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Cad. Est. Ling., Campinas, (19): 65-74, jul/dez. 1990 ANALISE DE DISCURSO: A QUESTAO DOS FUNDAMENTOS DOMINIQUE MAINGUENEAU Université d’ Amiens (Franga) Para muitos pesquisadores, ocupar-se dos fundamentos da dis- ciplina em que eles se increvem constitul um luxo indtil: a caugo da lin- gulstica thes parece uma legitimagéo suficiente. Para eles, a andlise de di curso é apenas uma extenséo, de algum modo natural da lingufstica, uma disciplina que viria preencher 0 vazio deixado anteriormente pelo desinte- resse pelas estruturas textuais. Quando se trata da escola francesa de anélise de discurso 6 impossivel fazer isto, estando as consideracdes tedri- cas tdo estreitamente associadas as investigagdes umpiricas que, &s vezes, chegam mesmo a suplanté- Neste artigo, queriamos voltar as condigées de emergéncia desta escola francesa, nao para fazer o trabalho do historiador ou por nos- talgia dos anos 60, mas porque é ao nivel dos fundamentos que tudo se passa. Os desenhos animados freqdentemente nos mostram personagens que, sem o saber, andam no vazio; percebendo repentinamente que deixa- ram 0 solo firme, eles caem no abismo. E isto que pode acontecer a andlise de discurso! se ela nao se interrogar a respeito de si mesma. ‘Muitas vezes se apresenta a andlise de discurso como uma ten- tativa para superar os limites da filologia tradicional e das diversas “‘anéli- ses de conteddo” em uso nas ciéncias humanas. Na linha direta da “nova critica” literéria e do conjunto do estruturalismo, a andlise de discurso re- conhece a existéncia de “estruturas” especificas da discursividade, pre-re- quisito obrigatério para qualquer anélise séria de textos. A filologia se vé assim censurada por ter negligenciado esta “textualizacao” do sentido, por aprender 0 texto sé como um documento significativo de um certo contexto histérico e social. Como se a interpretagéo de um texto fosse so- mente o esclarecimento da intengéo que presidiu sua enunciagdo: quem 6 sou ator? a quem se enderega? com que finalidade? em que circunt&ncias? que alteragées recebeu o documento? etc. Para a andlise de discurso, 0 saber lingulstico, ao invés de ser convocado apenas para cidades que podem se interpor entre o presente da leitura e a evidéncia da proferigéo primeira, deve tornar-se parte do proceso interpretativo, Quanto as anélises de contetido, elas estdo sujeitas a criticas dessa mesma ordem, A anélise de discurso Ihes reprova o terem recortado 08 textos aplicando critérios exteriores 8s escengdes que eles impdem atravessar os significantes como se eles fossem transparentes & realidade a qual se supée que eles remetam, Para a anélise de contetido, 0 discurso no seria sendo um meio de atingir o real e n5o ume modalidade desse ‘eal que deve ser apreendido em sua materialidade. nda que esta maneira de pensar 0 aparecimento da escola francesa no seja destituldo de pertinéncia, supde ume concep¢do basta te ingénua da evolugdo das ciéncias humanas. Com efeito, esta escola no surgiu da constatagéo de uma falta, como se 0 saber fosse um imenso rra- a do qual bastasse ocupar os espacos ainda virgens. De fato, & pelo cru- zamento de interesses de diversas ordens que um dominio de investigacéo jnal pode emer; Dar-se-4 assim toda importéncia & vide cultural frencesa. An- toine Culioli insistiu particularmente sobre o papel privilegiado que a lite- ratura desempenha na Franca ¢ faz a hipétese de que a andlise de discurso foi um modo de substituir a explicagéo de textos escolar. Para ele, existiria de discurso franceses teriam af encontrado “um meio de abordar proble- mas de significacao pulando por sobre os problemas de forms tal core eles podem se colocar de um ponto de vista