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CARTA A GIANMARCO, SOBRE O ABSTRATO

1 de dezembro de 1988

Querido Gianmarco,

Não, de verdade, não estou de acordo. Não estou acordo com sua invitação de
buscar a verdade. O que é a verdade? Só poderia ser um regresso ambíguo: o que é a verdade
da arte? Aqui a verdade só se dá a partir do factício, a verdade do que é construído e que para
nós constitui um novo fragmento do ser. Essa verdade não é transcendente nem remete a algo
imutável e eterno, mas está feita, constituída com nossas pobres mãos. Se é essa a verdade a
que você alude, estamos de acordo: mas não é assim. Na verdade, você me incita
platonicamente ao uso da palavra para denunciar minha ingenuidade e ignorância, meu olvido
de um ser substancial. Mas isso não é mais que retórica. Amo arte desde que se faça abstrata;
desde que, na abstração, mostra uma nova qualidade do ser, a participação das singularidades
do trabalho em um único meio, precisamente abstrato.

A arte sempre se antecipa as determinações da valorização: assim se faz abstrata


recorrendo um desenvolvimento real, criando, através da abstração, um novo mundo. Para ser
uma experiência ontológica, a ser arte não necessita de um ser concreto. Com a invenção do
abstrato, a natureza, o mundo, se veem completamente substituídos – pela arte –. A
modernidade é essa abstração, essa participação do trabalho de toda sua singularidade e sua
intercambialidade. Uma comunidade abstrata.

Não aceito a polemica contra a modernidade. Me parece fruto do ressentimento, e o


ressentimento é o primeiro das más paixões do ser humano. Frente a isso, tampouco aceito a
defesa da modernidade, tal como hoje se faz: você se volta a Habermas, quando,
interpretando o sentido comum, declara inacabada a modernidade... não é certo. Inclusive ali
onde a modernização está historicamente inacabada – entre os papúes e as tribos da Ásia
central – a modernidade está logicamente acabada. Ela não se realiza como processo, mas
como essência, e se oferece como resultado. Os papúes ou os homens de Dersu Urzala entram
no futuro da história de repende. O mal-estar é enorme, os danos enumeráveis: mas é assim. A
modernidade é efetiva inclusiva onde a modernização não é. E essa relação efetiva entre o
tempo do processo e a efetividade do resultado suprime toda possibilidade romântica de
entender a vida como busca e o verdadeiro como produto de uma dialética construtiva. Toda a
pós-modernidade está ali: é a modernidade que se separa da modernização.

A pós-modernidade te dá náuseas. Você pretende demonstrar que não é verdadeira,


a medida que se define como a separação do tempo da própria realização. Eu vejo as coisas de
outra maneira. Eu aderi a pós-modernidade porque vejo sua experiência como a verdade da
abstração, seu reconhecimento como condição da experiência. Se completa um processo de
acumulação de acontecimentos abstratos, de novas determinações de sentido, de novas
figuras singulares de comunidade: ao final, tudo isso nos mostra um mundo novo. O queiramos
ou não, todo significado pode se dar a partir do interior desse mundo. Isso é a pós-
modernidade: a verdade do factício.
Assim, não vale a pena confundir os termos: quando dizemos “verdade do factício”,
trata-se de uma relação estreita e unívoca, um ente lógico singular. O factício se transforma
em verdade, em uma nova (segunda ou enésima) natureza. O factício anula a verdade e
produz uma nova e dura definição desta. Muito mais perversa, é certo, porque dessa forma
todas as relações normais do ser se decompõem – mas eficaz, corresponde a essa função de
conexão entre o signo e o significado que é fundamentalmente o projeto da verdade. Essa
perversão é mais verdadeira que qualquer transcendência, que qualquer legitimação
tradicional da verdade. O factício não é vácuo; é ser, até que nele nos fatigamos e quase
tomamos sua sombra por um engano forte e real. Que consistente é essa superficialidade!não
conseguimos nos acostumar a ela, nos lamentamos de suas sombras? Mas elas nos envolvem,
atuam sobre nós e nos trai. Os efeitos são reais: por que não seriam as causas? É inútil se
lamentar. A superficialidade, o factício, são mais verdadeiros que o real? Em qualquer caso são
a única realidade.

Você objeta: outras vezes, e outra maneira, conhecemos a realidade. Aí está nossa
biografia para demonstrar. O real era grande e grosso ante nós, justo e injusto, verdadeiro e
falso, belo e feio. Entre essas alternativas lutamos – e não duvidávamos de seu valor –. Os anos
que conduziram a 68. Então, nossa estética foi a da resistência, a desmistificação e logo a
ofensiva. Peter Weiss descreve os recursos da estética da resistência. Em Berlim de 1937, em
pleno nazismo triunfante, um grupo de jovens artistas, participantes desse renascimento do
classismo que o nazismo auspiciava, visita o museu para estudar os magníficos restos do altar
de Pérgamo. Mas vivendo de novo aqueles valores, a liberdade, o heroísmo, a dignidade, a dor
daqueles mármores sublimes, reapropriando-se deles: descobriram o antifascismo. A plástica
antiga, recorrida filológica e politicamente, leva os artistas autodidatas a conclusões opostas as
do classismo nazi. Os mesmos corpos lhes empoem o desprezo das liturgias de Leni
Riefenstahl.

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