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Depoimento “sem dano”?

Eliana Olinda Alves2


José Eduardo Menescal Saraiva

Muito importante a iniciativa dos Conselhos de Psicologia e Serviço Social em trazer a


discussão sobre a prática do depoimento sem dano. Encomenda delicada, de repercussões
de tanta complexidade que traz sempre muitas inquietações. Antes de qualquer reflexão sobre
o tema, apresentaremos os pontos principais que fundamentam o projeto depoimento sem
dano: definição, objetivo e sua tecnologia.
O Projeto idealizado pelo Juiz José Antônio Daltoé Cezar é um modelo utilizado no
Juizado da Infância e da Juventude (JIJ) de Porto Alegre para inquirição de crianças e
adolescentes vítimas de abuso sexual e que está sendo recomendado como lei nacional. O
objetivo é o de promover a proteção psicológica de supostas vítimas, realização de instrução
criminal tecnicamente mais apurada, produção antecipada de prova no processo penal e
evitar o que os especialistas chamam de revitimização da criança com sucessivas inquirições
nos âmbitos administrativo, policial e judicial. Para sua execução o projeto se utiliza de recursos
tecnológicos com a seguinte dinâmica:
• “O depoimento é colhido em uma sala especialmente montada, sem a formalidade
de uma audiência, com equipamentos de áudio e vídeo de tecnologia avançada
que interligam a sala de audiências a um ambiente reservado, no qual as
inquirições são realizadas com acompanhamento de psicólogos ou
assistentes sociais, mantendo a vítima distante do agressor.”
• “Juiz, Promotor e Defensor seguem o interrogatório pelo sistema, enviando
perguntas ao técnico que estiver trabalhando como interlocutor. O magistrado faz
as inquirições por intermédio do profissional que se encontra com a vítima
que, dessa forma, não se exporia a outras pessoas.”
• “Simultaneamente é efetivada a gravação de som e imagem em CD, anexado aos
autos do processo judicial. Uma televisão de 29 polegadas com zoom oferece
melhor qualidade de imagem e som. Da sala de audiência, pode-se usar também

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Texto produzido a partir de um evento organizado pelos Conselhos Regional de Psicologia e do Serviço Social do
Estado do Rio de Janeiro, em abril de 2007, sobre o projeto depoimento sem dano implantado no Tribunal de
justiça do Rio Grande do Sul.

1
controle remoto para movimentar a câmera instalada no local onde são feitos os
questionamentos. Existe ainda a possibilidade de colocação de legenda na
gravação.” A produção de provas com entrevistas gravadas.

“O projeto recebeu menção honrosa na 3ª Edição do Prêmio Innovare. Prêmio criado


para identificar, premiar, sistematizar e disseminar práticas pioneiras e bem sucedidas de
gestão do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria pública que estejam
contribuindo para modernização, desburocratização, melhoria da qualidade e eficiência dos
serviços da Justiça.”
A despeito do que representa para o judiciário gaúcho a implementação desse tipo de
prática, gostaríamos de marcar alguns pontos que parecem problemáticos na fundamentação e
execução do projeto.
A fundamentação do projeto é de que o depoimento é considerado sem dano por visar à
proteção psicológica das vítimas, tendo como prerrogativa a não revitimização da criança,
tendo em vista que o magistrado faz as inquirições por intermédio do profissional. A proteção,
base do projeto, provavelmente se apóia no paradigma da proteção integral previsto no ECA/90
não somente pelo aspecto da proteção em si como no que tange ao trabalho técnico
realizado com a infância no judiciário. Segundo o ECA, o trabalho técnico realizado nas Varas
de Infância e Juventude deveria mudar radicalmente, sendo previsto, como no art. 151 – sobre
a competência da equipe interprofissional(...) – “ desenvolver trabalhos de aconselhamento,
orientação, encaminhamento, prevenção e outros (...)”.
Exige-se para isso, como aponta o Estatuto, a interdisciplinaridade das equipes e
intercâmbio entre a rede de atendimento, possibilitando um novo olhar para as questões afeitas
à infância no contexto da Justiça e assessoramento, através de parecer técnico, ao Juiz em
suas decisões. Outra competência presente na Lei é a de exigir dos profissionais que
estimulem uma nova cultura para o atendimento na área da infância, através da “humanização
do sistema”. Humanizar o atendimento através de múltiplas ações, assessorar a autoridade
judiciária, estimular uma nova cultura de atendimento são tarefas da equipe interprofissional,
que concretizam uma das formas de atuação do Estado sobre esta parcela da população – a
infância.
Parece que para garantir a “humanização” do sistema, a Psicologia adentra o espaço
jurídico com a tarefa de assessoramento aos órgãos judiciais acerca das motivações subjetivas

