ões te ó ricas tentarei
exemplo , atribuindo a Marx quatro mestres: Epicuro (a quem ele indicar. Mas era tamb é m a definiçã o de um programa de
consagrou a sua tese , Diferen ça entre as filosofias da natureza em pesquisas sobre a determina çã o econ ó mica das conjunturas
Demócrito e Epicuro, 1841) , para o materialismo da liberdade , metafo-
rizado pela doutrina do clinamen ou desvio aleatório dos átomos;
pol íticas e das longas tend ê ncias da evolu çã o social . E foi
Rousseau, para o democratismo igualit á rio , ou a idéia de associa ção ent ã o que Marx voltou ao projeto de uma crí tica da econo¬
fundada na participação direta dos cidadã os na decisão geral ; Adam mia pol í tica , para reformular as suas bases teó ricas e lev á-la
Smith, para a idéia de que o fundamento da propriedade é o trabalho;
enfim , Hegel, o mais importante e o mais ambivalente , inspirador e
a termo — em todo caso at é a publica çã o do livro I do
Capital, em 1867 , à custa de um trabalho tenaz , no qual
adversario constante do trabalho de Marx sobre a “ contradiçã o dialética ”
e ã historicidade . A vantagem desse esquema é orientar o estudo para se pode perceber o poderoso desejo e a convicçã o ante ¬
a complexidade interna e os deslocamentos sucessivos que marcam a
rela çã o cr ítica de Marx com a tradiçã o filosófica .
cipada de uma revanche sobre o capitalismo vencedor , —
tanto atrav és do desvelamento de seus mecanismos secre ¬
tos , que ele pr ó prio n ã o compreende
monstra çã o do seu desmoronamento inevit á vel .
—
como pela de ¬
í
16 A FILOSOF í A DE MARX I / FILOSOFIA MARXISTA ou FILOSOFIA DE MARX ?
17
Depois de 1871
Althusser
Mas eis a segunda crise : é a guerra franco-alem ã de 1870 , Louis Althusser ( nascido em Birmandreis, Argé lia , em 1918, falecido em
seguida da Comuna de Paris . Esses fatos mergulham Marx Paris em 1990) é hoje mais conhecido do grande pú blico pelas
tragédias
na depressã o, e soam como uma volta do “ lado mau da que marcaram o fim dc sua vida (assassinato da esposa ,
internamento
psiquiá trico: cf . sua autobiografia O futuro dura muito tempo, S
historia ” (de que voltaremos a falar) , isto é , de seu desen ¬ ã o Paulo,
Companhia das Letras, 1993) do que por sua obra teórica .
rolar imprevisível , de seus efeitos regressivos , e do seu Entretanto,
esta ocupou um lugar central nos debates filosóficos dos
custo humano terr ível (dezenas de milhares de mortos na anos 60 e 70,
depois da publicação, em 1965, de A favor de Marx e Ler o Capital.
guerra , outras dezenas de milhares , al é m das deporta ções, Althusser apareceu então, com Lévi-Strauss , Lacan , Foucault ,
Barthes,
na “ semana sangrenta ” , que , pela segunda vez em vinte e cómo unía figura de proa do “ estruturalismo” . Assumindo a crise do
marxismo, mas recusando-se a atribuir sua causa à simples dogmatiza
cinco anos , decapita o proletariado revolucionario francés çã o,
dedicou -se a uma releitura de Marx. Tomando da epistemología hist ó rica
e aterroriza os seus colegas estrangeiros). Por que essa ( Bachelard) a noção de “ corte epistemol
ógico” , interpretou a crítica
volta paté tica ? Deve-se ávaliar corretamente o corte que marxiana da economia pol ítica como uma ruptura com o humanismo
resultou disso. A guerra europé ia vai contra a repre¬ teóricos o historicismo das filosofias idealistas (inclusive Hegel)
e como
senta çã o que Marx fazia das for ças diretrizes e dos conflitos a fundação de uma ciência da história , cujas categorias centrais
eram
a “ contradição sobredeterminada ” do modo de produ çã o e a “ a estrutura
fundamentais da política . Ela relativiza a luta de classes com dominante ” das forma ções sociais. Essa ciência se opunha
em proveito, ao menos aparente , de outros interesses e à
ideologia burguesa, mas demonstrava ao mesmo tempo a materialidade
de outras paixões. A detona çã o da revolu çã o proletá ria na e a eficacia histórica das ideologias, definidas como “ relaçã o imagin
á ria
Fran ça (e nã o na Inglaterra ) vai contra o esquema “ l ógico ” dos indiv íduos e das classes com suas condições de exist ência .
” Assim
de uma crise provocada pela pr ópria acumulaçã o capita ¬ como não existe fim da história , também n ão poderia haver fim da
ideologia . Simultaneamente, Althusser propunha uma reavaliação das
lista . O esmagamento da Comuna mostra a desproporçã o teses leninistas sobre a filosofia , que ele definia como “ luta de
das forças e das capacidades de manobra entre a burguesia classe
na teoria ” ( Lenine e a filosofia, Lisboa , Estampa , 1974) e utilizava para
e o proletariado. De novo, os operá rios entoam o “ solo analisar as contradições entre “ tendências materialistas” e “ tendê
ncias
f ú nebre ” de que falava o 18 Brumá rio... idealistas ” no seio da prá tica científica ( Filosofia e filosofia espontânea
Marx , é claro , resiste. No gê nio dos prolet á rios venci
dos , por mais curta que tenha sido a sua experiê ncia , ele
sabe ler a inven çã o do primeiro “ governo da classe
¬
interlocutor de sempre e à s vezes inspirador , caber á Engels publica a Situação reconquista da Alemanha
sistematizar o materialismo histó rico , a dialé tica , a estra ¬ da classe trabalhadora na pelos exércitos do prínci¬
tégia socialista . Inglaterra. pe . Marx emigra para
1845 Stirner: O ú nico e sua pro¬ Londres .
Mas cada coisa a seu tempo . Estamos em 1845 : Marx priedade; Hess: A essên ¬
1850 Marx: As lutas de classe
cia do dinheiro. Marx, ex ¬
na França; Richard Wag
tem 27 anos, é doutor em filosofia pela Universidade de
¬
“ homens de 48” , v ê o futuro diante de si . ria de Proudhon). Marx çã o da Liga dos Comunis ¬
1831 Morte de Hegel . Pierre Le- Demócrito e em Epicuró) . nomy of Art; Baudelaire :
nada de trabalho). Miche ¬
roux na França e Robert 1842 Marx é redator-chefe da As flores do mal.
let: O povo.
Owen na Inglaterra in ¬ Gazeta Renana . Caben
1848 Revolu ções européias (fe¬ 1858 Proudhon : Da justiça na
ventam a palavra “ socia ¬ Viagem a Icária. Revolução e na Igreja;
vereiro) . Voltando para
lismo ” . Revolta dos ope ¬ 1843 Carlyle : Passado epresen¬
a Alemanha , Marx se tor ¬
Mill : Liberty; Lassalle: A
rá rios das f á bricas de te; Feuerbach: Princípios filosofia de Herã clito o
na redator-chefe da Nova
seda de Lyon . da filosofia do futuro. Obscuro.
Gazeta Renana, ó rg ã o
1835 Fourier: La fausse indus ¬ Marx em Paris: reda çã o 1859 Marx : Contribuição para
democr á tico revolucio ¬
trie morcelée. dos Anais franco-alemães a crítica da economia po ¬
n á rio . Massacre dos ope ¬
1863 Insurrei çã o polonesa . ternationale ) ; Bakunin : da çã o da Liga Agrá ria ir¬ ten - und Culturfrage-,
Victor Hugo: Os miserá ¬ L ’ Empire knouto -germa - landesa . Henry George: Marx : Carta a Vera Zas-
veis; Renan: Vida de Jesus,- nique I ( Dieu et l’État ). Progresso e pobçeza. soulitch .
Dostoievski: Humilhados 1872 Congresso de Haia ( “ ra ¬
1880 Anistia para os partici ¬ 1882 Engels: Bruno Bauer e o
e ofendidos. cha ” da Ia Internacional , pantes da Comuna . cristianismo primitivo.
1864 Reconhecimento do direi ¬ cuja sede é transferida 1881 Na Fran ça , lei sobre o 1883 Morte de Marx . Plekha -
to de greve na França . para Noya York ) . Tradu ¬
ensino primá rio gratuito , nov funda o grupo Eman ¬
Marx é secretá rio do con ¬ Nietzsche: Nascimento da Povo . Dtihring: Die Ju - lou Zaratustra.
selho geral . trag édia . denfrage ais Racen -, Sit-
1867 Disraeli institui o sufrá gio 1873 Bakunin : Estatismo e
universal masculino na anarquia.
Inglaterra ; unifica çã o al¬ 1874 Walras: Elementos de eco ¬
chinchina . pital.
1868 Primeiro congresso dos 1876 Vitó ria é coroada impera ¬
sindicatos brit â nicos . triz das í ndias . Spencer:
Haeckel: História da cria ¬ Principles of Sociology.
ção natural-, William Mor¬ Dissolu çã o oficial da In ¬
ris: The Earthly Paradise. ternacional. Dostoievski:
1869 Funda çã o da social-de ¬ Os possessos. Inaugura çã o
mocracia alem ã (Bebei , do Festspielhaus de Bay¬
Liebknecht ) . Inaugura ção reuth .
do canal de Suez. Mill: 1877 Marx : “ Carta a Mikhai-
The Subjection of Women. lovski” ; Morgan: Ancient
Tolstoi : Guerra e paz. Society.
Matthew Arnold: Culture 1878 Eèi anti-socialista na Ale ¬
and Anarchy. manha . Engels: Anti-Dü h -
1870-1871 G Ú erra franco-ale ¬ ring ( O Senhor Eugene
mã . Proclama ção do im ¬ Dtihring revoluciona a
pério alemã o em Versa ¬ ciência ), com um cap ítu ¬
A
II / TRANSFORMAR O MUNDO :
DA PRá XIS À PRODU çã O
23
24 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR o MUNDO : DA PRáXISK PRODUçãO 25
Karl Marx: Teses sobre Feuerbach ( 1845 ) parece que ele tenha destinado essas linhas à publica çã o :
elas se assemelham ao “ memorandum ” , f ó rmulas que sã o
—
“ I. O defeito principal , até agora , de todos os materialismos [...] é
que o objeto, a realidade efetiva , a sensibilidade , só é apreendido sob
lan ç adas no papel para que n ã o se percam e sirvam de
cont ínua fonte de inspira çã o .
a forma do objeto ou da intuição; mas nã o como atividade sensivelmente Nesse momento , Marx estava ocupado em um trabalho
humana, como prática, nã o de modo subjetivo. É por isso que o lado
ativo foi desenvolvido de modo abstrato , em oposição ao materialismo,
de que temos uma idé ia bastante precisa gra ças aos
—
pelo idealismo que naturalmente nã o conhece a atividade real efetiva , rascunhos publicados em 1932 e conhecidos a partir da í
sensível , como tal . Feuerbach quer objetos sensíveis — realmente pelo t ítulo de Economia política e filosofia , ou Manuscritos
distintos dos objetos pensados — mas nã o apreende a própria atividade
humana como atividade objetiva [ . ..1
de 18441 Trata -se de uma an á lise fenomenol ógica ( visando
extrair o sentido ou o n ã o-sentido) da aliena ção do
—
III . A doutrina materialista da mudança das circunstâ ncias e da
educa çã o esquece que as circunstâ ncias sã o transformadas pelos trabalho humano sob o regime do sal á rio . As influ ê ncias
homens e que o próprio educador deve ser educado. É por isso que de Rousseau , Feuerbach , Proudhon e Hegel se combinam
ela deve dividir a sociedade em duas partes , das quais uma é elevada a í estreitamente com sua primeira leitura dos economistas
acima dela . ( Adam Smith , Jean - Baptiste Say , Ricardo , Sismondi) , para
A coincidê ncia da mudança das circunstâ ncias e da atividade humana
ou autotransformaçã o só pode ser apreendida e racionalmente com ¬ desembocar em uma concepçã o humanista e naturalista
preendida como prática revolucionária. do comunismo , concebido como a reconcilia çã o do homem
IV.
— Feuerbach parte do fato da auto-aliena çã o religiosa , do desdo¬
bramento do mundo em um mundo religioso e outro mundano. Seu
com seu pró prio trabalho e com a natureza , e conseq ü en -
temente com a sua “ ess ê ncia comunit á ria ” , que a proprie ¬
trabalho consiste em resolver o mundo religioso em seu fundamento
mundano. Mas o fato de que o fundamento mundano se destaque de dade privada abolira , tornando-o assim “ estranho para si
si mesmo e se fixe em um reino autónomo nas nuvens só pode se mesmo ” .
explicar pelo autodilaceramento e pela autocontradiçã o desse funda ¬ Ora , Marx interromperia esse trabalho (que retomaria
mento mundano. Portanto, esse autodilaceramento deve , em si mesmo,
muito mais tarde , sobre bases completamente diferentes) ,
ser tanto compreendido em sua contradição quanto revolucionado
praticamente. De tal modo que , uma vez , por exemplo, que a fam ília para começar com Engels a reda çã o de A ideologia alem ã,
terrestre foi descoberta como o segredo da família celeste , é doravante que se apresenta antes de tudo como uma polê mica contra
a primeira que se deve destruir teórica e praticamente . [... ] as diferentes correntes da filosofia “ jovem - hegeliana ” , uni ¬
contemporâ neo : para ele , os Manuscritos de 1844, com Cr í tica da economia pol í tica
seu humanismo caracter ístico , .estariam ainda “ aqu é m ” do
corte ; a Ideologia alemã, ou antes , sua primeira parte , com A expressã o “ cr ítica da economia pol ítica ” sempre aparece no t ítulo
ou no programa das principais obras de Marx , embora seu conteúdo
a dedu çã o das formas sucessivas da propriedade e do se transforme constantemente . Os “ manuscritos de 1844 ” já sã o o
Estado , cujo fio condutor é o desenvolvimento da divisã o rascunho de uma obra que devia intitular-se Zur Kritik der politischen
do trabalho , representaria a entrada em cena verdadeira , Oekonomie, t ítulo que se torna depois o da. obra publicada em 1859
positiva , da “ ciê ncia da histó ria ” . como “ primeira parte” de um tratado de conjunto, e o, subtítulo do
N ã o pretendo dar aqui uma explica çã o exaustiva . É Capital ( cujo livro primeiro, ú nico editado, pelo próprio Marx, será
interessante citar o trabalho de Georges Labica
4
— que publicado em 1867). A esse se acrescentam muitos textos inéditos,
artigos, partes de obras polêmicas .
estuda cada formulaçã o em detalhe , considerando os Parece portanto que essa expressão exprime a modalidade permanente
comentá rios posteriores , com todas as suas divergê ncias — da rela çã o intelectual de Marx com seu objeto científico. O objetivo
como revelador dos problemas internos que elas levantam . inicial era a crítica da alienaçã o pol ítica na sociedade civil -burguesa ,
Labica mostra com uma perfeita clareza como as Teses sã o assim como das “ matérias especulativas” , cuja unidade orgâ nica a
filosofia pretende exprimir. Mas um deslocamento fundamental interveio
estruturadas . De uma extremidade a outra , trata -se de rapidamente: “ criticar ” o direito , a moral e a pol ítica é confrontá -los
superar, atrav és de um “ novo materialismo ” , ou materia ¬ com a sua “ base materialista ” , com o processo de constituiçã o das
lismo prá tico , a oposição tradicional entre os “ dois campos” rela ções sociais no trabalho e na produ çã o.
da filosofia : o idealismo, isto é , principalmente Hegel , que Marx encontra ent ã o, à sua maneira , o duplo sentido da palavra crítica
projeta toda realidade no mundo do esp í rito , e o antigo na filosofia : destruição do erro , conhecimento dos limites de uma
faculdade ou de uma prá tica . Mas o operador dessa crítica , ao inv és
materialismo, ou materialismo “ intuitivo” , que reduz todas de ser simplesmente a análise , tornou -se a histó ria . É o que lhe permite
as abstra ções intelectuais à sensibilidade , ou seja , à vida , combinar “ dialeticamente ” a cr ítica das ilusões necessá rias da teoria (o
à sensa çã o e à afetividade , a exemplo dos epicuristas e “ fetichismo da mercadoria ” ), o desenvolvimento das contradições in ¬
de seus discípulos modernos: Hobbes , Diderot , Helvetius . .. ternas, inconciliáveis , da realidade económica (as crises, o antagonismo
capital /trabalho fundado na explora ção da mercadoria “ força de traba ¬
lho” ), enfim o esboço de uma “ economia pol ítica da classe operá ria ”
oposta à da burguesia ( Comunicação inaugural da Associaçã o Inter ¬
Crítica da alienação nacional dos Trabalhadores , 1864). O destino da cr ítica est á nas “ duas
descobertas ” que ela atribui a si mesma: a dedu çã o da forma dinheiro,
O fio condutor da argumenta çã o é bastante claro , a julgar a partir apenas das necessidades de circula ção das mercadorias, e a
pelos debates da época . Feuerbach 5 quis explicar a “ alie ¬ redução das leis de acumula ção à capitalização de “ mais-valia ” ( Mehr-
weri) . Elas remetem ambas à definiçã o do valor como expressã o do
na çã o religiosa ” , isto é , o fato de que os homens reais , trabalho socialmente necessá rio , na qual se enra íza a recusa do ponto
sens íveis , imaginam a salva çã o e a perfei çã o em um outro de vista do Homo oeconomicus abstrato , unicamente definido pelo
mundo supra-senswel (como uma projeçã o em seres e cálculo de sua “ utilidade ” individual.
situa ções imagin á rios de suas pró prias “ qualidades essen ¬
Para uma apresenta çã o dos aspectos técnicos da crítica da economia
ciais ”
amor
—que
particularmente o la ç o comunit á rio , ou la ço de
une o “ gê nero humano ” ). Tomando consciê ncia
pol ítica em Marx , cf . Pierre Salama e Tran Hai Hac: Introduction à
iéconomie de Marx ( Paris, La Découverte , coleçã o Rcpè rcs, 1992).
t ê ncia humana , especialmente o que constitui a esfera se por acaso se come çasse outra vez a interpretar o mundo,
^ sociedade , como uma comunidade ideal
pol ítica , isolada da e especialmente o mundo social , a recair sob o qualificativo
em que os homens seriam livres e iguais. Mas , diz Marx de filosofia , já que entre a filosofia e a revolu çã o n ã o h á
ñ as Teses , a verdadeira raz ã o dessa proje çã o n ã o é uma
meio- termo . Levada ao extremo, essa posiçã o pode ser um
ilusã o da consciê ncia , um efeito da imagina çã o individual : modo de condenar-se ao silê ncio .
