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ARTE E DO
TEATRO
MARCUS MOTA
FOTO CAPA:
OLHOS DE TOURO
DIR. MARCIA DUARTE
CRED. MILA PETRILLO
MARCUS MOTA
Site: www.marcusmota.com.br.
contato:marcusmotaunb@gmail.com.
METATEATRALIDADE ................................................... 43
(ÒMXVWDPHQWHSRULVVRTXHRSWDPRVSRUQRVYDOHUGHğOPHV
é preciso ver, analisar, estudar entender a obra para então
FRPSUHHQGHU RV FRQFHLWRV ( QÂR Ò TXDOTXHU ğOPH TXH VHU-
ve para o nosso propósito: as obras escolhidas manifestam
GHOLEHUDGDV HVFROKDV HVWÒWLFDV 6ÂR ğOPHV TXH QÂR Vö DSUH-
sentam uma história: são obras que exploram procedimentos
H WÒFQLFDV FLQHPDWRJUÀğFDV FRQWULEXLQGR SDUD IRUQHFHU XP
contexto extenso para nossas discussões.
Desenvolvi parte dessa ar- Estes estilemas privilegiavam o que chamados de leitura ima-
gumentação no texto “Dra-
maturgia, colaboração e nente das obras: os textos teatrais vistos como objetos fe-
aprendizagem:um encontro
com Hugo Rodas. In: VILLAR, chados em si mesmo, autônomos, como se gerassem seu
F.P e CARVALHO,E.F. (Orgs.) próprio sentido, independentemente de produzir intera-
Histórias do Teatro Brasiliense.
Brasília: IdA/UnB, 2003, v. 1, ções em uma concreta atualidade.
p. 198-217.”
E M E N T A
,GHQWLğFDÍÂRGHSDUÁPHWURVGHFRQVWUXÍÂRGHWHRULDVHP$U-
tes Cênicas.
P R O G R A M A
Semana 1
» Filme Zelig, de W. Allen;
» Apresentação do plano do curso e do guia de estu-
dos;
» 0ĎOWLSODV GHğQLÍøHV GH WHRULD HP $UWHV &ÓQLFDV
Avaliação Colles(expectativas);
» tarefas:questionário de avaliação;
» construção de glossário;
1
Semana 2
» Texto Ion, de Platão;
» Parâmetros básicos de Teoria em Artes Cênicas:
composição, realização, recepção e produção.
Tarefa:lição.
Semana 3
» Filme Dogville, de Lars Von Trier;
» Espacialização, localização e presença;
» Tarefa:questionário.
Semana 4
» Filme O selvagem da motocicleta, F. F. Coppola;
» Personagem e assimetrias entre agentes e recepção.
Semana 5
» Filmes Verdades e Mentiras, de Orson Welles;
» Dinâmica de perspectivas e interpretações.
» Tarefa:comentário escrito.
Semana 6
» O bebê Santo de Mâcon, de P. Greenaway;
» Metateatralidade: o espetáculo sobre o espetáculo;
» Tarefa: questionário.
Semana 7
» Filme Bodas de Sangue;
» Peça Bodas de Sangue, de F. Garcia Lorca;
» O teatro como campo interartístico;
» Tarefa: lição.
Semana 8
» )LOPH2ğHOFDPDUHLURGH3<DWHV
» Ética e estética: as fronteiras do fazer e do repre-
sentar;
1
Nessa semana vamos entrar em contato com uma experiência fun-
damental em Artes Cênicas: a multiplicidade de aspectos através dos
quais um evento cênico pode ser estudado. Este é o nosso ponto de
partida. A abertura que essa experiência de pluralização acarreta vai
nos acompanhar durante todo o curso.
1.1 COMPOSIÇÃO
4XDQGRYRFÓYÓXPğOPHRXDVVLVWHDXPDSHÍDKÀXPDLOXVÂRGD
ordem, da continuidade. Na maioria das vezes você permanece ali
sentado, imóvel e com o tempo há uma sucessão de entradas e sa-
ídas de agentes dramáticos, mudanças no espaço visível à platéia,
novas paisagens sonoras,entre outros procedimentos. Você consegue
(QğPFRPSRVLÍÂRQÂRÒXPPHURSODQHMDPHQWRSUÒYLRGRTXHYDL
acontecer. Mais que diagramas e promessas, trata-se de uma expo-
sição da multiplicidade de aspectos dos acontecimentos atualizados
em cena. Entre eles, a própria organização da obra.
1.2 REALIZAÇÃO
As obras não reduzem à sua organização interna nem aos seus articu-
ladores: há um grupo de pessoas que acompanha, avalia, analisa, in-
terpreta, analisa, reage ao que é exposto. A audiência é o acabamen-
to do espetáculo.Não está fora dele: a própria forma de organização
do espetáculo é efetivada em função das expectativas da audiência.
Durante muito tempo não se pensou teoricamente a recepção, pois
havia o privilégio da composição e se achava que a audiência era um
dado, que o povo ali presente simplesmente não acarretaria uma dis-
cussão teórica. É sintomático que a perda de público na contempo-
raneidade, o esvaziamento das salas de apresentação, a redução da
audiência a integrantes da casta artística está em sincronia com o in-
cremento das discussões sobre recepção. Em primeiro lugar, é preciso
ter em mente uma distinção básica entre público e recepção. Pessoas
reunidas informalmente como testemunhas curiosas de um evento
ocasional é algo bem diferente de um grupo de pessoas que saiu de
casa para participar de algo previamente acordado e que demanda
XP WHPSR HP XP HVSDÍR HVSHFâğFR H UHVSRVWDV PĎOWLSODV D PĎOWL-
plos estímulos lá apresentados. Um espetáculo é a transformação
GRSĎEOLFRHPUHFHSÍÂRHPSODWÒLDGHVWHHYHQWRHVSHFâğFRTXHIRL
construído para ser reconhecido no jogo de suas escolhas e efeitos.
Há todo um campo de questões e procedimentos de recepção a ser
explorado. Mesmo técnicas dramatúrgicas e atuacionais aparente-
mente tão simples como a personagem-escada são de fato materia-
lizações de questões recepcionais: em cena um agente faz o papel de
que não entende o que está acontecendo. Quando mais ele não sabe,
mais a audiência conhece e participa do espetáculo. Assim a cons-
trução da recepção, a transformação do público em platéia começa
em cena:alguém ou um grupo de atores no palco atua na posição do
auditório, como platéia. Esses papéis são dinâmicos: ‘ser platéia’não é
privilégio de um personagem.
$HVFROKDGRğOPHVHGHXIXQÍÂRGHVVDFRQMXQÍÂRHQWUHDPELYDOHQWHV
projeções que podemos observar na multiplicidade virtual que Zelig
expressa. Inicialmente, é atrativa a idéia do diverso, do vário, do hete-
rogêneo. Mas a lógica do heterodoxo é complexa, pois integra contradi-
ções e co-existência de elementos que poderiam ser excluídos ou nega-
dos em processos não orientados para a multiplicidade. Assim, recorrer
¿GLIHUHQÍDDRPĎOWLSORUHTXHUTXHVHIDÍDLVVRQÂRVöVXSHUğFLDOPHQ-
te. Não adianta defender a diferença, a pluralidade se não há de fato
um enfrentamento de uma realidade em sua diversidade material.
'LVVR KÀ XPD DOWD WD[D GH WHDWUDOLGDGH HP =HOLJ 3DUD TXH R ğOPH
faça efeito, é preciso que se organize em torno de parâmetros de
composição e recepção cênicos. Como um bizarro show de varieda-
des, Zelig se mostra em suas transformações. Ele é o suporte para a
diversidade de aspectos que sucessivamente são exibidos na tela. O
ğOPHVHDUWLFXODFRPRDWUDÍøHVFRPRTXDGURVGDVVLWXDÍøHVGH=HOLJ
em contato e metamorfose. A personagem coloca em primeiro pla-
no seu potencial variacional, seu de estatuto de máscara. Ao romper
com a identidade estável entre ator e personagem, e recaindo nesse
FLFORLQFHVVDQWHGHQRYDVğJXUDVRğOPHFRORFDHPTXHVWÂRROLPLWH
GDFDUDFWHUL]DÍÂRHROLPLWHGRLGHQWLğFDÍÂRSRUSDUWHGDSODWÒLDGD
identidade do agente. Se Zelig pode ser qualquer coisa, e não conse-
gue impedir essa atualização do outro em si mesmo, chegamos aos
extremos da plasticidade daquilo que se mostra ao público, podemos
atingir e enfatizar o horizonte plural de perspectivas de um evento.
2ğOPHSRLVH[SORUDHVVDSRVVLELOLGDGHGDğJXUDVHDPSOLDUHPPĎO-
tiplas concretizações sendo ao mesmo tempo uma coisa só. E essa
tensão entre Zelig e suas máscaras produz tanto a dramaturgia da
IRUPDGRğOPHTXDQWRRULHQWDDVH[SHFWLYDVGDUHFHSÍÂR
Com Zelig, então, temos uma basilar atividade que projeta e anteci-
pa alguns procedimentos desse curso:
FDGDğOPHHVFROKLGRH[SORUDXPFRQFHLWRH[SORUDWöULRTXHÒGLVFX-
tido e compreendido a partir da interação com a obra.
( D SDUWLU GLVVR XP ğOPH TXH VH RUJDQL]D QD KHWHURJHQHLGDGH GD
personagem, em suas máscaras, possibilita uma compreensão mais
concreta de como diversidade de aspectos de um referente poder ser
articulados e conjugados.
Como durante o semestre vamos ter várias obras e conceitos para dis-
cutir e analisar, um bom ponto de partida é começar a se exercitar nessa
correlação entre conceitos e experiências, entre percepções e eventos.
Não apenas você percebe conhece algo: a própria percepção, o próprio
conhecimento é um evento. Teorias teatrais precisam dar contar dessa
GLPHQVÂRUHĠH[LYDGDVREUDVGHDUWHDLQWHUDÍÂRHLQWHUSUHWDÍÂRGH
ğOPHVHSHÍDVQÂROLPLWDDH[SRUFRPRHODVVHHIHWLYDP2SURFHVVRGH
sua compreensão abarca o próprio intérprete. As obras nos mostram
algo porque nós somos esclarecidos, expostos por elas.
2
Nessa semana vamos retomar e ampliar alguns conceitos trabalhados
DQWHULRUPHQWHSRUPHLRGDOHLWXUDHGLVFXVVÂRGHXPWH[WRğORVöğFR
de grande importância: o diálogo Ion, de Platão. Nos anexos você vai
encontrar todo o texto traduzido e um ensaio que comenta questões
que o encontro entre o pensador Sócrates e o artista Ion possibilita.
Dessa forma tanto o tema do diálogo quanto sua própria organização ma-
nifesta o uso de atos e referências encontradas em eventos performativos.
Antes de tudo, notar que o texto escolhido relaciona-se com uma ci-
GDGHHXPWHPSRHVSHFâğFRV$WHQDVVÒFXOR,9DQWHVGH&ULVWRD&
A cidade, além de famosa por suas instuições sociais e políticas, des-
taca-se também pelos concursos de tragédias e comédias. Há toda
uma fervilhante atividade em torno desses concursos, festivais por
meios dos quais a cidade se revistava e era visitada por estrangeiros,
principalmente no caso das Tragédias.
O que devemos realçar nessa semana é que assim como a obra teatral
é o arranjo de suas escolhas e de seus multiplos aspectos, da mesma
forma teorias teatrais são atos seletivos que partem da complexida-
de e heterogeneidade do evento cênico. Arranjos de arranjos, as teo-
rias, como as obras, são obras, possuem sua contrutividade.
3
Nessa semana vamos trabalhar com os conceitos de Espaço, localiza-
ÍÂRHSUHVHQÍDDSDUWLUGRHVWXGRGRğOPHDogville,de Lars Von Trier.
2ğOPHGH/DUV9RQ7ULHUH[SORUDHPYÀULRVQâYHLVDDSUR[LPDÍÂRHQ-
WUHFLQHPDHWHDWURGHVGHDHVSHFâğFDFHQRJUDğDHGLVWULEXLÍÂRGRV
atores até a aplicação da teoria do distanciamento Brechtiniana a
todo o processo criativo.
9ROWDQGRDRğOPHYHPRVFRPRDRQÂRWUDEDOKDUFRPLQWHUQDVGHHV-
SDÍRVLVRODGRVSHODLPDJLQÀULDTXDUWDSDUHGHRQGHğFDULDDFÁPHUD
Lars Von Trier conecta todas as casas da cidade, todos os seus ha-
bitantes na partilha de uma existência que para os espectadores é
demonstrada como fundada no ar, no vazio de algo que não se vê. Da
teatralidade da quarta parede para a teatralidade que trabalha com
uma exposição generalizada temos a amplitude do questionamento
dos nexos interindividuais por meio da exploração dos vários espaços
FRQVWUXâGRV QR ğOPH 3RLV R PDLV LPSRUWDQWH Ò TXH DV SDUHGHV DV
portas, os espaços privados permanecem presentes em suas marcas
para os atores, o que vincula essas barreiras a estratégias de disfarce
de ocultamento das ações mais terríveis, tudo isso sob nossos olhos.
DogvilleQÂRVHXWLOL]DVXSHUğFLDOPHQWHGHPROGXUDVWHDWUDLV2ğOPH
detidamente se empenha em trabalhar com os diversos aspectos e
implicações do espaço de representação e suas expectativas recep-
FLRQDLV $ GHVFRQWUXÍÂR GD TXDUWD SDUHGH QR ğOPH WHP PĎOWLSORV
efeitos: demonstra que a questão estética acopla-se a uma dimen-
são política e ética dos acontecimentos. As formas artísticas não são
ideologicamente neutras. Elas acarretam valores e disposições cog-
QLWLYDVHDIHWLYDV$RğPRğOPHDSUHVHQWDVHFRPRXPDSDUÀEROD
que transforma uma cidadezinha norte-americana como laboratório
estético-existencial.
O fato de Lars Von Trier produzir essa ampla reconsideração das re-
ODÍøHVLQWHULQGLYLGXDLVDSDUWLUGHXPDREUDğOPDGDHPXPJDOSÂR
nos mostra a intensidade da ampliação do conceito e experiência do
espaço. Foi somente pela clara compreensão que a espacialidade do
ğOPH WUDULD FRQVLJR PDLV TXH XPD PDQHLUD QRYD GH DSUHVHQWDU RV
acontecimentos que Lars Von Trier conseguiu problematizar não só o
ID]HUğOPHVFRPRDDSUR[LPDÍÂRHQWUHğOPHVHFLQHPD
4
1RğOPHGHVWDVHPDQDYDPRVHQWUDUHPFRQWDWRFRPRFRQFHLWRGH
SHUğVDVVLPÒWULFRV(VVHSURFHGLPHQWRIRLEHPGHVHQYROYLGRQDHOD-
boração das tensões entre personagens e entre personagens e públi-
FRQD7UDJÒGLD*UHJD1RğOPHO selvagem da motocicleta isso é bem
HYLGHQWHQRFRQWUDVWHHQWUHRSHUFXUVRGDSHUVRQDJHP5XVW\-DPHV
que procura seguir os passos de seu irmão e modelo. A tensão entre
o modelo e sua reprodução é observada nas diferentes perspectivas
dos dois personagens quanto a um estilo de vida que não faz mais
sentido: o universo das gangues.