2
Autores são Psicológos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, atuando em Vara de Infância,
Juventude e Idoso.
2
que de um modo geral implicam as pessoas com a Justiça. Trata-se de compreender os
aspectos subjetivos referentes às implicações dos sujeitos com sua problemática. Ou seja, uma
espécie de reivindicação da psicologia no sentido de oferecer os seus serviços à Justiça. Neste
momento, parece que a tarefa da equipe se “amplia”, a Psicologia teria como um de seus
procedimentos importantes a inquirição, tendo em vista que o que está supostamente em jogo
é a proteção e a não revitimização de crianças.
“(...) O Projeto visa suprir a necessidade do máximo esclarecimento do
ocorrido, procurando atingir o menos possível a integridade emocional da vítima.
A realização do “depoimento sem dano” ocorre mediante a intermediação de
psicólogos, afastando-se o juiz da sua condição de inquiridor (...)”. Esta fala é de um
desembargador gaúcho que julga um mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público
de Porto Alegre contra uma juíza, sobre sua decisão em não utilizar o DSD como um
instrumental para auxiliá-la no esclarecimento de um processo, que implicava o abuso sexual
de duas crianças. Essa juíza decidiu que ela mesma tomaria o depoimento das crianças, como
comumente é feito. Sua postura foi considerada inadequada, por isso esse mandado é
impetrado. Eis o que diz a promotoria em sua justificativa:
“Depoimento sem Dano objetiva a proteção psicológica de crianças - como
no caso - e adolescentes vítimas de abusos sexuais e outras infrações penais que
deixam graves seqüelas no âmbito da estrutura da personalidade, ainda
permitindo a realização de instrução criminal tecnicamente mais apurada,
viabilizando uma coleta de prova oral rente ao princípio da veracidade dos fatos
havidos.”
O magistrado, corroborando a decisão do Ministério Público, baseia-se na obra de
Veleda Dobke3 que inspirou o Projeto em questão.
Segundo a autora,
“(...) as normas que disciplinam a inquirição das testemunhas são aplicadas, no
que couberem, à tomada de declarações dos ofendidos. Para a tomada de
declarações das vítimas-crianças não existem normas especiais ou procedimento
específico que considere as suas condições peculiares. As normas processuais
disciplinadoras para a ouvida das crianças, pessoas em desenvolvimento, são as
mesmas que regem a inquirição dos adultos. No entanto, as crianças possuem um
nível cognitivo, intelectual e psicossocial diferente dos adultos e, por isso, a
tomada de suas declarações deve ser repensada pelos operadores do direito. A
inquirição inadequada da criança, além de prejudicar a prova, pode causar um dano
psicológico a ela. Nos casos de abuso sexual infantil intra familiar, a ouvida das
crianças-vítimas apresenta ainda maiores dificuldades, quer pela falta de
conhecimento da dinâmica do abuso, quer pelo despreparo emocional dos
inquiridores, circunstâncias que dificultam a compreensão dos fatos abusivos e o

3
Veleda Dobke Abuso Sexual: A inquirição das crianças - uma abordagem interdisciplinar. s/d.
3
emprego de maneira adequada na formulação das perguntas. (...) Exigir de nós
mesmos uma atitude de disponibilidade mental para um trabalho interdisciplinar,
aceitando propostas de outras áreas do conhecimento, é nossa obrigação.”

