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TEORIA DA

ARTE E DO
TEATRO
MARCUS MOTA

FOTO CAPA:
OLHOS DE TOURO
DIR. MARCIA DUARTE
CRED. MILA PETRILLO
MARCUS MOTA

Marcus Mota é professor de Teoria e História do Teatro da Uni-


versidade de Brasília e na Pós-Graduação em Arte,na mesma
instituição.

Entre suas realizações, dirigiu e produziu Bodas de Fígaro,


de Mozart (Teatro Ulysses Guimarães, Brasília, 2004);Car-
men, de Bizet (Teatro Nacional de Brasília, 2005); O telefo-
ne, de Menotti (Teatro Nacional de Brasília, 2005); Cavalleria
Rusticana(CCBB-Brasília e Teatro Nacional de Brasília,2006) O
empresário, de Mozart (Teatro Nacional de Brasília, 2006). Ela-
borou o texto e as canções dos seguintes musicais: As Partes
Todas de um benefício (Dirigido por Hugo Rodas, apresentado
no Teatro do Departamento de Artes Cênicas, da Universidade
de Brasília, 2003; Um dia de festa (Dirigido por Jesus Vivas,
apresentado no Departamento de Artes Cênicas, da Universi-
dade de Brasília, 2003). Dirigiu e elaborou o texto e as canções
de Saul. Drama Musical ( Teatro Nacional de Brasília, 2006),
com arranjos e orquestração de Guilherme Girotto; Caliban
(Teatro do Departamento de Artes Cênicas, Universidade de
Brasília, 2007), com arranjos e orquestração de Ricardo Naka-
mura. Além disso, teve os seguintes textos encenados: Idades.
Lola. (Direção Hugo Rodas, Departamento de Artes Cênicas –
UnB,2002; Docenovembro (CCBB-Brasília, 2001); Iago(Dirigido
por Nitza Tenenblat,CCBB-Brasília, 2004), Salada para três (Di-
rigido por Hugo Rodas, Teatro Departamento de Artes Cênicas,
2003); Elaborou textos para os espetáculos Olhos de Touro.
Dança teatro.(Direção Márcia Duarte, apresentado em várias
cidades do Brasil, pelo Palco Giratório-SESC 2001-2002); e As
quatro caras do mistério(Direção Hugo Rodas, CCBB-Brasília,
2003);). Ganhador do Edital Eletrobrás 2008, compôs, junto
com Plínio Perru, o drama musical No Muro. Ópera Hip-Hop,
com direção de Hugo Rodas, apresentado na Funarte-Brasília,
2009. Em 2010 a mesma obra recebeu o Prêmio Nacional de
Expressões Afro-Brasileiras, e foi reapresentada no Teatro da
Caixa –Brasília, em 2010.

Ainda, Marcus Mota recebeu menção honrosa no Prêmio Cida-


de de Literatura Cidade de Belo Horizonte, categoria Drama-
turgia, em 2003, com o texto Rádio-maior, o qual foi apresen-
tado na Funarte-Brasília em 2004 .

2 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Como pesquisador, além de inúmeros artigos e comunicações
em revistas e congressos nacionais e internacionais, publicou:
A dramaturgia musical de Ésquilo: Investigações sobre com-
SRVLÍÂRUHDOL]DÍÂRHUHFHSÍÂRGHğFÍøHVDXGLRYLVXDLV(GLWR-
ra Universidade de Brasília, 2009, que foi agraciado no mesmo
ano com o 2o. lugar no tradicional Prêmio Mário de Andrade de
Ensaios Literários, promovido pela Biblioteca Nacional. Este
ano foi contemplado em edital de pesquisa do CNPQ para pro-
duzir material de áudio e visual sobre a musicalidade a partir
GDVFRQğJXUDÍøHVPÒWULFDVSUHVHQWHVQRVWH[WRVUHVWDQWHVGD
tragédia grega. Traduziu e publicou pela Editora UnB as obras
de Lorca: Yerma, Assim que passarem cinco anos, A casa de
Bernarda Alba e Conferências em 2006.

Além disso, publicou, A idade da terra e outros escri-


tos (Texto&Imagem, 1997), A imaginação dramática
(Texto&Imagem, 1998), Rádio Maior,Iago (Arte&Contexto,2004).

Dirige, desde 1997, o LADI (Laboratório de Dramaturgia e Ima-


ginação Dramática), no Departamento de Artes Cênicas na
Universidade de Brasília.

Entre 2008 e 2009 foi professor visitante na Flórida University


State, ensinando dramaturgia.

Site: www.marcusmota.com.br.

contato:marcusmotaunb@gmail.com.

Teoria da Arte e do Teatro 3


4 Curso de Especialização em Teatro à Distância
SUMÁRIO
1.1 COMPOSIÇÃO .............................................................................................. 16
1.2 REALIZAÇÃO................................................................................................ 18
1.3 RECEPÇÃO ................................................................................................... 19
1.4 PRODUÇÃO.................................................................................................. 20
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................74

10.1 TEATRO CINEMATOGRÁFICO ................................................................. 76


10.1.1 MOMENTO 1.............................................................................................................76

10.1.2 MOMENTO 2.............................................................................................................77

10.1.3 MOMENTO 3.............................................................................................................77

10.2 O CASO EISENSTEIN................................................................................ 78


10.3 UMA DRAMATURGIA FÍLMICA POSSÍVEL ........................................... 84
10.4 ERWIN PISCATOR E O FIM DA ILUSÃO DA ILUSÃO TEATRAL ....... 87
10.5 TRADIÇÃO E RAZÃO: MODERNIDADE E MITO EM RUMBLE FISH 97
11.1 PRELIMINARES .......................................................................................108
11.2 O FILME.....................................................................................................109
11.3 POR UM CINEMA NÃO EXCLUSIVAMENTE NARRATIVO ...............111
11.4 O MELHOR DO PIOR: HIPER-REALISMO E REPRESENTAÇÕES..113
1 .........................................................................................................................................113
2 .........................................................................................................................................116
3 .........................................................................................................................................120
4 .........................................................................................................................................121

11.5 SOBRE O FILME CAPOTE, DE BENETT MILLER ..............................121


11.6 CAPOTE E A MARCHA DO IMPERADOR? QUE ESTRANHA
APROXIMAÇÃO..........................................................................................127
11.7 SYRIANA!!! ENTÃO HOLLYWOOD É ADULTA AGORA?...................131
11.8 COMICIDADE: ADAPTAÇÃO DE PEÇAS DE ARISTÓFANES NO
ESPETÁCULO A ÉTICA É UMA COMÉDIA ............................................133
11.9 DRAMATURGIA DE MULHER, DRAMATURGIA FEMININA E OUTRAS
DÚVIDAS, A GAROTA DA VITRINE ........................................................135
11.10 V DE VINGANÇA....................................................................................138

Teoria da Arte e do Teatro 5


11.11 O FILME O CÓDIGO DA VINCI: NAO BASTA FALAR MAL.............140
11.12 SERÁ? LEVANDO PARA A CENA OBRAS DE GRANDES
DRAMATURGOS: MONTAGEM DE O PEQUENO EYOLF, DE IBSEN. ....
142
11.13 TRAGÉDIA GREGA EM CENA: O GRUPO GIZ-EN-SCÈNE ............145
11.14 MOLIÈRE: A COMICIDADE E A AMPLITUDE DA CENA
CÔMICA EM O DOENTE IMAGINÁRIO .................................................149
11.15 TEATRO, MÚSICA E RELIGIÃO EM UNA MADRE CORAJE............151
11.16 BORAT: CULTURALISMO, COMÉDIA E BOBEIRA ...........................153
11.17 DREAMGIRLS: MUSICAIS DA BROADWAY NO CINEMA ..............157
11.18 APOCALYPTO E AS AVENTURAS DA VEROSSIMILHANÇA:
QUANDO AS LÍNGUAS NÃO SIGNIFICAM MUITA COISA ................161

INTRODUÇÃO: O TEATRO E SUAS MÚLTIPLAS


FORMAS DE ACESSO .................................................... 15

ATOS INTEGRADOS NO FAZER TEATRAL ..................... 23

PENSANDO O ESPAÇO CÊNICO .................................... 27

CONSTRUINDO CONFLITOS .......................................... 33

PERPECTIVAS E INTERPRETAÇÕES .............................. 39

METATEATRALIDADE ................................................... 43

ARTES EM CONTATO .................................................... 47

ÉTICA E ESTÉTICA ........................................................ 51

A PERFORMANCE COMO ARGUMENTO: A CENA


INICIAL DO DIÁLOGO ÍON, DE PLATÃO ....................... 55

APROXIMAÇÕES A UMA DRAMATURGIA FÍLMICA A


PARTIR DO CASO EISENSTEIN ..................................... 75

CINEMA E TEATRALIDADE: O BEBÊ (SANTO) DE


MÂCON, DE PETER GREENWAY ................................. 107

6 Curso de Especialização em Teatro à Distância


A P R E S E N T A Ç Ã O

Neste curso vamos nos aproximar de conceitos básicos em Ar-


WHV&ÓQLFDVDSDUWLUGDGLVFXVVÂRGHREUDVFLQHPDWRJUÀğFDV
Teatro e cinema possuem uma história de íntimas relações. A
HVFROKDGHğOPHVSDUDDPSOLDUFHUWRVWöSLFRVHPWHöULFRVÒ
HVWUDWÒJLFRRVğOPHVQÂRLOXVWUDPRVFRQFHLWRV&DGDğOPHÒ
XPDREUDMXVWLğFÀYHOHPVLPHVPD

(ÒMXVWDPHQWHSRULVVRTXHRSWDPRVSRUQRVYDOHUGHğOPHV
é preciso ver, analisar, estudar entender a obra para então
FRPSUHHQGHU RV FRQFHLWRV ( QÂR Ò TXDOTXHU ğOPH TXH VHU-
ve para o nosso propósito: as obras escolhidas manifestam
GHOLEHUDGDV HVFROKDV HVWÒWLFDV 6ÂR ğOPHV TXH QÂR Vö DSUH-
sentam uma história: são obras que exploram procedimentos
H WÒFQLFDV FLQHPDWRJUÀğFDV FRQWULEXLQGR SDUD IRUQHFHU XP
contexto extenso para nossas discussões.