Com a chegada do irmão mais velho, as coisas se alteram.
0XLWDVREUDVWHDWUDLVHFLQHPDWRJUÀğFDVVHRUJDQL]DPWRPDQGRSRU
base linhas de ação de personagens em contraste e oposição. Em vir-
WXGHGHVVDDOWDWD[DGHIUHTđÓQFLDKÀDGLVSRVLÍÂRGHVHSHQVDUTXH
WRGDVDVREUDVVHRUJDQL]DPGRPHVPRPRGRTXHWHDWURÒFRQĠLWR
TXHDHVVÓQFLDGHHYHQWRVGUDPÀWLFRVÒDSUHVHQWDUFRQĠLWRV3RUÒP
RFRQFHLWRHDH[SHULÓQFLDGHVHHIHWLYDUUHDOLGDGHVFRQĠLWXRVDVHP
cena é mais que uma generalidade. É preciso observar que oposições,
constrates, contradições, lutas e todo o vocabulário em torno de ten-
VÂRHQWUHSHUVSHFWLYDVHDÍøHVFRQĠLWDQWHVÒPDLVTXHFRQVWDWDÍøHV
de generalidades. Os níveis de oposição e tensão se distribuem por
todos os aspectos da experiência teatral e de sua organização. Por
PHLRGDUXEULFDŃSHUğVDVVLPÒWULFRVńYDPRVFRPHÍDDSHQVDUPHOKRU
como se dá o contexto de produção de situações divergentes que tan-
to manifestam a construção de personagens quanto de sua recepção.
&RPLVVRÒSUHFLVRWHUHPPHQWHTXHRFRQĠLWRLQVWDODGRHPFHQD
não se reduz a uma idéia, a uma oposição abstrata, previamente de-
ğQLGD&RPRVHYÓQRğOPH5XVW\-DPHVVHRSøHDRVHXLUPÂRHGHOH
se distingue em razão do modo como reage e interpreta a vida das
gangues. O entrechoque entre os irmãos é em relação ao seu conheci-
PHQWRDDVSHFWRVFRJQLWLYRV5XVW\-DPHVSRVVXLXPDOLPLWDGDSHUV-
pectiva em relação à rotina de autodestruição e perda de tempo da
aventura que sempre, para ele, é desventura. Em virtude desse saber
GHPHQRV5XVW\-DPHVVHPSUHSHUGHVHPSUHHVWÀIHULGRFRPRVHYÓ
nos confrontos entre rivais, nas conquistas amorosas.
2FRQĠLWRGHSHUVSHFWLYDVH[LELGRQRğOPHQÂRVHUHGX]DRPRGRFRPR
RVSHUVRQDJHQVVÂRHODERUDGRV$DVVLPHWULDFRQMXJDDFRQğJXUDÍÂR
do que se mostra para orientar as expectativas da recepção. Quanto
PDLV 5XVW\ -DPHV HQIDWL]D VXD OLPLWDÍÂR FRJQLWLYD PDLV D DXGLÓQFLD
percebe essa limitação. O não saber da personagem induz ao incre-
PHQWRFRJQLWLYRGDUHFHSÍÂR4XDQWRPHQRV5XVW\-DPHVHQWHQGHR
que está acontecendo, mais a platéia compreende o jogo da obra.
Com isso podemos ter acesso a uma visão mais ampla do conceito de
personagem e, disto, de espetáculo. Se deliberadamente as personagens
são elaboradas a partir de um conjunto de possibilidades e restrições
cognitivas, elas não são simplesmente pessoas, como é o hábito de con-
cebê-las. Personagens são um conjunto de determinadas escolhas que
são mostradas em cena. Essas escolhas se traduzem no que elas são ca-
pazes de mostrar. Uma personagem não pode tudo: ela se distingue por
certos traços e essa seletividade contribui mais para a compreensão do
espetáculo que dela mesma. Antes de saber quem é, a personagem exibe
o que é preciso entender para compreender e usufruir a obra que se en-
cena. Os agentes dramáticos são articuladores da cena e não indivíduos
com sua identidade. A identidade da personagem é a do espetáculo.
2FRQFHLWRHH[SHULÓQFLDGHWUDJÒGLDÒXPDH[SORUDÍÂRGRVSHUğVDV-
simétricos: o desconhecimento do herói, sua cegueira ou suas reso-
luções produzem a ampliação do conhecimento da platéia. Quanto
PDLVHOHDYDQÍDSDUDVXDUXâQDDRQHJDUDOWHUQDWLYDVHUHDğUPDUVHX
limite cognitivo, mais a audiência conhece outras formas de se agir.
$RğPQDGDUHVWDDOÒPGDPRUWHDSOHQDFHVVÂRGHSRVVLELOLGDGHV
5
1HVVD VHPDQD UHWRPDPRV H DPSOLDPRV D UHGHğQLÍÂR GR FRQFHLWR
e experiência de personagem que vimos na Semana Cinco, aproxi-
PDQGRWDOUHGHğQLÍÂRGDVUHĠH[øHVVREUHPXOWLSOLFLGDGHGHDVSHFWRV
envolvidos na organização e percepção de eventos que exploram a
teatralidade, realizadas na Semana de abertura deste curso.
3DUDWDQWRRğOPHVHRUJDQL]DHPWRGRVGHHVWLOKDÍRVGHXPDPXOWLSOL-
cação de partes, de cortes, reunidos pela edição. Mais que a continuidade
das cenas, o que se destaca é a tensão entre os pedaços e sua reunião.
Dos planos-detalhe à sucessão de locações e diversos informantes, o
ğOPHSULPDSHORFRQVWDQWHUHGLUHFLRQDPHQWRGDLPDJHPH[LELGDHGDV
informações disponibilizadas. A rapidez com que materiais são apresen-
tados acarreta sua sobreposição: um excesso que se projeta em todas
as direções e que agride o espectador, se lança contra ele, não propor-
cionando o tempo de assimilação ou questionamento do que se mostra.
'DâKÀXPGHVORFDPHQWRGHFLVLYRDKLVWöULDGRIDOVLğFDGRUVHWRUQD
a exposição do modo como a narrativa mesma é organizada. O vir-
WXRVLVPRGDHGLÍÂRGRğOPHLQWHUIHUHQDDSUHVHQWDÍÂRGDELRJUDğD
GH(OP\UGH+RU\TXHGHIDWRH[LVWLXWHYHXPDŁFDUUHLUDłFRPRIDOVL-
ğFDGRUGHREUDVGHDUWH1RHQWDQWRRğOPHFKDPDPDLVDWHQÍÂRDR
SURFHVVRGHVXDUHDOL]DÍÂRFLQHPDWRJUÀğFDTXH¿QDUUDWLYDGH(OP\U
F for Fake narra a si mesmo, justapondo a colagem de vários depoi-
mentos com a construtividade da costura dos vários planos.
'HVVDPDQHLUDYHURğOPHHHQIUHQWDUVXDHVSHFâğFDFRQVWUXWLYLGDGH
é relacionar a experiência de platéia ao conceito da dinâmica de pers-
pectivas e interpretações que Verdade e mentiras enfatiza, mas que, em
verdade, está em experiências cotidianas e artísticas as mais diversas.
6
&RPRYLPRVQDVVHPDQDVDQWHULRUHVREUDVFLQHPDWRJUÀğFDVHWHD-
trais partilham tanto a realidade multitarefa de sua preparação, re-
alização e recepção, quanto chamam atenção para si mesmas, para
seu processo criativo. A amplitude dessas obras faz transparecer seu
apelo para a consideração do modo como são organizadas. É o que
podemos chamar de metateatralidade. Explicando: normalmente, ao
DVVLVWLU XP ğOPH RX XPD REUD WHDWUDO DVVRFLDPRV R PXQGR UHSUH-
sentado com o mundo tal qual conhecemos. Mas algumas obras, por
meio modo como são organizadas e performadas, evidenciam rela-
ções diferentes da audiência com a encenação. No caso de obras tea-
trais temos o fato que tudo que é apresentado está disposto em um
espaço preparado, um arranjo de elementos e movimentos. Quando
o espectador é movido a enfatizar em sua percepção que aquilo que
observa é a própria organização e distribuição dos elementos. Ele se
localiza como estando um lugar chamado teatro vendo uma peça, um
FRQMXQWRGHDWRVHHVFROKDVEHPGHğQLGDV'DâWHPRVRWHUPRPHWD-
teatralidade: quando a cena se mostra como cena, quando o foco da
cena é a exibição mesma dos materiais e das atividades que possibi-
lita haver um espetáculo.
Há vários meios para se produzir esse efeito da obra sobre ela mes-
ma. Em Hamlet, por exemplo: na cena dos atores, temos uma peça
representada para o rei Cláudio. Ou seja, temos uma peça dentro de
uma peça. Outro exemplo: o centro do primeiro ato de A gaivota, de
Tchecov, é uma peça falhada. Novamente, um espetáculo dentro de
outro. Ou seja, temos metateatro.
7
(VWD YDL VHU VHPDQD GLIHUHQWH YDPRV WHU XP ğOPH H XPD SHÍD
MXQWRV2ğOPHÒXPDYHUVÂRFLQHPDWRJUÀğFDGRWH[WRWHDWUDOBodas
de Sangue. Para melhor compreensão do conceito e a experiência de
campo interartístico, a análise contrastiva entre as duas obras será
fundamental. Inicialmente, em um curso que se vale de obras fílmicas
para se trabalhar conceitos teatrais o relacionamento entre diversas
artes é desde já um pressuposto de trabalho. Ou seja, durante todo
o curso nos valemos do conceito sem nomeá-lo. Estava explícito, mas
sem sua expressão verbal ou um tempo mais detido em seu exame.
2ğOPHDPSOLDDFRUHRJUDğDGDSHÍDHVFULWD(PVXDYHUVÂRFLQHPD-
WRJUÀğFD&DUORV6DXUDFRORFDRVLQRPLQDGRVDJHQWHVGHVVDWUDJÒGLD
anunciada nos bastidores do ensaio geral da peça homônima, nos ca-
marins e nas nos estúdio de dança como que se aquecendo para o
espetáculo. Este jogo entre os atores e as personagens, este jogo me-
1RğOPHğFDPEHPHYLGHQWHVDVRSÍøHVGH&DUORV6DXUDTXHQÂRVÂRDV
mesmas de Garcia Lorca. Porém, o diálogo entre as obras é realizado não
apenas a partir dos elementos que permanecem. Carlos Saura amplia a tra-
PDFRUHRJUÀğFDSUHVHQWHQRIRUPDOLVPRSRÒWLFRGDREUDGH/RUFD1RWH[-
to de Lorca, as personagens habitam um mundo que se mostra por meio
de escolhas bem nítidas de linguagem, cores, espaços e contracenações.
2SWDQGRSRUWUDEDOKDUFRPğJXUDVFRPSHUVRQDJHQVWLSR/RUFDDGHQVD
a sensação de fatalismo do espetáculo por apresentar personagens que
cumprem programas narrativos pré-estabelecidos e se expressam em fa-
las sentenciais e poéticas que limitam perspectivas individuais. Como ma-
ULRQHWHVDVSHUVRQDJHQVUDWLğFDPRTXHGHODVVHHVSHUDHHVWDFHUWH]D
FDGDYH]PDLVHğFLHQWHGRTXHYDLDFRQWHFHURULHQWDHFDWLYDDUHFHSÍÂR
8
&KHJDPRV DR ğP SHOR PHQRV GHVWH FXUVR ( SDUD HQFHUUDU YDPRV
LGHQWLğFDUVLWXDÍøHVWHDWUDLVEÀVLFDVHGLVFXWLODVSRUPHLRGRğOPH2
ğHOFDPDUHLUR1RğOPHWHPRVXPH[SHULHQWHDWRUVKDNHVSHULDQR
em torno do qual gira os integrantes de uma companhia teatral du-
UDQWHDVHJXQGDJUDQGHJXHUUD2VFRQVWDQWHVERPEDU-
GHLRV DOHPÂHV QÂR LQWHUURPSHP DV YLDJHQV GD FRPSDQKLD 2 ğOPH
habilmente capta os bastidores das apresentações, exibindo como o
velho ator serelaciona com os companheiros, sejam eles atores, téc-
nicos e auxiliares. Nos extremos das tensões temos o ator principal
e seu ajudante mais próximo – Norman. Opostos na hierarquia da
companhia, eles vivenciam uma estranha cumplicidade, aproximando
afetos e mudança de status: ora o camareiro está no comando do in-
VHJXURHGHVTXLOLEUDGRDWRUSULQFLSDOLGHQWLğFDGRDSHQDVFRPRŁ6LUł
ora ‘Sir’ descarrega todo seu ódio e frustrações contra o humilhado
HIUÀJLOFDPDUHLUR1XQFDHVTXHFHUTXHRğOPHÒXPDDGDSWDÍÂR
FLQHPDWRJUÀğFDGDSHÍD7KH'UHVVHUHVFULWDSRU5+DUZRRGDSDU-
tir de suas experiências como camareiro de um ator shakesperiano,
HVWUHRXHP/RQGUHVHPHQD%URDGZD\HPWHQGRGHSRLV
YÀULDVUHPRQWDJHQV7RP&RXUWHQD\IH]RSDSHOGH1RUPDQQDVPRQ-
WDJHQVDFLPDFLWDGDVHQRğOPH
$VVLPRğOPHQRVDOHUWDFRQWUDDLGHDOL]DÍÂRGDDWLYLGDGHWHDWUDOFRQ-
tra a separação entre arte e existência. Em nome da arte, por melhor
que seja, não se pode permitir que barbaridades sejam cometidas. O
ğOPHDFRPSDQKDEHPHVVDGHFDGÓQFLDHPRUWHGH6LUHQFDVWHODGR
HPVXDUDGLFDOUHDğUPDÍÂRGHVLPHVPRSHUGHQGRFRQWDWRFRPRV
Do outro lado, está Norman. Para que Sir se agigante, é preciso que o
outro se rebaixe. Os excessos desenham uma hierarquia real que se
DYROXPDHPXPDKLHUDUTXLDLPDJLQÀULDTXHDPSOLğFDPHGRVGHVH-
jos, ambições.