estritamente lingdistico e 1égi- co”2, Em outros termos, a escola francesa de andlise de discurso, voltada para os textos, seria 0 contraponto de uma “andlise” anglo-saxénica que se interessa sobretudo pelas proposig6es. Em certos aspectos, este diag- néstico se liga ao de T. Pavel para quem o estruturalismo francés teria si- do uma tentativa para remediar 0 atraso da reflexdo sobre a linguagem mas continuando a ignorar os nomes de Frege, Russel ou Wittgenstein. Isto no é entretanto suficiente para explicar o desenvolvimen- to dessa corrente. E preciso levar em conta igualmente a conjuntura das ciéncias humanas na Franca dos anos 60. Em um contexto err: que o con- junto das produgées culturais se torna passivel de ume “leitura”, onde tu- do 6 transmudado em “texto” por uma abordagem estrutural, 0 apareci- mento da anélise de discurso pode parecer inevitével: seria apenas 0 nome dado & extensio a novos objetos do principio estruturalista da “nova criti- ca” literéria. Mas no conseguirlamos explicar a emergéncia da escola fran- cesa invocando apenas o sinal dos tempos. Ela definiu um procedimento cuja forma heuristica transborda largamente o quadro metodolégico e teé- 66 rico do estruturalismo. Para dar a este empreendimento seu cardter de ne- cessidade, para que houvesse interesse em outros corpus que no os de teratura, para que a lingifsitca se tornasse outra coisa que ndo um saber ocasionalmente consultado pelo fildlogo, foi preciso mais do que a pres 40 exercida pela conjuntura estruturalista. Foi preciso uma parte de so- ‘nho, © sentimento de imperiosa urgéncia conferido por um projeto enrai- zado em um projeto intelectual bem preciso, no caso o do althusserianis- ‘ro, que dominava entao na Franca a cena filoséfica e a reflexdo nas cién- cias humanas. Falamos aqui do “althusserianismo” ¢ no da filosofia de Althusser porque foi essencialmente uma espécie de vulgata que exerceu a influéncia determinante, que deu forma ao projeto da escola francesa. Um socidlogo ou um historiadcr néo teria dificulade em mostrar que 0s pro- motores da andlise de discurso estavam ligados de muito perto a0 pensa- trento altt uesseriano. Mas basta considerar a conjuntura intelectual na Franca desta época para compreender a que ponto o lugar desta anéli do discurso ai estava rigorosamente prescrito. Althusser, sabe-se, visa dar um fundamento mais seguro a0 marxismo combinando-o com a tradigéo epistemolégica francesa e 0 estru- turalismo. Para nao basear o marxismo na consciéncia dos sujeitos ele se esforga por substituir a filosofia pos-hegeliana da “praxis” por uma epis- temologia, substituigao que toma as cores de um anti-hurranisme. Althus- ser obtém assim todas as consequéncias do conceito marxista de “ideolo- gia”, afirmando 0 caréter irredutivel da disténcia entre ciéncia ¢ represen- tagdo: “Na ideologia os homens exprimem no suas rela- ‘gOes com suas condicées de existéncia mas 0 modo coro eles viverr suas relagdes com suas condigdes de existén- cla: 0 que supde a0 mesmo tempo relagao “real” e rela- 80 “vivida", “imeginéria’. (...) Na ideologia a relagdo real é investida inevitavelmente pela relagdo imaginéria: relago que antes exprime urra vontade (conservadora, conformista, reformista ou revolucionéria), ot rresiro uma esperanga ou uma nostalgia, do que descreve ume realidade’,” Desse modo, o “‘meterialismo dialético” 6 que ter de construir as condigdes de um discurso cientifico, de uma episterrologia que coincidi- ria com é filosofia marxista e escaparia & ideologia, & qual os sujeitos es- 180 espontaneamente presos. Para Althusser esta epistemologia jé estaria 1do no Capital, que convém ler como um acontecimento da histéria das o7

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