Mesmo considerando as preocupações colocadas inicialmente por Veleda Dobke – a


dificuldade de tomar declarações de crianças no judiciário, e de que é importante repensar tal
questão –, destacamos que para um operador jurídico tomar declarações de uma criança, não
precisa de noções de psicologia, como pretende a autora. Qualquer profissional do Direito,
acreditamos, está habilitado para inquirir uma testemunha. Será que mediante as repetidas
posturas anti-éticas de alguns profissionais que colocam não somente crianças e adolescentes
em situações vexatórias, mas qualquer pessoa quando na condição de testemunha, a saída
para esse tipo de profissional é aprender técnicas de psicologia? Será que um profissional que
faz uma abordagem desrespeitosa a qualquer pessoa não deveria ser denunciado no órgão
fiscalizador da profissão? Será que com um pouco de sensibilidade, despojamento de
preconceitos e afirmação de uma postura ética o juiz, o promotor, o defensor ou o advogado
não realizariam uma inquirição de forma mais cuidadosa, apenas respeitando os limites de
quem está sendo ouvido, principalmente quando se trata de crianças e adolescentes?
Um outro autor também utilizado na fundamentação do projeto é Carlos Alberto
Rozanski4. O autor defende que “(...) a melhor alternativa é a de estabelecer um sistema
de entrevistas com as vítimas infantis a cargo exclusivo dos analistas forenses. (...) O
vidro espelhado, assim como a filmagem em vídeo ou áudio direto, permite que, no ato
do mesmo exame, o tribunal e as partes – por seu intermédio – comuniquem ao
especialista suas inquietudes, que serão satisfeitas na medida em que isso não afete o
desenvolvimento normal do ato e não ponha em perigo a integridade da criança. (...)”
Justificando proteção à “vítima”, pelas ferramentas utilizadas, o depoimento sem dano é,
portanto, a produção de provas com entrevistas gravadas. A chamada entrevista, como
aponta o projeto, é a inquirição de supostas vítimas. O diferencial é que quem realiza a
“entrevista” é o “juiz – momentaneamente afastado de sua condição de inquiridor – na
pessoa do Assistente Social ou Psicólogo, seu representante”. Ou seja, o técnico atua como
uma espécie de repetidor5. Este é mais um ponto que gostaríamos de enfocar criticamente. Até
onde sabemos, em nossos Códigos de Ética profissional, não estamos aptos a realizar
inquirições, visto não estar previsto em nossa formação realizar tal prática. Até onde sabemos,
uma inquirição é realizada por um profissional de outra área, talvez policial ou mesmo jurídica,

4
ROZANSKI, C.A. A menina abusada diante da justiça. In: Valnovich, J. R. (Org.). Abuso Sexual na Infância. Rio
de Janeiro: Lacerda Editores, 2005.
5
Lembramos aqui da figura do ventríloquo manipulando um boneco.
4
um operador jurídico hábil para realizá-la. A pergunta é: por que um técnico, seja psicólogo ou
assistente social, na inquirição? Não revitimizar é criar um clima mais favorável, menos hostil?
Para isso os profissionais que compõem a equipe técnica do juízo são os mais indicados? Será
que todos esses aspectos não podem ser contemplados numa inquirição cuidadosa, sensível
e ética, como já apontamos.
Outra obra, base do projeto, é de Valnovich6, em que o autor nos chama a atenção para a
necessidade de alguns atributos técnicos do Projeto em tela: “registro rigoroso da entrevista;
documentação visual dos gestos e expressões faciais que acompanham os enunciados
verbais da criança; registro visual e verbal que pode ser visto muito tempo depois por
outros profissionais.”
Para além de todas as demais provas produzidas em um processo – uma delas o laudo
pericial realizado pelas equipes técnicas, seja a perícia psicológica ou social –, o projeto prevê
uma instrução criminal tecnicamente mais apurada. Tal instrução parece ser uma
prerrogativa ou uma problemática da verdade inconteste dos fatos que o direito tanto almeja –
dados que estejam mais próximos de uma verdade real, do princípio da veracidade dos fatos.
Dados que excluam a dúvida e que tragam uma certeza absoluta, tendo em vista toda uma
observação e “documentação visual dos gestos e expressões faciais que acompanham os
enunciados verbais da criança” respaldada no rigor dos “registros visual e verbal que podem
ser vistos muito tempo depois por outros profissionais (Idem).”
Com as sofisticações das práticas jurídicas, o modelo do inquérito, na modernidade,
instituiu uma nova forma de conhecimento e de produção da verdade: a reconstituição do
delito não somente por testemunhos, mas, principalmente, pela elaboração de documentos e
desenvolvimento de uma racionalidade investida ‘indefinidamente’ (Foucault,1987). Essa forma
racional de conhecer a verdade, na sociedade disciplinar – com as transformações político-
econômicas e o Direito moderno – à sofisticação da técnica do exame. Esta introduz um novo
elemento na prática judiciária: a motivação subjetiva do indivíduo para o delito. O novo
elemento muda o foco da pesquisa de produção da verdade: a pesquisa da verdade não será
mais sobre o delito em si, mas sobre a motivação individual para praticar tal ato. As
individualidades serão tratadas a partir desse momento como caso. Deixam de ser a
singularidade, para ser um caso individualizado, avaliado nos aspectos de sua história íntima,
pessoal e classificado segundo a norma disciplinar.