0DVDRğPSDUDDPHVPDDUWHTXHUHXQLXGLIHUHQWHVSDUWâFLSHVGH
Sir a Norman, temos a celebração de um fazer em todas as suas con-
tradições: para que haja a cena, todos deixam de ser quem são, todos
deixam suas picuinhas de lado e procuram salvar a cena de A Tem-
pestade.
(LV DV GLYHUVDV OLQKDV GH RULHQWDÍÂR GR ğOPH R HQWUHFKRTXH HQWUH
ética e estética, no jogo entre Norman e Sir é melhor explorado nos
momentos coletivos de trabalho em prol da arte que os aproxima e os
ID]HQWUDUHPFRQĠLWR'DâRVHQVRWUDJLF÷PLFRGRğOPHTXDQGRSHU-
cebemos que a tensão entre palco e bastidores não se completa, que
não a morte do ator principal ou mesmo suas ações em vida, mesmo
reprováveis, não produzem o efeito tanto de acabamento da obra ou
GDH[LVWÓQFLDTXDQWRGHXPDDUJXPHQWDÍÂRHRXDYDOLDÍÂRğQDOVR-
bre o que houve. A resposta emocional ambivalente ao percurso qui-
[RWHVFRGDGXSODLPSHGHTXHVHFRQYHUWDRğOPHHPFDUWLOKDPRUDO
$RDSUR[LPDUDFRPLFLGDGHGRWHUUâYHORğOPHQRVFDSDFLWDQÂRIXQGLU
ÒWLFDHHVWÒWLFDDGHVFRQğDUGHXPDDERUGDJHPGLVFXUVLYDTXHUHGX-
ziria os eventos da tela a modelos comportamentais. Pois o excesso
GHWRGDRUGHPDWXDOL]DGRQRğOPHSURPRYHRLQWHUYDORUHJHQHUDGRU
entre ações e suas motivações, entre conceitos e experiências, entre
palco e vida. E pensando este intervalo, essa impossibilidade de total
fusão entre discurso e existência que nos despedimos deste curso so-
bre Teorias Teatrais. Como de volta para o começo, tomamos parte de
uma consciência sobre as ações, sobre os atos de conhecer e produzir
conhecimento.
PLATÃO
REVISTA VIS. REVISTA DO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM ARTES DA UNB. V.5. N.2,
JULHO;DEZEMBRO DE 2006,
80-93.S
9
“SÓCRATES
Mas olha se não é o famoso Íon! De onde você está vindo pra passar
agora um tempo com a gente? De Éfeso, tua terra?
ÍON
De jeito nenhum, Sócrates. Venho de Epidauro, das festas em honra
de Asclépio.
SÓCRATES
Então os habitantes de Epidauro também organizam concursos de
rapsodos para a divindade?
ÍON
Mousikê.
Isso mesmo, assim como concursos das outras habilidades.
SÓCRATES
E como foi? Você competiu? Fale! Como você se saiu?
ÍON
Ganhamos o primeiro prêmio, Sócrates.
SÓCRATES
Meus parabéns! Se continuar desse jeito, vamos ganhar até as Pana-
tenéias.
ÍON
Assim seja, se a divindade quiser.
SÓCRATES
Sabe, Íon, por muitas vezes eu senti inveja do que vocês, os rapsodos,
têm a capacidade de fazer. Por causa do que vocês fazem, vocês sem-
pre precisam tanto estar bem vestidos, com a aparência o mais esplên-
dida possível, quanto é necessário que vocês ocupem grande parte
do tempo com as obras de muitos autores excelentes, principalmente
Technês. Homero, o melhor e mais divino deles, e examinar a fundo mais seu
pensamento que suas palavras. Como isso é invejável! Não há como se
tornar rapsodo de excelência se não entender o que o poeta disse. Pois
o rapsodo deve ser, para os ouvintes, o intérprete do pensamento do
poeta. E é impossível fazer isso bem sem ter conhecimento do que o
poeta diz. Realmente todas essas coisas são dignas de inveja.”
Mas, junto com essa assimetria, é-nos oferecida também a inicial ex-
cepcionalidade do estrangeiro. Íon é um vencedor de disputas, um
performer premiado. Por mais que, já desde a abertura, Sócrates ma-
QLSXOHRVGDGRVGDVUHVSRVWDVGH
RQFLUFXQVFUHYHQGRRV¿VXDGHğ-
QLÍÂR¿GHğQLÍÂRTXH6öFUDWHVDSUHVHQWDGH
RQHVWDPRVGLDQWHGH
um rapsodo que chega após conquista de vitória em concurso (Epi-
GDXURSDUDJDQKDURXWUD3DQDWHQÒLD
RQYHPSDUDJDQKDURIHVWLYDO
de Atenas, festival da cidade para toda a Hélade.
1RPöGXORVXEVHTđHQWHDSöVHVVHVSUHOLPLQDUHVDWRVRHPSDUHOKD-
mento dos agentes é alterado. Sócrates ocupa uma posição mais fo-
cal, expressa por bloco de falas mais contínuo e extenso. A partir des-
se momento, Sócrates terá as maiores falas do diálogo e determinará
DVDÍøHVGH
RQ$FRQWUDFHQDÍÂRDVVLPÒWULFDYDLLQYHUWHUDVTXDOLğ-
cações primeiras presentes no módulo inicial de contato: o vencedor
Íon vai se constituir em objeto de zombaria.
Em sua primeira longa fala, Sócrates situa seu encontro com o rapso-
do em termos de rivalidade e falso elogio do adversário. A ‘inveja’ que
6öFUDWHVDğUPDSRVVXLUTXDQWR¿DUWH¿SURğVVÂRGH
RQQÂRYHPGH
DJRUD0DLVGHXPDYH]PXLWDVYH]HVLVVRVHGHX7DOIUHTđÓQFLDSRVWD
Sócrates como um familiar membro da audiência dessas competições,
um observador contumaz de performances. Ao mesmo tempo, tal fre-
TđÓQFLDUHYÓRFRQWDWRLQLFLDO2DFDVRGRHQFRQWURFHGHOXJDU¿RFD-
VLÂRSUHPHGLWDGD(PIXQÍÂRGLVVRWRGDVDVDğUPDÍøHVYÂRJDQKDQGR
contexto. As perguntas de Sócrates, desde a saudação, melhor se com-
preendem.Como Sócrates já observava as performances competitivas
de rapsodos, o encontro com um rapsodo fora de seu espaço de com-
petição e exibição possibilitará a performance mesma de Sócrates. Um
adversário preparado e um outro desavisado se entrevêem.
$ VHSDUDÍÂR H LVRODPHQWR GD ğJXUD GH
RQ HVWÀ SUHVHQWH HP WRGD
a demonstração de saber quanto ao ofício rapsódico que Sócrates
apresenta nesse módulo. Entre Íon e Homero, temos dois não grupos
plurais não pessoais, genéricos de classe. Íon, aquele que atravessa
cidades, encontra-se afastado do rapsodo modelo. Então a estraté-
gica citação de Homero vem marcar o alheamento de Íon quanto à
tradição que ele se vê vinculado em sua atividade performativa. A
série apresentada por Sócrates é uma ordenação genética que vai
FXPXODQGRGHTXDOLğFDÍøHVSRVLWLYDVRSRQWRGDFDGHLDTXHPDLVVH
apresenta distante de Homero, o ponto-origem.
Diante disso, torna-se claro até aqui é esse tentativa socrática de exor-
bitar sua presença, a atualidade da performance diante de alguém e
seus efeitos transformadores sobre a audiência. Sócrates havia ten-
tado coordenar Íon a um espaço único de ocorrência sem contexto
de performance ou tirar do rapsodo o seu lugar de exibição, seja no
festival em honra de Asclépio, seja em honra de Atenas. Não obstante
LVVR6öFUDWHVDIDVWDVHGRUDSVRGRLQGLYLGXDOHGHVFUHYHVHXRğFLR
DWÒFKHJDU¿ğJXUDSURWRWâSLFDGH+RPHUR7HQGRHPVXDVPÂRVXP
panorama do ofício, Sócrates pode, sem ser um rapsodo e sem fazer
o que um rapsodo faz, dizer como o rapsodo deve ser e o que ele tem
de fazer. A presença do rapsodo depende agora do que dele se fale.
Seu corpo agora manifesta aquilo que as palavras de um outro que
QÂRÒUDSVRGRGHWHUPLQD2GLWRVXSODQWDDğJXUDHDYR]SUHVFLQGH
GHRXWUDVYR]HV+ÀXPSRGHUWUDQVIRUPDGRUQDSDODYUDTXHXQLğFD
as diferenças, porque as diferenças perderam seus suportes de ex-
pressão e sua pertinência a situações e modalidades de realização. A
GLYHUVLGDGHGHVVDVVLWXDÍøHVHWUDGLÍøHVHPFRQWDWRHFRQĠLWRHVWÂR
submetidas, nesse momento, à aplicação de um critério que extrapo-
la seus contextos.
(VVHUHWLUDUVHGRHYHQWRTXHSOXUDOPHQWHÒGHğQLGRSDUHFHVHUXPD
estratégia da performance de Sócrates desde o início do diálogo. A
ŁVÒULHłTXHFXOPLQDHP+RPHUREHPGHPRQVWUDLVVR$ğQDHVVDÒD
base da rivalidade entre Íon, o de muitos lugares, e Sócrates. Plurais
estão ao lado de Íon: ele é um rapsodo que passa por cidades, fes-
tivais e que se defronta com muitas habilidades. Já Sócrates vê nos
rapsodos um ofício cuja peculiaridade de seu resultado de produção
é redundantemente referido como ‘aparência’. Na preparação para a
performance só se faz uma coisa também e, mesmo com tantos auto-
res e obras para se estudar, para preparar somente um é importante
$DğUPDÍÂRHPXPSULPHLURPRPHQWRSDUHFHSHUWHQFHUDRFRQMXQWR
de atos que constituiriam a imagem seletiva do que os rapsodos fa-
zem ao se prepararem para a performance e ao executarem-na, como
VHSRGHSHUFHEHUQDVÒULHGHLQğQLWLYRVTXHVHVXFHGHP0DVHQWUHR
ocupar-se\ desperdiçar tempo com dos poetas e a nova ordenança
de se aprofundar no ‘sentido’ e não na performance, há um hiato – a
H[RUELWDQWHğJXUDGH+RPHUR(QWÂRDVÒULHQÂRÒUHJXODUOLQHDU$
TXHEUDQDSHUIHLÍÂRGRHQFDL[HÒVLWXDGDQRWÒUPLQRGDVHTđÓQFLD
(RUHFXUVR¿DVVLPHWULDQRWÒUPLQRGDVHTđÓQFLDÒXWLOL]DGRDTXLHR
fora na série que vai de Íon a Homero. E nas duas o elemento deses-
tabilizador é o mesmo Homero.
$VVLPSRU+RPHUR6öFUDWHVIDODVHPVHULGHQWLğFDGRDRTXHIDODDWUL-
buindo a outros, a uma pretensa validade indiscutível o paradigma das
ações que acarretará transformações em seu auditório próximo.
Todas as noções que Sócrates tem trabalhado até aqui encontram seu
esclarecimento em um modelo que justapõe o melhor e o pior, ou um
movimento que se baseia em restringir a multiplicidade em prol de um
estado separado, consumado e excelente, estado esse fruto de esfor-
ços de diferenciação e afastamento. Esse não comum e extraordinário
não se atinge por meio das práticas desempenhadas pelos rapsodos. O
consumado rapsodo só existe no plano da virtualidade, do condicional.
$R ğP R VDEHU HVVH H[HUFâFLR FRQVWDQWH GH DWHQÍÂR VREUH R TXH R
poeta diz, é um saber sobre a performance, sobre operacionalidade
dos procedimentos colocados em cena para produção de determina-
dos efeitos. É isso que Sócrates exige de seu interlocutor, agindo por
meio de tantas máscaras e improvisos. Se você quer ser um perfor-
mer consumado, excelente, basta compreender o que um performer
consumado faz. Se não, ocupe o lugar de platéia. Essa transmissão
de conhecimento durante a observação das práticas é válida tanto
Assim, temos:
5. o modelo socrático de excelência não se aplica em toda sua ex-
WHQVÂRDRRğFLRTXHWUDEDOKDFRPğVLFLGDGHV
BIBLIOGRAFIA
BREMER, J. Plato’s Ion. Philosophy as Performance. Bibal Press, 2005.
10
10.1 TEATRO
CINEMATOGRÁFICO
Essa pureza recalcitrante cria
as ambivalentes definições de Em 1951, no ensaio” Teatro e cinema”, André Bazin, refutando
extra-cinematográfico, através D SXUH]D GD OLQJXDJHP FLQHPDWRJUÀILFD FLQHPD SXUR H R ŃSUH-
das quais o monopólio técnico
de produção de filmes exclui conceito contra o teatro filmado” , propõe que se reconsidere “
uma dimensão composicional
mais integral. O argumento a história do cinema, não mais em função dos títulos e sim das
da pureza da linguagem cine- estruturas dramáticas do roteiro e da mise-en-scène”.2& O
matrográfica, ao fim, aplica-se
a questões não estéticas. Em sucesso das adaptações de obras teatrais para a tela realizadas
razão disso, a aproximação de
obras cinematrográficas a ou- por Laurence Olivier ( Hamlet 2UVRQ:HOOHVMacbeth-Reinado de
tras estéticas e processos cria-
tivos questiona este purismo e
sangueH:LOOLDQ:\OHUPérfida HQWUHRXWURVH[SXQKDQÂRVöD
sua exclusividade narrativa. fragilidade do apagamento e ocultação do suporte teatral opera-
Para maior agilidade da leitura, do pela narrativa cinematográfica clássica. Exibia, passava para a
uso as notas referência biblio-
gráfica e siglas seguidas do nú- tela, a teatralidade do drama, de forma a evidenciar que “ o tema
mero da página. Refiro-me aqui da adaptação não é o da peça, é a própria peça em sua especifici-
ao livro O cinema (São Paulo,
Brasiliense, 1991) pela sigla OC.. GDGHFÓQLFDń2&
10.1.1 MOMENTO 1
Resumido na rubrica o “ teatro acode o cinema”, postula que a tra-
dição multissecular do texto teatral pode enriquecer intelectual-
mente os roteiristas. Provocativamente, ”quanto mais o cinema se
SURSRUSRUVHUğHODRWH[WRH¿VVXDVH[LJÓQFLDVWHDWUDLVPDLVQH-
FHVVDULDPHQWHDSURIXQGDVXDOLQJXDJHPń2&
10.1.3 MOMENTO 3
$UXEULFDŃGRWHDWURğOPDGRDRWHDWURFLQHPDWRJUÀğFRńğQDOPHQWH
aparece como uma síntese onde a cinemática correlacionada a uma
teatralidade proporciona a emergência de uma performance desse
tempo, uma mise-en-scène contemporânea. Mais que mídias diferen-
tes, Bazin aponta para uma forma de espetáculo integral que rom-
pa com a oposição entre teatro e cinema. Modernidade e tradição se
conjugam nessa mise-en-scène contemporânea na qual o dispositivo
fílmico é modelado por suportes teatrais.