é a cisã o ou divisã o que reina na sociedade , sã o os con ¬ Mas a brutalidade dessa alternativa nos revela a sua
flitos pr á ticos que opõem os homens entre si, e para os outra face : se “ dizer é fazer ” , por outro lado “ fazer é dizer ” ,
quais o cé u da religiã o ou o da pol ítica lhes prop õem e as palavras nunca sã o inocentes . Por exemplo , n ã o é
uma solu çã o miraculosa . A resolu ção verdadeira est á em inocente afirmar que as interpreta ções do mundo sã o
uma transforma çã o prá tica , abolindo a dependê ncia de diversas, enquanto a transforma ção revolucion á ria , impli ¬
certos homens em rela çã o a outros . Nã o é portanto à citamente , é una , ou un ívoca. De fato, isso significa que
filosofia que cabe suprimir a alienaçã o ( pois a filosofia existe apenas uma ú nica maneira de transformar o mundo:
nunca foi mais do que o coment á rio, ou a tradu çã o , dos a que abole a ordem existente , a revolu çã o, que n ã o
ideais de reconcilia ção entre a religiã o e a pol ítica ) mas poderia ser reacioná ria ou antipopular. Observe-sè que
à revolu çã o , cujas condições residem na exist ê ncia material Marx renunciaria muito cedo a essa tese: desde o Mani ¬
dos indivíduos e suas rela ções sociais. As Teses sobre festo , e mais ainda no Capital , ele reconheceria o poder
Feuerbach exigem , por isso mesmo, um desfecho ( Ausgang ) çom o qual o capitalismo “ transforma o mundo” , e a
definitivo da filosofia , ú nico meio de realiza ção do que quest ã o de saber se h á vá rios modos de transformar o
sempre foi a sua ambição mais alta : a emancipa çã o , a mundo, ou como uma transforma çã o pode inserir-se em
liberaçã o . outra , e até mesmo desviá-lo do seu curso, se tornaria
crucial . Aliá s , isso significa que essa ú nica transforma çã o
representa ao mesmo tempo a “ solu çã o” dos conflitos
Revolução contra filosofia internos da filosofia . Velha ambiçã o dos fil ósofos (Aristó¬
teles , Kant , Hegel ...), que a “ prá tica revolucioná ria ” viria
As dificuldades começam precisamente neste ponto. Sem assim realizar melhor do que eles \
d ú vida , Marx n ão se arriscou a publicar tal injun çã o , ou Mas n ã o é s ó isso: a f ó rmula encontrada por Marx ,
n ã o encontrou ocasiã o para faz ê-lo . De qualquer forma , essa injun çã o que por si só já é um ato de “ sa ída ” , nã o
ele a escreveu , e , como uma “ carta roubada ” , ela chegou
se tornou filosoficamente célebre por acaso . Pensando um
até n ós . Ora , o enunciado em quest ã o é bastante paradoxal .
pouco, podemos nos lembrar de que ela tem um parentesco
Em certo sentido , é absolutamente coerente consigo mes ¬
t ê m em comum visar a quest ã o da rela çã o entre a teoria le ô nica , e enfim pela Restaura çã o e a Contra -Revolu çã o
e a pr á tica , a consciê ncia e a vida . Isso abrange desde o (sempre pelo Estado ) . E , ainda mais precisamente , trata-se ,
“ Pensar e ser sã o a mesma coisa ” de Parmê nides, até o na escala da Europa , de levar a termo o movimento
“ Sobre aquilo de que n ão se pode falar, deve-se silenciar ” revolucion á rio e torn á -lo universal , reencontrando a ins¬
de Wittgenstein , passando por Spinoza ( “ Deus é a nature ¬ pira çã o e a energia do seu “ lado esquerdo ” , esse compo¬
za ” ) , por Kant ( “ tive que limitar o saber para dar lugar à nente igualitá rio da Revolu çã o (representado principal ¬
f é ” ) , por Hegel ( “ o racional é real , o real é racional ” ). E mente por Babeuf ), de onde saiu , justamente , no começo
eis nosso Marx instalado no cora çã o da filosofia , e isso do séc. XIX , a idéia de comunismo .8 Marx insistirá muito
pelo seu movimento mais especulativo, aquele que se no fato de que n ã o se trata de uma concepção especulativa ,
esforça por pensar os seus próprios limites, seja para de uma cidade ideal ou experimental (como a “ Icá ria ” de
aboli-los , seja para instituir-se a partir do reconhecimento Cabet) , mas de um movimento social , cujas reivindica ções
representam simplesmente a aplica çã o conseq ü ente do
deles .
Tenhamos em mente esse profundo equ ívoco (que n ã o
princ ípio da Revolu çã o —
medindo a realiza çã o da liber
dade pela realizaçã o da igualdade e vice -versa , para
¬
momento pela sociedade burguesa , onde n ão reinam nem E porque , na pr á tica , esses princípios resultam sempre n ã o
a igualdade nem mesmo a liberdade , para n ã o falar da na revolu çã o , mas na educa çã o (ou até na edifica çã o) das
fraternidade ; ou eles começam a passar para os fatos , mas massas , cuja causa os filósofos se propõem generosamente
em uma pr á tica revolucion á ria , “ insurrecional ” (a prá tica a assumir . No tempo de Plat ã o , eles pretendiam aconselhar
daqueles que , juntos , se insurgem , substituindo , se neces¬ os pr íncipes em nome da Cidade ideal . Em nossa é poca
sá rio , pela “ cr ítica das armas ” as “ armas da crítica ” ). Antes democr á tica , eles pretendem educar os cidad ã os (ou “ edu ¬
de tudo , essa conseqii ê ncia é um tanto rude para a filosofia , car os educadores ” dos cidad ã os: os ju ízes , os médicos,
mas oriunda de seus próprios princípios , os quais se deve os professores , instalando-se , pelo menos moralmente, no
entender, quando Marx , nesse ponto , fala de converter o alto do edif ício universit á rio) em nome da razã o e da ética .
idealismo em materialismo . Isso nã o é falso , mas por tr ás dessa fun çã o do idealismo
se esconde uma dificuldade mais temível . Na filosofia
moderna (que encontra sua verdadeira linguagem com
As duas faces do idealismo Kant), quando se fala de consciê ncia , de espírito ou de
raz ã o, essas categorias que exprimem o universal sempre
Vamos nos deter um pouco . Se essas indica ções sã o exatas , tê m uma dupla face , e as formula ções de Marx nas Teses
isso quer dizer que o materialismo de Marx nada tem a n ã o deixam de fazer alusã o a isso . Elas combinam intima ¬
—
ver com uma referê ncia à matéria - e esse será o caso mente duas id é ias: a representação e a subjetividade. Ter
pensado sistematicamente essa combina çã o é justamente
durante muito tempo: até que Engels comece a reunificar
o marxismo com as ciê ncias da natureza da segunda metade a originalidade e o poder do grande idealismo (alemã o) .
do séc. XIX. Mas , no momento , trata-se de um estranho Evidentemente , a noçã o de “ interpreta çã o ” , à qual Marx
“ materialismo sem maté ria ” . Por que essas palavras , então? se refere , é uma variante da idéia de representa çã o. Para
Aqui , o historiador da filosofia retoma os seus direitos, o idealismo criticado aqui , o mundo é o objeto de uma
apesar dos golpes que Marx acaba de lhe dirigir. Ele deve contemplaçã o que procura ver a sua coerê ncia , o seu
explicar esse paradoxo , o que o conduz també m a mostrar “ sentido” , e por isso mesmo, queira-se ou nã o, pretendé
a confusã o que resulta disso ( mas, vamos repetir , essa impor-lhe uma ordem. Marx viu muito bem que h á uma
confusã o é tudo menos arbitrá ria ). Se Marx declara que solidariedade entre o fato de pensar uma “ ordem do
transformar o mundo é um princí pio materialista , procu ¬ mundo ” ( principalmente no registro social é pol ítico) e o
rando ao mesmo tempo diferenciar-se de todo o materia ¬ fato de valorizar a ordem no mundo: contra a “ anarquia ” ,
lismo existente (aquele que ele chama de “ antigo ” , e que mas també m contra o “ movimento ” ( “ Odeio o movimento
repousa precisamente na idé ia de que toda explica çã o tem que desloca as linhas ” , escreverá Baudelaire)... Também
como princípio a maté ria : o que é também uma “ interpre ¬ viu muito bem que , desse ponto de vista , os “ materialismos
ta çã o do mundo ” , contest á vel como tal ) , é manifestamente antigos” ou as filosofias da natureza , que substituem o
para assumir a posição oposta à do idealismo. A chave das espírito pela maté ria como princ ípio de organiza çã o ,
formulações de Marx n ão reside na palavra materialismo , contê m um forte elemento de idealismo , e a rigor n ã o sã o
mas na palavra idealismo . Mais uma vez , por qu ê? mais do que idealismos disfar çados (quaisquer que sejam ,
Primeira raz ã o: porque as interpreta ções idealistas da aliá s , as conseqii ê ncias pol í ticas muito diferentes que eles
natureza e da hist ó ria , propostas pelos fil ósofos , invocam acarretam ) . Isso nos permite compreender por que é t ã o
princípios como o esp írito , a raz ã o , a consciê ncia , a idé ia .. . f á cil para o idealismo “ compreender ” o materialismo e
36 A FILOSOFí A DK MARX II / TRANSFORMAR O MUNDO: DA PRáXISK PRODUçãO 37
logo refut á -lo ou integr á-lo (como se vê em Hegel , que O sujeito é a prática
n ã o tem nenhum problema com os materialismos , salvo
talvez com Spinoza , mas Spinoza é um materialista bastante Seu projeto foi bem-sucedido? Em certo sentido, perfeita ¬
at ípico .. . ) - Enfim , Marx viu que o cerne do idealismo mente , pois é muito pertinente dizer que o ú nico verda ¬
moderno pós-revolucioná rio consiste em remeter a ordem deiro sujeito é o sujeito prá tico ou o sujeito da prá tica ,
do mundo, a “ representa çã o ” , à atividade de um sujeito, ou , melhor ainda , que o sujeito nã o é outra coisa senão a
que as cria , ou , como se diz em linguagem kantiana , as prática, que , sempre , já começou e prossegue indefinida ¬
“ constitui ” . mente . Mas, com isso, sa ímos do idealismo? De modo
Passamos agora para a outra vertente do idealismo : algum , precisamente porque “ idealismo ” , historicamente
n ã o a filosofia da representa çã o (ou , se quisermos , a falando, engloba ao mesmo tempo o ponto de vista da
simples filosofia da prioridade das “ id éias” ) , mas a filosofia representa çã o e o da subjetividade . Na verdade , trata -se
da subjetividade (o que exprime bem a import â ncia deci ¬ de um círculo , ou de um comutador teó rico , que funciona
siva assumida ent ã o pela noçã o de consciê ncia) . Marx nos dois sentidos. É possível dizer que Marx, identificando
pensou que a atividade subjetiva de que fala o idealismo a essê ncia da subjetividade com a prá tica , e a realidade
é no fundo o vestígio , a nega çã o ( o reconhecimento e o da prá tica com a atividade revolucion á ria do proletariado
desconhecimento ao mesmo tempo) de uma atividade mais (que faz parte da sua pr ó pria exist ê ncia ), transferiu a
real , mais “ efetiva ” , por assim dizer : uma atividade que categoria de sujeito do idealismo para o materialismo . Mas
seria simultaneamente constituiçã o do mundo exterior e
també m é igualmente possível afirmar que , com isso , ele
formação ( Bildung ) ou transforma çã o de si. Prova isso a preparou a possibilidade permanente de representar o
insist ê ncia , em Kant , e mais ainda em Fichte , do vocabu
proletariado como um “ sujeito", no sentido idealista do
¬
admitir que h á um conflito latente entre a id é ia de a invenção do sujeito, como categoria central da filosofia
representa çã o ( interpreta çã o , contempla çã o ) e a de ativi ¬ que concerne a todas as á reas da experiê ncia concreta ( a
dade ( trabalho , pr á tica , transforma çã o, mudan ç a ). E aquilo ciê ncia , a moral , o direito , a religiã o , a est é tica ) e permite
a que ele se propôs é simplesmente detonar a contradiçã o , unificá - las, está ligada à idéia de que a humanidade se
dissociar representa çã o e subjetividade , e fazer surgir por forma ou se educa a si mesma , à idé ia de que ela impõe
si mesma a categoria da atividade pr á tica . a si mesma as suas leis , e logo , finalmente , à idé ia de que
38 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR o MUNDO : DA PRáXISX PRODUçãO 39
ela se liberta a si própria das diferentes formas da opressã o , A realidade da “ essência humana”
da ignorancia ou da superstiçã o , da misé ria etc . 9 E o sujeito
gen é rico dessa atividade tem sempre duas faces: uma Voltemos às Teses, para evocar a outra grande quest ã o que
teó rica, outra concreta e prá tica , que para Kant era a elas levantam : a da essê ncia humana . As duas estã o
humanidade , para Fichte se torna , em certo momento , o evidentemente ligadas. “ Feuerbach resolve a essência re ¬
povo, a nação , para Hegel , enfim , os povos históricos, ligiosa na ess ê ncia humana ” , isto é , ele mostra , particular ¬
encarnando sucessivamente “ o esp írito do mundo ” , isto é, mente na Essência do cristianismo de 1841, que a id é ia
o movimento do progresso da civilização . de Deus n ã o é outra coisa sen ã o uma s í ntese das perfeições
Por sua vez , Marx reconheceu no proletariado (vimos humanas , personificada e projetada fora do mundo . “ Mas
acima que este é o “ povo do povo ” , auté nticamente a essência humana nã o é uma abstra çã o inerente ao
humano e comunitá rio) o verdadeiro sujeito pr á tico , aquele indiv íduo singular. Em sua realidade efetiva , ela é o
que “ dissolve a ordem existente ” e assim se transforma a conjunto das rela ções sociais ” { das ensemble der gesells -
si mesmo ( Selbsttàtigkeit , Selbstverã nderung ) , transforman ¬ chaftlicben Verb àltnisse , escreve Marx em uma mistura de
do ao mesmo tempo o mundo. Serviu -se dessa constata çã o francês e alem ã o): essa frase da Tese 6 n ã o provocou
( na qual se superp õem de modo impressionante a liçã o menos coment á rios do que a l l . Vá rias coisas sã o not á veis ,
da experiê ncia imediata e a tradiçã o especulativa mais se o texto é seguido ao pé da letra .
antiga ) para afirmar, por sua vez , que o sujeito é a prática. Marx levanta aqui a quest ã o da essê ncia do homem ,
Tudo isso , poré m , n ão o afasta verdadeiramente da histó ria ou responde a ela . Nada mais natural . Entretanto , essa
questã o , que pode ser considerada como constitutiva da
do idealismo ; pelo contrá rio. Fichte não disse outra coisa .