O foco do curso, pois, é o desenvolvimento da percepção es-


tética. Ou seja, teorias em artes estão diretamente relaciona-
das com experiências, com o contato, fruição e entendimento
das obras. O estudo de teorias teatrais não é meramente o
ğFKDPHQWRHWUDQVFULÍÂRGHFLWDÍøHVGHWUHFKRVGHOLYURV1RV
OLYURVHVWÂRUHJLVWUDGDVUHĠH[øHVDSDUWLUGHVVHVFRQWDWRVH
vivências. As grandes teorias de teatro no século 20 foram
elaboradas por diretores, atores, encenadores, dramaturgos,
todos envolvidos diretamente em processos criativos cênicos.

Há, muitas vezes, uma falsa concepção do que seja pensar o


WHDWURHODERUDUWHRULDVFRQFHLWRVUHĠH[øHVVREUHRID]HUWHD-
tro. Temos em mente uma certa separação entre as atividade
de participar de um processo criativo e as de discutir, comen-
tar e analisar tal processo. Este curso parte justamente disso,
desse pretenso dualismo, dessa oposição e exclusão de ati-
vidades para demonstrar que na capacitação intelectual em
artes cênicas é preciso um paradigma global, com a formação
de intérprete que integrem habilidades múltiplas.

(P IXQÍÂR GLVVR R FXUVR Ò GHVHQKDGR QD LGHQWLğFDÍÂR GH


conceitos operacionais básicos para tal capacitação. A cada
VHPDQDVÂRSURSRVWRVXPFRQFHLWRHXPğOPH$VWDUHIDVH
atividades durante o curso procuram fazer a mediação entre

Teoria da Arte e do Teatro 7


RGHVHQYROYLPHQWRGDSHUFHSÍÂRHVWÒWLFDDSDUWLUGRVğOPHVH
a discussão e compreensão de conceitos operacionais básicos
em Artes Cênicas.

Para tanto, este livro do curso assim se organiza: inicialmen-


te você tem cada uma das oito semanas comentadas, com a
DSUHVHQWDÍÂRHGLVFXVVÂRGRFRQFHLWRHGRğOPHHPTXHVWÂR

Em seguida, nos anexos, temos artigos e críticas intimamen-


te vinculadas com as questões aqui colocadas. Ou seja, para
ampliar as discussões das semanas ou para futuros desdobra-
mentos, os textos extras são um material providencial.
Durante o processo criativo da
montagem de Aluga-se(1996), Uma nota sobre a origem dos textos aqui publicados e da
foram utilizados as comédias
do cinema norte-americano da abordagem do curso: desde de minha entrada como professor
década de 1920/1930. Além
desse texto, a dramaturgia de no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasí-
Uma última noite sobre a terra lia, em 1995, venho trabalhando com as relações entre teatro
(1995), Domingo Áspero (1997),
Acid House (1998),Brutal e cinema tantos nas aulas quanto em processos criativos. Em
(1998),Docenovembro(2001),
disponíveis no site www.mar- meu livro A Imaginação Dramática (Texto&Imagem,1998), co-
cusmota.com.br, foi elaborada mecei a desenvolver essa interrelação por meio da apropria-
a partir de obras cinematográfi-
cas. A partir desse estudo e pro- ÍÂRGHFRQFHLWRVHELEOLRJUDğDGRVHVWXGRVFLQHPDWRJUÀğFRV
dução de dramaturgia, fundei
e dirijo o LADI (Laboratório de aos estudos teatrais. Tal atividade se tornou basilar em vir-
Dramaturgia e Imaginação Dra-
mática) no Departamento de tude de grande parte da prática de análise de textos teatrais
Artes Cênicas da Universidade ainda ser feita, pelo menos no Brasil, da aplicação de estile-
de Brasília, em 1996.
PDVGDğORVRğDRXGDOLWHUDWXUDHavia, pois, uma fragrante
Lembrar que, por exemplo, o li-
vro Análise de Espetáculos (São contradição entre a teatralidade dos textos e os pressu-
Paulo: Perspectiva), de P.Pavis, postos de leitura de análise.
foi publicado no Brasil em 2003.

Desenvolvi parte dessa ar- Estes estilemas privilegiavam o que chamados de leitura ima-
gumentação no texto “Dra-
maturgia, colaboração e nente das obras: os textos teatrais vistos como objetos fe-
aprendizagem:um encontro
com Hugo Rodas. In: VILLAR, chados em si mesmo, autônomos, como se gerassem seu
F.P e CARVALHO,E.F. (Orgs.) próprio sentido, independentemente de produzir intera-
Histórias do Teatro Brasiliense.
Brasília: IdA/UnB, 2003, v. 1, ções em uma concreta atualidade.
p. 198-217.”

Encontramos em Aristóteles, na Poética, o modelo dessa con-


cepção: “Acresce ainda que a Tragédia pode atingir a sua
Poética, 1462 a . Tradução de
Eudoro de Souza. Para comen- ğQDOLGDGH FRPR D (SRSÒLD VHP UHFRUUHU D PRYLPHQWRV
tário e tradução da Poética, v. pois uma Tragédia, só pela leitura, pode revelar todas as
suas qualidades.”

8 Curso de Especialização em Teatro à Distância


'LDQWHGHWDODğUPDÍÂRRTXHUHVWDSDUDTXHPDSUHFLDRUH-
gistro escrito de uma obra teatral? Se, segundo Aristóteles,
segundo a experiência de Aristóteles, as qualidades da obra
SRGHP VHU LGHQWLğFDGDV VHP TXH GHOD VH SDUWLFLSH HP XPD
situação de representação, tão-somente pela leitura, são jus-
tamente as distinções que a leitura revela aquelas que serão
evidenciadas pelo intérprete. Em outras palavras, a reduzida
interação do intérprete com o evento cênico, restrita somente
ao texto, vai circunscrever a percepção a referentes relaciona-
dos com a atividade intelectual da leitura. O contato solitário
do leitor e do texto é colocado no lugar do amplo contexto de
trocas entre cena e audiência. A comunal e massiva interação
HQWUHSDOFRHSODWÒLDÒDUWLğFLDOPHQWHVXEVWLWXâGDSHODSURMH-
ção do mentalismo do intérprete às linhas do texto.

Uma obra teatral “sem os movimentos” é a cena sem atores,


como música sem música, deslocamento de uma discussão e
análise do que acontece agora neste local para uma instância
PDLVJHQÒULFDQÂRWÂRFRPSURPHWLGDFRPDHVSHFLğFLGDGHGHVH
propor para uma audiência determinadas escolhas e arranjo de
materiais transformados durante sua performance e apreciação.

Em razão dessa herança aristotélica que interdita os nexos en-


tre obras e sua materialidade temos determinadas práticas de
análise que se tornaram habituais, como 1- ver nos textos te-
atrais e nos eventos cênicos um mero campo de aplicação de
metodologias, abordagens e conceitos pré-existentes; 2- trans-
posição sem questionamento para obras teatrais de análises
textualistas comuns em literatura e em leitura e produção de
textos, enfatizando, entre outros aspectos, temas, unidades de
sentido, ‘idéia mais importante’, contexto histórico e informa-
ÍøHVELRJUÀğFDVHFDUDFWHUâVWLFDVGRHVWLORGRDXWRU

Em todo caso sempre se procede do geral para o particular, de


um a priori (antes da experiência) para a obra.

Para o intérprete tal recurso ao artifício da redução de sua


participação em eventos cênicos às ‘idéias mais importantes
do texto’ efetiva um espaço cômodo e perigoso: não é neces-
sário entrar em contato com a obra, interargir com ela. O in-
térprete pode estacionar no acumulado de sua experiência
SUÒYLDUHSHWLQGRRTXHMÀVDEHVHPPRGLğFDUVH1ÂRKÀGL-

Teoria da Arte e do Teatro 9


ğFXOGDGHVTXDQGRRDWRGDOHLWXUDÒDFRQğUPDÍÂRGHLGÒLDV
e informações sem o questionamento das fontes. Abre-se o
FDPLQKRSDUDXPRSRUWXQLVPRVXSHUğFLDOSRUPHLRGRTXDO
os comentários da obras não passam de apressadas reprodu-
ções de (im)posturas intelectuais.

Com o contínuo recurso a interpenetração entre obras cine-


PDWRJUÀğFDVHWHDWUDLVFRPHFHLDREVHUYDUQÂRVöXPDUHVLV-
tência a estas práticas descontextualizadoras como também
o desenvolvimento uma abordagem que fossem uma inicia-
ção para o aprimoramento da percepção estética.

