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Num espaço fantasmal: Bartleby e companhia sofrendo do Mal de arquivo

Thales Biguinatti Carias1

Qualquer um que pretenda caracterizar “Bartleby e Ccompanhia”, livro de


Enrique Vila-Matas com 1ª publicação em 2000, como um tipo de pesquisa sobre fracassos
literários assim o faz por não compreender ou mesmo não fruir da própria experiência estética
proposta pelo livro. Com isso, referimo-nos diretamente a uma resenha publicada no blog
“Falando em Literatura”, onde se lê que:

O livro é muito interessante, uma biografia de autores que tiveram condutas


parecidas [com as da personagem Bartleby]; no entanto, o gênero não
concorda com a sua forma, que adapta- se melhor à biografia ou ensaio. Não
é um romance. Achei desnecessário usar um personagem para contar o livro,
poderia ser a voz do próprio autor. Inclusive em forma de tópicos, um guia
de autores bartlebys, muito mais fácil para consultas. O narrador
praticamente não aparece. De todas as formas, recomendadíssimo! Para
quem ama a literatura é um prato muito bem servido2.

Tomemos esse ponto inical para colocar algumas questões que nos ajudarão a
compreender melhor a discussão deste livro, que vai muito além de um compilado de
biografias. O livro é romance. E sim, foi um gênero acertado. No entanto, a despeito de
entrarmos numa longa discussão sobre a natureza do romance, é preciso destacar que se trata
de um romance situado no momento literário de implosão do sentido mimético na escrita
romanesca. A confusão da resenhista a respeito do gênero é mais fruto da inabilidade em ler o
livro segundo a proposta de um romance pós “morte do autor” do que, de fato, uma
incompatibilidade entre matéria e gênero textual. Ao contrário do que a resenhista aponta, o
narrador está presente a todo momento. O que ele promove, no entanto, é mais uma narrativa
onde a pesquisa o leva às reflexões sobre este sentido para o romance que sintetizamos por
“morte do autor”. A pesquisa não é a finalidade, mas o leitmotiv para que o narrador promova
sua incursão num estado quase metafísico a respeito da escrita e seu avesso.

1 Texto apresentado como requisito parcial para obtenção de créditos na disciplina “Como Viver Junto:
Coleções, Arquivos e Redes como Operadores Criativos”, ministrada pela Prof. Dra. Maria Elisa Rodrigues,
vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL) da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT).
2 Disponível em: https://falandoemliteratura.com/2017/02/23/resenha-bartleby-e-companhia-de-
enrique-vilas-matas/ último acesso em 17/07/2018
Sem essa discussão, perde-se todo o sentido de “Bartleby e Companhia”. Da
mesma forma que, colocando os casos narrados no escopo do “fracasso literário” 3, perde-se a
própria dimensão de literatura aventada pelo livro. O modo como o narrador encena a questão
do “Ser” da literatura nos é oportuno para levantarmos algumas questões relativas à noção de
arquivo em Derrida. No livro “Mal de arquivo”, Derrida discute sobre a impertinência em
manter fortemente discernível a fronteira entre público e privado. Para o autor, o próprio
desejo de arquivo viola essa fronteira. Seu método de desconstrução, que consiste em
evidenciar, na palavra de sentido mais aparentemente estável, sua formação histórica rumo a
determinada “naturalização”, coloca em suspenso a ideia de um “lar” para a memória. Neste
sentido, ao apontar para a ambiguidade da palavra Arkhê, que designa tanto começo quanto
comando, Derrida subscreve os princípios ontológicos e nomológicos como constitutivos
desta noção de arquivo (DERRIDA, 2001, p. 12). O problema é que, ao se formar nessa
ambiguidade, o próprio arquivo trata de se “esquecer” desse dado constitutivo:

É bem verdade que o conceito de arquivo abriga em si mesmo esta memória


do nome Arkhê. Mas também se conserva ao abrigo desta memória que ele
abriga: é o mesmo que dizer que a esquece. Nada há de acidental ou
surpreendente nisso. Com efeito, ao contrário daquilo que geralmente se
imagina, tal conceito não é fácil de se arquivar. (DERRIDA, 2001, p. 12)

Em seu texto, Derrida encara o arquivo como instância mais subjetiva do que um
dado concreto ou um conceito formado. Para o autor, nosso “desejo de arquivo” é mobilizado
na medida em que nos debelamos com dada pulsão de morte. Dizendo de modo rasteiro, um
ato de memória nos impele como tentativa, talvez (in)conscientemente vã, de sobreviver à
evanescência. Ainda tentando acompanhar a argumentação de Derrida, poderíamos levantar o
ponto de que esquecer esse conflito é uma tentativa de apaziguá-lo. No bojo de sua noção de
arquivo, Derrida centraliza o papel da psicanálise na formulação de uma reflexão ativa sobre
esse fenômeno a partir de questões como o recalque e a repressão. Ao longo da discussão,
Derrida vai deixando claro (ao seu modo, devemos sublinhar) que a questão do arquivo se