antropologia , n ão é de modo algum ó bvia . Em certo
Até se poderia sugerir, sem jogar com as palavras , que
sentido , ela é t ã o velha quanto a filosofia . Mas quando ,
isso fez de Marx e do seu “ materialismo da pr á tica ” a
em nossos dias, Claude Lévi-Strauss explica que a essê ncia
forma mais acabada da tradiçã o idealista , que permite do homem é o conflito da natureza e da cultura , ou ent ã o
compreender, mais do que qualquer outra , a vitalidade quando Lacan forja a palavra parlêtre,' para dizer que a
persistente do idealismo at é nossos dias . Justamente por ¬
essê ncia do homem é permeada pela linguagem , eles se
que essa transposição est á estreitamente ligada à tentativa inscrevem na mesma tradição que Arist ó teles ao definir o
de prolongar a experiê ncia á ria e de encarn á-la
revolucion
na sociedade moderna , com suas classes e seus conflitos
homem como o ser que disp õe da linguagem e pertence
à cidade , ou Santo Agostinho , que define o homem como
sociais . “ a imagem e semelhan ça de Deus na terra ” . Ali á s, se
Seria possível assim compreender que a adoçã o do considerarmos as coisas a partir de um n ível de generali¬
ponto de vista dos prolet á rios em insurreiçã o “ permanente ” dade suficiente , todos eles tratam , na verdade , da mesma
n ão teve tanto como resultado pô r fim ao idealismo , mas quest ã o . Desde a Antig ü idade até nossos dias , h á uma
antes instalar o dilema do materialismo e do idealismo , a longa sucessã o de definições da natureza humana ou da
quest ã o sempre renascente da diferen ç a entre os dois , essê ncia humana . O pró prio Marx proporá v á rias , que
no cerne da teoria do proletariado , e do seu papel
histó rico privilegiado . Mas com esse dilema , é de se esperar
que seja a filosofia que , expulsa pela porta , volte pela * Formada a partir de “ falar” e “ ser ” . Um termo equivalente em portugu ê s
janela . . . seria “ falesser” . ( N.T. )
40 A FILOSOF í A DE MARX II / TRANSFORMAR o MUNDO: DA PRáXISK PRODUçãO 41 -
sempre girarã o em torno da rela çã o do trabalho e da que mostra que a trajet ó ria do /humanismo teó rico, converge
consciência . No livro I do Capital ,10 ele citar á uma com a do idealismo/ e da sua refuta çã o . O paralelo é
definiçã o muito caracter ística de Benjamin Franklin (o esclarecedor. De fato , vemos que Marx procede , em rela çã o
homem é “ a toolmaking animal ” , um ser vivo que fabrica à s teorias rivais (espiritualistas , materialistas) da natureza
ferramentas) , n ão para rejeitá-la , mas para completá-la , humana , a uma cr ítica do mesmo g ê nero que aquela que
precisando que a tecnologia tem uma história , que depende exerceu sobre as teorias do sujeito , da atividade e da
do “ modo de produ ção ” , lembrando depois que n ã o h á intuiçã o sensível . Dizer que “ em sua realidade efetiva ” ( in
tecnologia nem progresso, técnico sem consciência , refle ¬
seiner Wirklichkeif ) a essê ncia humana é o conjunto das
xã o , experimenta çã o, saber. E na Ideologia alemã, logo rela ções sociais, n ã o é, evidentemente , recusar a questão.
depois da formula ção que examinamos , escreverá : “ Pode¬ Mas é tentar deslocar radicalmente o modo pelo qual , até
mos distinguir os homens dos animais pela consciência , agora , ela foi compreendida , n ão só para o que diz respeito
pela religiã o e por tudo o que quisermos. Eles próprios ao “ homem” , mas, ainda mais fundamentalmente, para o
começam a se distinguir dos animais logo que começam que diz respeito à “ essência)’.
a produzir seus meios de existência, passo à frente que é Os filósofos fizeram uma Idéia falsa do que é uma
a conseqiiê ncia de sua organização corporal . Produzindo essência (e esse erro lhes é t ã o... essencial, que mal se
seus meios de existê ncia , os homens produzem indireta ¬ pode imaginar um filósofo sem isso). Eles pensaram,
mente a sua pró pria vida material ...” . Isso é um modo de primeiramente, que a essência é uma idéia, ou uma
procurar a resposta para a questã o da essência do homem abstra çã o (diríamos ainda , com uma terminologia diferente,
nas pr ó prias coisas , e que aliás fornece o ponto de partida um conceito universal) , sob o qual podem ser classificadas,
para toda uma antropologia biológica e tecnológica , mar¬ por ordem de generalidade decrescente, as diferenças
xista ou n ã o . específicas e finalmente as diferenças individuais; e, em
segundo lugar, que essa abstração genérica está , de certa
forma , “ alojada ” ( inwohnend) nos indivíduos do mesmo
O humanismo teórico gê nero, seja como uma qualidade que eles possuem ,
segundo a qual se pode classificá- los , seja até como uma
Entretanto , uma nuance crucial para compreender o alcan ¬ forma ou uma potência que os faz existir como có pias do
ce de nosso texto separa o simples fato de definir o homem mesmo modelo .
ou a natureza humana do fato de formular explí citamente Vemos ent ã o o que significa a estranha equa ção pro¬
a pergunta “ o que é o homem ? ” (ou : “ qual é a essê ncia posta por Marx . No fundo , as palavras “ conjunto ” , “ rela ¬
humana ? ” ) , e , mais ainda , de fazer dela a quest ã o filosófica ções ” e “ sociais” dizem todas a mesma coisa . Trata-se de
fundamental . Entramos ent ã o em uma problemá tica nova , recusar ao mesmo tempo as duas posições (ditas realista
que podemos chamar, como Althusser, de humanismo e nominalista ) entre as quais se dividem tradicionalmente
teó rico . Por mais surpreendente que possa parecer, essa os filósofos : a que afirma que o gê nero, ou a essê ncia ,
problem á tica é relativamente recente , e , quando Marx precede a existência dos indiv íduos , e a que afirma que
escreve , n ã o é absolutamente velha , pois data apenas do os indivíduos sã o a realidade primeira , a partir da qual se
fim do séc . XVIII . Na Alemanha , os nomes mais importantes “ abstraem ” os universais . De modo impressionante , nenhu ¬
sã o os de Kant ( Antropologia do ponto de vista pragmá tico, ma dessas duas posições é capaz de pensar o que h á de
1798) , de Guilherme de Humboldt 11 e de Feuerbach , o essencial na existê ncia humana : as relações . m ú ltiplas e
42 A FILOSOFIA DE MARX
II / TRANSFORMAR O MUNDO : DA PRáXISX PRODUçãO 43
ativas que os indivíduos estabelecem uns
com os outros
( linguagem , trabalho , amor
, reprodu çã o, domina çã o, con ¬ uma resposta formal (e que conté m assim o pren ú ncio de
flitos etc . ), e o fato de que são essas rela ções que uma outra problem á tica, diferente do humanismo teó rico).
o que eles tê m em comum , o “ gê nero ” . Elas definem De fato , essa palavra existe , mas em pensadores do séc .
o definem XX ( Kojève , Simondon , La çan .. . ) : trata -se de pensar a
porque elas o constituem a cada instante
, sob formas
m ú ltiplas , fornecendo portanto o ú nico conte humanidade como uma realidade transindividual ] e até
ú do “ efetivo”
da noçã o de essência , aplicada ao homem ( de pensar a .transindividualidade como tal . 14 Nã o o que
isto é , aos est á idealmente “ em ” cada indiv íduo ( como uma forma ou
homens).
uma substâ ncia) ou o que serviria , do exterior, para a
classificá -lo, mas o que existe entre os indivíduos, em
O transindividual conseqúência de suas múltiplas interações.
então: as relações sociais aqui designadas nã o sã o nada ríamos agora medir, é Max Stirner (pseudó nimo de Caspar
mais do que uma incessante transformação , uma “ revolu çã o Schmidt ) , autor de O ú nico e sua propriedade , publicado
permanente” (a expressão não foi inventada por Marx, mas no fim de 1844 :15 má s é alguns meses mais tarde , logo
terá um papel decisivo em seu pensamento até por volta depois da reda çã o das Teses, e por insistê ncia de Engels ,
de 1850). Para o Marx de março de 1845, n ão basta dizer, que Marx começou a ler laboriosamente o Ú nico . ..
como Hegel , que “ o real é racional ” e que o racional , Quem é Stirner, do ponto de vista teórico? Em primeiro
necessariamente , se realiza ; é preciso dizer que a ú nica lugar, é um anarquista , defensor da autonomia da socie ¬
coisa real e racional é a revolu çã o . dade , composta de indivíduos singulares , “ propriet á rios ”
de seu corpo , de suas necessidades e de suas idéias , diante
do Estado moderno, no qual se concentra , a seus olhos,
A objeção de Stimer toda domina çã o e que retomou para si os atributos
sagrados do poder, elaborados pela teologia pol ítica da
O que querer, alé m disso? Mencionei acima , entretanto, Idade Média . Mas , principalmente , Stirner é um nomina ¬
que Marx não poderia parar por ali: é o que devemos lista radical : entendemos com isso que , para ele , toda
compreender agora . Nã o o conseguiríamos , se nos con ¬
“ generalidade ” , todo “ conceito universal ” é uma ficçã o
tent ássemos em mostrar que , substituindo o sujeito pela forjada por instituições para “ dominar ” (organizando- a ,
pr á tica , gera-se um cí rculo , uma dificuldade l ógica , ou que classificando-a , simplificando-a e á té simplesmente no ¬
a noçã o de essê ncia corre o risco de se encontrar em meando- a ) a ú nica realidade natural , isto é , a multiplici ¬
desequil íbrio , entre a cr ítica interna da ontologia tradicio¬ dade dos indiv íduos , dos quais cada um é “ ú nico em seu
nal , e sua dissolu çã o na multiplicidade das pesquisas gê nero ” ( da í o jogo de palavras essencial de Stirner, que
concretas sobre as rela ções sociais . A ideologia alem ã , sem aliá s tem uma longa ascendê ncia : o próprio de cada um
d ú vida , é um texto muito próximo da inspiraçã o das Teses é a sua propriedade ) .
46 A FILOSOFIA DE MARX II / TRANSFORMAR O MUNDO : DA PRáXISK PRODUçãO 47
trata -se , de fato (como em Hegel ) dos momentos t í picos é a sociedade “ civil - burguesa ” ( biirgerliche Gesellschaft ) ,
do processo pelo qual a hist ória se universalizou , tornou -se fundada nas diferentes formas de comé rcio ( Verkehr, que
uma histó ria da humanidade . Entretanto, o conte ú do da se poderia traduzir també m por comunica çã o) entre pro ¬
exposi çã o é o contr á rio do espí rito objetivo hegeliano , pois priet á rios privados , concorrentes entre si . Ou antes , o
essa universaliza çã o n ã o consiste na forma çã o de um ponto de chegada é a contradiçã o que uma tal sociedade
50 A FILOSOFí A DE MARX II / TRANSFORMAR O MUNDO: DA PRÁ Xisk PRODUçãO 51
encerra , pois a individualidade apresentada como um isolados ,- só podem exercer- se em uma rede virtualmente
absoluto equivale , na pr á tica , para a massa , a uma preca ¬ infinita de intera ções entre os homens . A “ resolu çã o” da
riedade ou “ contingê ncia ” absoluta das condições de contradiçã o não pode consistir em um retorno a formas mais
exist ê ncia , assim como a propriedade (de si , dos objetos) “ limitadas” da atividade e da vida humanas , mas unicamente
equivale a uma expropria çã o generalizada . em um domí nio coletivo da “ totalidade das forças produtivas” .
Uma das grandes teses da Ideologia alemã , oriunda
diretamente da tradiçã o liberal , mas voltada contra ela , é
que a sociedade “ burguesa ” se constitui irreversivelmente O proletariado, classe universal
a partir do momento em que as diferenças de classe
prevalecem sobre todas as outras e praticamente as apa ¬ Tudo isso pode ser dito com outras palavras:ld proletariado
gam . O pró prio Estado , por mais hipertrofiado que pareça , constitui a classe universal da histó ria) ideia que n ã o
,
n ão é mais do que uma funçã o dela . É nesse momento encontrou em toda a obra de Marx uma expressã o mais
que a contradiçã o entre particularidade e universalidade , articulada e mais completa do que aqui . A iminência da
cultura e embrutecimento , abertura e exclusã o , é mais transforma çã o revolucion á ria e do comunismo repousa , de
aguda e se torna explosiva entre riqueza e pobreza , fato , sobre essa perfeita coincidê ncia , em um mesmo
circula ção universal dos bens e restriçã o do acesso a eles ,
produtividade aparentemente ilimitada do trabalho e con-
presente , da universaliza çã o das trocas , e
classe burguesa que elevou o interesse
—
particular
diante da
como tal
finamento do trabalhador em uma estreita especialidade .. .
Cada indiv íduo , por mais miserá vel que seja , torna-se vir¬
à universalidade — de uma “ classe que
” , ao contr
tem nenhum interesse particular a defender Privado de
.
á rio, nã o
tualmente um representante do gê nero humano , e a fun çã o todo status como de toda propriedade , logo de toda
de cada grupo se define em escala mundial . A histó ria “ qualidade particular ” ( Eigenschaft) , o prolet á rio as possui
est á ent ã o a ponto de sair da sua pró pria “ pré-hist ó ria ” . todas, virtualmente. Praticamente n ã o existindo mais por
Toda a argumenta çã o da Ideologia alemã tende , com si só, ele existe virtualmente por todos os outros homens .
efeito, a mostrar que essa situa çã o é , como tal , insusten¬ Observemos que “ sem propriedade ” em alemã o é eigen -
t á vel , mas que , - pelo desenvolvimento de sua pr ó pria tumslos. É imposs ível n ã o entender aqui , a despeito dos
l ógica , ela conté m as premissas de uma reviravolta ( Um- sarcasmos dirigidos a Marx por Stirner, o mesmo jogo de
wálzung ), que equivaleria simplesmente à substituiçã o da palavras de que este usara e abusara , mas voltado em
sociedade civil- burguesa pelo comunismo . A passagem sentido oposto , contra a “ propriedade privada ” . “ Só os
para o comunismo é , pois , iminente, logo que as formas prolet á rios da é poca atual , totalmente exclu ídos de toda
e as /contradições da sociedade civil- burguesa estejam manifesta çã o de si , podem chegar a uma manifesta ção de
completamente desenvolvidas. De fato , a sociedade nas si total , e n ã o mais limitada , que consiste na apropria çã o
quais as trocas se tornaram universais é tamb é m uma de uma totalidade de forças produtivas e no desenvolvi ¬
sociedade na qual “ as for ças produtivas estã o desenvolvi ¬ mento de uma totalidade de faculdades que isso implica . ” 17
das até o est á gio da totalidade ” . De um extremo ao outro A universalidade negativa se converte em universalidade
da histó ria , as “ forças produtivas” sociais , exprimindo-se positiva , a expropria çã o em apropria çã o , a perda de
em todas as á reas , desde a técnica até a ciê ncia e a arte , individualidade em desenvolvimento “ multilateral ” dos in ¬
nunca sã o apenas as dos m ú ltiplos indiv íduos . Mas dora ¬ divíduos , cada um dos quais é uma multiplicidade ú nica
vante elas sã o inoperantes enquanto forças de indivíduos de relações humanas .
w¡
55
56 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 57
pura e simplesmente desaparecido; eles serã o retomados de compreender como ela pode , ao mesmo tempo , per ¬
sob o nome de fetichismo : ilustrado por um célebre manecer dependente do ser social ( Sein) , mas autonomi ¬
^
desenvolvimento do Capital. Ora , não se trata de urna zando-se cada vez mais em rela çã o a ele , até fazer surgir
pura variante de terminologia , mas de urna alternativa um “ mundo” irreal , fantástico, isto é, dotado de uma
teó rica cujas implica ções filosóficas sã o inegá veis . Ao
,
aparente autonomia , que substitui a hist ória real . Da í um
mesmo tempo que explorarmos a problemá tica da ideolo¬ afastamento constitutivo entre a consciê ncia e a realidade ,
gia , será preciso tentar compreender que razões levaram que um novo desenvolvimento histórico, derrubando o
Marx a substitu í-la , ao menos parcialmente , por outra . precedente , viria finalmente absorver, reintegrando a cons¬
ciê ncia na vida . Seria portanto , no essencial , uma teoria
do desconhecimento ou da ilusã o , o avesso de uma teoria
Teoria e prática do conhecimento.