6
VALMOVICH, J. R. Abuso sexual de crianças pequenas: da suspeita à validação. In: Valnovich, Jorge Ruben
(Org.). “Abuso Sexual na Infância”. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2005.

5
“O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias,
faz de cada individuo um ‘caso’: um caso que ao mesmo tempo
constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o
poder, (...) é o individuo tal como pode ser descrito,
mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria
individualidade (...).” (Foucault , 1987 – p.170).

Na era da tecnologia hightech, a prática do DSD com essa perspectiva de instrução


tecnicamente mais apurada, sugere-nos uma sofisticação da técnica do exame, talvez
introduzindo uma nova forma de conhecimento e de produção da verdade. A quem interessa
esse registro rigoroso dos dados, à criança ou à Justiça? Será que tal registro manterá de fato a
integridade da suposta vítima, visto que tudo que falar uma vez registrado poderá ser visto,
como fundamenta o projeto, por outros profissionais? Como ficará esta criança depois que tudo
estiver razoavelmente mais acomodado emocionalmente – no campo do ‘esquecimento’ – e
esses dados, por estarem gravados, por algum motivo serem acessados a qualquer momento
como forma de esclarecer algum ponto processual? Sabemos que na Justiça um processo não
se encerra assim tão facilmente. Será isso uma proteção?
Importante marcar que outras formas de proteção que poderiam ser exercidas
favorecendo crianças e adolescentes em outras situações de risco não ocorrem com esse nível
de investimento por parte da Justiça. Sabemos que quando se trata de punir agressores de
adolescentes ou crianças que vivem em estabelecimentos de atendimento destinados à
proteção, isso quase nunca acontece. Isso não seria uma violação de direitos? Por que a
violência doméstica é tão propagada? Por que se procura tanto esses tipos de vítimas e
agressores? Interessante observarmos que a visibilidade dada em tais situações, em sua
maioria, refere-se a crianças e adolescentes oriundos das camadas pobres da população.
Os chamados operadores do direito – juizes, promotores, defensores e advogados –
passam a tratar, no âmbito da justiça, de sujeitos adoecidos: uma criança adoecida pelos
processos de vitimização que vem sofrendo em sua família; ou uma família que perdeu a
competência – ou nunca a teve – para educar adequadamente seus filhos. Tal lógica de
atuação continua a operar com infâncias diferenciadas. Mesmo para a doutrina da proteção
integral do ECA, a infância pobre – ainda distante desses direitos – reduz-se ao território da
vitimologia (Alves, 2005). Pensar a infância pobre no campo da vitimologia opera em nós a
“modernização” de nossas consciências e passamos a defendê-la em nossos discursos de
garantias de direitos, numa perspectiva de