0DVRTXHÒHVVHWHDWURFLQHPDWRJUÀğFR"$FRPSRQHQWHFÓQLFDGHV-
VHWHDWURFLQHPDWRJUÀğFRUHVWULQJHVHDRTXH%D]LQFKDPDGHŃYLU-
WXDOLGDGHVHVWUXWXUDV FÓQLFDVń2& 2 HVSHWÀFXOR SRUÒP Ò GD
competência da componente fílmica. O foco de análise de Bazin é o
TXHVHSRGHFKDPDUŁğOPHGHDUWHł2FLQHPDFRPRDUWHÒGLYLVDGRQD Concepção monumentalizan-
incorporação de tradições representacionais históricas como pintura te do teatro que, a partir de
leituras da Poética, de Aristó-
e teatro. É PARA CONTRIBUIR COM O TEXTO DO FILME QUE A INCOR- teles, defende a subordinação
do espetáculo ao texto, como
PORAÇÃO DA TRADIÇÃO TEATRAL É REIVINDICADA. O TEATRO CINE- ilustração do texto. A partir
MATOGRÁFICO DE BAZIN É UM CINEMA CUJO ROTEIRO É DIGNIFICADO das obras de Corneille e Racine
até o Naturalismo,tal concep-
COM “ VIRTUALIDADES CÊNICAS”. ção determinou um estilo de
interpretar e construir obras,
formando um público atento
à convencionalidade de uma
Correlativamente, o teatro é visto pelas lentes de Bazin como teatro representação teatral grandi-
literário, no qual há a primazia do texto sobre o espetáculo. O idealis- loqüente e verborrágica. Virou
alvo critico básico do contex-
mo estético desta postura, contrária mesmo à renovação contempo- to reativo das vanguardas te-
atrais. Para uma apresentação
rânea da linguagem para a cena, deixa em aberto a concretização do crítica de seus procedimentos
WHDWURFLQHPDWRJUÀğFRQRTXDODFRPSRQHQWHFÓQLFDÒXPDHYLGÓQ- consulte-se meu livro Ima-
ginação Dramática (Brasília,
cia não discutida. to&imagem,1998:160-188).
0H\HUKROGLQWHJURXWRGDVHVVDVDWLYLGDGHVHPXPHVWLORLQWHUSUHWD-
tivo chamado ‘Biomecânica’. A preparação física do ator, através do
conhecimento do corpo e da exploração de suas possibilidades ex-
pressivas, determinou a perda de uma absoluta autoimagem do ator Atrações no sentido de efeito
sobre a platéia através do mo-
FRPR KRUL]RQWH GH FRHVÂR GD DWXDÍÂR 0(% $R LQYÒV GH LQWHU- vimento físico de espetáculos
tais como circo, boxe, music
nalizar essa imagem, ele deve aprender tornar factíveis movimentos hall, acrobacia, teatro chinês,
expressivos. Agora ele se confronta com a continuidade material de paradas militares foi o que
Meyerhold pensou e Eisens-
um auditório. Dessa maneira, todas suas exteriorizações devem pres- tein aplicou ao cinema em seu
famoso artigo “Montagem de
VXSRUHVVDFRQWLQJÓQFLDUHFHSWLYD2FRUSRLQWHLUR0(%HPVXD atrações” de 1924.
muscular presença é observado. Por isso, é preciso que o movimento
seja expressivo, com uma precisão capaz de predizer e gerar audiên-
cia, atrações.
PHQWRVGRDWRUVÂRUHHODERUDGRVSHODDXGLÓQFLD0(%
De A forma do filme ( Rio de $ FRQWUDSRVLÍÂR HQWUH R WHDWUDO H R FLQHPDWRJUÀğFR VH WRUQD PDLV
Janeiro, Zahar, 1990). Sigla FF
visível a partir do momento em que a realidade representada não se
Basta ver que em 1939 sobre afasta da faticidade material da realidade não representada. Este é o
esta época Eisenstein afirma” eu espírito de seu ensaio “Do teatro ao cinema”, uma variação do Mito
estava crescendo, saindo do te-
atro para o cinema”(FF 168).Em ao logos. O título reivindica um trajeto que assinala certa ultrapassa-
1928 mesmo ele proclama que
“estou convencido que o cinema gem , uma medida valoração evolutiva, uma defasagem entre início
é o nível de hoje do teatro. De HğPGHSHUFXUVR
que o teatro em sua forma mais
antiga morreu e continua a exis-
tir apenas por inércia”(FF 33)
No teatro, “a impossibilidade da mise-en-scène se desenrolar pela pla-
téia, fundido palco e platéia em um padrão em desenvolvimento”(FF
VXDJHRPHWULDFRQYHQFLRQDOGHMXVWDSRUPRYLPHQWRVHPFRQWL-
JXLGDGHUHGXQGDUDPHPXPDKLSHUWURğDGDUHSUHVHQWDÍÂR+ÀXPD
impossibilidade física do teatro em coordenar os movimentos disjun-
tivos que se mostrem em uma unidade que supere seu localismo. As
tentativas plásticas (eliminação de painéis pintados, utilização de
objetos cênicos, movimentos corporais, música, superposição de ima-
JHQVSURMHWDGDVHDWRUHVGHVXSHUDUHVVDOLPLWDÍÂRGDPDWHULDOLGD-
GHOLPLWDÍÂRIUDJUDQWHSHODLPDJHPFLQHPDWRJUÀğFDGHYROYHPWDO
LPSRVVLELOLGDGHUHSUHVHQWDFLRQDO$OLQHDULGDGHVHTđHQFLDOGRTXHVH
expõe em cena não tem o aprofundamento de detalhe e estrutura
que o plano e suas transições fílmicos facultam.
v QR HQVDLR Ń'UDPDWXUJLD GD IRUPD GR ğOPHń TXH R SRVLFLR-
namento de Eisenstein quanto à superação do teatral encontra-se
fundamentada. Ele já havia realizado duas grandes obras cinemato-
JUÀğFDV^O encouraçado PotemkinHOutubro`TXHVHUYL-
UDP FRPR H[SHULPHQWRV FRQğUPDGRUHV GDV SRVWXUDV TXH GHIHQGLD
O título mesmo postula não uma dramaturgia relacionada com uma
situação de observância teatral e sua concretização tempo-espacial,
mas a incidência de atenção sobre obtenção de um espetáculo visual-
musical. A concretude material dentro do plano em suas disposições
e reapropriações pela montagem geram orientações associativas
através das quais se pode esperar encontrar ”uma dramaturgia da
IRUPDYLVXDOGRğOPHWÂRUHJXODGDHSUHFLVDTXDQGRDH[LVWHQWHGUD-
PDWXUJLDGRDUJXPHQWRGRğOPHń))$VLQWD[HYLVXDOSUHYDOHFH
sobre a semântica . A dramaturgia aqui é o planejamento do modo
HğFLHQWH GH FRPELQDU GLIHUHQWHV H[WHQVøHV GH SODQRV H DV WHQVøHV
GHFRUUHQWHVFRPRIRUPDGHLPSDFWDUDDXGLÓQFLDID]HQGRDLGHQWLğ-
FDURVFRQĠLWRVGRVPDWHULDLVH[SRVWRVFRPRDWXDOL]DÍøHVDYDOLDWLYDV
GRVFRQĠLWRVTXHVÂRFRQFHSWXDOL]DGRVQRUHIHUHQWHGRVPDWHULDLV
(VWDUHLQVHUÍÂRGRŁWHDWURłDOLQKDVHFRPDHVFULWXUDFLQHPDWRJUÀğFD
O elemento não fílmico é requisitado para a expansão do fílmico. A
OXWDSHODDOWDTXDOLGDGHGDFXOWXUDGRğOPHSDVVDSHODTXHVWÂROLWHUÀ-
HERINGTON 1985 ULDGDHVFULWXUDFLQHPDWRJUÀğFDDRVHLQFRUSRUDUHVXSHUDUDWUDGLÍÂR
de textualidade artística existente. O cinema transparece como uma
máquina transformadora de tradições artísticas, como a tragédia
grega o fora 2500 anos atrás.
Ao invés de ser oferecido ao espectador o que Eisenstein chama de Nesse sentido também o fra-
casso, fracasso formal, de
”distorção de nossa época”, - possibilidades de justaposição e não D.W.Griffth em Intolerance é
analisado por Eisenstein, em
análise do material justaposto, é imprescindível “a necessidade da virtude de o cineata ameri-
exposição coerente e orgânica do tema, do material, da trama, da cano ter justaposto materiais
sem integração dramática já
DÍÂRGRPRYLPHQWRLQWHUQRGDVHTđÓQFLDFLQHPDWRJUÀğFDHGHVXD no intraplano, não levando
em conta o conteúdo dos
DÍÂRGUDPÀWLFDFRPRXPWRGR6)ń fragmentos, a natureza real
dos fragmentos (FF 203).
Ironicamente, as realizações
Contudo, a correção de percurso é transformada em nova recusa. Já de Griffth haviam desco-
nectado o cinema do teatro,
em 1939 esta síntese e totalização do cinema é contraposta às limi- produzindo uma tensão e
vigor dramáticos fílmicos, ao
tações das artes como a pintura, escultura, literatura, música e, claro, movimentar a câmera , antes
teatro. Sobre esta última, como não poderia deixar de ser, Eisenstein fixa, sugerindo a visão do es-
pectador em uma platéia, e ao
é mais incisivo. Após se congratular com a riqueza da representação utilizar mais integralmente a
montagem paralela, interrom-
DXGLRYLVXDOTXHRFLQHPDSURSRUFLRQDDJRUDPDLVHğFD]DWUDYÒVGD pendo o registro ininterrupto
QDUUDWLYDHOHDğUPDTXHHVVDULTXH]DQÂRÒSDUDRWHDWURńHVWHÒXP da cena antes do começo de
outra cena.
nível acima de suas possibilidades. E quando quer superar os limites
dessas possibilidades, não menos do que a literatura, tem de pagar o
preço de suas qualidades naturais e realistas.... Que entulho de anti-
realismo o teatro inevitavelmente despeja no momento em que se
HVWDEHOHFHPHWDVŁVLQWÒWLFDVł6)ń2WHDWURSDUDDPSOLDUVXDUH-
presentação, desmaterializa-se, explicitando nesse movimento seu
próprio suporte físico negado. O anti-realismo, pensado como expan-
são da linguagem de cena, converte-se na redução de sua atividade
representacional.
'HDFRUGRFRP0LWU\IRL7KRPDV,QFHTXHPPDLVVLVWHPDWLFDPHQWH
resolveu essa liberação da concentração dramática ao dissociar te-
atro e dramaticidade, buscando no drama não mais sua estrutura
teatral e observacional transposta para a tela, e sim uma estrutura
GUDPÀWLFDFLQHPÀWLFD$3&,QFHUHMHLWDDDGHTXDÍÂRGRSDOFR¿
tela mas generaliza a dinâmica representacional dramática como co-
erência da inteligibilidade emocional do espectador. A concentração
dramática é o paradigma para o controle do que é mostrado na tela.
Op cit. Na verdade, a concep- Seguindo Pudovkin, o cálculo e o conteúdo de cada plano e a ordena-
ção de roteiro de Pudovkin
é extensão da montagem. ÍÂRGDVXFHVVÂRHULWPRGDVVHTđÓQFLDVDSDUWLUGRHVWXGRSUHOLPLQDU
Segundo ele, “o argumento
divide-se em seqüências, estas e detalhado do argumento com objetivo de mostrar que deve ser vis-
em cenas, e as cenas em to- to parece caracterizar é o que nos dá a totalidade fílmica.
madas separadas (planos) que
compreendem os pedaços iso-
lados que ligados firmemente
formarão o filme”(AR 106) Segmentação e busca de totalização parecem ser dois procedimentos
sua fala exatamente sincro- interligados na composição fílmica. A aplicação de uma dramaturgia
nizada com o mover de seus
lábios”(AR 196). 5 ao roteiro de representação do que deve ser apresentado em espe-
WÀFXORFLQHPDWRJUÀğFRHIHWLYDDLQWHJUDÍÂRGHSDUÁPHWURVFRPSUH-
HQVLYRVTXHHYLWDPDFRQIXVÂRHQWUHHVSHFLğFLGDGHHUHGXFLRQLVPR
A dissecação do argumento não estrutura a recepção do que se vê,
pois o contexto de recepção não se alcança por uma tática de contro-
le e monitoramento da representação apenas.
-RKQ+HDUWğHOGFRQWUDUHJUDHQFDUUHJDGRGHSUHSDUDUXPWHOÂRSDUD
‘ O mutilado’, atrasado como sempre, aparece à porta de entrada da
sala quando a peça já estava na metade do primeiro ato,com o telão
enrolado e metido debaixo do braço,.
HEARTFIELD
Erwin, pare! Estou aqui!
PISCATOR
Por onde você andou? Esperamos quase meia hora (murmúrio de
DVVHQWLPHQWRGRSĎEOLFRHFRPHÍDPRVVHPRVHXWUDEDOKR
HEARTFIELD
9RFÓQÂRPDQGRXRFDUUR$FXOSDÒVXDFUHVFHQWHKLODULGDGHQRSĎEOLFR
PISCATOR
,QWHUURPSHQGR R )LTXH TXLHWR -RKQQ\ SUHFLVDPRV FRQWLQXDU R
espetáculo.
HEARTFIELD
([WUHPDPHQWHH[FLWDGR1DGDGLVVRDQWHVYDPRVHUJXHURWHOÂR
2UDDH[SDQVÂRHGLYHUVLğFDÍÂRGRVQH[RVDJHPGLUHWDPHQWHVREUH
uma proposta de homogeneidade. Se se considera imprescindível co-
RUGHQDUDWRVHHYHQWRVKHWHURJÓQHRVHPVHTđÓQFLDHVLPXOWDQHLGD-
de, então volta-se a totalidade desses procedimentos contra o totali-
tarismo da cena fechada sobre sua forma de apresentação.