Mas , se podemos , como. Marx , tentar descrever assim
A filosofia , manifestamente , n ã o perdoa a Marx a ideologia. o “ ser ” da consciê ncia ideol ógica (e n ão seria muito dif ícil ,
Ela mostra que é um conceito mal constru ído , que nã o ent ão, encontrar muitos precedentes filosóficos para uma
tem significa ção un ívoca e põe Marx em contradiçã o
consigo mesmo (o que n ã o é dif ícil: basta pô r lado a lado
tal descriçã o — daí a tenta çã o de utilizá-los para enrique-
cê-la e suprimir as dificuldades), nã o é desse modo que
a Sua condena ção sem apelo das ilusões e especula ções se pode compreender os objetivos que ele perseguia .
da consciê ncia burguesa , pronunciada em nome da ciê ncia També m n ã o se podem explicar particularidades da sua
da hist ó ria , e a monstruosa camada de ideologia que se dedu çã o, das funções suplementares (epistemol ógicas, po¬
construiu sobre os nomes do proletariado , do comunismo l íticas ) que ele incorpora ao longo de seu trajeto .
e do marxismo!) . Entretanto , a filosofia volta sempre a É preciso, portanto , remontar um pouco aqu é m cja
esse ponto , como se , apenas pelo fato de que Marx reda çã o que nos é proposta . Vê-se ent ã o que a problemá ¬
introduziu esse nome , ele tivesse suscitado o problema tica da ideologia surge no ponto de encontro de duas
que ela deve dominar para poder continuar ainda sendo quest ões distintas , ambas insistentes nas obras dos anos
filosofia .1
Voltarei a isso posteriormente . Por enquanto , tentemos
precedentes . Por um lado , a potência das ideias, potê ncia -
real , mas paradoxal , já que ela n ã o lhes vem delas pró prias ,
mostrar como se construiu a problemá tica da ideologia mas unicamente das forças e das circunst â ncias das quais
para Marx. Ora , a exposiçã o da Ideologia alemã, como elas podem apoderar- se.2 Por outro lado , a abstração,
indiquei , é n ã o só bastante confusa , mas enganosa , a esse isto é , como vimos , a filosofia ( mas que se deve entender
respeito. Ela inverte a ordem social na qual o texto foi em sentido amplo , incluindo todo o discurso liberal , o
redigido , relegando a parte polê mica para um segundo “ racionalismo” ou o “ pensamento crítico ” que se desen ¬
tempo , e propondo, de in ício , o desenvolvimento genético volvem agora no novo espaço da opinião pú blica , do qual
cujo fio condutor é a hist ória da divisã o do trabalho. Parece eles contribuem para excluir as for ças reais do povo e da
ent ã o que o conceito de ideologia prové m efetivamente democracia , pretendendo represent á- las ) .
de uma deriva çã o da “ superestrutura ” (essa expressã o é A combina çã o desses dois temas é precipitada por
empregada pelo menos uma vez) a partir da “ base ” Stirner, em raz ão de sua insistê ncia sobre a funçã o de
constitu ída pela “ vida real ” , a produ çã o . O essencial seria domina çã o que as id é ias gerais cumprem . Stirner leva ao
uma teoria da consciê ncia social ( Bewusstsein ) . Tratar-se- ia extremo a tese do idealismo : a da onipot ê ncia das id é ias ,
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que “ conduzem o mundo” . Mas ele inverte o ju ízo de valor domina çã o . Os indivíduos que constituem a classe domi ¬
que ela implicava . Enquanto representa çã o do sagrado, as nante possuem , entre outras coisas , igualmente uma cons ¬
id é ias n ã o liberam , elas oprimem os indiv íduos . Assim , ci ê ncia , e por conseguinte eles pensam .. . ” .3 Veremos que
Stirner leva ao c ú mujo a denega çã o das pot ê ncias reais o que eles “ pensam ” é essencialmente a forma do universal .
( pol íticas, sociaiá ) , m s obriga a analisar por si mesmo o
^
n ó das idéias e do poder. Para essa quest ã o Marx dar á ,
pela primeira vez na histó ria da filosofia , uma resposta
Na mesma proposiçã o se misturam , assim , um argumento
fenomenol ógico ( “ a expressã o ideal ” , “ as id éias da sua
domina çã o” ) e um argumento puramente sociológico (os
em termos de classes: n ã o em termos de “ consciê ncia de “ meios de produ çã o” materiais e intelectuais est ã o nas
classe ” (expressã o que nunca aparece ) , mas fazendo existir mesmas mã os). Essa é , precisamente , n ã o a solu çã o de
as . classes no duplo plano da divisão do trabalho e da
Marx para o problema da domina çã o , mas a sua reformu ¬
consci ê ncia , e logo fazendo també m da divisã o da socie ¬
~ la çã o do pró prio problema .
dade êm classes uma condição ou uma estrutura do
Seria instrutivo confrontar essa problem á tica (que joga
pensamento .
sistematicamente com o duplo sentido da palavra “ domi ¬
nar ” : exercer um poder, e “ reinar ” , estender-se universal ¬
mente , mais sensível ainda no alem ã o herrschend ) com os
A ideologia dominante
usos hoje correntes da palavra ideologia , sejam eles de
Assim , é realmente o tema da domina çã o que deve estar inspira çã o marxista ou n ã o. Ver íamos que estes recaem
no centro da discuss ã o. Marx n ã o faz uma teoria da tendencialmente de um lado ou outro de uma linha de
constituiçã o das ideologias como discurso , como sistema separa çã o cl á ssica entre o teórico ( problemá tica do erro e
de representa çã o particulares ou gerais , para propor ape ¬ da ilusã o , ou ainda do “ impensado ” de uma teoria cient í¬
nas posteriormente a quest ã o da domina çã o : ela . est á fica ) e o prático ( problemá tica do consenso , do modo de
pensamento ou do sistema de valores que “ cimenta ” a
sempre inclu ída na elabora çã o do conceito . Em contrapar ¬
tida , ele apresenta como um tropeço incontorn á vel que
coesã o de um grupo ou de um movimento social , ou que
“ legitima ” um poder de fato) , enquanto Marx procurara
“ os pensamentos da classe dominante sã o também , em
remontar aqu é m dessa distin çã o metaf ísica . Da í a dificul ¬
Autonomia e limitação da consciencia da exist ê ncia real , seguida de proje ção e de autonomiza çã o
de um “ reflexo fant ástico ” , ora comparado às criaturas
Podemos ent ã o-voltar- nos para a gé nese ou constituiçã o imagin á rias da teologia , ora comparado aos espectros da
marxiana da consciê ncia . É realmente de um mecanismo magia negra . Também recorreu à idéia nova da individua ¬
de ilus ão que se trata : Marx retoma para si um sistema de lidade como rela çã o, ou como funçã o da rela çã o sócial
met áforas de remota ascend ê ncia platónica (a “ inversã o que nã o cessa de se transformar na hist ória , cujo nasci ¬
do real ” na caverna ou na cá mara ó tica , camera obscura) .4 mento (ou renascimento) acabamos de seguir, entre as
Mas ele o faz de modo a escapar, no campo pol ítico, a Teses sobre Feuerbach e A ideologia alemã. Se combinarmos
duas idéias insistentes: a da ignorâ ncia das massas , ou as duas, obteremos esta definição formal do processo
da fraqueza inscrita na natureza humana (que lhe tornar ía ideol ógico: é a existência alienada da relação entre os
a verdade inacessível ) , e a da inculcaçã o (que traduziria indivíduos (que , como vimos , Marx designa globalmente
uma manipula çã o deliberada , logo uma “ onipot ê ncia ” dos com a palavra “ comé rcio” , Verkebr, para apreender simul ¬
poderosos), ambas abundantemente praticadas pela filo ¬ taneamente a sua face “ produtiva ” e a sua face “ comuni ¬
sofia iluminista a propósito das idéias religiosas e da sua cativa ” ).5 Em certo sentido, tudo está dito, mas pode-se
funçã o de legitima çã o dos regimes despóticos . detalhar, isto é , pode-se “ contar ” como isso deve ter
Marx encontrou (ou propôs) uma outra via , estendendo acontecido na história ; e é o que Marx faz, ao expor ( pelo
ao má ximo de suas possibilidades o esquema da divisã o menos em seu princípio) a sucessã o das formas de
do trabalho , de modo a fazê-lo explicar sucessivamente o consciê ncia , correspondendo aos está gios da propriedade
afastamento entre “ vida ” e “ consciência ” , a contradição e do Estado.
entre os “ interesses particulares ” e os “ interesses gerais” ,
e enfim o redobramento dessa contradiçã o na instala çã o
çle um mecanismo aut ó nomo , embora indireto , de poder A universalidade fictícia
(a divisã o do trabalho manual e intelectual , sobre a qual
insistirei). Ao fim dessa constru ção, o mecanismo “ ideoló ¬
gico” , que pode ser lido tanto como um processo social
como um processo de pensamento , aparecerá como uma
Assim , desde o in ício da hist ó ria , h á uma dualidade ou
uma tensã o do pensamento e da divisã o do trabalho (em
linguagem filos ófica , dir-se- ia o p ólo da “ interioridade ” e
o da “ exterioridade ” ). Um é simplesmente o avesso do
^
impressionante transforma çã o da impot ê ncia em domina ¬
ção: a abstra ção da consciê ncia , que traduz a sua incapa ¬ outro , sua reflexã o pelos indiv íduos. É por isso que os
cidade de agir na realidade (a perda da sua “ imanê ncia ” ), limites da comunicaçã o entre os indivíduos (o que se
torna-se a fonte de um poder justamente porque ela é poderia chamar o seu universo prá tico) sã o també m os de
“ autonomizada ” . É tamb é m o que , afinal , permitirá iden ¬
seu universo intelectual. Antes de ser uma quest ã o de
tificar a transforma çã o revolucion á ria da divisã o do traba ¬ interesses , é uma quest ã o de situa ção , ou de horizonte
lho com o fim da ideologia . para a exist ê ncia . Vamos repetir que Marx n ã o fez aqui
Mas , para isso é preciso combinar, em um equil íbrio uma teoria da “ consciê ncia de classe ” , no sentido de um
teoricamente instá vel , id é ias de proveniê ncias diferentes. sistema de idé ias que , conscientemente ou n ã o , expressa ¬
Marx recorreu à id é ia antiga de aliena çã o , sob a forma riam os “ objetivos ” desta ou daquela classe . Ele fez , antes,
que Feuerbach lhe dera (e com a qual , na verdade , ele uma teoria do cará ter de classe da consciê ncia , isto é , dos
nunca conseguirá “ acertar as suas contas ” ) , isto é , a cisã o limites de seu horizonte intelectual , que refletem ou
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reproduzem os limites da comunica çã o impostos pelas segue -se que todas as instituições comuns passam pelo
divisões da sociedade em classes ( ou em na ções etc.) O Estado e recebem uma forma pol ítica . Da í a ilusã o de que
fundo da explicaçã o é o obstáculo à universalidade , inscrito a lei repousa sobre a vontade , e até sobre uma vontade
nas condições da vida material , alé m das quais só é livre, destacada da sua base concreta . . . ” 6
possível pensar pela imagina ção . J á se vê que , quanto Mas a grande id é ia suplementar, acrescentada por Marx
mais se ampliarem essas condições , mais o horizonte da à sua exposição , é a divisã o do trabalho manual e
atividade dos homens (ou de suas trocas ) , coincidir á com intelectual. Ela é , de certo modo , importada para a
a totalidade do mundo , mais aumentará a contradição entre descriçã o da comunica ção alienada , transformando o que
o imaginá rio e o real . A consciê ncia ideol ó gica é primei ¬
era apenas, de fato , uma virtualidade de domina çã o em
ramente o sonho de uma universalidade imposs í vel . E vê-se uma domina ção efetiva . Por conseguinte , ela transforma a
que o pr ó prio proletariado ocupar á uma situa çã o limite , teoria da consci ê ncia , para depurá - la cie toda psicologia
n ão tanto diante da ideologia , mas sobre a sua margem , ( mesmo de uma psicologia social ) , e fazer dela uma
no ponto em que , n ã o tendo mais exterior, ela se trans¬ quest ã o dp antropologia pol í tica ./
forma em consciê ncia histórica real . Diante da universali ¬
da consciencia e a divide consigo pr ó pria , produzindo fun çã o? Essa leitura n ã o seria falsa , mas talvez excessiva ¬
efeitos materiais . A diferen ça intelectual é simultaneamente mente restritiva . Na verdade , Marx tem em vista uma
um esquema de explica çã o do mundo (da í vem a noçã o diferen ça que atravessa toda a hist ó ria e que , como tal ,
de um espírito , de uma razã o) e um processo coextensivo afeta tanto os intelectuais profissionais quanto os n ã o- in ¬
a toda a histó ria da divisão do trabalho. Marx diz explí¬ telectuais . Nenhum indiv íduo est á fora dessa divisã o (assim
citamente : “ A divisão do trabalho só se torna efetivamente como ningu é m est á fora da diferen ça dos sexos) . Sobre-
divisão do trabalho a partir do momento em que se opera determinando a diferen ça de classe sob suas formas
uma divisão do trabalho material e intelectual . A partir sucessivas , ela manifesta , ao mesmo tempo , a dimensã o
desse momento , a consciê ncia pode verdadeiramente ima ¬ de domina çã o que a acompanha desde a origem , e que
ginar que ela é diferente da consciê ncia da prá tica exis¬ se revela indissoci á vel da instituiçã o da cultura e do Estado .
tente, que ela representa realmente algo, sem representar Essa diferen ça é pois constantemente cultivada pelos
algo real .. . ” 8 Ela tem , portanto , tantas etapas histó ricas pró prios “ ide ó logos ” , mas ela é antes a condiçã o hist ó rica
quanto a própria divisão do trabalho. Mas o que , mani ¬ de sua existê ncia do que sua obra pessoal . Para compreen ¬
festamente , interessa sobremaneira para Marx , é o tra ço der a import â ncia dessa idé ia , uma incurs ã o pela filosofia
de união que re ú ne os primórdios remotos da civiliza çã o de Hegel é indispensá vel .
com os fenômenos atuais, quando se instala uma esfera
p ú blica burguesa: o papel das idéias e dos ideólogos na
pol ítica , e o papel que a sua autonomia relativa desem ¬ Os intelectuais e o Estado
penha na cria çã o de uma domina ção global , que nã o é a
deste ou daquele grupo de proprietá rios , mas verdadeira ¬ Marx descreveu o proletariado como uma “ classe univer ¬
mente a de uma classe inteira . “ A ilusão que consiste em sal ” , uma massa situada virtualmente alé m da condiçã o
acreditar que a domina çã o de uma classe determinada é de classe , cuja particularidade já seria negada em suas
unicamente a domina çã o de certas idéias ” (logo també m condições de existê ncia . Mas ele n ã o teria podido formular
a sublima çã o do interesse particular em interesse geral) é essa idé ia se , na Filosofia do direito de 1821, Hegel n ã o
o resultado da atividade dos ideólogos (Marx fala dos tivesse desenvolvido , por sua vez , uma teoria do “ Stand
“ ideólogos ativos ” da classe dominante) . Mas para isso , é universal ” .10 O que se deve entender com isso ? É o grupo
preciso que estes se mistifiquem a si mesmos, “ primeiro dos funcioná rios do Estado , na nova fun çã o que estã o
em suas questões ” , isto é , em seu modo de pensamento , adquirindo com a moderniza çã o deste , consecutiva à
e só podem faz ê-lo porque seu modo de vida , sua Revolu çã o . N ã o nos enganemos , entretanto; do ponto de
particularidade pró pria (ou “ independê ncia ” ) gerada pela vista de Hegel , o papel dos funcion á rios , em geral , n ã o é
histó ria , lhes fornece as condições para isso . Os ideólogos puramente administrativo : é essencial mente intelectual . E
est ã o à margem de sua própria classe , como as idéias que correlativamente , é por sua incorpora çã o ao Estado ( isto
eles produzem (Razã o, Liberdade , Humanidade ) est ã o além é , ao “ serviço p ú blico ” ) que os “ intelectuais ” ( die Gelehrten -
,
das prá ticas sociais. as pessoas instru ídas ) podem encontrar o seu verdadeiro
Dir íamos ent ã o que a an á lise de Marx resulta em um destino . Com efeito , é o Estado, em que os diferentes
esboço de sociologia pol ítica dos intelectuais modernos interesses particulares da sociedade civil devem ser torna ¬
(oU de sociologia do conhecimento : Wissenssoziologie ) ,9 dos compat íveis entre si e elevados ao n ível superior do
acompanhada de uma histó ria de sua formaçã o e de sua interesse geral , que lhes oferece a mat é ria e as condições
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III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 67
Gramsci
variadas da dependê ncia pessoal ) para que eles cumpram,
A obra de Antonio Gramsci ( 1891-1937), o maior dos dirigentes intelec ¬
a seu serviço , em toda a sociedade, uma atividade de
tuais do movimento comunista europeu depois de Lênin, se divide em mediação, ou de representa ção, e elevem assim a univer¬
três blocos de textos de status bem diferentes: os Escritos polí
(artigos e relat órios dos anos 1914- 1926,
ticos salidade ainda abstrata ao n ível da “ consciê ncia de si ” .
traduzidos em 4 vols., Lisboa ,
Seara Nova ), os Quaderni del cá rcere, redigidos depois da prisão de .