Seguindo Gaston Bachelard, optei por trabalhar com conceitos


operatórios. Em sua descrição da atividade racionalista da físi-
ca pós-newtoniana, Bachelard destaca o fato que os cientistas
procuram integrar um materialismo técnico a uma discussão
L’ activité rationaliste de la
physique contemporaine.Paris,
conceitual. A manipulação da realidade nos laboratórios rea-
P.U.F., 1951. liza a interseção entre teoremas e instrumentos de medição
cada vez mais precisos. Ou seja, temos a complementaridade
entre o conhecimento daquilo que se investiga e a elaboração
de conceitos e metodologias a partir desse conhecimento.

Em nosso caso, a experiência de assistir, analisar e discutir os


ğOPHVSURSRVWRVFRQMXJDVHFRPDLGHQWLğFDÍÂRGHFRQFHLWRV
que estão diretamente vinculados com a obra estudada. Ao
invés de se discutir idéias e conceitos por eles mesmos, procu-
ramos ver as obras, entre outras coisas, como articulações de
FHUWRVSURFHGLPHQWRVHDUJXPHQWRV'DâRGHğQLÍÂRŃFRQFHL-
tos operatórios”, pois indicam uma atividade cognitiva orien-
ta a partir de uma interação.

A partir dos conceitos, de uma linguagem cada vez mais espe-


FâğFDÒTXHSRGHPRVPDLVFODUDPHQWHH[SOLFLWDUUHDLVHPDLV
densos contatos com as obras analisadas.

Essa objetivação da subjetividade é uma das contribuições des-


se curso. Os conceitos não são apenas um vocabulário comum
entre os membros do seminário de teoria do teatro. Os concei-
tos operatórios são vias de acesso que não prescindem ou ne-
JDPRFRQWDWRFRPDVREUDV1ÂREDVWDLGHQWLğFDURVFRQFHLWRV
ou memoriza-los. A certeza deles não é a totalidade da expe-
ULÓQFLDRTXHPDLVXPDYH]UHDğUPDRVHXFDUÀWHURSHUDWLYR

10 Curso de Especialização em Teatro à Distância


A utopia de se encontrar uma metodologia que antecipe e de-
ğQDWRGDVDVDWLYLGDGHVHQYROYLGDVQDFRPSUHHQVÂRHSDUWLFL-
pação de obras teatrais é sedutora, mas encontra seu limite na
diversidade irredutível de práticas, estilos e tradições artísticos.
Diante disso, resta para a capacitação intelectual de intérpre-
tes em Artes Cênicas a integração de habilidades heterogêneas
para enfrentar eventos multidimensionais.

1HVVH VHQWLGR D SUHVHQÍD GH REUDV FLQHPDWRJUÀğFDV FRPR


campo de discussão de conceitos operacionais teatrais se
MXVWLğFD &LQHPD H WHDWUR VÂR PRGDOLGDGHV GH H[SRVLÍÂR GH
processos criativos, que distinguem e se aproximam em fun-
ção de suas tradições, suportes e materiais. Um arco entre o
primeiro cinema, aquele que freqüentava as feiras, os circos,
lugares de uma teatralidade popular, e as contemporâneas
instalações e hibridismo multimidiáticos nos impele para a
defesa de um saber interartístico e pluridisciplinar. Se a cena
pode muito, é preciso capacitar-se para torná-la possível.

Bom curso para todos nós.

Teoria da Arte e do Teatro 11


12 Curso de Especialização em Teatro à Distância
O B J E T I V O S

Iniciar os participantes do curso em uma compreensão mais


englobante do fazer e do pensar as Artes Cênicas. Perceber
FRPR FRQFHLWRV H UHĠH[øHV HP $UWHV &ÓQLFDV VÂR JHUDGRV D
SDUWLUGHXPFRQWH[WRGHSURGXÍÂREHPHVSHFâğFR3URPRYHUD
discussão de teorias como estímulo para compreensão de pro-
cessos criativos em Artes Cênicas.

E M E N T A

,GHQWLğFDÍÂRGHSDUÁPHWURVGHFRQVWUXÍÂRGHWHRULDVHP$U-
tes Cênicas.

P R O G R A M A

Semana 1
» Filme Zelig, de W. Allen;
» Apresentação do plano do curso e do guia de estu-
dos;
» 0ĎOWLSODV GHğQLÍøHV GH WHRULD HP $UWHV &ÓQLFDV
Avaliação Colles(expectativas);
» tarefas:questionário de avaliação;
» construção de glossário;

1
Semana 2
» Texto Ion, de Platão;
» Parâmetros básicos de Teoria em Artes Cênicas:
composição, realização, recepção e produção.
Tarefa:lição.

Semana 3
» Filme Dogville, de Lars Von Trier;
» Espacialização, localização e presença;
» Tarefa:questionário.

Semana 4
» Filme O selvagem da motocicleta, F. F. Coppola;
» Personagem e assimetrias entre agentes e recepção.

Teoria da Arte e do Teatro 13


» tarefa:questionário.

Semana 5
» Filmes Verdades e Mentiras, de Orson Welles;
» Dinâmica de perspectivas e interpretações.
» Tarefa:comentário escrito.

Semana 6
» O bebê Santo de Mâcon, de P. Greenaway;
» Metateatralidade: o espetáculo sobre o espetáculo;
» Tarefa: questionário.

Semana 7
» Filme Bodas de Sangue;
» Peça Bodas de Sangue, de F. Garcia Lorca;
» O teatro como campo interartístico;
» Tarefa: lição.

Semana 8
» )LOPH2ğHOFDPDUHLURGH3<DWHV
» Ética e estética: as fronteiras do fazer e do repre-
sentar;

14 Curso de Especialização em Teatro à Distância


INTRODUÇÃO:
O TEATRO
E SUAS
MÚLTIPLAS
FORMAS DE
ACESSO

1
Nessa semana vamos entrar em contato com uma experiência fun-
damental em Artes Cênicas: a multiplicidade de aspectos através dos
quais um evento cênico pode ser estudado. Este é o nosso ponto de
partida. A abertura que essa experiência de pluralização acarreta vai
nos acompanhar durante todo o curso.

Em primeiro lugar é preciso ter em mente a situação básica do intér-


prete. Qual é a sua participação no espetáculo? Você está assistindo?
Você atuou? Você fez o roteiro? Você está dirigindo? Há diversas ou-
tras. Por quê? Como se vê, há diversos tipos de participação em um
HYHQWRFÓQLFRFDGDXPDGHODVEHPHVSHFâğFDHGHWHUPLQDGD8PD
mesma pessoa pode ter várias participações no processo criativo.
Mesmo assim cada função é diversa. Você pode escrever o roteiro e
dirigir e atuar que ainda você passou por diversas atividades.

Ou seja, aquilo que em um primeiro momento parece uma coisa úni-


ca, um produto – uma peça apresentada diante de um auditório – co-
meça a se desdobrar em um conjunto de diferentes ações. Uma ob-
servação mais atenta vai tornar perceptível que mesmo o espetáculo
em si explicita essa multiplicidade de ações. Você pode seguir a luz
RXDFHQRJUDğDGHXPHVSHWÀFXORHQÂRVRPHQWHDVDWXDÍøHV9RFÓ
pode constatar que o espetáculo possui várias partes ou cenas, que
se organiza de alguma forma. Ou seja, as perguntas e análise aumen-
tam na medida em que você interage melhor com a obra e começa a
sair de uma posição de apenas aplicar ao que vê as coisas que você
pretensamente conhece.

No aprofundamento de sua participação na obra cênica você começa


a perceber que há uma heterogeneidade de atividades que são ali
DSUHVHQWDGDVHPFHQD(PWHPRVGLGÀWLFRVSRGHPRVLGHQWLğFDUSHOR
menos quatro grande tipos de atividades.

1.1 COMPOSIÇÃO

4XDQGRYRFÓYÓXPğOPHRXDVVLVWHDXPDSHÍDKÀXPDLOXVÂRGD
ordem, da continuidade. Na maioria das vezes você permanece ali
sentado, imóvel e com o tempo há uma sucessão de entradas e sa-
ídas de agentes dramáticos, mudanças no espaço visível à platéia,
novas paisagens sonoras,entre outros procedimentos. Você consegue

16 Curso de Especialização em Teatro à Distância


LGHQWLğFDUVHTđÓQFLDVGHGLIHUHQWHVWDPDQKRVHULWPRVFHQDVFXUWDV
ou longas, aceleração ou desaceleração das cenas. Quando você lê
XPWH[WRWHDWUDORXXPURWHLURFLQHPDWRJUÀğFRÒSRVVâYHOSHUFHEHU
uma divisão do todo em diversas partes: atos, cenas, estações são co-
nhecidas formas de nomear essas divisões. Na verdade se você parar
SDUDSHQVDUWXGRÒSDUWH$RğPGRHVSHWÀFXORWHPRVDVHQVDÍÂRGH
uma totalidade. Mas essa abrangência é o efeito de como as partes
são organizadas e de como as partes se relacionam entre si. Aquilo
que vemos em um primeiro momento e parece tão bem feito, tão
exato, tão amarrado é o resultado de diversas operações seletivas, as
quais são expostas agora durante a performance. A costura é exibida
durante a apresentação. Um espetáculo nada mais é que a exposição
dos atos de sua organização.