'HYROWDDRHSLVöGLR$VFRQIXVøHVHQWUH3LVFDWRU+HDUWğHOGHRSĎEOL-
co durante a peça ‘O mutilado’, de K.A. Wittfogel aconteceram dentro
idem, 51 das limitações do Teatro Proletário. Sindicatos e centrais trabalhistas
apoiavam um palco de propaganda, determinado em promover “ape-
los para se intervir no fato atual e fazer política”
2X VHMD IUHQWH ¿ HOLPLQDÍÂR GH XPD SHUVSHFWLYD FHQWUDO TXH XQLğ-
ca toda a representação no próprio mundo apresentado, no mundo
da mensagem autoral e sua interpretação restrita do que se mostra,
3LVFDWRUGLYHUVLğFDDVUHIHUÓQFLDVSURGX]LGDVHPFHQDYDOHQGRVHGH
meios e procedimentos que dilatam o horizonte atual. Os atores con-
WUDFHQDYDPFRPWHOøHVTXHH[LELDPRUDIRWRJUDğDVRUDWH[WRV
'HVVDPDQHLUDRHVSHFWDGRUVLPXOWDQHDPHQWHLQWHUDJLDFRPDVğJXUDV
em cena e com os meios. A visibilidade dos meios não se limitava à du-
plicação redundante do mundo representado. Antes, no mesmo espaço
e ao mesmo tempo o espetáculo se desdobrava em níveis de referência
pertencentes a mídias e performances diversas que expandiam o pre-
sente de cena. A presença dos meios técnicos fornecia uma abertura
imaginativa da representação , contrariando o pressuposto do apaga-
PHQWRGDVPDUFDVGHğFÍÂRSUHVHQWHVQRXVRLOXVLRQLVWDGRVQRYRVUH-
cursos cênicos. A exibição tanto dos meios quanto de seus efeitos in loco,
frente às personagens e à platéia, proporcionava um recrudescimento da
pluralidade representada e da pluralidade de atos receptivos. A hetero-
geneidade dos níveis referenciais co-presentes em cena faculta o mútuo
aprofundamento dos horizontes da representação e da audiência.
2UDHVVDGLYHUVLGDGHPLGLÀWLFDGDGHğQLÍÂRGRHVSHWÀFXORGH3LVFDWRU
em muito ultrapassa a dramaturgia de seu tempo e se converte em um
ponto de partida para a dramaturgia ulterior. A circunscrição da dra-
maturgia à escritura das falas e à distribuição das ações e das partes
da peça em função de um enredo havia reduzido as possibilidades ex-
pressivas do espetáculo. Sempre tudo convergia para um centro sub-
jetivo, para um hipersujeito arquimodelo de todos atos,pensamentos
os desempenhos em cena e na platéia.
2VğOPHVHVWDYDPGLVWULEXâGRVSRUWRGDDSHÍD(UDPLPDJHQVGHDUTXL-
vos, ŃğOPDJHQVTXHDSUHVHQWDYDPEUXWDOPHQWHWRGRRKRUURUGDJXHUUD
Idem, 81.
ataques com lança-chamas, multidões de seres esfarrapados, cidades
LQFHQGLDGDVDLQGDQÂRVHHVWDEHOHFHUDDPRGDGRVğOPHVGHJXHUUDń
-XQWRVFRPRVğOPHVHUDPDSUHVHQWDGRVDRSĎEOLFRGLVFXUVRVUHFRU-
WHVGHMRUQDOFRQFODPDÍøHVIROKHWRVIRWRJUDğDV7XGREHPGLVSRVWR
Idem, 82. com os atores em um palco giratório, efetivando “uma unidade da
construção cênica, um desenrolar ininterrupto da peça, comparável a
uma única corrente de água”
3LVFDWRUMXVWLğFDYDHVVDPÀTXLQDWHDWUDOQRYDŃXPDSDUHOKDPHQWRGR-
tado dos meios mais modernos de iluminação, de remoção e rotação
Idem, 83. no sentido vertical e horizontal, com um sem número de cabines cine-
PDWRJUÀğFDVLQVWDODÍøHVGHDOWRIDODQWHV” como algo que possibilitas-
se tecnicamente “a execução do novo principio dramatológico.”
Esta máquina teatral refutava a câmara ótica que por meio do pano
e cova da orquestra mantinha o espectador separado do palco. Ao
invés de único centro de atenção, multiplicavam-se os palcos em cena
XP FHQWUDO H GRLV ODWHUDLV H HQJUHQDJHQV TXH HQYROYLDP H FHUFD-
vam o público distribuído em torno desses palcos. Assim, de todas
as direções as performances se abatiam sobre o público. A audiência
pertence espacialmente ao palco, e vê-se confrontada e tomada pelas
performances, meios mecânicos e projeções luminosas.
$VVLPDVUHĠH[øHVHRVSURFHGLPHQWRVGRWHDWURSROâWLFRGH3LVFDWRU
ultrapassam as motivações ideológicas e conjuntura histórico-políti-
ca de sua ocorrência. Mas aí, temos uma nova história.
FISH
Não é novidade ou redundância, mas urgência estreitar os vínculos
HQWUHDUWHFLQHPDWRJUÀğFDHGUDPDWXUJLD7DODSUR[LPDÍÂRXOWUDSDVVD
DVPHUDVUHIHUÓQFLDVWHPÀWLFDVTXHVHFRQğQDPHPHOHQFDUVLPLOLWX-
des sem o questionamento a respeito da natureza mais fundamental
dessa proximidade. Ora, como processos de construção da realidade,
SHUWHQFHPDFRQWH[WRVFXOWXUDLVGLVWDQFLDGRVQRWHPSR$QWLJđLGDGH
H0RGHUQLGDGH$VVLPVHQGRSRGHUVHLDDğUPDUTXHDPDQHLUDPDLV
DGHTXDGD SDUD FRQğJXUÀORV QXP PHVPR SODQR VHULD QHXWUDOL]DU D
diferença epocal e fazer falar um pelo outro.
&RQWXGRDUHĠH[ÂRSDXWDGDSHORVGLWDPHVGDDGHTXDÍÂRVöVHVXV-
tenta na provisória instância predicativa que apresenta o que discute
por meio de estratégias de entendimento normalizadoras. Ou seja,
discute-se com o objetivo de tornar indiscutida a estrutura e o signi-
ğFDGRGRIHQ÷PHQRYLVDGRLPDJLQDÍøHVSDUDDFHQDGLIHUHQFLDGDV
Teatro e cinema comparecem como momentos-luminares da tradição
ocidental quanto à apreensão e interpretação dos eventos. Mais que
ilusionismos estéticos reprodutores de ordens históricas localizadas,
ambos são atualizações do dramático - experiência humana de com-
preensão dos acontecimentos.
'XSORGHXPVHUGHVGREUDGRHQFRQWUDPRVQDFRQğJXUDÍÂRPHVPDGR
espetáculo dramático, essa pluralidade de níveis recuperada por meio
da ‘ilusão cênica’. Nessa, público e palco passam a existir conjuntamen-
te em um jogo de distâncias e proximidades, dentro do qual cada mo-
mento atual do teatro investe-se da construtividade do tempo. Aquém
e além das marcas de referenciação estereotipadas, distende-se o rit-
mo de representação, no encontro e no mútuo envio de realidades per-
tencentes a contextos diversos de ação, mas reunidas em diversa tele-
ologia que se utiliza do descontínuo como linguagem compatível com
o modo através do qual nos inserimos em outra factualidade. Tanto
ğFFLRQDLVFRPRFRUSRUL]DGRVVHHQFRQWUDPRVTXHYÓHPHRVTXHVÂR
$RFRQWUÀULRDDWLYLGDGHFÓQLFDFKDPDSDUDVLRFRQWUDGLWöULRHRFRQĠL-
tivo. Contrariando as generalizações formalistas de Aristóteles, que viam
na tragédia certa máquina de efeitos emocionais reforçada pelas causa-
lidades determinantes do enredo, o que se constata é o vertiginoso apro-
fundamento do contraditório como forma de se atingir a integratividade
e diferenciação de níveis da realidade. O dramático é a dupla fenomeno-
logia da compreensão, pois interpreta os acontecimentos concretizando-
os no horizonte existencial e imaginativo de sua efetivação.
5XVW\-DPHVHQFDUQDRSOHQRRWXGRDRPHVPRWHPSRDJRUDXOWUD-
SDVVDQGR DV VLQJXODULGDGHV FRQğJXUDQGRDV QD REHGLÓQFLD GH XP
YLWDOLVPRFHJR5XVW\-DPHVQÂRVRIUHQÂRKÀSHUGDVRXJDQKRVSDUD
ele. Feito imortal, entidade olímpica, cultiva o ilimitado, em uma ra-
zão cativa de sua egolatria. Seu saber é o da esperteza, um reduzido
ORJRVGH8O\VVHVTXHVHFRPSUD]QDPDQXWHQÍÂRGHXPDWUDQVFHQ-
dência vazia que se perpetua para além das diferenças.
100
Curso de Especialização em Teatro à Distância
em estratégias comportamentais que asseguram seu enquadramen-
to em um circuito padrão de referências. Indivíduo e grupo, mesmo
e outro, todo e parte se associam em unidade orgânica que se apre-
senta como representação globalizadora do parcial, circunscrição do
diverso ao monológico.
5XVW\-DPHVÒRKDELWDQWHHKHUöLGHVVDFLGDGH6HXLUPÂRRTXHQH-
gou tal envoltório rumando para a utopia que ela aponta (Califórnia,
a imagem do prazer sem limites, a imensa prostituta maquiada e do-
HQWHYROWD,UHYLUHVWDUHQÂRHVWDUSHUWHQFHUHQÂRSHUWHQFHUREMH-
tivam a complexa rítmica de dispersão, cujo emblema é de integrar e
GLYHUVLğFDU
$PERVFRQWUDFHQDPXPFRQĠLWRGHVDEHUHVTXHXOWUDSDVVDDGLIHUHQ-
ça de opiniões.
O que os gregos têm a ver com isso ? Passados dois mil e quinhentos
DQRVHQWUHDSHUJXQWDGH5XVW\-DPHVPRGHODUKHUöLGDVXEMHWLYLGD-
GHPRGHUQDHDğJXUDGH&DVVDQGUDDFRQWHFHUGDPRUWHQDWUDJÒGLD
grega, recupera-se uma pergunta que repõe um saber transhistórico.
101
ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro
Sempre diante daquilo que ultrapassa o horizonte comum da experi-
ência humana, diante de signos que retomam uma ausência que nada
mais é que desvinculação com os pressupostos cristalizados e com o
imediato, sempre a hesitação ante a ambivalência do desconhecido ir-
rompe: ou interdita-se o ignaro pelo conhecido, ou se assume as frin-
FKDVHDVEUHFKDVGHLQGHWHUPLQDÍÂR+XVVHUOGRVIHQ÷PHQRVFRPR
tempos próprios da compreensão e ruma-se para dinamizar o cógito
em sua saciedade de sombras, no lascinante jogo espectral multiforme
do claro-escuro da consciência.
O que os gregos têm a ver com isso ? Há dois mil e quinhentos anos
o teatro ateninense produzia uma arte-conhecimento que propõe
o descontínuo, o contraditório como modo de concretização dessa
consciência. Naquele tempo também surgiu a pergunta ” E o que Dio-
niso tem a ver com isso ? ”, diante da incompreensão do fundo mítico
agente e subagente na arte dramática. Veja-se a transhistoricidade
da questão, pois aqui se assenta a Modernidade, a Modernidade de
todas as épocas. Em determinado momento, há uma crise de ordens
na cultura. Já não se percebe mais o horizonte de tudo o que é ou
existe. Agora há somente a urgência de se interrogar pelo nexo das
coisas, pelos vínculos que situam os encontros entre as diferenças.
5XVW\-DPHVSRGHUÀVHIHULUQDEULJDGHJDQJXHVPDVQÂRYDLPRUUHU
poderá perder a namorada, mas não sofrerá; será expulso da escola
e ainda continuará senhor de sua pessoa. Negará o que está próximo
de si e sairá incólume da vida - como entrou, saiu.
2JDURWRGDPRWRFLFOHWDHPXPğOPHHPSUHWRHEUDQFRFRUHVDQ-
WLJDVSDUDHWHUQRVSUREOHPDVQRYRVHYHOKRVWHPSRVVHUHXQLQGR
vai morrer, pois todo herói morre. Morre para libertar os animais
de suas jaulas, para fazer voar os pássaros, para retornar ao mar os
peixes briguentos. Coloridos, azuis e vermelhos, são os peixes que
OXWDULDP LQğQLWDPHQWH HWHUQDPHQWH DWÒ FRQWUD VL PHVPRV FRPR
azuis e vermelhos, contraditoriamente, são as cores que vêm do car-
ro da polícia, logo para ele, daltônico, que não percebe as cores, mas
FRPSUHHQGHRVFRQĠLWRV
7RGD REUD GH DUWH IDOD GH VL PHVPD (P FDGD ğOPH HP FDGD SHÍD
exibe-se uma realidade como linguagem das escolhas assumidas, de
SRVVâYHLV FRQFUHWL]DGRV $ DUWH FLQHPDWRJUÀğFD H D DUWH WHDWUDO VH
aproximam como vigilantes perpetuações do dramático, da capaci-
GDGHGDFRPSUHHQVÂRHPHIHWLYDUDFRQVWUXWLYLGDGHGRVFRQĠLWRVDR
invés do gerenciamento metafísico e conclusivo destes.
11
11.1 PRELIMINARES
&RPDVPXGDQÍDVGHSODQRHGRVSDOFRVQDFRUHRJUDğDGDFÁPHUD
que vai do centro da cena aos bastidores, rompe-se com a clausura do
PXQGRUHSUHVHQWDGRHPXPğOPHFRPRXPDSHÍDğOPDGDFRPRXP
texto ilustrado por imagens. A trama narrativa contrapõe-se à trama
multimidiática, como espetáculos dentro do espetáculo. A história su-
cumbe ao mito, ao encenar o acontecer da crença, do como acreditar
em algo sem fundamento que se torna o fundamento dos atos.