Deve-se reconhecer que essa teoriza ção exprime for¬
Gramsci pelo poder fascista italiano e editados durante a Libera çã o, e temente e com uma not á vel capacidade de antecipa çã o o
enfim a correspondencia (da qual fazem parte as Cartas do cá rcere, Rio sentido da constru ção administrativa , escolar e universitá ¬
de Janeiro, Civiliza çã o Brasileira , 1978).
ria , e do desenvolvimento das estruturas da pesquisa
Embora Mussolini tenha conseguido, conforme se gabava , “ impedir o
cérebro de funcionar ” , as prova ções f ísicas e morais suportadas final científica e da opinião p ú blica , que darã o pouco a pouco
¬
mente deram à luz um monumento intelectual , cujas sugestões nã o se aos Estados contemporâ neos a sua capacidade de “ regu ¬
esgotaram (cf . as obras de Christine Buci-Glucksmann , Gramsci et 'É la çã o” social , a igual distâ ncia do liberalismo puro e do
1 tat,
Pour une théorie matérialiste de la philosophie , Paris , Fayard , 1975 , e
autoritarismo . Se n ã o tivéssemos isso em mente , n ã o
de André Tosei, Marx en italiques. Aux origines de la philosophie
italienne contemporaine, Trans-Europ- Repress , Mauv êzin , 1991, e tam ¬ compreenderíamos a potê ncia exatamente oposta da teo¬
bé m o volume coletivo, Modernité de Gramsci , org . André Tosei, riza çã o da ideologia em Marx . Nem o objetivo que ela
Paris ,
Universidade de Besançon , Diffusion Les Belles Lettres, 1992). O visa , nem os problemas que levanta .
pensamento de Gramsci nã o pode ser resumido em algumas linhas.
Acima de tudo , talvez , a an á lise da diferen ça intelec¬
Indicamos quatro temas estreitamente interdependentes: 1) absolutamen
te estranho à tradi çã o do “ materialismo dialético ” , Gramsci
¬
tual , com a condiçã o de ser conduzida no registro do
vê no
marxismo uma “ filosofia da praxis ” , que ele interpreta primeiramente , conhecimento ao mesmo tempo que no da organiza çã o e
no momento da Revolu ção Russa de 1917 e do movimento dos ’’conselhos do poder, esclarece , em profundidade , a natureza dos
operá rios" de Turim , como uma afirmação da vontade contra o fatalismo
das organizações socialistas, e mais tarde como uma “ ciência da pol ítica ,
processos de domina çã o . N ã o é surpreendente que , de um
” modo ou de outro , a maioria dos marxistas aut é nticamente
de inspira çã o maquiavé lica , destinada a construir os elementos da
hegemonia dos produtores; 2 ) esse tema est á ligado a um “ alargamento fil ósofos (lembremos figuras t ã o diferentes como Gramsci ,
da “ teoria marxista do Estado", que não suprime a determina çã o de
”
Althusser, Alfred Sohn- Rethel)11 tenha sempre feito da
classe , mas insiste sobre a complementariedade da rela çã o de forças e “ solu çã o ” hist ó rica dessa diferen ça uma característica fun ¬
do “ consenso” obtido através das instituições culturais; 3) compreende se
assim que Gramsci tenha consagrado toda uma parte de seu programa
- damental do comunismo . De fato, Marx n ão se contentou
de estudos inacabado a uma história e a uma aná lise da funçã o dos em inverter as teses hegelianas e atribuir aos intelectuais
diferentes tipos de intelectuais, na perspectiva de uma reforma do la ço uma fun çã o de submissã o e de divisã o ( de “ inculca çã o
“ orgâ nico” que os une à s massas, quando uma classe social nova est á
ideol ógica ” , como se dizia no movimento de 1968) . Mas
ascendente; 4 ) essa reflexão critica comporta também uma dimensão
ética , nã o só pela procura de uma moral ou de um senso comum ele remontou at é a descri çã o da diferen ça antropol ógica
“ ” dos
trabalhadores, que os libere da hegemonia burguesa , mas também pela que sust é m a sua atividade e a autonomiza çã o de sua
formula çã o e ativa ção de um princ ípio regulador da a çã o pol ítica , fun çã o.
fundamentalmente leigo , dirigido contra toda ideologia messiâ nica
(“ otimismo da vontade, pessimismo da inteligê ncia ).
”
Essa diferen ç a n ã o é natural (embora se inscreva
incontestavelmente em fun ções distintas do organismo ) ,
-
pois ela se fornia e se transforma na hist ó ria . Mas ela
da sua atividade reflexiva . O Estado, que para Hegel é “ em també m n ã o é institu ída , no sentido de que resultaria de
si” universal, “ libera ” os intelectuais (da cren ça , das formas simples decis ões pol íticas (ainda que seja ampliada , utili ¬
menos no mesmo nível de generalidade que a diferença sito , o termo massa, que ele volta contra o uso desdenhoso
dos sexos , ou a diferen ça entre vida urbana e vida que fazem dele os intelectuais burgueses . Assim como a
camponesa . Incorporada a toda organiza çã o social do massa prolet á ria é fundamentalmente “ expropriada ” ( eigen -
trabalho , ela divide todas as pr á ticas e todos os indivíduos tumslos) , ela é fundamentalmente “ desprovida de ilusões ”
consigo mesmos ( pois uma prá tica no sentido completo sobre a realidade ( illusionslos) , fundamentalmente exterior
do termo , práxis e poiesis, n ão pode ser nem puramente ao mundo da ideologia , cujas abstra ções e representa ções
/ corporal / nem puramente /intelectual mas deve ser uma
^
complementaridade , uma reciprocidade dos dois aspectos) .
Caso contr á rio , os “ intelectuais ” especializados (professo
res, publicit á rios, eruditos , técnicos, administradores, pe
¬
¬
ideais da rela çã o social para ela “ nã o existem ” . O Manifesto
repetirá a mesma coisa , ilustrando- a com frases que se
tornaram célebres , mas que parecem hoje rid ículas : “ Os
operá rios não têm pá tria ” , e assim també m são despren ¬
ritos . . . ) , n ã o poderiam tornar-se instrumentos de uma
didos das cren ças , esperan ças ou hipocrisias da religi ã o ,
desigualdade permanente , de uma hierarquia institucional
da moral e do direito burgu ês .. . Pela mesma raz ã o , eles
dos “ dominantes ” e dos “ dominados” ( ou , como dirá depois
Gramsci , dos “ governantes” e dos “ governados” ) . Isso quer n ã o poderiam ter “ ideólogos” , que se propusessem a
instru í-los ou a gui á -los , ou , como dirá depois Gramsci ,
dizer que eles não poderiam fazer dessa desigualdade ,
durante a mais longa parte da história , uma condiçã o “ intelectuais orgâ nicos ” ( o pró prio Marx n ão se considerava
material do trabalho , das trocas , da comunica çã o , da certamente como tal —nã o sem dificuldade crescente em
associa çã o . refletir a fun çã o de sua pró pria teoria na prá tica revolu ¬
conjuntura , que poriam em evidê ncia o que a constru çã o n á ria da sociedade inteira ) , sem a qual n ão h á marxismo,
de Marx ainda tinha de abstrato , at é mesmo de especula ¬ mas certamente de um proletariado “ classe universal ” . O
tivo , a despeito de seu esforço para encontrar a materia ¬ texto mais apadronante , a esse respeito , é O 18 Brumá rio
lidade da história . de Lu ís Bonaparte, j á citado . Seria necessá rio poder exa ¬
Na representa çã o que Marx faz do proletariado , a id é ia min á -lo detalhadamente . A procura de uma estrat égia da
de uma ideolngia do proletariado ( ou de uma “ ideologia classe operá ria diante da contra - revolu çã o é paralela a
prolet á ria ” , que ter á mais tarde o destino que se conhece ) uma nova an á lise da dist â ncia hist ó rica entre o que Marx
é evidentemente desprovida de sentido . O conceito de chama “ classe em si ” e a “ classe para si ” , o simples fato
proletariado n ão é tanto , na realidade , o de uma “ classe” das condições de vida an á logas e o movimento pol ítico
particular , isolada do conjunto da sociedade , mas o de organizado : n ã o como simples atraso da consciê ncia sobre
uma não -classe ) cuja forma çã o precede ¡mediatamente a a vida , mas efeito de tend ê ncias econ ó micas contradit órias .
70 A FILOSOFIA DE MARX
III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 71
Ele começou entã o a compreender que estas favorecem
ao mesmo tempo a unidade e a concorr ê ncia entre os O “ fetichismo da mercadoria ”
oper á rios . 12 O fato é que a experiê ncia imediata , na
Fran ça como na Alemanha ou na Inglaterra , ia revelar A teoria do fetichismo é exposta principalmente na pri ¬
canos ou imperiais ) , e at é mesmo das formas religiosas um dos pontos altos do trabalho filosófico de Marx ,
sobre o proletariado, ao mesmo tempo que a força dos completamente integrado à sua obra “ crítica ” e “ científica ” ,
aparelhos pol íticos e militares da ordem estabelecida . mas tamb é m uma grande constru çã o teórica da filosofia
Como conciliar a tese teórica de uma exterioridade moderna . Sua dificuldade é not ória , embora a id éia geral
radical entre as condiçõ es de produ çã o da ideologia e seja relativamente simples .
a condi çã o proletá ria , com a constata çã o de sua inter ¬ N ã o me deterei nas origens do termo “ fetichismo ” , na
penetra çã o cotidiana ? É not á vel que Marx nunca tenha rela çã o que ele mant é m com as teorias da religi ã o nos
invocado aqui uma noção implicitamente moral como a sécs. XVIII e XIX, nem no lugar que , pela sua retomada
da falsa consciê ncia ( mais tarde utilizada por Luk á cs e do termo , Marx ocupa na história da questã o do fetichismo
outros), e que nunca ele tenha falado de ideologia prole ¬ em geral.14 Por falta de espa ço, també m n ã o discutirei a
t á ria ou de consciê ncia de classe . Mas a dificuldade fun çã o que esse desenvolvimento cumpre na arquitetura
continuou a existir para ele , e acarretou o recalque do de conjunto do Capital, e especialmente na explica çã o da
pró prio conceito de ideologia . forma “ invertida ” sob a qual , nos diz Marx , os fen ô menos
Um outro fator operou no mesmo sentido: a dificuldade de estrutura do modo de produ çã o capitalista (que reme¬
que Marx tinha de definir como “ ideologia ” a economia tem todos ao modo pelo qual o aumento d è valor do
política burguesa, principalmente a dos clássicos: Quesnay , capital se alimenta de “ trabalho vivo” ) são percebidos na
Smith , Ricardo. Efetivamente , esse discurso teó rico de “ superf ície ” das rela ções econ ó micas (no mundo da con ¬
forma “ científica ” e claramente destinado a fundar a política corrê ncia entre as diferentes formas de capitais , o lucro,
liberal dos propriet á rios do capital n ã o ca ía diretamente a renda , os juros e suas respectivas taxas ).15 Mas procurarei
nem sob a categoria da ideologia (caracterizada pela explicar como se liga ao texto de Marx a dupla posteridade
abstra çã o e pela inversã o do real ), nem sob a de uma que podemos lhe atribuir hoje: por um lado , a id é ia da
histó ria materialista da sociedade civil , pois repousava , ao reificaçã o do mundo burgu ês nas formas da “ mercantili-
contr á rio , sobre o postulado da eternidade das condiçõ es za çã o ” generalizada das atividades sociais; por outro lado,
de produ ção burguesas (ou da invariâ ncia da rela çã o o programa de uma aná lise do modo de sujeiçã o implicado
capital /sal á rio). Mas é precisamente a necessidade de sair no processo de trocas , que encontra seu resultado no
desse dilema que conduziria Marx a mergulhar durante marxismo estrutural .
anos na “ crítica da economia pol ítica ” , alimentada pela O “ fetichismo da mercadoria ” , como nos diz Marx ,
leitura intensiva de Smith , Ricardo , Hegel , Malthus , dos consiste no fato de que “ uma rela çã o social determinada
estat ísticos e dos historiadores . .. E esta , por sua vez , ¿os pró prios homens [ ...] toma para eles a forma fantas ¬
desembocaria em um conceito novo , de fetichismo co ¬ magórica de uma rela ção eplxe coisas” . Qu ã mHa? “ As-
mercial. Tslãçõês sociais que seus trabalhos privados mant ê m apa ¬
recem aos produtores [ . . .] como relações impessoais entre
pessoas e rela ções sociais entre coisas impessoais . 1* De
”
72 A FILOSOFí A DI: MARX III ./ IBIBOIíGXGíIA ®U FETICHISMO: O PODER E A SlIJEIÇÀO 73
que “ coisas ” e de que rela ções “ pessoais ” e “ impessoais ” apresentam ” ) e a funçã o da moeda. É como um preç o ,
se trata ? logo urna relação de troca ,, pelo menos virtual , com uma
As mercadorias, produzidas e trocadas , que sã o objetos quantidade de dinheiro , que se apresenta o valor de troca .
materiais ú teis e que , como tal , correspondem a necessi ¬ Essa rela ção n ã o depende fundamentalmente do fato de
dades individuais ou coletivas , possuem també m uma outra que o dinheiro é atualmente gasto ou recebido, ou
qualidade , imaterial mas nã o menos objetiva: seu valor de simplesmente representado por um signo (moeda de cré ¬
troca Cgeralmente expresso na forma de um preço, isto é, dito , papel- moeda de curso legal etc. ): em ú ltima aná lise,
como uma certa soma de dinheiro). Essa qualidade , que e principalmente no mercado mundial (ou universal) que
lhes é individualmente atribuída , é portanto imediatamente Marx diz ser o verdadeiro espaço de realizaçã o da relaçã o
quantificá vel . Assim como um automóvel pesa 500 quilos, mercantil, é preciso que a referência monetá ria exista e
vale 100.000 francos. Naturalmente, para uma determinada
seja “ verificá vel” . A presença do dinheiro, diante das
mercadoria , essa quantidade varia no tempo e no espaço,
mercadorias, como condição de sua circula çã o, acrescenta
em fun ção da concorrência e de outras flutua ções, a mais
um elemento ao fetichismo, e permite compreender o uso
ou menos longo prazo. Mas, longe de dissipar a aparência
desse termo. Se as mercadorias (alimentos, roupas , máqui¬
de uma relação intr ínseca entre a mercadoria e o seu valor,
essas varia ções lhe conferem , antes, uma objetividade nas, matérias- primas, objetos de luxo, bens culturais e até
suplementar: os indivíduos vã o voluntariamente ao mer¬ o corpo das(os) prostitutas(os) , em suma todo o universo
cado , mas n ã o é em virtude de suas decisões que, no dos objetos humanos produzidos ou consumidos) parecem
mercado , os valores (ou os preços) das mercadorias ter um valor de troca , o dinheiro , por sua vez , parece ser
flutuam ; ao contrá rio , é a flutuação dos valores que o próprio valor de troca , e assim possuir intrinsecamente
determina as condiçõ es nas quais os indiv íduos tê m acesso o poder de comunicar às mercadorias que “ entram em
à s mercadorias . É pois nas “ leis objetivas ” da circulaçã o rela ção com ele ” essa virtude ou poder que o caracteriza .
das mercadorias, regulada pelos movimentos de valor, que
'
É por isso que ele é procurado por si mesmo, ó,entesouraif
os homens devem procurar os meios de satisfazer suas considerado como objeto de uma necessidade universal
necessidades e regulamentar entre si as rela ções de servi¬ que é acompanhada de temor e respeito , de desejo e
ços m ú tuos , de trabalho ou de comunidade , que passam repulsa ( auri sacra fames: “ a maldita sede do ouro ” ,17 dizia
por rela ções econ ó micas ou dependem delas. Dessa obje¬ o poeta latino Virg ílio em um célebre verso citado por
tividade elementar, que aparece logo na rela ção simples Marx , e o Apocalipse identifica claramente o dinheiro à
com as mercadorias no mercado , Marx fará o ponto de Besta , isto é , ao diabo) .
partida e o modelo da objetividade dos fen ô menos eco ¬ Essa rela çã o do dinheiro com as mercadorias , que
n ó micos em geral e suas leis , às quais se consagra a “ materializa ” o valor destas no mercado, é , evidentemente ,
economia pol ítica , e que ela sempre compara , precisamen ¬ suportado por atos individuais de venda e compra , mas é
te —seja explicitamente , pelo uso de conceitos mec â nicos
ou din â micos , seja implicitamente , pelos m é todos mate ¬
completamente indiferente à personalidade dos indiv íduos
que os efetuam , perfeitamente intercambiá veis a esse
má ticos de que ela se serve
da natureza .