Essa dimensão de coesão, sintática, pode ser chamada de composi-


ção. Com-por é colocar junto, é reunir, é integrar os díspares. A com-
posição é a exploração da heterogeneidade da obra. Uma maneira de
perceber a composição é, do ponto de vista do intérprete, perceber o
ritmo estrutural do espetáculo, cujo registro está na macro-estrutura,
em um diagrama da quantidade e duração das partes de um espetá-
FXOR3DUDFLQHPDWHPRVDVJUDQGHVVHTđÓQFLDVHVXDPLQXWDJHP
Para textos teatrais, temos a divisão de partes que pode ser percebi-
da no texto.

Por isso essa dimensão construtiva do espetáculo é muito aproximada


da atividade tradicional da dramaturgia. Uma das atividades da drama-
turgia não é apenas escrever as falas que as pessoas vão proferir em
cenas. Antes, é marcar espaços de performances por meio de blocos de
contracenação, de distribuição dos agentes e dos elementos de cena.
&RPRVHQVDLRVHVVHVURWHLURVGHDÍøHVVÂRWHVWDGRVPRGLğFDGRV1R
WH[WRğQDOH[LEHVHRSURFHVVRFULDWLYRGHUHGHğQLÍÂRGDIRUPDFRPRR
espetáculo organizou e distribuiu seus articuladores da cena.

A composição, pois, não se reduz ao planejamento prévio das cenas, a


XPDLQVWÁQFLDGLVVRFLDGDGHTXDOTXHUğVLFLGDGHPDWHULDOL]DÍÂR(VVD
tendência em isolar composição e performance é um velho hábito Poética, 1252 b.
aristotélico. Na Poética, novamente, temos uma enumeração das par-
tes da tragédia: Prólogo, episódio, êxodo e coral.

A simples constatação de que o espetáculo é dividido em partes não


basta. É preciso ir além da enumeração. As partes de um espetácu-
lo existem porque é necessário romper com a unidade abstrata do

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 17


acontecimento para se produzir o evento teatral. Não há teatralida-
de instantânea. O tempo daquilo que se mostra e o tempo para sua
apreciação e compreensão são imprescindíveis. Eventos teatrais ex-
SORUDPHPRGLğFDPRPRGRFRPRSHUFHEHPRVQRVVDUHDOLGDGH3RU
LVVRYÂRWHUXPDGXUDÍÂRFRQVWUXâGDHVSHFâğFDXPDPDQLSXODÍÂRGH
parâmetros temporais. A composição, o colocar tudo junto, é o modo
como se concretiza a experiência dessa intervenção no tempo dos
DFRQWHFLPHQWRV 7UDGX]LPRV HP HVSDÍRV FHQD VHTđÓQFLDVDWRV   R
tempo novo da obra. E o tempo que se abre em tantos pedaços e
partes é o espaço das várias perspectivas de como podemos ver os
acontecimentos representados.

(QğPFRPSRVLÍÂRQÂRÒXPPHURSODQHMDPHQWRSUÒYLRGRTXHYDL
acontecer. Mais que diagramas e promessas, trata-se de uma expo-
sição da multiplicidade de aspectos dos acontecimentos atualizados
em cena. Entre eles, a própria organização da obra.

1.2 REALIZAÇÃO

O evento cênico é articulado pelos agentes que o viabilizam. Atores,


FHQRJUDğD LOXPLQDÍÂR REMHWRV GH FHQD ŋ WRGD D PDWHULDOLGDGH GD
cena é efetivada. No século XX, com o fato de as discussões sobre te-
atro migrarem de temas estéticos gerais para os processos criativos,
PXOWLSOLFDUDPDVUHĠH[øHVSURSRVWDVPDQLIHVWRVHWHRULDVDSDUWLU
da realização. O treinamento do ator e a discussão sobre o processo
criativo foram e têm sido os tópicos mais presentes. A centralidade
do intérprete cênico na realização parece corrigir o seu pape secun-
dário frente ao autor do texto, abordagem muito comum no século
XIX. Essa nova fronteira reforça a multiplicidade de estilos e tradições
interpretativas disponíveis, a recusa de uma ortodoxia baseada na
falsa impressão de haver um conceito único de teatro. A multiplici-
dade de estilos e tradições interpretativas é o horizonte para quem
se especializa em estudos teatrais, determinando que o intérprete
tenha mais consciência de sua atividade, que pesquise e experimente
expressões as mais diversas em razão da multiplicidade de técnicas
e repertórios que vivem a arena das disputas, das sobreposições, dos
mútuos empréstimos e negações, nas inovações tecnológicas, das
mudanças históricas dos conceitos e experiências da teatralidade.

18 Curso de Especialização em Teatro à Distância


1.3 RECEPÇÃO

As obras não reduzem à sua organização interna nem aos seus articu-
ladores: há um grupo de pessoas que acompanha, avalia, analisa, in-
terpreta, analisa, reage ao que é exposto. A audiência é o acabamen-
to do espetáculo.Não está fora dele: a própria forma de organização
do espetáculo é efetivada em função das expectativas da audiência.
Durante muito tempo não se pensou teoricamente a recepção, pois
havia o privilégio da composição e se achava que a audiência era um
dado, que o povo ali presente simplesmente não acarretaria uma dis-
cussão teórica. É sintomático que a perda de público na contempo-
raneidade, o esvaziamento das salas de apresentação, a redução da
audiência a integrantes da casta artística está em sincronia com o in-
cremento das discussões sobre recepção. Em primeiro lugar, é preciso
ter em mente uma distinção básica entre público e recepção. Pessoas
reunidas informalmente como testemunhas curiosas de um evento
ocasional é algo bem diferente de um grupo de pessoas que saiu de
casa para participar de algo previamente acordado e que demanda
XP WHPSR HP XP HVSDÍR HVSHFâğFR H UHVSRVWDV PĎOWLSODV D PĎOWL-
plos estímulos lá apresentados. Um espetáculo é a transformação
GRSĎEOLFRHPUHFHSÍÂRHPSODWÒLDGHVWHHYHQWRHVSHFâğFRTXHIRL
construído para ser reconhecido no jogo de suas escolhas e efeitos.
Há todo um campo de questões e procedimentos de recepção a ser
explorado. Mesmo técnicas dramatúrgicas e atuacionais aparente-
mente tão simples como a personagem-escada são de fato materia-
lizações de questões recepcionais: em cena um agente faz o papel de
que não entende o que está acontecendo. Quando mais ele não sabe,
mais a audiência conhece e participa do espetáculo. Assim a cons-
trução da recepção, a transformação do público em platéia começa
em cena:alguém ou um grupo de atores no palco atua na posição do
auditório, como platéia. Esses papéis são dinâmicos: ‘ser platéia’não é
privilégio de um personagem.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 19


1.4 PRODUÇÃO

Como historicamente eventos cênicos foram apresentados no espaço público


GDVFLGDGHVRXHPSUÒGLRVFRQVWUXâGRVHDGDSWDGRVSDUDHVVHğPKÀXPDUH-
lação entre teatro e sua institucionalização. Não se trata apenas de quem paga
a conta. A produção lida tanto com os aspectos econômicos dessa atividade de
SURSRUUHSUHVHQWDÍøHVSDUDDFRPXQLGDGHTXDQWRFRPDUHODÍÂRGHVVDVğF-
ções com a autorepresentação dos grupos que constituem essa comunidade.
Nesse jogo de forças e poder, a permissão para a apresentação dos espetácu-
ORVHPHVPRRPHFHQDWRVHMDTXDOIRURğQDQFLDPHQWRGDSURGXÍÂRWXGRLVVR
interfere naquilo que é encenado. Seria muito ingênuo pensar que apresenta-
mos para a platéia somente nossas idéias sem nenhuma negociação sobre o
que vai ser encenado com quem justamente também possibilitou essa opor-
tunidade de exposição. Ao se instalar no espaço físico que for, a montagem
acarreta mais que discussões puramente artísticas. Aquilo que se apresenta
está intimamente relacionado com o contexto institucional de sua efetivação.
Não se trata de uma equação tão simples: eu paguei, eu quero isso. Mas os
FRQĠLWRVGHLQWHUHVVHVDVQHJRFLDÍøHVGHWRGDRUGHPGHPRQVWUDPTXHKÀ
uma multiplicidade de aspectos envolvidos na chancela e na manutenção de
um evento cênico, a começar pelos próprios integrantes do processo criativo.

2 ğOPH Zelig é uma comédia na qual o tema da multiplicidade de


DVSHFWRVGHXPUHIHUHQWHYDLVHUWUDEDOKDGD1RğOPHXPHVWUDQKR
personagem que muda sempre de acordo com quem ele está intera-
gindo é a base para uma argumentação irônica sobre as contradições
da mudança mesma. Como um camaleão, Zelig altera sua forma como
um mecanismo de adaptação, sobrevivência. No caso, algo que pare-
ce maravilhoso, altamente positivo, possui suas complicadas conse-
TđÓQFLDV3RGHUVHUYÀULRVDWUDLWDQWRSRVLWLYDVHQHJDWLYDVHIHLWRV

$HVFROKDGRğOPHVHGHXIXQÍÂRGHVVDFRQMXQÍÂRHQWUHDPELYDOHQWHV
projeções que podemos observar na multiplicidade virtual que Zelig
expressa. Inicialmente, é atrativa a idéia do diverso, do vário, do hete-
rogêneo. Mas a lógica do heterodoxo é complexa, pois integra contradi-
ções e co-existência de elementos que poderiam ser excluídos ou nega-
dos em processos não orientados para a multiplicidade. Assim, recorrer
¿GLIHUHQÍDDRPĎOWLSORUHTXHUTXHVHIDÍDLVVRQÂRVöVXSHUğFLDOPHQ-
te. Não adianta defender a diferença, a pluralidade se não há de fato
um enfrentamento de uma realidade em sua diversidade material.