2VKDELWDQWHVGDFLGDGHHYLGHQFLDPVHFRPRğJXUDVFRPRWLSRV1ÂR
KÀMXVWLğFDWLYDVGHFRPSRUWDPHQWRVHSRUPHLRGHVXDVIDODVRXWUDV
YR]HVSRGHPRVRXYLU(OHVQÂRVÂRSHUVRQDJHQVGHğQLGRVDSDUWLUGH
11.3
textuais vindos de outros
suportes, ao invés de experi-
CINEMA NÃO
que permanecem — segundo
ele — amplamente inexplo-
rados no cinema. Portanto
EXCLUSIVAMENTE
o diretor afirma que ‘prova-
velmente não vimos nenhum
cinema ainda, vimos um pró-
3HWHU*UHHQDZD\HPVXDVREUDVHVIRUÍDVHSHODH[SORUDÍÂRGHKLEULGLV-
PRVGHPRGRDHQIDWL]DUFRPRWDQWRVRXWURVğ]HUDPTXHDUWHFLQHPD-
WRJUÀğFDQÂRVHUHVXPHDFRQWDUKLVWöULDV$FLPDGHWXGRRğOPHPRVWUD
RğOPHGHPRQVWUDVHFRPRHYHQWRRUJDQL]DGRHSHUFHSWâYHO$RUHFXVDU
DH[FOXVLYLGDGHGLHJÒWLFD*UHHQDZD\SUREOHPDWL]DDKLVWöULDGRFLQHPD
HQRVVRVPRGRVGHFRQFHEHUHGHğQLUHYHQWRVPXOWLGLPHQVLRQDLV2TXH
está em jogo são nossas estratégias para compreender obras cuja espe-
FLğFLGDGHVHH[SUHVVDQDDPSOLWXGHGHVHXVPHLRVHHIHLWRV
Daí a importância da teatralidade: na cultura ocidental a situação de É preciso que algumas postu-
ras e equações sejam revistas,
performance, o ato de dispor para uma audiência materiais e habili- como, por exemplo, cinema =
narração, teatro = emoção, per-
dades in loco, encontra-se inseparável de sua inteligibilidade. Tanto sonagem = pessoa. Ver Marcus
que pode ser ensinada, comunicada, reconhecida. Esta tecnologia das Mota, A dramaturgia musical
de Ésquilo (Brasília: UnB, 2008)
representações implicada em uma situação performativa tem como
correlato nocional uma abertura ao simultâneo, ao múltiplo, ao he- Daí, seguindo Deleuze, a ten-
terogêneo. &RQWUD D LOXVÂR GR XQR ĎQLFR XQLğFDQWH WDO WHFQRORJLD tativa de se definir o cinema de
Peter Greenaway como “cinema
oferece-se a processos criativos os mais diversos. As decisões em um barroco”. Ver Susana Dobal, Pe-
ter Greenaway and the baroque:
processo criativo atualizam o drama da expressão, a encenação de writing puzzles with images
(tese de doutorado, The City
suas possibilidades, o roteiro de suas escolhas e exclusões. University of New York, 2003).
Este teatro que se abre em outros teatros, que se dobra sobre si mes-
mo, e se destrói, ruminando espaços múltiplos, além da peça sobre a
peça, expande a contingência de sua espetacularidade, oferecendo
ğJXUDVIDQWDVPDJöULFDVHQWUHOX]HVRPEUDVTXHDSHQDVVXEVLVWHP
no refazer suas verdades, em um cotidiano de aderir intensamente
àquilo que as fascina, sem conseguir ir além daquilo que em frente
delas cresce de valor pelo sopro do desejo.
Marcus Mota
2004
1RLQWHUYDORGHDSHQDVXPPÓVHPWLYHPRVHVWUÒLDVGHğOPHV
baseados em duas principais fontes da cultura ocidental: Cristo, em A
paixão de Cristo, de Mel Gibson, e A Ilíada/Odisséia, em Tróia, de Wol-
IJDQJ3HWHUVHQ(YHPPDLVSRUDâFRPR$OH[DQGHUGH2OLYHU6WRQH
(VVD FRLVD TXH QÂR Ò XP ğOPH SDUHFLD FRPHÍDU EHP $ HVFROKD GD
FHQDQRMDUGLPGR*HWVÓPDQLFRPRDEHUWXUDHDSRGHURVDğJXUDGH
Jim Carvizel dando concretude à potencialidade dramática daquele
momento prenunciavam isso. Mas logo vieram 1- um pobre efeito de
E não há mais enganos. Cristo sem rosto e sem qualquer relação com
VHXFRQWH[WRQDUUDWLYRHKLVWöULFRÒXPSUHWH[WRSDUDH[HPSOLğFDÍÂR
GHXPHVTXHPDLQĠH[âYHOGHFDUDFWHUâVWLFDVTXHFRPELQDDWUDMH-
tória pop GR KHUöL TXH DSDQKD DSDQKD H DSDQKD FRPR QRV HP ğO-
mes dos brutamontes como Silvester Stalone e do próprio Mel Gibson
(lembre-se o indefectível Pay BackŋDWRUPHQWRVDvia crucis católica
e seus quadros e contabilidade de quedas e injúrias e participantes. A
via crucis e o heroísmo pop convergem e mutuamente se alimentam
formando a coerência e a coesão de tudo o que é exibido na tela.
$ğQDOÒSDUDHVVHFRQWDWRFRQFUHWRSDOSÀYHOTXHDQDUUDWLYDGH&ULVWR
se dirige. E. Auerbach, em sua básica obra Mimeis, ao fazer uma história
da representação da realidade no ocidente, atribui às narrativas em
YROWDGDğJXUDGH&ULVWRDUXSWXUDFRPUHJUDVHSURLELÍøHVHVWLOâVWLFDVH
ideológicas que limitavam a aparição do cotidiano à comicidade, nunca
ao sublime. A presença de Cristo, em seus encontros nos caminhos e nas
casas e suas conversações com as pessoas das mais variadas classes so-
ciais, fez explodir distinções, reunindo paradoxos e contrários na carne
viva e pulsante do mundo. Cessou a perspectiva privilegida que dividia
o mundo em atores e contempladores. Todos agora são personagentes.
O evangelho é para todos, não no sentido de um rebanho tangido pela
dependência psíquica a um sofrimento inoculado na semana santa e
nos natais. Para todos, porque não há uma instância prévia que nos
usurpe o valer-se de nossas próprias prerrogativas.
0DVDSULQFLSDOFRQWULEXLÍÂRGRğOPHGH3HWHUVRQÒGDU+RPHUR¿V
massas e renovar o contanto com a cultura clássica. Os Estudos da An-
tiguidade, em virtude do trato com suas complexas fontes e opções
metodológicas, têm se tornado patrimônio e privilégio de estudiosos
e especialistas. Nenhum problema. Porém, muitas, muitas vezes, em
nome de um purismo seja ideológico, seja metodológico, é produzida
uma moldura interpretativa em torno da recepção da cultura da Anti-
guidade, que acaba por controlar e determinar os modos através dos
quais se dá o acesso a esse conhecimento. Decorre dessa atitude um
certo elitismo nos estudos clássicos, uma predominância de se achar
que em qualquer lugar que você estude a Antiguidade as perguntas
devem ser as mesmas. E todo o esforço de dominar os textos em seus
originais torna-se após, muitas vezes, o vaidoso desempenho de ex-
SORUDUVLJQLğFDGRVHFRQFHSÍøHVDVPDLVSURIXQGDVHVXWLV
2XWURHOHPHQWRGLVFXWâYHOÒWUDPDDPRURVDGRğOPHTXHVHQWLPHQWDOL-
za uma cultura que não trabalhava com nossos padrões de afetividade.
Mas vivemos em outros tempos. Toda visão do passado é feita a partir
do presente e com a mídia de hoje. E o amor nessa guerra apresentado
'HVVDPDQHLUDDVğJXUDVSRGHPVHUHQRYDURFRQWDWRFRPDQDUUDWL-
va é atrativo. Tróia captou esse realismo representacional Homérico,
determinando um revitalizado encontro com essa milenar tradição.
Ora, senhores muito estudiosos, por favor nos dêem textos melhores para
ler! Nos dêem, como Petersen, um grato presente, não o cavalo de Tróia!
7DQWRXPDHRXWUDUHVSRVWDDRVğOPHVSRGHPUHVXOWDULQVDWLVIDWö-
ULDV2FRPXPDLVVRWXGRÒDVHQVDÍÂRTXHXPğOPHÒDSHQDVXP
ğOPHHQDGDPDLV1HVVHSRQWRLOXGHPVHDVFUâWLFDVTXHDSHQDVYL-
sam desideologizar atos de consumo, apontar pressupostos de ma-
QLSXODÍÂRGDUHDOLGDGHFRPRVHVRPHQWHğOPHVIRVVHPLQWHUSUHWD-
ções distorcidas do mundo. Armados de uma artilharia conceptual,
até um simples conto infantil dá margem a tratados e artigos e
SXEOLFDÍøHVHPÒWRGRVSDUDLGHQWLğFDUHDQLTXLODUSHQVDPHQWRVGH
dominação. É muita artilharia para discutir tão pouca coisa. Notabi-
liza-se o crítico e não a crítica.
Para Mel Gibson o tempo de agora é isso o que ele exibe na tela: a
ênfase no que importa para as pessoas que vêem o que ele mostra. A
opção do hiper-realismo, na estranha atração e repulsa pela violência
física se complementa na perspectiva de platéia que domina o con-
servadorismo emergente, conservadorismo esse alheio a qualquer
forma mais complexa de pensar ou representar.
3/4-‐março-‐2006
1D YHUGDGH PDLV TXH H[LELU D YLGD GH 7 &DSRWH WHPRV QR ğOPH R
modo como o escritor T. Capote envolveu-se, em seu processo criati-
YRFRPDVUHODÍøHVHQWUHYLGDHğFÍÂR
1DYHUGDGHQRğOPH&DSRWHÒDWUDâGRWDQWRHVWHWLFDPHQWHHTXDQWR
pessoalmente para o criminoso. Esteticamente, por perceber que o
contato com esse material e seu desenvolvimento em livro poderia
lhe abrir as portas de um novo status na literatura americana – o de
alguém que rompe gêneros, inova. Essa busca por inscrever seu nome
no rol da fama determina todas as suas ações. De outro lado, pesso-
almente, a história do criminoso se aproxima da história do próprio
Capote. Capote não apenas interroga o outro, como também narra
sua própria vida.
11.6 CAPOTE E A
MARCHA DO
IMPERADOR?
QUE ESTRANHA
APROXIMAÇÃO...
Marcus Mota
13-‐03-‐2006
Colocar bicho pra falar é uma velha tradição. Mas aqui não há fábula
e sim uma bizarra mistura de um papo conservacionista com uma
novelinha. Essa bizarra mistura não é nem uma narrativa dramati-
zada nem um discurso coerente. Não é gente falando, nem muito
PHQRVELFKRDJLQGRFRPRELFKR$VFDQÍøHVTXHDWUDYHVVDPRğOPH
ora relacionam-se com os eventos em cena, ora duplicam o discurso
conservacionista, mas, nesta duplicação, ainda vale-se de recursos de
marcação emocional exacerbada.
2XVHMDDQWHVGDSULPHLUDPHWDGHGRğOPHWHPRVXPDVDWXUDÍÂRGR
KXPDQRHPXPğOPHTXHPRVWUDDQLPDLV$IDPâOLDYHQFHQGRVREUH
todos os obstáculos, contra a natureza mesma, é a emblemática con-
FOXVÂRGRğOPH7XGRÒWÂRSHULJRVR7XGRÒWÂRDPHDÍDGRU2XQLYHU-
so inteiro conspira contra o casal e seu bebê. Momentos alegres se
revezam com momentos tristes. Em quase duas horas vemos a vida, a
YLGDWDOFRPRHODÒ2ğOPHQÂRÒVREUHSLQJđLQVÒVREUHQöV
vHVWDGLPHQVÂRDXWRUHĠH[LYDGHQRVVDFXOWXUDTXHVHGHVWDFDQHVVH
HPSUHHQGLPHQWRFLQHPDWRJUÀğFR2WHPSRLQWHLURVRPRVQöV1ÂR
há nada que ande, voe ou se arraste que não venha adquirir uma mol-
dura daquilo que a comunidade humana conheça.
Porque o que está ameaçado, o que está marchando para a sua extin-
ÍÂRQÂRÒRSLQJđLPLPSHUDGRU$SöVWDQWRVVÒFXORVFHOHEUDQGRDVL
mesma, nossa cultura defrontas-se com seu esgotamento ou com seu
GHğQLWLYR TXHVWLRQDPHQWR VHUÀ TXH H[LVWH DOJR DOÒP GR KXPDQR"
(VVDKLSHULQĠDÍÂRGDLQWLPLGDGHH[SRVWDQRLQWHUFXUVRHQWUHPDPÂH
HSDSDLSLQJđLPQÂRVHULDXPDGHPRQVWUDÍÂRGHQRVVDDJRQL]DQWH
falta de plasticidade. Com o mesmo barro há séculos forjamos uma
imagem nossa em tudo que nos cerca. Contra este envoltório, forja-
mos uma autoimagem capaz de estar em todos os lugares o tempo
inteiro. E agora só vemos isso – nós.
Capote nos mostra a extinção do homem por ele mesmo, sua morte
em vida, sua desrealização. O ímpeto de uma pessoa só em conformar
vidas alheias acaba por desvitalizar a sua própria vida. E como autor
e como pessoa, Capote deixa de ser para se perder no labirinto que
reagiu contra seu arquiteto.
Esse rasgo, essa cova atrai tanto como a novelinha. Junto com a trama
SDSDLPDPÂHğOKLQKRREVHUYDPRVDOJRTXHQRVHQFDQWDHHQWXVLDV-
PD$UHĠH[LYLGDGHGDSHVVRDTXHSDUHFHRWHPSRLQWHLURUHSHUFXWLU
em todos os produtos da cultura, ganha aqui seu limite e seu funda-
mento: será que expandimos obsessivamente nossa presença na ter-
ra como modo de reagir àquilo que desconhecemos e que ultrapassa
HPSRGHUDTXLORTXHSRVVXâPRV"3RLVDğQDOGHFRQWDVGHYHKDYHU
DOJXPDUD]ÂRSDUDğFDUPRVQRYHOL]DQGRXUVLQKRVSDQGDVJROğQKRV
cães e gatos e, principalmente, nós mesmos.
7DOYH]SRUTXHVHMDLVVRPHVPRTXHVRPRVğJXUDVğJXUDDJLQGRSRU
ğJXUDVHVHPWULVWH]DRXDOHJULDVöWHPRVXPOLPLWDGRDFHVVR¿TXLOR
TXHHVFDSDDQRVVDUHDOLGDGHGHğJXUDVTXDQGRHPDOJXQVPRPHQ-
WRV EUHYHV GHL[DPRV YHU SDUD QRV FRQğUPDU H QRV WUDQVIRUPDPRV
em coisas entre coisas.
21-‐03-‐2006
3ULPHLURYHMDPRVDVLQWHQÍøHV$VYÀULDVKLVWöULDVDSUHVHQWDGDVQRğOPH
procuram mostrar como a questão do petróleo e suas implicações econô-
micas interferem na vida de pessoas das mais variadas culturas megacor-
porações, pequenas empresas, gente simples, agente secretos, um emir
reformista, um garoto paquistanês convertendo-se em homem-bomba...