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“(...) limpar nossa consciência fratricida, figurando e configurando o Outro,
não de qualquer maneira, mas a partir de nosso patrimônio, a partir de nossa
Consciência Humanitária, isto é, como “vítima” – a ser socorrida, com a qual
solidarizar-se, a ser liberada, à qual deve ser concedida a palavra, a ser integrada –
ou como “culpável” – que deve ser desmascarada, denunciada, dissuadida, perseguida,
expulsa e justiçada – garantindo-nos assim o espetáculo de um Ocidente
comprometido com os “direitos humanos” e com a humanização do mundo.”(Placer,
2001 – p.81)
O espetáculo produzido no Ocidente de salvar a “vítima” desencadeia em nós um
sentimento de solidariedade como um “bem de consumo”. Estar comprometido com direitos
humanos recupera nossa consciência culpada e abre um novo mercado de ações técnicas e
voluntárias. Na assistência à infância, tais ações foram fomentadas e difundidas nas últimas
décadas do século XX como possibilidade de “humanização” do atendimento e “salvamento”
dessas vítimas. Esses movimentos parecem amortecer as consciências culpadas, que não
percebem os efeitos da globalização que submete crianças e adolescentes pobres a
instabilidades de toda ordem. Mesmo diante das promessas de felicidade do mundo neoliberal,
muitas crianças não têm suas necessdades básicas atendidas, pelo menos comer e ter uma
família. Como forma de “salvá-las”, o Estado assume sua tutela em suas ações micropolíticas,
engendradas no discurso de seus especialistas, seus porta-vozes. Estes “defendem um
humanismo que preencha o vazio de um homem fraco e sem forças, um homem angustiado e
perplexo necessitado de tutela” (Baptista, 1997 – p.105).
Pensando a relação que se estreita cada vez mais entre a psicologia e o direito, algumas
inquietações se colocam nesse fazer. Será tarefa do psicólogo descobrir para a autoridade
judiciária os agressores e as vítimas, simplesmente? De que vítima e de que agressor se fala?
Por que a família pobre é culpabilizada e seu cotidiano monitorado, enquanto crianças e
adolescentes são, de fato, afetados pela exploração sexual imputada por autoridades políticas e
até judiciárias7 que as deveriam proteger? As violências sexuais sofridas por crianças e
adolescentes por estas autoridades não as definem como vítimas, e seus agressores não são
culpabilizados. Por quê?
Parece que o fundamento da chamada “proteção à vítima” é também a possibilidade de
se ter uma verdade soberana dos fatos. Não se pode errar. É preciso suprir a necessidade do
máximo esclarecimento. Desta feita, não somente a subjetividade é esquadrinhada, mas o fato

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levado a exaustão, dissecado, esquadrinhado. A prática do DSD parece combinar proteção,
vigilância, punição e controle. Tal combinação nos remete a questão: será que o depoimento
é também considerado sem dano por ser uma forma higiênica de se tirar a verdade daquele
que fala, sem afetá-lo (?).
O tipo de inquirição antes realizada pelo operador do direito com a possibilidade de criar
uma relação com a suposta vítima é vista hoje como uma revitimização. Enquanto isso, a
própria via crucis por que passa a criança desde as primeiras denúncias – depoimento em
delegacias, exame de corpo delito, primeiras audiências, encaminhamento para entrevistas de
revelação em órgãos que prestam tal serviço, retorno ao judiciário, encaminahmento às equipes
técnicas que por último realizam os estudos social e psicológico, depois mais audiências para
julgamento etc. – não é vista como revitimização. Depois de passar por tudo isso, considera-se
que um depoimento – prestado na forma de uma inquirição por um profissional da equipe
técnica – causa menos dano à criança?
Outro aspecto que não podemos esquecer é de que em práticas como essa a criança
passa a ser a testemunha mais importante de si mesma, aliás, a única testemunha. Uma
espécie de prática de auto-testemunho, sendo ela agente direto de uma condenação. Não
podemos nos esquecer de que na maioria desses casos o acusado é a figura parental mais
próxima, o pai ou a mãe. E de que em tais situações a ambigüidade com que é vivida pela
criança a experiência de violência é um dos pontos mais problemáticos e difíceis de ser
trabalhados, por envolver figuras tão importantes, que representam suas referências afetivas
mais significativas. Saber que foi responsável pela condenação dessa figura que ela chama de
pai ou de mãe talvez seja um dos maiores dilemas vividos por esta criança.
Talvez um dos efeitos mais importantes do DSD – deliberado ou não – consiste em
anular a diferença entre a inquirição e algo que poderíamos chamar de abordagem social e
psicológica de determinada situação. Ora, se a inquirição precisa ser como a situação de
entrevista psicológica e vice-versa, seu efeito mais imediato, ainda que não deliberadamente
buscado, é a indissociação entre as duas abordagens. A inquirição é feita como entrevista,
com a finalidade de inquirir. Aonde nos pode remeter semelhante identificação? A quem
interessa semelhante indissociação no que diz respeito a abordagens inicialmente distintas?
Pensamos que aqui exista uma confusão do que seja um trabalho interdisciplinar. Percebemos