20 Curso de Especialização em Teatro à Distância


O percurso anômalo da personagem faz com que se perceba a mu-
dança como algo que possui um contexto, uma reconhecível relação
entre o que se altera e algo que já existe. As diversas faces de Zelig
VHGÂRDWUDYÒVGDLQWHUDÍÂRGHOHFRPRXWUDVğJXUDV(OHÒDRPHVPR
tempo ele mesmo e uma outra pessoa. Cada novo rosto é uma fusão
GR LGHQWLğFÀYHO =HOLJ H SDUWH GD QRYD SHVVRD RX FRLVD FRP R TXDO
ele entrou em contato. As alterações, essa metamorfose em processo,
podem sem percebidas, analisadas e compreendidas. Aquilo que se
transforma explicita a produção das mesclas, das fusões, do material
TXHÒUHGHğQLGRHPRGLğFDGR

'LVVR KÀ XPD DOWD WD[D GH WHDWUDOLGDGH HP =HOLJ 3DUD TXH R ğOPH
faça efeito, é preciso que se organize em torno de parâmetros de
composição e recepção cênicos. Como um bizarro show de varieda-
des, Zelig se mostra em suas transformações. Ele é o suporte para a
diversidade de aspectos que sucessivamente são exibidos na tela. O
ğOPHVHDUWLFXODFRPRDWUDÍøHVFRPRTXDGURVGDVVLWXDÍøHVGH=HOLJ
em contato e metamorfose. A personagem coloca em primeiro pla-
no seu potencial variacional, seu de estatuto de máscara. Ao romper
com a identidade estável entre ator e personagem, e recaindo nesse
FLFORLQFHVVDQWHGHQRYDVğJXUDVRğOPHFRORFDHPTXHVWÂRROLPLWH
GDFDUDFWHUL]DÍÂRHROLPLWHGRLGHQWLğFDÍÂRSRUSDUWHGDSODWÒLDGD
identidade do agente. Se Zelig pode ser qualquer coisa, e não conse-
gue impedir essa atualização do outro em si mesmo, chegamos aos
extremos da plasticidade daquilo que se mostra ao público, podemos
atingir e enfatizar o horizonte plural de perspectivas de um evento.
2ğOPHSRLVH[SORUDHVVDSRVVLELOLGDGHGDğJXUDVHDPSOLDUHPPĎO-
tiplas concretizações sendo ao mesmo tempo uma coisa só. E essa
tensão entre Zelig e suas máscaras produz tanto a dramaturgia da
IRUPDGRğOPHTXDQWRRULHQWDDVH[SHFWLYDVGDUHFHSÍÂR

Disso temos a teatralidade de Zelig, o uso de molduras teatrais, a apro-


[LPDÍÂRHQWUHDREUDFLQHPDWRJUÀğFDHDH[SHULÓQFLDFÓQLFDDWHQVÂR
entre os múltiplos aspectos de uma realidade a partir do modo como ela
é exposta nos permite associar essa forma plural de representação da
personagem com sua percepção. Há o encaixe entre o camaleão Zelig e
nossas estratégias de intelibilidade. Zelig em sua dinâmica transforma-
cional só faz sentido se a audiência perceber como essa dinâmica é efeti-
vada. A teatralidade está nisso: nessa situação na qual algo se expõe em
sua organização e os padrões ali dispostos são compreendidos a partir
de um efeito, de uma consciência em quem percebe. Mais que saber que
=HOLJPXGDGHIRUPDÒSUHFLVRTXHDDXGLÓQFLDVHPRGLğTXHWDPEÒP

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 21


que entre no jogo da obra, correlacionando a tensão da identidade da
ğJXUDQDWHODFRPDDWHQVÂRHQWUHHVWUDQKDPHQWRHIDPLOLDGDGHFRPR
que participa. Se a personagem se expõe em suas variações, a audiência
completa o bizarro show por meio da interação com o espetáculo.

Com Zelig, então, temos uma basilar atividade que projeta e anteci-
pa alguns procedimentos desse curso:

 RV ğOPHV VÂR REUDV TXH FRUUHODFLRQDP HYHQWRV UHSUHVHQWDGRV H


formas de sua compreensão e fruição.

FDGDğOPHHVFROKLGRH[SORUDXPFRQFHLWRH[SORUDWöULRTXHÒGLVFX-
tido e compreendido a partir da interação com a obra.

Nesse caso, estamos partindo de uma mais ampla e concreta experiên-


cia de perceber e entender que uma uma heterogeineidade do ponto de
YLVWDHVWÒWLFRÒXPDFRQVWUXÍÂRTXHUHVLGHHPRSHUDÍøHVEHPGHğQLGDV
HTXHHVWDVRSHUDÍøHVSRGHPVHUFODULğFDGDVSRUPHLRGHXPPRGHOR
que se vale de referências teatrais, de sua teatralidade. A teatralidade
de Zelig está na articulação entre o camaleonismo da personagem e sua
UHFHSÍÂRGHQWURGRğOPHPRGHORGDUHFHSÍÂRSRUSDUWHGDDXGLÓQFLD

( D SDUWLU GLVVR XP ğOPH TXH VH RUJDQL]D QD KHWHURJHQHLGDGH GD
personagem, em suas máscaras, possibilita uma compreensão mais
concreta de como diversidade de aspectos de um referente poder ser
articulados e conjugados.

Como durante o semestre vamos ter várias obras e conceitos para dis-
cutir e analisar, um bom ponto de partida é começar a se exercitar nessa
correlação entre conceitos e experiências, entre percepções e eventos.
Não apenas você percebe conhece algo: a própria percepção, o próprio
conhecimento é um evento. Teorias teatrais precisam dar contar dessa
GLPHQVÂRUHĠH[LYDGDVREUDVGHDUWHDLQWHUDÍÂRHLQWHUSUHWDÍÂRGH
ğOPHVHSHÍDVQÂROLPLWDDH[SRUFRPRHODVVHHIHWLYDP2SURFHVVRGH
sua compreensão abarca o próprio intérprete. As obras nos mostram
algo porque nós somos esclarecidos, expostos por elas.

Em virtude disso, o aparente caráter ‘aberto’ dessa primeira sema-


na – sobre o que é mesmo que estamos falando? - na verdade é a
LQWURGXÍÂRDRPRGRGHHVWDUPDLVFRQVFLHQWHGHVVDUHĠH[LELOLGDGH
fundamental em eventos teatralizados, e que se estenderá por todo
RFXUVRSDUDQÂRğFDUUHVWULWRDHOH

22 Curso de Especialização em Teatro à Distância


ATOS
INTEGRADOS
NO FAZER
TEATRAL

2
Nessa semana vamos retomar e ampliar alguns conceitos trabalhados
DQWHULRUPHQWHSRUPHLRGDOHLWXUDHGLVFXVVÂRGHXPWH[WRğORVöğFR
de grande importância: o diálogo Ion, de Platão. Nos anexos você vai
encontrar todo o texto traduzido e um ensaio que comenta questões
que o encontro entre o pensador Sócrates e o artista Ion possibilita.

Para usufruir melhor do texto, surgiro que você busque em livros e na


internet algumas informações sobre os referentes presentes no tex-
to. Faça uma pesquisa sobre os nomes de pessoas e lugares citados.
Com isso você começa a desenvolver estratégias de leitura que não
VHOLPLWDPDVLPSOHVPHQWHVHJXLURFRQWHĎGRGRWH[WRRğPGDDU-
gumentação. E por que fazer isso? Primeiro, como texto de teoria tea-
WUDOTXHSRVVXLXPDUHĠH[ÂRDPSODVREUHDDWLYLGDGHGHDWXDÍÂRGH
dramaturgia e da audiência, o diálogo não se efetiva em textualidade
muitas vezes esperada como modelo para abstratas considerações.
Antes, vemos que o diálogo se aproxima muito de uma peça teatral.
Platão se vale de uma forma teatral para argumentar contra o tea-
tro. Ou seja, um dos primeiros documentos de teoria do teatro que
nós conhecemos é articulado em torno de uma situação interativa
DVVLPÒWULFDPXLWRSUHVHQWHHPWH[WRVWHDWUDLVHğOPHVWHPRVGXDV
personagens apresentadas em um encontro no qual suas diferentes
perspectivas são confrontadas.

Dessa forma tanto o tema do diálogo quanto sua própria organização ma-
nifesta o uso de atos e referências encontradas em eventos performativos.

Por isso nessa semana vamos valer de um texto teatralizado como


chave de acesso para a discussão de ampla consideração: parâmetros
de Teorias em Artes Cênicas.