3 Tomemos nota que o “fracasso literário” chega a aparecer no livro justamente como uma recusa.
Insisto nessa ideia porque tomamos, por automático, a ideia de que um livro inacabado é um livro que “não
deu certo” quando, na proposta do livro, devemos conceber tais livros não apenas como sucessos, mas como
componentes de uma verdadeira literatura: “Mas é que o caso dos fracassados, pensando bem, não tem maior
interesse, é óbvio demais, não há mérito algum em ser um escritor do Não porque se fracassou. O fracasso
lança excessiva luz e muito pouca sombra sobre os casos daqueles que renunciam a escrever por um motivo
tão vulgar.” (VILA-MATAS, 2004, p. 89)
confunde com a questão da própria instituição (DERRIDA, 2001, p. 22). Deste modo, ao
recondicionar o papel da técnica em relação ao arquivo, deixando de abordá-la como mero
aporte para considerá-la produtora dos diferentes sentidos de/no arquivo, Derrida exerce uma
reflexão sobre a dimensão política da instituição e sua reformulação conforme as alterações da
técnica:

Não é somente uma técnica no sentido corrente e limitado do termo: em um


ritmo inédito, de maneira quase instantânea, esta possibilidade instrumental
de produção, de conservação e de destruição do arquivo não pode deixar de
se acompanhar de transformações jurídicas e, portanto, políticas. Estas
afetam nada menos que o direito de propriedade, o direito de publicar e de
reproduzir. (DERRIDA, 2001, p. 30)

Conceito, instituição, arquivo: dados que nos aparecem uníssonos, mas que
Derrida faz questão de lhes mostrar a partir de sua fissura. Uma fissura que, não nos
esqueçamos, dissimula sua prória heterogeneidade. É assim que “Bartleby e companhia”
concebe a literatura. Essa estranha instituição, capaz (como alega o próprio Derrida) de dizer
tudo, também se constitui segundo uma fissura que tenta apagar4. Esse apagamento, devemos
considerar seguindo os apontamentos de Roland Barthes, tem a ver com a vinculação de um
texto a um dado autor uníssono, instância iluminista que reivindica, ao romance, uma única
voz.5.
Devemos, a partir dessas considerações, postular duas instâncias que apenas se
discernem a fim de exposição do argumento. Primeiro, o romance se constitui como uma
narrativa romanesca sem que o narrador passe, necessariamente, por uma história linear.
Devemos, então, dizer que a narrativa de “Bartleby e companhia” se estrutura de modo
sincrônico, onde as pesquisas e exposições biográficas são sobressaltadas por momentos de
reflexão do próprio narrador sobre a literatura e sua natureza. Daí ficar, cada vez mais forte,