Olha, se você quer ser sério, você tem de ser sério em tudo. Não basta
delegar a relevância do tema para o público. É você mesmo que tem
de fazer algo relevante. Nisso temos a falha de todos os bons propósi-
tos, de todas as boas intenções. Todos são louváveis, necessários. Mas
não passam de algo sobre o que a gente apenas fala, perpetuando a
convivência com questões que não são resolvidas.
11.8 COMICIDADE:
ADAPTAÇÃO
DE PEÇAS DE
ARISTÓFANES
NO ESPETÁCULO
A ÉTICA É UMA
COMÉDIA
Marcus Mota
23-‐5-‐2006
$OLGLDQWHGDTXHODSREUH]DGHFHQÀULRVHGHğJXULQRVEHPIXQFLRQDLV
HHğFD]HVRSĎEOLFRSRGHULDHVWDUFRPRQD*UÒFLDGLDQWHGHDOJRIHLWR
para rir e para pensar, mas, antes de tudo, diante de um espetáculo
engraçado. Nunca um palavrão foi tão gostoso, como as intervenções
do nosso Strepsíades, o Adalberto Nunes. Nunca a bichice atribuída aos
atenienses foi tão grotescamente explorada como no nosso Sócrates
Roberto Wagner e seu coro de nuvens. Quando não se tem te pagar pe-
dágio, a pista é livre, e dessa liberdade advém algo: uma total e precio-
sa falta de ridículo,de um ridículo como defesa pra agradar intelectual.
Ora, está na hora de julgar e apreciar a comédia pelo que ela é. Direto-
res, comediantes e público precisam assumir a comédia em sua total
dimensão. Fazer comédia não vai salvar o mundo, nem revelar o que
MÀVHVDEH1ÂRYDPRVğFDUPDLVVÀELRVQHPPDLVLEVHQLDQRV(QIUHQ-
tar a disposição comunal que a comédia efetiva já é um ato político.
Rir, rir junto, rir junto com o que os comediantes realizam – esta é
uma forma de ultrapassar nosso pobre individualismo. O quedai vier
$FLPD GH WXGR WHPRV DOJR FRQFUHWR PĎVLFD DWXDÍøHV FRP SHUğO
SRSXODU WUDGLÍÂR QDFLRQDO WHDWUR GH UHYLVWD H XP SDâV TXH GHL[RX
de rir para virar platéia de eventos mediados pela pauta televisiva.
Há muito trabalho pela frente. Este encontro entre o mais antigo e
nossa tradição esculhambadora poder ser rica, se não recair em sua
esquematização, nos velhos e bolorentos recursos a bordões, à inútil
e redundante referência às atualidades, ao xingamento, ao palavrão
autoreferente. Viva Aristófanes! Viva nós! Pqp!
11.9 DRAMATURGIA
DE MULHER,
DRAMATURGIA
FEMININA E OUTRAS
DÚVIDAS, A GAROTA
DA VITRINE
Marcus Mota
1-‐4-‐2006
$RğPRWUDWDPHQWRGHDOJRLPSRUWDQWHIHLWRGHPDQHLUDHTXLYRFD-
da acaba por proporcionar uma situação para discussão e não para
representação. Acho essa uma armadilha de alguns espetáculos te-
máticos. A importância do conteúdo discutido supera seu tratamen-
to artístico. Pois, nesse caso, só nos resta nos solidarizar com aquela
mulher que sofre, sofre e vira uma menina. Muita gente coloca dor e
FULDQFLQKDVHPğOPHVSDUDTXHKDMDXPDXQDQLPLGDGHXPDSDUWLOKD
de emoções. A gente concorda com tudo. A gente continua na mesma.
Muitas mulheres têm escrito sobre isso, têm vivido assim. São minha
inspiração para essas linhas.
11.10 V DE VINGANÇA
Marcus Mota
14-‐04-‐2006
1RğOPHH[LVWHXPDFRDOL]ÂRHQWUH(VWDGRH0âGLDTXHVXEPHWHRV
1RğOPHWDODQÀOLVHGRSRGHUFRPRHVSHWÀFXORPRVWUDXPHVSHWÀ-
culo pobre em sua articulação. Fatos são mostrados na tv de modo
distorcido, favorecendo sempre aquilo que o Estado apresenta como
YHUGDGH2ğOPHVHSURSRUDVHUXPH[HUFâFLRGHIXWXURORJLDGHFRPR
serão as coisas daqui a algumas décadas, mas lembra mais Hitler e
seu Estado-nação.
2HTXâYRFRHVWÀHPVHLGHQWLğFDUR0DOHPVHUHGX]LUR0DODXPD
pessoa e a uma posição. Grupos de interesse e uma grande parcela
da população interessada em seus próprios interesses - isso é uma
combinação explosiva. Mais que uma violenta e sanguinária tomada
do poder, temos um acordo, uma combinação de vontades. Mais que
bombas, lutas, desgraças e reviravoltas, as coisas se fazem mais sa-
tisfatórias e convenientes e nem por isso mesmo menos terríveis. Há
um imenso trabalho de bastidores, de convencimento, de negociação,
de partilha dos lucros e benefícios que imediatos impulsos. Essa con-
tabilidade do poder é cautelosa e assassina; invisível, mas presente.
Não uma dinamite.
24-‐05-‐2006
Todo esse rebuliço foi por água abaixo. Ficou parecido com o bug do
milênio: as pessoas e as instituições esperavam algo novo e nada
aconteceu.
16-‐5-‐2006
(PYLDJHPIXLDVVLVWLUDPRQWDJHPFDULRFDGH23HTXHQR(\ROIQR
WHDWUR 6HVF &RSDFDEDQD (VWH HVIRUÍR GH OHYDU ¿ FHQD
REUDVTXDVHTXHLQWHJUDLVGHJUDQGHVGUDPDWXUJRVÒXPGHVDğRWDQ-
to para os atores quanto para o público. Ainda mais Ibsen. Seu estilo
palavroso quando mal transposto para cena mata a poesia do texto, a
sutiliza da interpretação e a paciência da audiência. Foi o que infeliz-
mente ocorreu com essa montagem.
Que uma coisa é chata isso não basta. Por quê? Poderia ser diferente?
Assim, encena-se Ibsen porque ele tem um nome, tem a força de um nome
HFRPLVVRğQDQFLDPHQWRVHVSDÍRVDWRUHVSĎEOLFRWXGRğFDPDLVIÀFLO
Mas e a obra mesma: o que ela tem a ver com esse pragmatismo?
Como podemos ver, o próprio Ibsen entrou em crise com a cultura que
gravitava em torno do intelectualismo, da idéia de civilização que gran-
de parte de sua dramaturgia ajudou a construir. Há sempre um ranço
de presbítero, de reformador moralista em Ibsen. Muitas vezes resvala
para um certo discursivismo, como se o teatro fosse uma tribunal. Ib-
sen luta contra essa mão de tribuna, contra esse impulso loquaz.
$R ğP Ò XPD OXWD FRQWUD DV SDODYUDV FRP DV SDODYUDV 'L]HU VHUÀ
preciso fazer isso o tempo inteiro? Será preciso enunciar o que está
acontecendo, o que houve?
(VWHGHEDWHHQWUHDSDODYUDHDFHQDQDSDUWHğQDOGRWHDWURGH,EVHQ
contribuiu para a modernidade teatral, para emancipar a teatralida-
GHGHVXDSURYâQFLDGDOLWHUDWXUDHGDğORVRğD$VVLPRJUDQGHGUDPD
GH,EVHQÒXPGUDPDGHH[SUHVVÂRGHUHYHUVHFRPRSDQĠHWÀULRSDUD
encontrar-se como dramaturgo. As idéias têm uma vida independen-
te. E não se faz teatro só com boas intenções e grandes ideais.
Essa luta com o genérico resvala no texto uma certa poesia, imagens
HUHĠH[øHVFXUWDV¿VPDUJHQVGDIHUUHQKDPDFURHVWUXWXUDHGDVğ[DV
linhas dos personagens. Para um homem tão sisudo e com tão pouco
humor como Ibsen, essa fragilidade inominada, essa exploração de
DOJR DOÒP GDV UHYLVWDV GH GLYXOJDÍÂR FLHQWâğFD DFDUUHWD PRPHQWRV
de compaixão, de contato com algo além da enciclopédia. Deixando-
se levar por algo que está fora dos livros, que não reduz a palavras,
6HDLVVRXQVTXHUHPFKDPDUUHDOLVPRGHUHVSHLWRDRDXWRUSUHğUR
crer que se trata de pressa...
11-‐06-‐2006
şGHMXQKR4XLQWDIHLUDKRUDV$QğWHDWURORWDGRPDLVGHWUH]HQ-
tas pessoas, na sua maioria jovens estudantes. Todos reunidos para
ver e ouvir Filoctetes, de Sófocles. Não, você não está em Atenas. Es-
tamos em Araraquara, interior de São Paulo, no campus da Unesp,
diante de leitura dramática realizada pelo grupo Giz-en-Scène. Há 19
anos professores universitários seguidos por alunos colaboradores
têm se dedicado a levar ao público obras clássicas gregas, latinas e
sanscríticas. Especialistas em suas áreas, estes professores escolhem,
traduzem e adaptam os textos, com muita perícia e cuidado. Para me-
lhor tirar proveito da situação de apresentação, aliam a este trabalho
WH[WXDORGHSURGXÍÂRFHQÀULRREMHWRVGHFHQDğJXULQRGLYXOJDÍÂR
programas, ensaios. As leituras acontecem normalmente durante
eventos acadêmicos, quando o grupo é convidado não para ilustrar
RVGHEDWHVLQWHOHFWXDLVPDVVLPSDUDPRVWUDUDHğFÀFLDGHVWDVREUDV
mesmo após séculos de releituras e desleituras.
3ULPHLUDPHQWHSRLVR*L]HQ6FÑQHGHVPLVWLğFDRSURğVVLRQDOFRPHUX-
dição nos clássicos. Grande parte dos textos dessa afortunada tradição
se relacionava a contextos performativos. Performar é saber. A perfor-
mance produz conhecimento. Não só as condições materiais de perfor-
mance mas o ato mesmo de propor eventos para uma audiência difun-
Mas aquela noite foi fulgurante para mim. De uma hora para outra
meus olhos se abriram. Durante a leitura dramática de Antígona, na
FHQDGRWHUUâYHOGLÀORJRHQWUH&UHRQWHHVHXğOKR+HPRQPLQKDYL-
são sobre obras clássicas se alterou profundamente. Antes, eu sabia
o que não queria. Agora, diante de mim, estava o que eu precisava.
Grande parte do imenso material acumulado durante anos de leitura
se esclareceu. Isso podia ter acontecido antes, não durante um dou-
torado, se eu tivesse a oportunidade, como os jovens em Araraquara,
de ver e ouvir Sófocles em uma noite. Mas antes tarde do que nunca...
19-‐6-‐2006
Brasília teve a oportunidade de assistir à montagem de O doente imagi- Jacqueline Laurence, direto-
ra do espetáculo. Tradução e
nário GH0ROLÑUH¯OWLPDSHÍDGH0ROLÑUHRHVSHWÀFXOR adaptação de João Bethen-
court. No elenco estão ainda
foi deliciosamente interpretado por Tonico Pereira e companheiros. Gláucia Rodrigues, como An-
tonieta; Nedira Campos, inter-
pretando Belinha; Flávia Fafiãs,
A montagem original foi marcada pela sobreposição entre a persona- que vive Angélica; Marcio Ric-
ciardi, que faz o Dr. Purgante;
gem da peça, um hipocondríaco interpretado pelo próprio Molière, e Paulo Carvalho e Gustavo Ot-
toni como pai e filho, os médi-
o homem Molière, o qual, após a apresentação de O doente Imaginá- cos Thomas Laxante e Thomas
rio, passa mal e morre horas depois. Laxante Filho; Frank Borges,
como Cleanto; e André Frazzi,
que interpreta o Tabelião. A
peça tem a participação espe-
Na montagem de agora grande parte da dramaturgia cômica de Mo- cial de Nildo Parente, na pele
lière pode ser apreciada. Inicialmente, temos o caráter enciclopédico de Beraldo
0ROLÑUHĠH[LELOL]DDFRPÒGLDMXVWDPHQWHSRUFRQGX]LURSĎEOLFRWDQWR
para amplitude da cena, da trama quanto para aspecto pontual, epi-
sódico do esquete. Ao invés da tensão entre o esquete e a trama, Mo-
OLÑUHYDOHVHGHVWDGLQÁPLFDGHHVFRSRSDUDUHGHğQLURHVFRSRPHV-
mo de obras cômicas na cultura pós antiguidade. A comicidade assim,
inserida em dimensões e nexos mais extensos, ela mesma ganha um
estatuto que a aproxima de valorações consagradas à tragédia.
(VVDğJXUDIXQFLRQDFRPRXPFHQWURDWUDWRUTXHWXGRGHYRUDTXHD
tudo atrai, mas que logo depois tanto perde sua hegemonia quanto
VHUHYÓVHPRGLğFD(VWHFHQWURLPöYHOHVVHVROUHDOL]DXPDQWLPR-
YLPHQWRIUHQWHDRĠX[RGRHVSHWÀFXOR(OHWUDEDOKDFRQWUDRHVSHWÀ-
culo, ele atravessa a moldura da obra, colocando em perigo a repre-
sentação. Sua recusa em mudar ou aderir a algo, ou o contrário disso,
RVLWXDFRPRH[FHVVRFRPRDOJRLQFRQWUROÀYHOSRUPDLVTXHLGHQWLğ-
FÀYHO1RHQFRQWURHQWUHDWUDPDHRHVTXHWHHVWDğJXUDDEHUUDQWH
trabalha como um diretor de cena, um participante e comentarista de
tudo o que está acontecendo. O acúmulo de referências e contradi-
ções da personagem é duplicado no acúmulo de suas funções e atos
'HVVDIRUPDUHXQLQGRDWRVHSURFHGLPHQWRVGLYHUVRVDğJXUDDEHU-
rante promove uma imagem ampla do espetáculo, sobrepondo nexos
e referências. Rir e pensar não se opõem. Daí a dramaturgia cômica
GH0ROLÑUHSRVVLELOLWDURDFHVVRDXPDGLYHUVLğFDÍÂRQÂRVRPHQWHGH
técnicas, mas de escopo da comicidade.
26-‐06-‐2006
11.16 BORAT:
CULTURALISMO,
COMÉDIA E
BOBEIRA
Marcus Mota
17-‐janeiro-‐2007
2ğOPHVHHVWUXWXUDHPHVTXHWHVSRUPHLRGRVTXDLVDFRPSDQKDPRVHQ-
trevistas e situações da personagem em sua aventura de conhecer os EUA.
Ou seja, estamos diante de mais uma invasão inglesa ditando moda nos
Eua, e daí sendo exportada para o mundo.