Antes de tudo, notar que o texto escolhido relaciona-se com uma ci-
GDGHHXPWHPSRHVSHFâğFRV$WHQDVVÒFXOR,9DQWHVGH&ULVWR D& 
A cidade, além de famosa por suas instuições sociais e políticas, des-
taca-se também pelos concursos de tragédias e comédias. Há toda
uma fervilhante atividade em torno desses concursos, festivais por
meios dos quais a cidade se revistava e era visitada por estrangeiros,
principalmente no caso das Tragédias.

A personagem Sócrates viveu essa época, essa cultura de espetáculo.


É um personagem histórico, diferente de Ion, que assinala traços de
uma atividade artistica conhecida como Rapsodo. O rapsodo era um
artista itinerante que intepretava trechos de diversos autores, entre

24 Curso de Especialização em Teatro à Distância


HOHV+RPHUR$VHGXWRUDğJXUDGH6öFUDWHVYDLLQWHUURJDU,RQVREUHR
conhecimento que o rapsodo tem ou não sobre sua atividade. Fazer e
saber o que faz seriam atos excludentes?

Essa questão atravessa séculos. A resposta de Sócrates enfatiza apenas


umdos aspectos da atividade do rapsodo: que o artista cênico não sabe
o que faz, é guiado apenas por sua sensibilidade e pelas reações emo-
FLRQDLVGRSĎEOLFR'LGHURW  HPVHXWH[WR2SDUDGR[RGR&R-
mediante, apresenta uma outra versão dessa redução do artista cênico
à pura emocionalidade: excessos emocionais demonstram um insenbili-
dade, um não conhecimento do que se está fazendo, uma disposição em
DGXODUDSODWÒLD6WDQLVODYVNL  PRVWUDTXHDFRQVWUXÍÂRGR
papel pode ser guiada por uma maior consciência que o ator tem tanto
do contexto imediato das ações presentes na trama e nas rubricas da
obra analisada quanto em laboratórios, em estudos de situações homó-
logas as do texto, mas presentes em espaços concretos como hospitais,
DVLORVHQWUHRXWUDV%UHFKW  YDLDGYRJDUXPHVWLORLQWHUSUH-
tativo por meio do qual o foco da atuação não está na individualidade
isolada da personagem e em reações e gestos convencionais. Para tanto,
advoga um estudo e inserção dos atos em cena no todo social – os ato-
res mostrando que estão em um palco fazendo o público ver a lógica
econômico-social que movimenta as relações interpessoais.

Em todos esses casos, e em outros mais, há todo um esforço para


não se idealizar ou restringir a atividade do ator e materialidade do
espetáculo a um aspecto só, a algo fácil de se comentar, evidente em
VLPHVPR2UHFXUVR¿GHğQLÍÂRDIHWLYDGHHYHQWRVWHDWUDOL]DGRVSD-
radoxalmente nos fala de parte da experiência por meio da qual a
cena se realiza ao mesmo tempo que não completa a amplitude dos
atos envolvidos em sua concretização. A fruição do que se está fa-
]HQGRVHMDUHSUHVHQWDGRVHMDDFRPSDQKDQGRXPDSHÍDXPğOPH
só é possível por há uma pluralidade de agentes e reações envolvi-
das. Sócrates constata essa heterogeneidade constitutiva do even-
to cênico, mas, em seguida, a reduz apenas a um traço dominante:
a afetividade. O diálogo explora esse e outros excessos redutores: o
ator Ion é construído ao mesmo tempo como um excelente artista e
um estúpido. Mas como pode ele vencer tantos concursos baseados
em várias habilidades – pois são necessárias várias habilidades para
se apresentar diante de uma multidão e encantá-la - e não saber de
coisa alguma, como se fosse somente a própria situação que orques-
WUDVVHDHğFÓQFLDGDLQWHUDÍÂR"vFRPRVHSXGHVVHPRVIDODUGHXPD
música sem músicos, de um livro sem leitor.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 25


Dentro dessa perspectiva, a estratégia platônica de apresentar a am-
plitude da teatralidade para depois reduzi-la muitas vezes é partilha-
GDSRUXPWLSRGHHQYROYLPHQWRVXSHUğFLDORXJHQÒULFRFRP REUDV
teatrais. Sem sabermos, a defesa das artes cênicas por meio dessas
HVWUDWÒJLFDV VLPSOLğFDGRUHV SHUSHWXD D FRQGHQDÍÂR SODW÷QLFD QÂR
sabem o que fazem, pois não há conhecimento em obras teatrais.
Essa dissociação entre afetividade, conhecimento e teatralidade só
é possível na exata medida em que se privilegia um dos aspectos da
experiência teatral e, apartir disso, temos a redução de sua comple-
xidade, tanto pelo elogio absoluto do alvo dessa eleição, quanto por
sua desvaloração e, disto, de todos demais elementos.

O que devemos realçar nessa semana é que assim como a obra teatral
é o arranjo de suas escolhas e de seus multiplos aspectos, da mesma
forma teorias teatrais são atos seletivos que partem da complexida-
de e heterogeneidade do evento cênico. Arranjos de arranjos, as teo-
rias, como as obras, são obras, possuem sua contrutividade.

A seletividade das teoria ocasiona até inesperadas construções como


DWÂRLQĠXHQWHDERUGDJHPHP,RQGHVQHYROYLGDGHSRLVHPA Repúbli-
ca: uma teoria antiteatral do teatro.

Daí o tópico dessa semana: parâmetros de teorias teatrais. Ou seja,


HVWXGDU H FRPSUHHQGHU R IDWR TXH UHĠH[øHV LGÒLDV WHRULDV PDQL-
IHVWRV HVWÒWLFDV DUWLFXODP XPD GHğQLÍÂR GR HVSHWÀFXOR SUHVVXSøH
alguma referência, conhecimento, ou valorização a respeito do que
pretendem traduzir racionalmente.

26 Curso de Especialização em Teatro à Distância


PENSANDO
O ESPAÇO
CÊNICO

3
Nessa semana vamos trabalhar com os conceitos de Espaço, localiza-
ÍÂRHSUHVHQÍDDSDUWLUGRHVWXGRGRğOPHDogville,de Lars Von Trier.

2ğOPHGH/DUV9RQ7ULHUH[SORUDHPYÀULRVQâYHLVDDSUR[LPDÍÂRHQ-
WUHFLQHPDHWHDWURGHVGHDHVSHFâğFDFHQRJUDğDHGLVWULEXLÍÂRGRV
atores até a aplicação da teoria do distanciamento Brechtiniana a
todo o processo criativo.

Sobre as relações entre teatro e cinema, é preciso levar em conside-


ração o modo como DogvilleIRLğOPDGR1RGRFXPHQWÀULRTXHDFRP-
panha a edição de colecionador, vemos que o espaço de locação era
um galpão na Suécia. Essa redução e controle de todos os aspectos
GD ğOPDJHP HP XP HVWĎGLR GHğQLXVH HP WRUQR GH XPD SURSRVWD
minimalista: a cidade que nomeia a obra é apresenta com poucos ele-
mentos: as poucas casas estão apenas marcadas no chão, assim como
algumas ruas. Nas duas imagens abaixo podemos ver esse cenário
YHUWLFDO HVVD SODQWDEDL[D GR ğOPH DV SHVVRDV DQGDP SRU VREUH R
mapa da cidade como se estivesse em uma cidade real.

28 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Ao mostrar a cidade não em seus espaços fechados, completos, aca-
bados, e sim como rascunhos de algo a ser construído pela audiência,
Lars Von Trier trabalha com as expectativas que temos de espaço:
há uma longa tradição de se contextualizar as ações e os agentes
em cena inserindo-os em lugares relacionados com suas atividades.
$PRQWDJHPFLQHWRJUÀğFDYDOHVHGHVVHSUHVVXSRVWRGHYHURVVLPL-
lhança do universo representado a partir da longa tradição teatral Sobre Brecht, ver suas peças
publicadas pela Paz&Terra e
da ‘quarta parede’. A quarta parede, muito criticada diversas práticas pela Cosaic&Naif; os textos
teóricos presentes na cole-
artísticas no século XX, refere-se à caixa cênica, ao espaço onde os tânea Estudos sobre Teatro
atores contracenam e estabelecem com seus movimentos e relação (Nova Fronteira,2005); os
diários de trabalhos em pu-
com os objetos de cena a perspectiva como se deve observar o que ali blicação pela Rocco e L&PM;
e os textos sobre Brecht: Bre-
acontece. A quarta parede seria uma convenção: a caixa estaria fecha- cht: a estética do teatro(Graal,
da sobre si mesma, cercada pelos lados e fundo pela estrutura mes- 1992), de G. Bornheim, Brecht
no Brasil(Paz&Terra,1987), de
PDGRSDOFRTXHUHSUHVHQWDULDRLQWHULRUGHDOJXPHVSDÍRGHğQLGR W. Bader.

e pela frente do palco –esta uma barreira imaginária, a “quarta pare-


J. Aumont (O Cinema e a En-
de”. Os críticos da ‘quarta parede’, entre eles B. Brecht, argumentam cenação. Texto&Grafia,2008)
que ela gera um afastamento entre audiência e palco, um apassavi- afirma que a partir do teatro o
cinema valeu-se desde cedo do
vamento da recepção que meramente contempla o que está se de- princípio do cubo cenográfico,
por meio do qual “a o ponto de
senrolando diante de seus olhos. Pois se caixa está fechada em todos vista sobre a ação não é livre,
os lados, o mundo da cena é mostrado auto-centrado, não restando mas sim determinado pelo dis-
positivo do cubo(ou caixa) ce-
DRHVSHFWDGRUQDGDDOÒPGHREVHUYDUXPPXQGRTXHMÀHVWÀGHğQLGR nográfica. ”AUMONT 2008:33.
que não se altera, que não é alvo da intervenção recepcional. Ou seja,
a separação física entre o mundo aprisionado na quarta parede e o
mundo da audiência desdobra-se em uma pedagogia das represen-
WDÍøHVVHDVğFÍøHVLQWHUSUHWDPHVHDSURSULDPGDUHDOLGDGHHVHD
cena é mostrada não sujeita a mudanças e participação, o espectador
projetará a imobilidade do teatro à imobilidade social.