— com a objetividade das leis respeito . Pode-se portanto pensar essa rela çã o seja como
efeito de um poder “ sobrenatural ” do dinheiro, que cria
Evidentemente , h á uma rela çã o imediata entre esse e anima o movimento das mercadorias , encarnando o seu
fen ô meno ( no sentido de que é assim que as coisas “ se pró prio valor imperec ível no corpo perec ível das merca -
111 / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODEIç E A SUJEIçãO 75
74 A FILOSOFIA DE MARX
: seus valores , proporções nas quais elas se trocam , por
Karl Marx: “ O cará ter fetiche da mercadoria meio de instituições sociais.
e seu segredo ” Na verdade , essas duas representa ções sã o simé tricas
( O capital, livro I , cap . I , 4 )
e interdependentes : elas se desenvolvem juntas e corres¬
“ De onde vem ent ã o o car á ter enigmá tico do produto do trabalho , logo
pondem a dois momentos da experiê ncia que os indiv í¬
que ele assume a forma mercantil? Evidentemente , dessa pró pria forma . duos, enquanto “ produtores- trocadores” , fazem dos fen ô¬
A identidade dos trabalhos humanos assume a forma material da menos de circula çã o e de mercado , que constituem a forma
objetividade de valor idé ntico dos produtos do trabalho. A medida do geral de toda a vida - econ ó mica . É o que Marx tem em
dispendio de força de trabalho humano por sua dura çà o assume a forma
de grandeza de valor dos produtos do trabalho . Enfim , as rela ções dos
vista quando descreve a percepçã o do mundo das merca ¬
produtores , nas quais sâ o praticadas essas determina ções sociais de seus dorias como a de realidades “ sens íveis supra -sens í veis ” ,
trabalhos , assumem a forma de uma relaçã o social entre os produtos nas quais coexistem estranhamente os aspectos de natural
do trabalho. e de sobrenatural , e quando declara a mercadoria como ,
r ísticas sociais de seu próprio trabalho como caracter ísticas objetivas rindo diretamente a compara çã o da linguagem econ ó mica
dos próprios produtos do trabalho, como qualidades sociais que essas com o discurso religioso) . O mundo moderno , ao contr á rio
coisas possuiriam por natureza: ela lhes devolve assim a imagem da do que dir á depois Max Weber, n ã o est á “ desencantado” ,
rela çã o social dos produtores com o trabalho global , como uma rela çã o
mas encantado, na mesma medida em que é o mundo dos
social existente fora deles, entre objetos. É esse mal -entendido que faz
com que os produtos do trabalho se tornem mercadorias, coisas sensíveis objetos de valor e dos valores objetivados .
supra -sens íveis, coisas sociais . Do mesmo modo, a impressã o luminosa
de uma coisa sobre o nervo ótico não se dá como excita çã o do nervo
ótico propriamente dito, mas como forma objetiva de uma coisa no
exterior do olho. Simplesmente, na visã o, há efetivamente luz , que é Necessidade da aparência
í
projetada de uma coisa , o objeto exterior, para uma outra , o olho. É
uma rela çã o f ísica entre coisas f ísicas. Ao passo que a forma mercantil Estando assim descrito o fen ômeno , qual é ent ã o o objetivo
e a rela çã o de valor dos produtos do trabalho na qual ela se expõe de Marx ? É duplo . Por um lado , através de um movimento
nã o tem absolutamente nada a ver nem com a sua natureza f ísica nem
com as rela ções materiais resultantes . É apenas a rela çã o social deter ¬ que se aparenta a uma desmistifica çã o ou desmitiza çã o ,
minada dos próprios homens que toma aqui , para eles, a forma trata -se de dissolver esse fenô meno , de mostrar nele uma
fantasmagórica de uma rela çã o entre coisas. De modo que , para apar ê ncia que repousa , em ú ltima an á lise , sobre um
encontrar uma analogia , devemos entrar nas zonas nebulosas do mundo mal -entendido . Deveremos portanto remeter os fen ô menos
religioso. Nesse mundo, os produtos do cé rebro humano parecem ser que acabam de ser evocados ( valor de troca como pro ¬
figuras aut ó nomas, dotadas de uma vida própria , mantendo rela ções
uns com os outros e com os humanos. Assim acontece no mundo priedades dos objetos, autonomia do movimento das
mercantil com os produtos da mã o humana . Chamo a isso fetichismo, mercadorias e dos preços) a uma causa real, que foi
fetichismo que adere aos produtos do trabalho logo que eles sã o mascarada ou cujo efeito foi invertido (como em uma
produzidos como mercadorias , e que, por isso , é insepará vel da produ çã o câ mara escura ). Essa an á lise se abre verdadeiramente para
mercantil . ” a cr ítica da economia pol í tica , pois , no mesmo momento
em que esta , movida por um projeto de explica çã o
cient ífica ( Marx pensa , evidentemente , nos representantes
dorias ; seja , ao contr á rio , como efeito “ natural ” da rela çã o da escola cl á ssica : Smith e principalmente Ricardo , que
das mercadorias entre si , que institui uma expressã o de
76 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA ou FETICHISMO: o PODER E A SUJEIçãO 77
ele distingue cuidadosamente dos “ apologistas ” do capital ) , Ao primeiro movimento da crí tica , que consiste em
se propõe a resolver o enigma das flutua ções do valor, dissolver a aparência de objetividade do valor de troca ,
reduzindo-o a urna “ medida invari á vel ” , que é o tempo de deve-se ent ã o acrescentar outro , que na verdade o condi ¬
trabalho necess á rio à produ çã o de cada mercadoria , adensa ciona , e mostra a constitui çã o da aparê ncia na objetivi ¬
o mistério, considerando essa rela çã o como um fen ô meno dade. O que se apresenta como uma rela çã o quantitativa
natural (e por conseguinte eterno). Isso se deve a que a dada é , na realidade , a expressã o de uma rela çã o social :
ciência económica , que procura a objetividade dos fenôme ¬
unidades independentes umas das outras só podem deter ¬
nos, de acordo com o programa de pesquisa do Iluminis- minar o grau de necessidade de seus trabalhos , a parte
mo , concebe a aparência como um erro ou uma ilusã o, de trabalho social que deve ser consagrada a cada tipo
um defeito da representaçã o, que se poderia eliminar pela de objeto ú til , a posteriori , ajustando a sua produ ção à
observa ção (no caso, antes de tudo, pela estatística ) e pela “ demanda ” . É a prá tica das trocas que determina as
dedu ção. Explicando os fenômenos econ ómicos por leis, proporções, mas é o valor de troca das mercadorias que ,
o poder de fascínio que eles exercem deveria entã o ser aos olhos de cada produtor, representa de modo inverso,
dissipado. Do mesmo modo, Durkheim , meio século de¬ como uma propriedade das “ coisas” , a rela çã o que o seu
pois, falará de “ tratar os fatos sociais como coisas” . pró prio trabalho mantém com o de todos os outros
Ora , o fetichismo não é — como seria , por exemplo,
uma ilusã o de ótica , ou uma crença supersticiosa — um
produtores. Assim sendo , é inevitável que , aos olhos dos
indiv íduos, seu trabalho apareça “ socializado” ptela “ forma
fenô meno subjetivo, uma percepçã o falsa da realidade . Ele valor ” , em vez de que esta se mostre como a expressã o
constitui , antes, o modo pelo qual a realidade (uma certa de uma divisã o social do trabalho. Da í a fó rmula que citei
forma ou estrutura social ) nã o pode não aparecer. Esse acima : “ As rela ções sociais que seus trabalhos privados
“ aparecer” ativo (ao mesmo tempo Schein e Erscbeinung , mant ê m aparecem aos produtores [...] como relações im ¬
isto é um engodo e um fen ômeno ) constitui uma media çã o pessoais entre pessoas e rela ções sociais entre coisas
ou fun çã o necessá ria , sem a qual , em condições históricas impessoais. ”
dadas , a vida da sociedade seria simplesmente impossível . A contraprova é fornecida por uma experiê ncia de
Suprimir a aparê ncia é abolir a relação social . É por isso pensamento a que Marx procede . Trata -se de comparar a
que Marx d á particular import â ncia à refuta çã o da utopia maneira pela qual a reparti çã o do trabalho socialmente
disseminada entre os socialistas ingleses e franceses do necessá rio se efetua nos diferentes “ modos de produ çã o ” :
começ o do see . XIX (e que reaparecer á v á rias vezes) da uns passados ( como nas sociedades primitivas fundadas
supressã o, do dinheiro , que cederia o lugar a bónus de sobre a auto-subsistê ncia , ou na sociedade medieval ,
trabalho ou a outras formas de redistribuiçã o social , mas fundada sobre a servid ã o) , outros imaginá rios ( como na
n ão se acompanharia de nenhuma transforma çã o no prin ¬ “ economia ” dom é stica de Robinson Crusoé em sua ilha )
cípio de troca entre unidades de produ çã o privadas. A ou hipotéticos ( como em uma sociedade comunista do
estrutura de produ çã o e de circula çã o , que confere um futuro na qual a repartiçã o do trabalho seria consciente ¬
mente planejada ). Ora , ou essas rela ções de produ çã o sã o
valor de troca aos produtos do trabalho, forma um todo,
livres e igualit á rias , ou sã o opressivas , fundadas sobre
e a existê ncia da moeda , forma “ desenvolvida ” do equi ¬
rela ções de forças , mas em todos os casos , “ as rela ções
valente geral das mercadorias, é uma de suas fun ções
sociais que as pessoas mantê m entre si em seus trabalhos
necessá rias . aparecem , pelo menos , como suas pr ó prias rela ções pes-
78 III / IDEOLOGIA ou FETICHISMO : O PODER E A SUJEIçãO 79
A FILOSOFIA DE MARX
soais , e n ã o se disfar çam como rela ções sociais das coisas, mercadorias expressassem nela o seu pró prio valor ; e
produtos do trabalho” . Em outros termos , essas sociedades reciprocamente , de modo que ela pró pria substitu ísse
,
Reciprocamente , ela explica em boa parte o descr é dito perder a import â ncia filosófica do texto de Marx , e que
comum que os atinge a partir do momento em que a noçã o explica a sua impressionante posteridade . Esta se divide
de valor-trabalho é recusada pela economia oficial . em orienta ções diferentes , mas que repousam todas sobre
A outra fundamenta a crítica da economia pol ítica : é a constata çã o de que n ã o existe teoria da objetividade sem.
a id é ia de que as condições que tornam necessá ria a teoria da subjetividade . Repensando a constituiçã o da
objetiva çà o “ fetichista ” da rela çã o social s ã o integralmente objetividade social , Marx ao mesmo tempo revolucionou
históricas. Elas surgem com o desenvolvimento de uma virtualmente o conceito de “ sujeito” . Ele introduziu , por ¬
produ çã o “ para o mercado” , cujos produtos só atingem tanto , um elemento novo na discuss ã o das rela çõ es entre
sua destina çà o final ( o consumo , sob todas as suas formas ) “ sujei çã o ” , “ subjuga çã o ” e “ subjetividade ” .
atrav és da compra e da venda . Esse é um processo milenar, Deve -se lembrar que , na tradiçã o do idealismo alem ã o ,
que só lentamente atinge um ramo de produ çã o depois desde Kant , o sujeito era , antes de tudo , pensado como
do outro, um grupo social depois do outro . Com o uma consciê ncia universal , ao mesmo tempo situada acima
capitalismo , entretanto (e segundo Marx , o elemento de todos os indiv íduos particulares (da í a possibilidade de
decisivo é a transforma çã o da pr ó pria for ç a de trabalho identificá -lo com a Razã o da Humanidade ) e presente em
em mercadoria , e por conseguinte o assalariamento ) , ele cada um deles: o que Foucault chamaria , mais tarde , o
se universaliza rá pida e irreversivelmente . Atinge-se um “ duplo emp í rico- transcendental ” ,18 e que vimos Marx de ¬
ponto de n ã o- retorno , o que nã o quer dizer um ponto nunciar, nas Teses sobre Feuerbach , como uma simples
que nã o possa ser superado: a ú nica progressão que variante do essencialismo . Essa consciê ncia “ constitui o
continua possível, doravante , consiste no planejamento da mundo ” , isto é , torna -o intelig í vel , por meio de suas
produ çã o , isto é , na retomada , pela sociedade ( ou pelos
trabalhadores associados), do “ controle social ” do dispên ¬
pr ó prias categorias ou formas de representa çã o
espa ço, o tempo , a causalidade ( Crítica da razã o pura ,
o —
dio de trabalho , cujas condi ções técnicas são preparadas 1781 ) . Aqu é m dessa constituiçã o subjetiva do mundo , Kant
justamente pela quantifica çã o universal da economia . A devia deixar de lado o dom í nio das “ ilusões necessá rias ”
transparê ncia das rela ções sociais nã o será ent ão uma da metaf ísica , ou do pensamento puro , sem refer ê ncia na
condiçã o espont â nea, como nas sociedades primitivas ( nas experiê ncia . Elas eram como que um preço inevit á vel da
quais Marx explica que ela tem como contrapartida a capacidade da razã o para forjar abstra ções . Além , esca ¬
representa çã o m ítica das for ças da natureza
à
—sua
ma is ou
maneira
pando à s limita çõ es da natureza e da experiê ncia , ele
menos o que Auguste Comte chamava situava uma “ raz ã o pura prá tica ” , isto é , uma liberdade
“ fetichismo” ) , mas será uma constru çã o coletiva . O feti ¬
moral incondicionada ( mas ainda mais implacavelmente
chismo da mercadoria aparecer á ent ã o como uma longa submetida a lei interior do dever, o famoso “ imperativo
transiçã o entre a domina ção da natureza sobre o homem categ ó rico ” ), aspirando à constituiçã o de um “ reino dos
e a domina çã o do homem sobre a natureza . fins ” , fundado sobre o respeito m ú tuo das pessoas. E
mesmo quando Hegel , recusando a separa çã o entre o
mundo natural e o mundo moral , mostrava na experi ê ncia
Marx e o idealismo hist ó rica o verdadeiro lugar da experi ê ncia da consci ê ncia ,
esse esquema da constitui çã o do mundo permanecia de ¬
Do estrito ponto de vista da crítica da economia pol ítica , terminante . Ele permitia compreender por que , afinal , o
poder íamos parar por aqui . Mas , como já disse , isso seria esp í rito ou a raz ã o que se perdeu ou alienou nas formas
82 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 83
da natureza e da cultura , em suas diversas experiê ncias, poderia ser uma confusão) dos três pontos de vista , que
apenas retorna para si mesmo, para a contempla çã o de correspondem respectivamente à ciê ncia (inteligibilidade
sua própria estrutura , de sua pró pria “ l ógica ” . dos fen ô menos) , à metaf ísica ( ilusões necessá rias do pen ¬
Ora , com a exposiçã o de Marx , através de um desvio samento puro) e à moral ou “ raz ã o prá tica ” ( imperativo
aparentemente contingente pela aná lise das formas sociais da conduta ). Mas a comparaçã o ressalta a originalidade
da circula çã o mercantil , e a crítica de sua representa çã o dessa teoria da constituiçã o do mundo em rela çã o à s que
econ ómica , a questã o da objetividade encontrava-se intei- a precederam na hist ó ria da filosofia (e que , é claro , Marx
ramente repensada . O mecanismo do fetichismo é, em conhecia intimamente ): é que ela n ã o procede da atividade '
certo sentido , uma constituiçã o do mundo : o mundo social ,
de nenhum sujeito , de qualquer forma de nenhum sujeito
estruturado pelas pe ía ções de trocá , que representa evi ¬ que seja pens á vel a partir do modelo de uma consciê ncia . J
^
dentemente o essencial da “ natureza ” , na qual vívem , Em contrapartida , ela eõ nstitui sujeitos /bu JEQTrnàsTde (^
pensam e agem hoje os individuos humanos. É por isso subjetividade e de consciê ncia , no próprio campo da /
que Marx escreve que “ as categorias da economia burgue¬ objetividade . sua posi çã o “ transcendente ” ou “ transcen ¬
sa ” s ã o “ formas de pensamento que tê m uma validade dental ” , a gubjefividade passou para uma posiçã o de efeito , -
social e logo uma objetividade ” .19 Antes de formular regras
de resultado do processo social .
ou imperativos , elas exprimem uma percepção dos fen ô¬
Ó ú nico “ sujeito ” de que fala Marx é um sujeito prá tico,
menos , da maneira pela qual as coisas “ estã o a í” , sem que
seja possível modificá -las à vontade .
m ú ltiplo , anó nimo , e por defini çã o n ã o-consci.ente de si
Mas nessa percepção combinam-se imediatamente o -
mesmo . Na verdade um não-sujeito , isto é , a sociedade,
real e o irngginarip (o que Marx chama o “ supra-sensível ” , como o conjunto das atividades de produ çã o , de troca , de
a “ fantasmagoria ” das mercadorias autó nomas , que domi ¬ consumo , cujo efeito combinado é percept ível para cada
nam seus produtores) , ou ainda o dado dos objetos de um fora dele , como propriedade “ natural ” das coisas . E é
experiê ncia com a norma de comportamento que eles esse n ão-sujeito ou esse complexo de atividades que
produzem . O cá lculo econ ómico , fundado sobre a camada produz representações sociais de objetos , ao mesmo tempo
imensa das medidas , contas e avalia ções que os indiv íduos que produz objetos represent á veis . A mercadoria , assim
mergulhados no mundo das mercadorias efetuam cotidia ¬ como o dinheiro , esperando o capital e suas diversas
namente , ilustra admiravelmente essa dualidade : já que ele formas, é eminentemente uma representa çã o ao mesmo
repousa ao mesmo tempo sobre o fato de que os objetos tempo que um objeto, é um objeto já sempre dado na
econ ó micos sã o sempre jã quantificáveis ( “ é assim mesmo ” , forma de uma representa ção .