2ğOPHÒGLULJLGRSRU/DUU\&KDUOHVTXHHQWUHVHXVFUÒGLWRVFRQWDFRPRRX
roteirista e ou diretor de episódios(ou ambos) de episódios de Mad about
You mas principalmente Seinfeld e Curb Your Entuasiasm. Ou seja, temos
assim o encontro entre a criatividade da comédia estadunidense e a inglesa.
7XGRLVVRSURGX]LXXPğOPHHVWUDQKRIHLRPDODFDEDGRHHQJUDÍDGR$V
HQWUHYLVWDVIRUDPFRVWXUDGDVHPXPDKLVWöULDPHLRVHPGHğQLÍÂRHPEXV-
ca da musa Pamela Anderson. Muita pós-produção tenta dar um arranjo
HPXPğOPHTXHGRPHLRSDUDIUHQWHVHDUUDVWDSDUDVXDFRQFOXVÂR
2 VHU HVWUDQJHLUR QR ğOPH Ò XP GLVIDUFH SHOR TXDO %RUDW FRPXQLFDVH
com a platéia, toma permissão do público para fazer o que quiser. As
SHVVRDVQRğOPHGÂRWDPEÒPHVVDSHUPLVVÂRSDUD%RUDW&RPRHOHÒXP
estrangeiro, elas permitem que ele seja bizarro e exótico. Pois o estran-
geiro é assim, café com leite dentro de nossa cultura, uma criança. Há
sempre um senso de superioridade nessa relação. Eu, que estou em meu
$VVLPHPXPSULPLHURPRPHQWRDVSHVVRDVGRğOPHVÂRFRQYRFDGDVD
HQVLQDURHVWUDQJHLURDHQWUDUHPFRQWDWRFRPDğJXUDDOWDHDORSUDGD
de Borat. Sendo estrangeiro, porém, e conversando com a câmera, Borat
reverte essa posição inferiorizado e os nativos é que viram piadas. Antes,
a piada era o estrangeiro. Agora, ri quem está do outro lado da câmera.
E não só isso: a seqüência de esquetes faz com que a reversão se torne
o padrão. Há sempre e renovadas expectativas de os nativos caírem no-
vamente na cilada.
Para Borat, os Eua é sexo. Tudo gira em torno disso. Há uma obsessão
em realizar o ato, em possuir Pamela Anderson. A ex- garota do Baywa-
tch e coelhinha da Playboy é a coisa mais preciosa para Borat, é a sua
América. Como novo Colombo, ele singra os mais diversos estados norte-
americanos em busca da oportunidade de alcançar a América Profunda.
Ou seja, o maior e mais poderoso país do mundo pode ser reduzido uma
pop-quase-porno-star. Nada dos ventos da liberdade e outras incríveis
e pretensas invenções estadunidenses. Os EUA são apenas uma vagina
descolorizada. Por isso, Borat destrói lojas, invade casas, defeca e dorme
na rua, o escambau! O ultrage soa a uma réplica. Mas, como em todo
embate das representações, não há ninguém melhor ou pior.
'HVHXODGRRğOPHFDPLQKDHQWUHHVTXHWHVPDOFRVWXUDGRVFRPRDQWR-
logia que busca sua coerência no acúmulo do pior, do mais escatológico
e chocante. Disseram que Borat é tipo um Jackass com cérebro. Acer-
taram em parte. Jackass e suas imitações é a outra cara americana, do
prazer somente com sofrimento, herança puritanista que mata o corpo e
celebra uma desumana pureza.
Em Borat a cena mais chocante para a maioria é a paródia das lutas ameri-
canas, aquela do bando de adultos pulando em cima dos outros e trocando
golpes de mentirinha, que no Brasil eram chamadas de telequete (de Tele/
&DWFK3RLVDPDLRUFHQDGRğOPHÒDPDLRUVXUSUHVDWDPEÒPSRLVRHPED-
te não é mais entre Borat e os americanos e sim entre Borat e seu compa-
triota. A cena se constrói dentro do quarto do hotel, misturando telequete e
posições de sexo. Nunca o cinema foi tão fundo! É inesquecível ver o anús do
gordo compatriota na cara de Borat. É a visão do inferno. A risada vem do
nojo, do constrangimento, já que a enorme tela do cinema nos coloca face a
face com aquela bunda gorda, enorme, branca e cabeluda.
Não sabemos o que pode vir depois. Quando no Brasil surgiu aquela por-
caria chamada É o Tchan, chegando no meio dos anos 90 a vender mais
de dois milhões de cópias, com uma mulher de shortinhos dançando em
FLPDGHXPDJDUUDğQKDGL]HQGRQDVHQWUHYLVWDVŁTXHDPDOGDGHHVWÀ
QRVROKRVGHTXHPYÓłDFKHLTXHHUDRğP2ğPÒVHPSUHSRVWXODGRH
postergado: nunca chega.
11.17 DREAMGIRLS:
MUSICAIS DA
BROADWAY NO
CINEMA
Marcus Mota
11-‐JANEIRO-‐2006
$WÂRGHFDQWDGDŁPRUWHGRVPĎVLFDLVGH+ROO\ZRRGłTXHFRPHÍRXQRV
anos 60 e atingiu o climax nos anos 80 deve-se menos a um esgotamento
do gênero que às mudanças na cultura audiovisual estadunidense. Com a
popularização de eletrodomésticos reprodutores de música e programas
televisivos de auditório, a canção deixou de ser algo relacionado a um
grande evento preparado e passou a ser consumida independetemente
de uma situação de performance. Por outro lado, com o Rock, as pesso-
as foram é dançar, curtir, livrar-se da dança marcada, da reprodução. Os
românticos casais, as duplas em cena deram lugar aos diretos ritos de
acasalamento. Era muita palavra, muita discreção para pouca ação.
O incrível é que foi durante essa ‘morte’ que o musical atingiu uma
maturidade artística sem precedentes, como o caso de West Side
6WRU\(VVHGUDPDPXVLFDOÒRFRPHÍRGRğP$FRQMXQÍÂRHQWUHXPD
proposta realista,contemporânea e as metareferências do espetáculo
DVSHVVRDVGDQÍDPHFDQWDPFRPRVHIDODVVHPHVHORFRPRYHVVHP
VLWXDEHPDWHQVÂRUHSUHVHQWDFLRQDOGHğOPHVPXVLFDLV
4XHPDVVLVWLUDRğOPHQÂRYDLSRGHUğFDULQHUWH¿JUDQGHFHQDTXDQ-
do Hudson canta “And I’m Telling You I’m Not Going”. A intensidade
da performance de Hudson dissolve todos os manuais de atuação
&RPRVHSRGHYHURğOPH'UHDPJLUOVFRPFDQWRUDVYLVWDVFRPRDWUL-
zes e um comediante como ator, colocam para nós o questionamento
PHVPRGDGHğQLÍÂRGHDWXDU1DYHUGDGHKÀPDLVXPDVÒULHGHH[-
pectativas que um conceito mesmo. Cada obra tem sua intepretação.
Mas as implicações deste tipo de abordagem confrontam-se direta-
PHQWHFRPRUHJLPHğQDQFLVWDGRVğOPHVÒPXLWRGLQKHLURSDUDLQ-
vestir em algo assim extravagante. Contudo, a extravagância está em
pensar que há uma maneira só de intepretar. Ainda mais em musicais.
4XDQWR¿GUDPDWXUJLDRğOPHÒLUUHJXODUSULQFLSDOPHQWHQDUHODÍÂR
entre cenas cantadas e cenas não cantadas. Logo após a grande e
intensa cena de Judson, temos um canto despropositado, fraco, canto
GHSHUVRQDJHP2SUREOHPDQÂRÒTXHRğOPHWHPFDQÍøHVGHPDLV
A questão é usar o silêncio, usar cenas com menor tessitura. Senão,
tudo parece igual. Outra problema está nas canções. São irregulares.
Há ótimo material a partir da cultura afro-americana. Mas em alguns
duetos e canções que fecham cenas pode-se ouvir claramente a gra-
PÀWLFD GD %URDGZD\ H VHXV PDQXDLV GH 6RQJZULWLQJ DTXHOHV VRORV
com partes constrastantes e mudanças de tom obrigatórias. Um saco!
O cara faz aquilo sentado no vaso em uma hora.
Porém, nada se compara à explosão de “And I’m Telling You I’m Not
Going”. A cena começa com ensaio que é interropido pela chegada de
(IğH:KLWHSHUVRQDJHPGH+XGVRQ1RSDOFRTXHÒXPSDOFRPHV-
mo, estabelece-se uma discussão dramático- musical entre as perso-
QDJHQV(IğHFRQIURQWDHÒFRQIURQWDGD$PRYLPHQWDÍÂRHDVXFHV-
são de ataques e respostas cantadas vai ampliando o isolamento de
(IğH(QWÂRHODH[SORGHHWRGRVğFDPRVXQVPLQXWRVFRPRFRUDÍÂR
Lógico que podemos ver que Hudson tem limitações como atriz.
Muitos de seus gestos são repetitivos, não econômicos. Sua postura
às vezes parece de alguém perdido em cena, procurando a câmera,
procurando para onde olhar. Pode quase parecer constrangedor. Em
algums momentos a igualdade entre gesto e canto parece primária.
0DVPLQKDJHQWHHODSRGHQÂRVHUQHQKXPD0HU\O6WUHHSPDVHVVHV
sete minutos produzem uma sensação de imenso desconforto, pois
ao mesmo tempo é atrativo e repulsivo tamanha exposição tanto da
personagem quanto da atriz que o tempo pára, a tela rasga e você
HVWÀ GLDQWH GH XPD SRGHURVD YR] GH XPD LQHVTXHFâYHO ğJXUD TXH
apela para os teus mais íntimos e profundos sentimentos.
Para além das marcas, da coisa bem feita, a rusticidade feroz de Hu-
dson me lança para primitivas imagens e ecos de uma época em que
não éramos tão civilizados, e um grito era mais que um grito – era um
comando, belo e forte como o perigo da morte.
$VVLPHPXPğOPHLUUHJXODUFRPDWUL]HVLQH[SHULHQWHVHPDOJXQVPL-
nutos temos mais vida que na grande parte da porcaria correta que dia-
riamente é lançada em nossos olhos e ouvidos. A cena pode lembrar algo
de exagero operístico ou de dramalhão mexicano. Pode até ser. Mas a
nossa recusa de compaixão e nossos hábitos de estetizar a vida sempre
nos fornecem soluções para racionalizar situações tão especiais.
19-‐fevereiro-‐2007
7DLVLQWHUIHUÓQFLDVQDOöJLFDGRPXQGRUHSUHVHQWDGRHQDğOPDJHPVÂR
VXSHUDGDVSHORÀJLOFLUFXLWRFDÍDGRUFDÍDQRTXDORğOPHVHEDVHLD(VVH
FLUFXLWRFRPVHXVUHYHVHVRFDÍDGRYLUDQGRFDÍDGRUSRVVLELOLWDSDUWHGH
uma ambiência primivista para Apocalypto. Tudo se reduz a atos básicos
GHQWURGHXPDFXOWXUDGHVREUHYLYÓQFLD2PÒULWRGRğOPHHVWÀHPHVWHQ-
der ao máximo essa situação. Não há poesia nenhuma. Em certas situa-
ÍøHVFRPRQDğOPDJHPQDPDWDRXQDWUDQVIRUPDÍÂRGRKHUöLHPIHUD
poderia haver um tempo maior para que as imagens fossem melhor ex-
ploradas. Mas não há tempo. A perseguição se impõe com todos seus mira-
ERODQWHVHVTXHPDVGHIXJDHDWDTXH*LEVRQTXLVID]HUXPğOPHFUX0DV
não é porque eu não sei cozinhar que eu tenho de comer bife mal passado.
A monomania do diretor reduz o escopo cinematográgico da obra. Daí as-
VLVWLUPRVDXPğOPHPHLRPDOUHDOL]DGRFXMDPDLRUTXDOLGDGHUHVLGHQHVVD
manutenção de um opressivo vínculo com a platéia: a adiada catarse, na
YLWöULDGRKHUöLVREUHVHXVLQLPLJRV&RPFHUWH]DÒRPHOKRUğOPHGH*LE-
son, esbaldado pelo oscar em virtude de seus comentários contra judeus
8PGRVWUDÍRVPDUFDQWHVGH$SRFDO\WRÒTXHHOHÒIDODGRHP<XFD-
teque, uma língua maia. Mas isso não é um grande problema, pois,
DOÒPGDVOHJHQGDVHPJUDQGHSDUWHGRğOPHQÂRKÀIDOD(TXDQGR
se fala, predomina a trivialidade. Assim, o uso de uma outra língua, de
uma língua exótica, funciona como atmosfera, como um elemento de
FDUDFWHUL]DÍÂRWDOTXDORğJXULQRDPDTXLDJHPHRVREHMWRVHPFHQD
1DGDGHPXLWRVLJQLğFDWLYRÒGLWR$LQIRUPDÍÂRPDLVUHYHODQWHHVWÀ
naquilo que se vê e na moldura sonora dos eventos.
'HVVD PDQHLUD R XVR GH OâQJXDV RXWUDV TXH R LQJOÓV HP ğOPHV GD
LQGĎVWULDFLQHPDWRJUÀğFDKHJHP÷QLFDQÂRDFDUUHWDQHQKXPDPRGL-
ğFDÍÂR QR PRGR FRPR D YLVÂR UHGX]LGD GHVVD LQGĎVWULD UHSUHVHQWD
outras culturas. É impressionante como a desculpa de ‘mostrar os ou-
tros como os outros são’ é um marketing, o culturalismo é apropria-
do como uma maneira de vender. Nisso o culturalismo acadêmico se
aproxima do midiático: os ‘outros’ agora são palatáveis, são produtos.
$VROXÍÂRFLQHPDWRJUÀğFDSDUDHVVDEDEHOÒVLPSOHV7RGRVVÂRYHU-
des, mas há um verde mais fundamental. Os outros são matéria para
divertimento. Por mais sério que seja aquilo que você diz com esse
seu sotaque, aquilo que você diz não tem o mesmo status de algo dito
por um nativo, pelo verdadeiro inglês.
7DOSUHVHQÍDWUD]SDUDRPHUFDGRFLQHPDWRJUÀğFRPDLVTXHXPSUR-
duto culturalista. A questão é o enfrentamento da dramaturgia base-
ada em convensões estritas de caracterização. É o conceito mesmo de
personagem que está em jogo. Quando a câmera se libera de diálogos
HIDODVH[SOLFDWLYDVHHQFLFORSÒGLDVHODSRGHHQğPPRVWUDUDOJRTXH
não repercute os esquemas de apreensão de realidade que a indús-
tria considera como universais.