A composição, pois, não se reduz ao planejamento prévio das cenas, a


XPDLQVWÁQFLDGLVVRFLDGDGHTXDOTXHUğVLFLGDGHPDWHULDOL]DÍÂR(VVD
Poética, 1252 b.
tendência em isolar composição e performance é um velho hábito
aristotélico. Na Poética, novamente, temos uma enumeração das par-
tes da tragédia: Prólogo, episódio, êxodo e coral.
Brecht defende que “é condi-
É contra essa postura apassivadora e ilusionista que Brecht escreveu ção necessária para se produzir
o efeito de distanciamento que
e dirigiu suas peças e elaborou seus textos teóricos. Para tanto, base- , em tudo o que o ator mostre
ao público, seja nítido o gesto
ado nas formas populares de teatro, ele colocou os atores se dirigin- de mostrar. A noção de uma
quarta parede que separa fic-
do diretamente ao público; trouxe os músicos do fosso da orquestra ticiamente o palco do público
SDUDRSDOFRRULHQWRXRVDWRUHVDH[SORUDUDVWHQVRVHQWUHğFÍÂRH e da qual provém a ilusão de
o palco existir, na realidade,
realidade, ao enunciar falas em terceira pessoa(“Meu nome é Hans. sem o público, tem de ser na-
turalmente rejeitada, o que, em
(XIDÍRRSDSHOGH+DPOHW(HXYRXPRUUHUHVVDQRLWH YDOHXVHGH princípio, permite aos atores
de placas e outros sinais indicativos que anunciavam as partes da voltarem-se diretamente para
o público”(BRECHT 2005:104).

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 29


peça, as mudanças de local e tempo, o conteúdo das cenas, entre ou-
tros procedimentos. Nessa mistura entre feira, teatro de variedades e
circo, Brecht enfatizava que aquilo que os espectadores viam era um
conjunto de acontecimentos organizados, construídos. Os espectado-
res participavam da obra ao perceber como ela se efetivava. Tudo era
explícito. O palco é a exibição de seus suportes de interpretação.

9ROWDQGRDRğOPHYHPRVFRPRDRQÂRWUDEDOKDUFRPLQWHUQDVGHHV-
SDÍRVLVRODGRVSHODLPDJLQÀULDTXDUWDSDUHGHRQGHğFDULDDFÁPHUD
Lars Von Trier conecta todas as casas da cidade, todos os seus ha-
bitantes na partilha de uma existência que para os espectadores é
demonstrada como fundada no ar, no vazio de algo que não se vê. Da
teatralidade da quarta parede para a teatralidade que trabalha com
uma exposição generalizada temos a amplitude do questionamento
dos nexos interindividuais por meio da exploração dos vários espaços
FRQVWUXâGRV QR ğOPH 3RLV R PDLV LPSRUWDQWH Ò TXH DV SDUHGHV DV
portas, os espaços privados permanecem presentes em suas marcas
para os atores, o que vincula essas barreiras a estratégias de disfarce
de ocultamento das ações mais terríveis, tudo isso sob nossos olhos.

DogvilleQÂRVHXWLOL]DVXSHUğFLDOPHQWHGHPROGXUDVWHDWUDLV2ğOPH
detidamente se empenha em trabalhar com os diversos aspectos e
implicações do espaço de representação e suas expectativas recep-
FLRQDLV $ GHVFRQWUXÍÂR GD TXDUWD SDUHGH QR ğOPH WHP PĎOWLSORV
efeitos: demonstra que a questão estética acopla-se a uma dimen-
são política e ética dos acontecimentos. As formas artísticas não são
ideologicamente neutras. Elas acarretam valores e disposições cog-
QLWLYDVHDIHWLYDV$RğPRğOPHDSUHVHQWDVHFRPRXPDSDUÀEROD
que transforma uma cidadezinha norte-americana como laboratório
estético-existencial.

A mudança no tratamento do espaço altera a perspectiva sobre os


eventos expostos na tela. Dessa maneira, começamos a perceber que
DGLVFXVVÂRVREUHRHVSDÍRQÂRVHFRQğQDDXPDHODERUDÍÂRGLVFXUVL-
va sem os limites e possibilidades que a experiência concreta com o
espaço efetiva. É como contextura observacional que o espaço acon-
tece em sua teatralidade. Vemos que a cena e o palco, mais que o
piso onde se colocam coisas e pessoas, é um arranjo e distribuição
de elementos, trajetórias e expectativas. A materialidade do espaço
FRPSUHHQGHDVDWLYLGDGHVGHVXDFRQğJXUDÍÂR1XQFDHOHÒVLPSOHV-
mente algo como pré-dado.

30 Curso de Especialização em Teatro à Distância


'DâDSDUWLUGRğOPHFRPHÍDUDUHGHğQLURFRQFHLWRGHHVSDÍRFÓQL-
co, de espacialização da atividade representacional. Tudo é espacia-
lizado, tudo adquire posição, perspectiva e valor quando passa ser
observado. Note-se como com a câmera na mão essa materialidade
que integra atores e espacialização se efetiva:

3HORV IRWRJUDPDV YHPRV TXH D SUHVHQÍD GR GLUHWRUFLQHJUDğVWD QR


mesmo plano que os atores produz o efeito dessa co-presença entre a
perspectiva do observador e da personagem, como se diferentes pers-
pectivas e papéis na construção daquilo que é visto se alinhassem.

O fato de Lars Von Trier produzir essa ampla reconsideração das re-
ODÍøHVLQWHULQGLYLGXDLVDSDUWLUGHXPDREUDğOPDGDHPXPJDOSÂR
nos mostra a intensidade da ampliação do conceito e experiência do
espaço. Foi somente pela clara compreensão que a espacialidade do
ğOPH WUDULD FRQVLJR PDLV TXH XPD PDQHLUD QRYD GH DSUHVHQWDU RV
acontecimentos que Lars Von Trier conseguiu problematizar não só o
ID]HUğOPHVFRPRDDSUR[LPDÍÂRHQWUHğOPHVHFLQHPD

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 31


32 Curso de Especialização em Teatro à Distância
CONSTRUINDO
CONFLITOS

4
1RğOPHGHVWDVHPDQDYDPRVHQWUDUHPFRQWDWRFRPRFRQFHLWRGH
SHUğVDVVLPÒWULFRV(VVHSURFHGLPHQWRIRLEHPGHVHQYROYLGRQDHOD-
boração das tensões entre personagens e entre personagens e públi-
FRQD7UDJÒGLD*UHJD1RğOPHO selvagem da motocicleta isso é bem
HYLGHQWHQRFRQWUDVWHHQWUHRSHUFXUVRGDSHUVRQDJHP5XVW\-DPHV
que procura seguir os passos de seu irmão e modelo. A tensão entre
o modelo e sua reprodução é observada nas diferentes perspectivas
dos dois personagens quanto a um estilo de vida que não faz mais
sentido: o universo das gangues.

Fotogramas disponíveis em $SULPHLUDSDUWHGRğOPHFHQWUDVHHPH[LELU5XVW\-DPHVHVXDMRU-


http://lashlee71.com/rumble-
fishsc.html. nada como cópia falhada desse universo:

     
Com a chegada do irmão mais velho, as coisas se alteram.

O inominado personagem retorna


à casa, à rua, à sua cidade, mas não
é o mesmo: ele não mais se dedica
à rotina de se envolver em brigas
H SHTXHQRV DWRV GH GHOLQTđÓQFLD
(QWÂRRğOPHH[SORUDHVVDGLIHUHQ-
ça entre os irmãos quanto a conti-
nuar ou não o ciclo de ações intem-
SHVWLYDVHLQFRQVHTđHQWHV$SDUWLU
disso, há uma afastamento entre
5XVW\-DPHVHVHXLUPÂR

34 Curso de Especialização em Teatro à Distância


     
Para que a assimetria seja produzida é preciso uma aproximação in-
tensa. Ele são irmãos, o que projeta uma identidade mais estreita.
Mas é justamente nessa tendência ao similar, nessa expectativa de
convergência que se mostra a diferença mais radical.