é a natureza deles) , e sobre o imperativo social de Mas , vamos repetir, se a constituiçã o da objetividade
submetê-los (e com eles as atividades humanas que os no fetichismo nã o depende do dado prévio de um sujeito ,
produzem ) , a uma quantifica çã o ou racionaliza çã o sem de uma consciê ncia ou de uma razã o, por outro lado ela
fim , transpondo todo limite fixado previamente , seja ele constitui sujeitos , que s ão parte da pró pria objetividade ,
“ natural ” ou “ moral ” . isto é , eles s ão dados na experiê ncia ao lado das “ coisas” ,
das mercadorias , e em relaçã o com elas. Esses sujeitos ,
Génese da subjetividade n ã o constituintes mas constitu ídos , sã o simplesmente os
t
“ sujeitos econó micos” , ou mais exatamente todos os indi ¬
Do ponto de vista do idealismo cl á ssico , poderia parecer v íduos que , na sociedade burguesa , sã o primeiramente
que Marx procedeu simplesmente á uma reuniã o (que sujeitos econ ó micos ( vendedores e compradores , logo
84 A FILOSOFIA DF. MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO , O PODER E A SUJEIçãO 85
Luk ács
força de trabalho — uma impressionante “ fantasmagoria ” ,
diga -se de passagem , mas que , també m ela , tornou -se
A longa c dramá tica carreira de Luká cs Gyõ rgy ( nascido cm 1885, em absolutamente “ natural ” ) . A invers ã o operada por Marx é , r;
Budapeste, de nobreza judaica , també m se fez chamar Georg [von ] pois, completa : sua constitui çã o do mundo n ã o é obra de
Luk á cs e escreveu toda a sua obra em alemã o) se divide em quatro um sujeito , ela é uma g é nese da subjetividade ( uma forma
grandes períodos. Na juventude, estudou filosofia e sociologia na de subjetividade hist ó rica determinada ) como parte e
Alemanha com os neokantianos e Max Weber, e desenvolveu uma estética
inspirada pelo “ romantismo anticapitalista ” ( L’Á tne et les formes, tr . fr. contrapartida do inundo social da objetividade .
Gallimard, Paris, 1966), ao mesmo tempo que um firme interesse pela A partir da í , dois prolongamentos eram possíveis , e
m ística judaica ( cf . Michael Lõwy , Redemption et utopie . Le judaisme ambos foram tendencialmente propostos.
libertaire en Europe céntrale, Paris, 1988 ). Tornou -se marxista durante
a 1 Guerra Mundial , sofrendo sobretudo forte influ ê ncia de Rosa
Luxemburgo e do movimento “ spartakista ” , o que o levou a participar
da revoluçã o h ú ngara dos “ conselhos” , dos quais foi “ comissá rio de A “ reificação”
cultura popular" (1919). Sua antologia História e consciência de classe,
publicada em 1923, foi a tentativa mais impressionante de reatualizar a
ideia hegeliana de uma sí ntese dialética da objetividade e da subjetivi¬
O primeiro é ilustrado pelo livro de Luk á cs, escrito entre
dade, integralmente transposta para o elemento da “ consciência dc 1919 e 1922 , Hist ória e consciência de classe, em que se
classe” e da pr á tica revolucioná ria do proletariado , que é o resultado encontra exposta a grande ant ítese entre “ reifica çã o ” e
da hist ó ria . Condenado pelo marxismo oficial (ao mesmo tempo que a “ consci ê ncia do proletariado ” . 20 É simultaneamente uma
obra exatamente contemporâ nea e em muitos aspectos compará vel de
Karl Korsch , Marxisme et philosophic, tr. fr., Paris , Éd . de Minuit , 1964),
interpreta ção genial e uma extrapola çã o do texto de Marx ;
esse livro, embora renegado por seu autor, se tornaria a fonte aberta que ressalta seu lado rom â ntico (sem d ú vida alguma , em
ou oculta de boa parte do “ marxismo cr ítico” ocidental . Depois de sua razã o de outras influ ê ncias sofridas por Luk á cs, particu ¬
instala çã o em Moscou no in ício dos anos 30, e de sua volta à Hungria larmente as de Georg Simmel , autor de Filosofia do
socialista em 1945, Luká cs desenvolveu uma obra mais “ ortodoxa ” ,
erudita e sistemática , que engloba a teoria do “ realismo crítico” ( Le
dinheiro, 1900, e Max Weber, e de sua pró pria orienta çã o
roman historique, tr. fr., Paris , Payot , 1972), a história da filosofia ( Le de juventude ) . No fetichismo, Luk á cs l ê uma filosofia total
jeune Hegel , Sur les rapports de la dialectique el de l 'économie, tr. fr., (ao mesmo tempo uma concepçã o do conhecimento , da
Paris , Gallimard , 1981 , ) , a polémica pol ítico-filosófica ( La destruction pol í tica e da hist ó ria : a categoria de totalidade é , ali á s ,
ele la raison, tr . fr., Paris, L’ Arche , 1962, estudo sobre o irracionalismo
na filosofia alem ã e de seu papel na prepara çã o intelectual do nacio ¬
apresentada por Luk á cs como a categoria t ípica do modo
nal-socialismo ) . Aderiu em 1956 à revolu çã o nacional dirigida por Nagy de pensamento dial é tico , por oposiçã o ao pensamento
e , a partir de entã o, foi objeto de uma estrita vigilâ ncia policial . As “ anal ítico ” do entendimento abstrato , cuja g é nese , preci ¬
duas grandes obras de seu último período sã o a Estética ( 1963) e samente , a teoria da reifica çã o permite pensar ).
principalmente a Ontologia do ser social ( publicado depois de sua morte
em 1971), em que a “ consciê ncia de si do género humano” é estudada
Renegada por seu pr ó prio autor depois do refluxo da
como “ resolu çã o da rela çã o entre teleología e causalidade” , sobre o experiê ncia revolucion á ria dos anos 20 e sua pr ó pria
alicerce da aliena çã o e da desaliena çâ o do trabalho (cf . Nicolas Tertulian , adesã o ao marxismo ortodoxo da 111a Internacional , a teoria
artigo “ Ontologie de l’é tre social , in Dictionnaire critique du marxisme, lukacsiana da reifica çã o n ã o deixará de ter uma influ ê ncia
Paris, PUF, 2a ed . 1985 ) . consider á vel sobre a filosofia do séc . XX . Por um lado ,
ela estará na origem de boa parte dos marxismos críticos
propriet á rios , pelo menos de sua pró pria forç a de trabalho , do séc . XX , especialmente de muitos temas prediletos da
isto é , proprietários e vendedores de si mesmos enquanto escola de Frankfurt , de Horkheimer e Adorno, até Haber-
86 A FILOSOFíA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEI çã O 87
mas , que dizem respeito à crítica da “ racionalidade mo¬ a todas as atividades humanas , isto é , que a mercadoria
derna ” ou “ burguesa ” , mas també m à cr ítica da técnica e se torna o modelo e a forma de todo objeto social .
da ciê ncia como projetos de naturaliza çã o da historia e Assim , Luk á cs descreve um paradoxo : a racionalidade
do “ mundo vivido ” . Por outro lado , Lucien Goldmann mercantil estendida à ciê ncia est á fundamentada sobre uma
afirmou de maneirá convincente , em um curso publicado separa çã o é ntre o lado objetivo e o lado subjetivo da
posteriormente ,21 que referê ncias literais à Historia e cons¬ experiê ncia (o que permite subtrair o fator subjetivo —
ciência de classe aparecem nos ú ltimos pará grafos do livro
( inacabado) de Heidegger, Ser e tempo (1927) , consagrados
à historicidade : seria necessá rio ent ã o considerar que este
necessidades , desejos , consciê ncia —
ao mundo dos ob
jetos naturais e suas leis matem á ticas ) ; mas isso é apenas
¬
pletamente diferente , centrado nas questões do direito e estrutura comum ao fetichismo econó mico e ao fetichismo
do dinheiro, e desembocando assim no que chamar íamos jur ídico ( e moral ) é a equivalê ncia generalizada , que
hoje de an á lise das estruturas simbólicas ( terminologia de submete abstrata e igualmente os indiv íduos à forma de
que Marx n ã o poderia se servir, mas que permite explicitar uma circula çã o - ( circula çã o dos valores , circula çã o das
a quest ã o de suas descrições da dupla linguagem , que o obriga ções) . Ela supõe um código ou uma medida, ao '
universo das mercadorias “ fala ” : linguagem da equival ê n ¬ mesmo tempo materializada e idealizada , diante da qual
cia , da medida , formalizada pelo signo monetario, e a “ particularidade ” , e a necessidade individual devem se
linguagem da obriga çã o , do contrato , formalizada pelo apagar . Simplesmente , em um caso , a individualidade é
direito) . É a segunda posteridade filosófica de que falei. exteriorizada , ela se torna objeto ou val ò r, enquanto no
Citarei dois trabalhos bem diferentes por suas inten ções outro é interiorizada , torna -se sujeito ou vontade , o que
e pelas condições de sua reda çã o . O primeiro é o livro permite precisamente a cada uma completar a outra . Se ¬
do jurista sovié tico Pasukanis ( partid á rio do “ perecimento guindo esse caminho , n ã o se chega a uma teoria do sujeito
do Estado ” , executado durante o terror stalinista ), A teoria da hist ó ria , ou da passagem da economia ( mundo dos
geral do direito e o marxismo, publicado em 1924 , logo indiv íduos privados ) para a comunidade do futuro , como
quase ao mesmo tempo que o livro de Luk á cs . 22 Seu grande em Luk á c-s e seus sucessores. Mas podem -se encontrar em
interesse vem do fato de que Pasukanis parte novamente Marx as bases de uma an á lise dos modos de sujei çã o —
da aná lise marxiana da forma do valor, mas para conduzir
uma an á lise exatamente simétrica da constitui çã o do “ su ¬
o fetichismo econ ó mico- jurídico sendo um deles
se interessa pela rela çã o das pr á ticas com uma ordem sim ¬
que —
jeito de direito ” na sociedade civil - bruguesa ( para Pasuka ¬ bólica constitu ída na hist ó ria . Observemos aqui que essa
nis , que se inscreve , de certo modo, na tradiçã o do direito leitura de inspira çã o estruturalista ( que é naturalmente
natural , contra o positivismo jurídico , para o qual toda també m uma extrapola çã o) é de fato muito mais pr ó xima
norma jur ídica é apresentada pelo Estado , o fundamento que a de Luk á cs da cr í tica da ess ê ncia humana como quali ¬
do edif ício jur ídico é o direito privado , que se pode p ô r dade gen é rica “ alojada ” nos indiv íduos , formulada pelas
em correspond ê ncia , precisamente , com a circula çã o mer ¬ Teses sobre Feuerbach . Em contrapartida , ela obriga a con ¬
cantil ). Assim como as mercadorias individuais aparecem frontar Marx , passo a passo , com os resultados da antro¬
como portadoras de valor por natureza , assim també m os pologia cultural , da história do direito e da psican á lise .
indiv íduos que participam da troca aparecem como porta ¬
dores por natureza de vontade e de subjetividade . Assim
como h á urn fetichismo econó mico das coisas, h á um A questão dk> s “ direitos humanos”
fetichismo jurídico das pessoas, que na realidade formam
um ú nico , porque o contrato é a outra face da troca , e Como interpreta ções t ã o diferentes s ão poss íveis a partir
porque cada um é pressuposto pelo outro . O mundo vivido do mesmo texto? A resposta empenha toda a id é ia que se
e percebido a partir da expressã o do valor é na verdade faz da “ cr
ítica da economia pol í tica ” ern Marx , e ela exigiria
(e Marx indicou isso ; era até a raz ã o de sua releitura cr í tica acima de tudo que examin á ssemos de perto o uso duplo ,
da Filosofia do direito de Hegel , onipresente no Capital) profundamente anfibol ógico , como diriam os fil ósofos , que
um mundo econó mico- jur ídico . Marx fez do termo pessoa - por um lado , diante das “ coisas”
,
An á lises mais recentes , especialmente as de Jean -Jo- ( mercadorias e moeda ) constituidas pela circula çã o, as
seph Goux , 23 nos permitem esclarecer esse ponto . A pessoas sã o os individuos reais, preexistentes , empenhados
90 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 91
com outros ’ em uma atividade social de produ çã o ; por apresenta diante do outro como o portador do universal ,
outro lado , com essas mesmas “ coisas” , sã o fun ções da isto é , do poder de compra como tal . Homem “ sem
rela çã o de troca , ou ainda , como diz Marx , “ máscaras” qualidade particular” , qualquer que seja , aliá s, o seu status
jurídicas de que os indivíduos devem se revestir para poder, social ( rei ou lavrador), e a grandeza dos seus fundos
eles pr óprios , “ carregar ” as rela ções mercantis . Essa seria próprios (banqueiro ou simples assalariado) - - .
uma discussã o bastante t écnica e talvez fastidiosa . Mas
podemos indicar imediatamente uma grande implica çã o
pol ítica : é a questã o da interpreta çã o dos direitos humanos. Liberdade, igualdade, propriedade
A posição de Marx evoluiu visivelmente nesse ponto.
Em seus textos “ de juventude ” (antes de tudo o Manuscrito Essa liga ção privilegiada entre a forma da circula ção e o
de 1843 e a Questão judaica de 1844 , que conté m a famosa “ sistema da liberdade e da igualdade” é evidentemente
exegese das Declarações dos direitos do homem e do conservada no Capital. Sã o exatamente as “ propriedades” ,
cidad ã o francesas) combinam-se , como mostrou bem Ber ¬ Eigenschaften, atribu ídas pelo direito aos indiv íduos (a
trand Binoche , 24 uma inspira çã o oriunda de Hegel (crítica começar pela propriedade de ser propriet á rio, Eigent ú mer.
da abstra çã o metaf ísica dos “ direitos humanos ” , suposta - de novo o jogo de palavras fundamental que nos apareceu
mente existentes desde toda a eternidade e v á lidos em em Stirner) , requeridas para a circula ção das mercadorias
todas as sociedades) e uma inspira çã o oriunda de Babeuf como cadeia infinita de trocas “ entre equivalentes ” , e que
e dos comunistas igualit á rios ( cr ítica do cará ter burgu ês sã o universalizadas pelo discurso da pol ítica burguesa
do “ homem ” universal evocado pelas Declara ções, das como expressã o da essê ncia do homem . Pode-se portanto
quais todos os direitos remetem ao cará ter inaliená vel da sugerir que o reconhecimento geral desses direitos , em
propriedade e excluem o dever de solidariedade social ) . uma “ sociedade civil ” que pouco a pouco absorve o Estado ,
Os direitos humanos , isolados dos direitos do cidad ã o , “ verdadeiro É den dos direitos inatos do homem ” , onde “ só
aparecem ent ã o como a expressã o especulativa da cisã o reinam a Liberdade , a Igualdade , a Propriedade e Bent-
da essê ncia humana , entre a realidade das desigualdades ham ” 26 ( isto é , o princípio de utilidade individual ) , corres¬
e a ficçã o da comunidade . ponde à extensã o universal das trocas mercantis (o que
Essa an á lise evoluirá profundamente , sobretudo sob a os clássicos chamavam “ a grande rep ú blica comercial ” ).