7
Artigo publicado na revista VEJA por André Petry, denunciando a impunidade para com as autoridades que
violam a lei, os direitos de crianças e jovens, quando os submetem a abusos sexuais e financiam prostituição
infanto-juvenil.
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que tal demanda é tão somente do Direito enquanto uma prática que visa à verdade inconteste
dos fatos.
Entendemos que tanto a Psicologia quanto o Serviço Social estejam sendo convidados,
no contexto judiciário, a trabalhar no sentido de buscar uma verdade objetiva, aquela tão
almejada pelo Direito, a verdade da prova, irrefutável e absoluta. Essa verdade seria agora,
definitivamente, objeto do trabalho das equipes técnicas no contexto judiciário via DSD. Trata-
se então de um retorno às raízes históricas, no caso da inserção psi nos tribunais, talvez o
retorno à Psicologia do Testemunho, um retorno ao chamado cientificismo psi.
Será que a psicologia e o serviço social não disporiam de outras ferramentas para
auxiliar as práticas judiciárias no que se refere ao atendimento à infância, sustentando os
princípios norteadores de sua práxis, princípios balizados em outras ferramentas de ordem
conceitual e ética?
Não seria possível à Psicologia manter sua especificidade, ou seja, a de trabalhar com a
singularidade, mais precisamente o que chamamos de subjetividade? O singular é aquilo que
é único, é algo da experiência do sujeito não pode ser reduzido a nenhuma fórmula geral. Ou
seja, é tudo aquilo que torna única determinada vivência. Por isso o espaço da dúvida por
excelência. Talvez seja necessário pensar que essa cobrança histórica pela objetividade –
como um dado valor da verdade e sua supremacia – pode descaracterizar a especificidade da
intervenção psi, irredutível à pesquisa da verdade objetiva, este sim a finalidade da prática
judiciária.
Talvez nosso grande ‘pecado’ tenha sido morder a maçã do suposto paraíso – a
importância do saber-poder –, quando nos convidaram a realizar a tal perícia psicológica. Será
que a chamada perícia psicológica pode acontecer? Podemos conjugar perícia e singularidade?
Talvez tenhamos aceitado porque “ingenuamente” nos sentimos atraídos pela importância de
deter um suposto fazer científico. Atraídos pela importância do lugar que nos ofertaram –
peritos em subjetividade –, nosso status-quo. Atraídos pela serpente – o saber científico –
mordemos a isca. Hoje, nos oferecem outra maçã, outro lugar de importância, a saber, o de
interlocutor na prática do depoimento sem dano.
Podemos pensar num espaço judiciário que também pressuponha e conviva com esse
aspecto, o subjetivo, ainda que mantendo seu ideal de objetividade, de pesquisa da verdade
factual. Ainda assim, podemos pensar em uma objetividade a ser atravessada, portanto
relativizada, pela dimensão subjetiva, esta sim o campo do conflito e da ambigüidade.
Entendemos que as duas abordagens, a da Psicologia e a do Direito, possam caminhar juntas,
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em saudável contradição e convivência, interagindo e afetando-se mutuamente, sem se
condensar ou descaracterizar-se.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Graduação, da Universidade Federal Fluminense.
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COIMBRA, M.C.B., MATOS, M. & TORRALBA, R. Especialistas do Juizado e a doutrina de segurança
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ROZANSKI, C.A. A menina abusada diante da justiça. In: Valnovich, J. R. (Org.). Abuso Sexual na
Infância. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2005.
VALNOVICH, J.R. Abuso sexual de crianças pequenas: da suspeita à validação. In: VALNOVICH, J.R
(Org.). Abuso Sexual na Infância. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2005.

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