4 Com efeito, nas cadernetas ingênuas ou nos diários íntimos de adolescente a que me refiro de memória,
a obsessão pelo proteiforme motiva o interesse pela literatura na medida em que esta parecia ser para mim, de
modo confuso, a instituição que permite dizer tudo, de acordo com todas as figuras. O espaço da literatura não é
somente o de uma ficção instituída, mas também o de uma instituição fictícia, a qual, em princípio, permite dizer
tudo. Dizer tudo é, sem dúvida, reunir, por meio da tradução, todas as figuras umas nas outras, totalizar
formalizando; mas dizer tudo é também transpor [franchir] os interditos. É liberar-se [s'affranchir] - em todos os
campos nos quais a lei pode se impor como lei. A lei da literatura tende, em princípio, a desafiar ou a suspender
a lei. Desse modo, ela permite pensar a essência da lei na experiência do “tudo por dizer”. É uma instituição que
tende a extrapolar [déborder] a instituição. (DERRIDA, 2014, p. 49)
5 a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na
sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões; a crítica consiste ainda, a maior parte das vezes,
em dizer que a obra de Baudelaire é o falhanço do homem Baudelaire, que a de Van Gogh é a sua loucura, a de
Tchaikowski o seu vício: a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através
da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor,
que nos entregasse a sua «confidencia». (BARTHES, 2004, p. 2)
para o narrador, a angústia com relação a um determinado vazio que aponta para a ausência de
um centro aglutinador, seja de sua pesquisa, seja de sua narrativa, seja mesmo da literatura
como instituição. Esses sobressaltos também são perceptíveis nos poucos momentos de
interlocução do narrador, seja com Juan ou Derain.
Por mais que Derain ajude-o concretamente na pesquisa, mais precisamente duas
vezes por intermédio da troca de cartas (um gênero dentro do gênero), não há que se falar que
esse seja um romance de muitas interlocuções, ao menos com “personagens de carne e osso”.
Esse é a segunda instância que mencionávamos e que conforma um sentido possível para a
“literatura do Não”. Ao buscar os inúmeros Bartleby’s; ao identificar seus mais variados tios
Celerinos e ao julgá-los segundo os rastros de suas “não-obras”, o narrador empenha-se em,
concomitante à literatura instituída, circunscrever determinado espaço fantasmal que compõe
a instituição literária por meio de silêncios e ausências.
A idéia do fantasma como o rastro de uma literatura instituída é o ponto de
convergência mais característico que podemos associar entre “Bartleby e companhia” e “Mal
de arquivo”. A imagem do fantasma como oscilação entre presença e ausência é muito forte
nas duas obras e nos fala, sobretudo, das agonias do narrador com o seu próprio projeto. Se a
literatura do Não é uma literatura da ausência, para que escrevê-la? Ao longo da trama, o
narrador se faz essa pergunta mais de uma vez e se firma, cada vez com mais veemência, na
ideia de que ele escreve apenas porque é um dever; algo de uma responsabilidade pela escrita.
Da mesma forma como Derrida, ao identificar a compulsiva autodestruição do arquivo, não
obsta sua reprodução, mas enxerga um dever ético em reconsiderarmos e reencaminharmos
questões importantes que tem, no arquivo e na memória instituída, pontos de problemas e
reviravoltas.
Tomemos, deste ponto de vista, dois casos, em “Bartleby e companhia” sobre a
“obrigação da escrita”. No primeiro, o narrador considera do romance de Del Giudice que, no
intuito de firmar a postura de Bazlen, segundo a qual já não há mais necessidade da escrita,
acabou por referendar uma postura contrária: “o romance de Del Giudice ilustra a
impossibilidade da escrita, mas também nos indica que podem existir olhares novos sobre
novos objetos e que, portanto, é melhor escrever do que não o fazer” (VILA-MATAS, 2004,
p. 22)
Se esse dado nos remete às novas perspectivas e possibilidades a partir da
exploração dessas margens bem definidas da literatura e do papel da escrita, há, também na
obrigação da escrita, um dilema e força ética de grande monta. Tal é o caso de quando o
narrador cita Primo Levi:
E há mais motivos para pensar que é melhor escrever? Há pouco li A trégua,
de Primo Levi, em que ele retrata as pessoas que estavam com ele no campo
de concentração, gente da qual não teríamos notícia se não fosse por esse
livro. E Levi diz que todos eles queriam voltar para suas casas, queriam
sobreviver não só por instinto de conservação, mas porque desejavam contar
o que haviam visto. Queriam que a experiência servisse para que tudo isso
não tornasse a acontecer, mas havia mais: procuravam narrar esses dias
trágicos para que não se dissolvessem no esquecimento. Todos desejamos
resgatar por intermédio da memória cada fragmento de vida que subitamente
nos volta, por mais indigno, por mais doloroso que seja. E a única maneira
de fazê-lo é fixá-lo com a escrita. A literatura, por mais que nos apaixone
negá-la, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o que o olhar
contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais absoluta
indiferença. (VILA-MATAS, 2004, p. 23)

Na noção de arquivo derridiano não há outra forma que a da obrigação da escrita.


Se o dejeso de arquivo é uma vontade de estabilidade, a imagem do fantasma aparece como
derivativa do conflito com a irremediável falta. Assim, Derrida estipula, seguindo as teses
freudianas, que o espaço fantasmal é aquele que evidencia a fissura, mas que nos garante,
ainda, a busca por uma parcela de verdade. Esse conceito uníssono e transparente agora só nos
chega em parcelas, parceptíveis no bojo da fissura entre ausência e presença. A escrita
protética, nesse sentido, aparece como um potencial substituto para essa verdade retalhada.
Sendo a destruição do arquivo; o “mal radical”, o próprio motor do desejo de arquivo, a
crença no fantasmagórico aparece como condiçlão para se tomar partido da verdade e operar o
arquivo, já não mais contente em apagar aquilo que lhe escapa, mas em tentar representá-lo
como devir.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor. In:____. O rumor da língua. SP: Martins Fonstes,
2004.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. RJ: Relume Dumará, 2001.

DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: Uma entrevista com
Jacques Derrida. BH, EdUFMG, 2014.

VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. SP: Cosac Naify, 2004.

Resenha sobre “Bartleby e companhia” Disponível em:


https://falandoemliteratura.com/2017/02/23/resenha-bartleby-e-companhia-de-enrique-vilas-
matas/ último acesso em 17/07/2018

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