influ ê ncia da polê mica de Marx com Proudhon e da crítica Mas o que interessa agora a Marx sã o as contradições
do liberalismo econ ó mico . Nos Grundrisse situa -se um que a universalidade dessa forma produz . Na esfera da
desenvolvimento importante , 25 que vê Marx identificar a produ ção, em que os trabalhadores assalariados entram
equa çã o da igualdade e da liberdade , cora çã o da ideologia por contrato , como livres vendedores de sua pró pria for ç a
dos direitos humanos ou da “ democracia burguesa ” , com de trabalho , ela exprime imediatamente uma rela çã o de
uma representa çã o idealizada da circula çã o das mercado ¬ forças : n ã o s ó pela s é rie indefinida das viol ê ncias que ela
rias e do dinheiro , que constitui a sua “ base real ” . A estrita recobre , mas enquanto meio de decompor o coletivo dos
reciprocidade da igualdade e da liberdade — ignorada produtores , entretanto tecnicamente requeridos pela gran ¬
pelas sociedades antigas e negada pelas sociedades me ¬ de ind ú stria , em uma justaposi çã o forçada de individuali ¬
dievais , enquanto as modernas v ê em , ao contr á rio , a dades separadas umas das outras . Trata -se mesmo , como
restaura çã o da natureza humana — pode ser
condições nas quais , no mercado , cada indiv íduo se
deduzida das se poderia dizer plagiando Rousseau , de “ forç ar os indi ¬
v íduos a serem livres ” . No mesmo momento , Marx descreve
92 A FILOSOFIA DE MARX
III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO: O PODER E A SUJEIçãO 93
o movimento do capital como o de um grande “ autó
mato” Do ídolo ao fetiche
independente dos indiv íduos , sempre “ sugando
” trabalho
excedente de modo a valorizar-se a si mesmo , e do qual
os capitalistas são apenas os instrumentos “ Podemos fazer o balan ço desse percurso que , seguindo a
conscientes” . oscila çã o do pró prio Marx , nos levou da ideologia ao
A referencia fundadora dos direitos
humanos à vontade fetichismo e à s suas diferentes possibilidades . de interpre ¬
livre dos indiv íduos é ent ã o anulada , exatamente
como ta çã o? Toda compara çã o deve , naturalmente , levar em
era anulada a utilidade social de cada trabalhador
parti ¬ conta ao mesmo tempo os elementos comuns à s duas
cular . Assim como o valor “ em si ” era projetado no corpo
do dinheiro , assim també m a atividade , a produtividade exposi ções , e a distâ ncia que os separa : por um lado, um
, texto provisório, nunca publicado ( mesmo que os vest ígios
a potência física e intelectual s ã o projetadas nesse
novo dessas formula ções se encontrem por toda a parte); por
Leviat ã que é o capital social , ao qual , de
modo quase outro lado, uma exposi çã o longamente trabalhada , insta ¬
“ teol ógico ” , elas parecem pertencer “ por natureza ”
, já que lada pelo autor em um ponto estratégico da sua “ crítica
os indivíduos só dispõem de tudo isso através dele 27
Entretanto, a ê nfase nessas contradições não pode da economia pol ítica ” . Entre os dois, uma reformula çã o
deixar de refletir sobre a significa çã o dos “ direitos completa do projeto “ cient ífico” de Marx , uma mudan ç a
huma ¬ de terreno, senã o de objetivo, uma retifica çã o de suas
nos ” , pois estes aparecem a partir de ent ã o ao
mesmo perspectivas de revolu çã o social , passando da imin ê ncia
tempo como a linguagem com a qual se mascara
a para a longa dura çã o .
explora çã o e como aquela na qual se exprime a
luta de O que é visivelmente comum à teoria da ideologia e
classe dos explorados: mais do que uma verdade ou do
que uma ilusã o , trata -se de uma causa. Por isso, O capital à do fetichismo é o fato de que elas tentam relacionar a
, condi çã o dos indivíduos isolados uns dos outros pela
em seu capítulo sobre “ A jornada de trabalho” , em
que extensã o universal da divisão do trabalho e da concorrência
sã o relatados os primeiros episódios da “ guerra civil entre
com a constitui çã o e o conte ú do das abstrações ( ou das
a classe capitalista e a classe operá ria ” , 2 8 ironiza a
inuti ¬ generalidades, dos universais) “ dominantes” na é poca
lidade do “ pomposo cat á logo dos direitos inaliená veis do burguesa . É ainda o fato de que elas procuram analisar a
homem ” , valorizando por contraste a “ modesta Magna contradi çã o interna que se desenvolve com o capitalist o
Charta de uma jornada de trabalho limitada pela lei ” , que entre a universalidade prá tica dos indiv íduos (a multipi
permite aos operá rios “ conquistar, enquanto classe , cidade de suas rela ções sociais , a possibilidade de desen ¬
uma
lei do Estado , um obst á culo social mais forte do que volver as suas atividades e as suas “ capacidades” singula ¬
tudo ,
que os impede de se venderem a si pró prios ao capital . res, que a técnica moderna d á ) e a universalidade teó rica
”
Mas , em suas perspectivas revolucion á rias de das noções de trabalho , de valor, de propriedade , de
supera çã o
do capitalismo , ele se encerra n ã o com a nega çã o da pessoa (que tende a reduzir todos os indiv íduos à condiçã o
liberdade e da igualdade individual Co que , na é poca , se de representantes intercambi á veis de uma só e mesma
começava a chamar de coletivismo ) , mas com a “ nega çã o espé cie ou “ essê ncia ” ) . Enfim , é a utiliza çã o de um grande
da nega çã o ” , isto é , “ de qualquer forma , a propriedade esquema lógico , proveniente de Hegel e de Feuerbach , e
individual fundada sobre as pr ó prias conquistas da era constantemente trabalhado por Marx , mas nunca abando¬
capitalista ” ( isto é , a socializa çã o dos meios de produ ¬ nado como tal : o da álfenaçadi
çã o ) .29 Aliena çã o quer dizer esquecimento da origem real das
id é ias ou generalidades , mas també m inversã o da rela çã o
94 A FILOSOFIA DE MARX III / IDEOLOGIA OU FETICHISMO : O PODER E A SUJEIçãO 95
“ real ” entre a individualidade e a comunidade . A cisã o da noções econ ó micas e as noções jur ídicas , a forma iguali ¬
comunidade real dos individuos é seguida de uma projeçã o tá ria da troca e a do contrato , a “ liberdade ” de vender e
ou transposição da relação social para urna “ coisa ” exterior, comprar, e a “ liberdade ” pessoal dos indiv íduos .
um terceiro termo. Simplesmente, em um caso, essa coisa Poderíamos ainda mostrar que os fenômenos de alie¬
é um “ ídolo” , uma representa çã o abstract que parece existir na çã o de que tratamos aqui se desenvolvem em sentido
por si mesma no cé u das idé ias (a Liberdade , a Justiça, a inverso : por um lado, eles dependem da crença , t ê m a ver
Humanidade, o Direito), ao passo que, no outro, ela é um com o “ idealismo ” dos indivíduos (com os valores trans¬
“ fetiche ” , urna coisa materiaDquc parece pertencer à terra , cendentes em que eles acreditam: Deus, ou a Na çã o, o
à natureza, que exerce sobre os indivíduos uma força Povo, ou mesmo a Revolu çã o ) , do outro lado , eles depen ¬
irresist ível (a mercadoria , e principalmente o dinheiro). dem da percepçã o, tê m a ver com o realismo ou o
Mas essa diferença comporta conseqiiências importan ¬ “ utilitarismo” dos indivíduos (com as evidências da vida
tes, que se desenvolvem tanto em Marx quanto em seus cotidiana : a utilidade, o preço das coisas, as regras do
sucessores, marxistas ou não. Vamos resumi-las esquema ¬ comportamento “ normal” ). Isso já não deixaria de ter
ticamente , dizendo que o que é esboçado pela Ideologia consequ ências pol íticas, pois sabemos que a política ( in ¬
alemã é uma teoria da constituição do poder, enquanto o clusive a pol ítica revolucion á ria ) é ao mesmo tempo uma
que é descrito pelo Capital, por meio de sua definição do questã o de ideais e uma questão de há bitos.
fetichismo, é um mecanismo de sujeiçã o. Os dois proble¬
mas, naturalmente , n ã o podem ser totalmente inde ¬
subordinada à reprodu çã o do valor de troca . O que se dade civil , passou -se à id é ia de resolu çã o de uma contra ¬
torna central é a forma da circula ção mercantil , e a diçã o inerente ao modo de socialização produzido pelo
correspondê ncia termo a termo que se estabelece entre as capitalismo .
96 A FILOSOF í A DE MARX
97
98 A FILOSOFIA DF. MARX
IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 99
das classes se manifestam como o seu pró prio contr á rio .
A consciê ncia teó rica autonomizada na ideologia e a A negação da negação
representa çã o espont â nea dos sujeitos e dos objetos indu
zida pela circula çã o das mercadorias t ê m a mesma forma
¬
Lembremos as célebres frases do pref á cio da Contribui çã o
à crí tica da economia política (1859) : 2
geral : construir a ficçã o de uma “ natureza ” , negar o tempo
histó rico , negar a sua pr ó pria depend ê ncia de condições “ [. . . ] Na produ ção social de sua existê ncia , os homens
entram em rela çõ es determinadas , necess á rias , inde ¬
transit ó rias , ou pelo menos extrair-se disso , relegando-o
ao passado. pendentes de sua vontade , rela ções de produ ção que
correspondem a um grau de desenvolvimento determinado
Como diz a Misé ria da filosofia ( 1847): “ Os economistas
de suas forças produtivas materiais [ . . . ] . Em um certo ponto
tê m um modo particular de proceder. Para eles , existem
de seu desenvolvimento , as forças produtivas materiais da
apenas duas esp é cies de instituiçõ es , as da arte e as da
sociedade entram em contradi çã o [ . .. ] com as rela ções de
natureza . As instituições do feudalismo sã o instituições
artificiais , as da burguesia sã o instituições naturais. Nisso ,
propriedade no seio das quais elas tinham se movido até
ent ã o. De formas de desenvolvimento das forças produtivas
eles se parecem com os teólogos , que també m estabelecem
que elas eram , essas rela ções se transformam em obst á cu ¬
duas espécies de religiões . Toda religi ã o que n ã o é a sua
los . Ent ã o , abre-se uma é poca de revolu çã o social . A
é uma inven çã o dos homens , mas a sua pró pria religi ã o
mudan ça na base econó mica derruba mais ou menos
é uma emana çã o de De.us . Dizendo que as rela ções atuais
— as rela ções de produ çã o burguesas — s ã o naturais , os
economistas d ã o a entender que essas s ã o rela ções nas
rapidamente toda a imensa superestrutura [ . ..]. Uma for¬
ma çã o social nunca desaparece antes que estejam desen ¬
volvidas todas as for ças produtivas que ela era bastante
quais se cria a riqueza e se desenvolvem as forças
ampla para conter ; rela ções de produ çã o novas e supe ¬
produtivas de acordo com a natureza . Logo , essas pr ó prias
riores nunca as substituem antes que as condi ções materiais
rela ções sã o leis naturais independentes da exist ê ncia do
de existê ncia dessas rela ções tenham eclodido no pró prio
tempo . S ã o leis eternas , que devem reger sempre a
seio da velha sociedade . É por isso que a humanidade só
sociedade . Assim , houve hist ó ria , mas n ã o h á mais . ” 1
se propõe os problemas que ela pode resolver, pois ,
O momento cr ítico no trabalho de Marx remete pois observando bem , veremos sempre que o pr ó prio problema
a uma oposi çã o entre a natureza , ou o ponto de vista
só surge onde as condições materiais para resolvê-lo já
“ metaf ísico ” , e a hist ó ria ( Gramsci falará de “ historicismo
existem , ou pelo menos est ã o em vias de emergê ncia . Em
absoluto” ) . E a filosofia de Marx , acabada ou n ã o, convoca suas grandes linhas , os modos de produ çã o asi á tico , antigo ,
a si mesma para a tarefa de pensar a materialidade do
feudal e burgu ês moderno podem ser qualificados de
tempo . Mas essa quest ã o , como també m vimos , é indisso ¬
é pocas progressivas da forma çã o social econ ó mica
ci á vel de uma demonstra çã o constantemente reformulada :
Vamos reler agora algumas f ó rmulas importantes do
o capitalismo, a “ sociedade civil - burguesa ” trazem em si
Capital (1867):3 “ [...] o que está em embriã o no sistema
mesmos a necessidade do comunismo . Eles est ã o , como da f á brica é a educa çã o do futuro , que associar á , para
diria Leibniz , “ grá vidos do futuro ” . E esse futuro é amanhã .
todas as crian ças al é m de uma certa idade , o trabalho
O tempo , como tudo indica , é apenas o outro nome do
produtivo com o ensino e a gin á stica , e isso n ã o só como
progresso , a menos que seja a condi çã o de possibilidade m é todo para elevar a produ çã o social , mas ainda como o
formal deste. É essa quest ã o que , finalmente , devemos
ú nico mé todo para produzir homens, dos quais todas as
examinar.
dimensões sejam desenvolvidas [ . . . ] . A ind ú stria moderna
100 A FILOSOFIA DR MARX IV / TKMPO K PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA DA HISTóRIA? 101
nunca considera nem trata a forma atual de um processo e suas condi ções de trabalho em capital , quando o modo
de produ çã o como se fosse definitiva . É por isso que sua de produ çã o capitalista est á instalado sobre suas pr ó prias
base t é cnica é revolucionaria , enquanto que a de todos bases , a socializa çã o posterior do trabalho e a transofrma -
os modos de produ çã o passados era essencialmente con ¬ çã o posterior da terra e dos outros meios de produ çã o em
servadora [ . . .]. Por outro lado, ela reproduz , sob sua forma meios de produ çã o explorados de maneira social , isto é
O
t h capitalista , a antiga divisã o do trabalho e suas particulari ¬ coletivos , tomam uma forma nova [...]. O que se deve
r dades fossilizadas . Vimos que essa contradiçã o absoluta expropriar doravante n ã o é mais o trabalhador inde ¬
[ ... ] se desencadeava na imola çã o orgi á stica ininterrupta
o le da classe oper á ria , na dilapida pendente , que trabalha em uma economia pró pria , por
çã o desmesurada das for ças sua conta , mas o capitalista , que explora um grande
g ij
de trabalho e na
aã
{3 devasta çã o da anarquia social . Eis o lado n ú mero de trabalhadores. Essa expropria çã o se faz pelo
negativo . Mas se a mudan ça de trabalho n ã o se impõe jogo das leis imanentes da pró pria produ çã o capitalista ,
& mais doravante [ ... ] com a eficá cia cega e destruidora de
pela centraliza çã o dos capitais [ . . . ]. À medida que diminui
uma lei da natureza , que se choca por toda a parte com regularmente o n ú mero dos magnatas do capital que
o obst á culos , em compensa çã o a grande ind ú stria faz , ela
pró pria [ . . . ], da substituiçã o dessa monstruosidade [ . . . 1 por
usurpam e monopolizam todas as vantagens desse processo
de muta çã o cont í nua , agrava -se o peso da misé ria , da
(Y'i uma disponibilidade absoluta do homem para as exigê ncias opressã o , da servid ã o , da degenerescê ncia , da explora çã o ,
mut á veis do trabalho , uma quest ã o de vida ou morte ; assim e també m a cólera de uma classe operá ria em constante
també m , da substituição do indiv íduo parcial , simples aumento , formada , unificada e organizada pelo pr ó prio
no suporte de uma fun ção de detalhe , por um indiv íduo
totalmente desenvolvido , para quem diversas funções so¬
mecanismo do processo de produ çã o capitalista . O mono
p ó lio do capital se torna um obst áculo para o modo de
¬
ciais sã o outros tantos modos de atividade , que se sucedem produ çã o, que amadureceu ao mesmo tempo que ele e
uns aos outros [ ...] n ã o h á a menor d ú vida de que , gra ças sob seu dom í nio . A centraliza çã o dos meios de produ çã o
à inevit á vel conquista do poder pol ítico pela classe ope ¬ e a socializa çã o do trabalho atingem um ponto em que
rá ria , o ensino tecnol ógico , te ó rico e pr á tico conquistará se tornam incompat íveis com o seu invó lucro capitalista .
també m o seu lugar nas escolas oper á rias. Assim como Explode-se esse inv ó lucro . A hora da propriedade privada
també m n ã o h á a menor d ú vida de que a forma capitalista capitalista passou . Expropriam -se os expropriadores [ . . .] .
da produ çã o e as rela ções econ ó micas que sã o, nela , as A produ çã o capitalista gera , por sua vez , com a inexora ¬
dos operá rios , est ã o em contradiçã o diametral com esses bilidade de um processo natural , a sua pró pria nega çã o .
fermentos de subleva çã o e com o objetivo visado : a É a nega çã o da nega çã o [ . . . ].”
aboliçã o da antiga divisã o do trabalho . O desenvolvimento
das contradições de uma forma de produ çã o hist ó rica é ,
entretanto , a ú nica via hist ó rica que conduz à sua disso¬ Ambiguidade da dialética
lu çã o e à sua reconfigura ção [ . ..]” .
E , enfim , citemos ainda as frases de conclusã o do Assim sendo , como duvidar de que Marx foi , no séc . XIX ,
mesmo livro I , j á evocadas acima : 4 “ [.. .] Uma vez que esse entre Saint -Simon e Jules Ferry , um representante t ípico
processo de transforma çã o decompôs de modo suficiente ¬
da id é ia ( ou da ideologia ) do progresso ? “ H á poucas
mente profundo e global o conjunto da velha sociedade , sugest ões t ã o fantasistas ” , escreve Robert Nisbet em sua
quando os trabalhadores sã o transformados em prolet á rios History of the Idea of Progress, 5 “ quanto a dos marxistas
102 A FILOSOFIA DE MARX IV / TEMPO E PROGRESSO: MAIS UMA FILOSOFIA