0XLWDVREUDVWHDWUDLVHFLQHPDWRJUÀğFDVVHRUJDQL]DPWRPDQGRSRU
base linhas de ação de personagens em contraste e oposição. Em vir-
WXGHGHVVDDOWDWD[DGHIUHTđÓQFLDKÀDGLVSRVLÍÂRGHVHSHQVDUTXH
WRGDVDVREUDVVHRUJDQL]DPGRPHVPRPRGRTXHWHDWURÒFRQĠLWR
TXHDHVVÓQFLDGHHYHQWRVGUDPÀWLFRVÒDSUHVHQWDUFRQĠLWRV3RUÒP
RFRQFHLWRHDH[SHULÓQFLDGHVHHIHWLYDUUHDOLGDGHVFRQĠLWXRVDVHP
cena é mais que uma generalidade. É preciso observar que oposições,
constrates, contradições, lutas e todo o vocabulário em torno de ten-
VÂRHQWUHSHUVSHFWLYDVHDÍøHVFRQĠLWDQWHVÒPDLVTXHFRQVWDWDÍøHV
de generalidades. Os níveis de oposição e tensão se distribuem por
todos os aspectos da experiência teatral e de sua organização. Por
PHLRGDUXEULFDŃSHUğVDVVLPÒWULFRVńYDPRVFRPHÍDDSHQVDUPHOKRU
como se dá o contexto de produção de situações divergentes que tan-
to manifestam a construção de personagens quanto de sua recepção.

&RPLVVRÒSUHFLVRWHUHPPHQWHTXHRFRQĠLWRLQVWDODGRHPFHQD
não se reduz a uma idéia, a uma oposição abstrata, previamente de-
ğQLGD&RPRVHYÓQRğOPH5XVW\-DPHVVHRSøHDRVHXLUPÂRHGHOH
se distingue em razão do modo como reage e interpreta a vida das
gangues. O entrechoque entre os irmãos é em relação ao seu conheci-
PHQWRDDVSHFWRVFRJQLWLYRV5XVW\-DPHVSRVVXLXPDOLPLWDGDSHUV-
pectiva em relação à rotina de autodestruição e perda de tempo da
aventura que sempre, para ele, é desventura. Em virtude desse saber
GHPHQRV5XVW\-DPHVVHPSUHSHUGHVHPSUHHVWÀIHULGRFRPRVHYÓ
nos confrontos entre rivais, nas conquistas amorosas.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 35


$SHUVRQDJHPGH5XVW\-DPHVÒLVVRDH[LELÍÂRGH
um conhecimento reduzido frente à diversidade
de contextos os quais ele enfrenta. Estamos falan-
do do modo como este personagem é construído.
8PDFULDWXUDğFFLRQDODUWLFXODRVDEHUGRVHYHQWRV
TXH SDUWLFLSD 5XVW\ -DPHV SDUWLFLSD FRP UHVWUL-
ÍøHVFRJQLWLYDVGDVXFHVVÂRGHHYHQWRVGRğOPH
Depois de uma séria de eventos mal sucedidos, o
seu irmão se aproxima dele e pergunta insistente-
PHQWHSRUTXÓ"3RUTXÓ"2VDEHUGH5XVW\-DPHV
ÒXPDQÂRVDEHU(HVVDÒDVXDGHğQLÍÂRUHSUHVHQ-
tacional: mostrar pelos seus atos que não compre-
ende a amplitude dos acontecimentos.

Assim, a assimetria é uma construção: dispõe-se em cena agentes


com diferentes tipos de conhecimento quanto aos eventos encena-
GRV 5XVW\ -DPHV H VHX LUPÂR SRVVXHP SHUğV DVVLPÒWULFRV SRU TXH
manifestam perspectivas diversas em relação aos mesmos aconteci-
PHQWRV5XVW\-DPHVWHQWDYLYHUDYLGDGHVHXLUPÂR(TXDQWRPDLV
RğOPHPRVWUDRVSHTXHQRVLQVXFHVVRVGHVVDMRUQDGDPDLVHPDLV
percebemos em que a assimetria se fundamenta.

2FRQĠLWRGHSHUVSHFWLYDVH[LELGRQRğOPHQÂRVHUHGX]DRPRGRFRPR
RVSHUVRQDJHQVVÂRHODERUDGRV$DVVLPHWULDFRQMXJDDFRQğJXUDÍÂR
do que se mostra para orientar as expectativas da recepção. Quanto
PDLV 5XVW\ -DPHV HQIDWL]D VXD OLPLWDÍÂR FRJQLWLYD PDLV D DXGLÓQFLD
percebe essa limitação. O não saber da personagem induz ao incre-
PHQWRFRJQLWLYRGDUHFHSÍÂR4XDQWRPHQRV5XVW\-DPHVHQWHQGHR
que está acontecendo, mais a platéia compreende o jogo da obra.

Com isso podemos ter acesso a uma visão mais ampla do conceito de
personagem e, disto, de espetáculo. Se deliberadamente as personagens
são elaboradas a partir de um conjunto de possibilidades e restrições
cognitivas, elas não são simplesmente pessoas, como é o hábito de con-
cebê-las. Personagens são um conjunto de determinadas escolhas que
são mostradas em cena. Essas escolhas se traduzem no que elas são ca-
pazes de mostrar. Uma personagem não pode tudo: ela se distingue por
certos traços e essa seletividade contribui mais para a compreensão do
espetáculo que dela mesma. Antes de saber quem é, a personagem exibe
o que é preciso entender para compreender e usufruir a obra que se en-
cena. Os agentes dramáticos são articuladores da cena e não indivíduos
com sua identidade. A identidade da personagem é a do espetáculo.

36 Curso de Especialização em Teatro à Distância


8PDSURYDGLVVRÒTXHYRFÓPHVPRTXHYÓRğOPHDJLULDGLIHUHQ-
WHPHQWH HPPXLWDV GDV FHQDV GH 5XVW\ -DPHV H GH VHX LUPÂR 0DV
não já jeito: eles têm de fazer a mesma coisa sempre. Hamlet tem de
PRUUHUQRğPGRTXLQWRDQR6HQÂRHOHQÂRÒ+DPOHW3LUDQGHOORHP
Seis Personagens em busca de um ator, mostra como a diferença entre
a existência de uma personagem e uma pessoa são abissais. Qualquer
pessoa pode mudar sua vida a qualquer hora, se quiser. Personagens
não têm essa opção. Por isso são personagens. Assim, para nós resta
entender a personagem, ou aquilo se se mostra diante de nós. Um
PRGRGHRUJDQL]DUDFHQDÒSRUPHLRGHSHUğVDVVLPÒWULFRVDPDQL-
pulação das diferenças entre personagens por meio do entrechoque
entre seus horizontes cognitivos.

2FRQFHLWRHH[SHULÓQFLDGHWUDJÒGLDÒXPDH[SORUDÍÂRGRVSHUğVDV-
simétricos: o desconhecimento do herói, sua cegueira ou suas reso-
luções produzem a ampliação do conhecimento da platéia. Quanto
PDLVHOHDYDQÍDSDUDVXDUXâQDDRQHJDUDOWHUQDWLYDVHUHDğUPDUVHX
limite cognitivo, mais a audiência conhece outras formas de se agir.
$RğPQDGDUHVWDDOÒPGDPRUWHDSOHQDFHVVÂRGHSRVVLELOLGDGHV

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 37


38 Curso de Especialização em Teatro à Distância
PERPECTIVAS E
INTERPRETAÇÕES

5
1HVVD VHPDQD UHWRPDPRV H DPSOLDPRV D UHGHğQLÍÂR GR FRQFHLWR
e experiência de personagem que vimos na Semana Cinco, aproxi-
PDQGRWDOUHGHğQLÍÂRGDVUHĠH[øHVVREUHPXOWLSOLFLGDGHGHDVSHFWRV
envolvidos na organização e percepção de eventos que exploram a
teatralidade, realizadas na Semana de abertura deste curso.

$ SDUWLU GR ğOPH Verdades e Mentiras vamos explorar a questão da


dinâmica de perspectivas e interpretações. A obra transita entre gê-
QHURVDXGLRYLVXDLVFRPRRGRFXPHQWÀULRHRğOPHGHğFÍÂR2WâWXOR
original é F For Fake, palavra que tem se popularizado entre usuários
GDLQWHUQHWSDUDGHQRPLQDUFRQWDVRXSHUğVTXHRFXOWDPDYHUGDGHL-
ra identidade do usuário. Como uma máscara, aquilo se mostra não é
totalmente o que se é, e sim o que se quer exibir.

   
3DUDWDQWRRğOPHVHRUJDQL]DHPWRGRVGHHVWLOKDÍRVGHXPDPXOWLSOL-
cação de partes, de cortes, reunidos pela edição. Mais que a continuidade
das cenas, o que se destaca é a tensão entre os pedaços e sua reunião.
Dos planos-detalhe à sucessão de locações e diversos informantes, o
ğOPHSULPDSHORFRQVWDQWHUHGLUHFLRQDPHQWRGDLPDJHPH[LELGDHGDV
informações disponibilizadas. A rapidez com que materiais são apresen-
tados acarreta sua sobreposição: um excesso que se projeta em todas
as direções e que agride o espectador, se lança contra ele, não propor-
cionando o tempo de assimilação ou questionamento do que se mostra.

40 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Em todo o caso, o espectador reage a essa massa de imagens,sons, a
HVVDDFXPXORGHYHUVøHVFRQĠLWDQWHVGHQDUUDWLYDTXHQÂRÒSHUFHEL-
da em seus antecedentes, mas no processo de sua constante mudan-
ça, como se estivesse sendo inventada no momento em que é profe-
rida ou representada – cena como improviso.

'DâKÀXPGHVORFDPHQWRGHFLVLYRDKLVWöULDGRIDOVLğFDGRUVHWRUQD
a exposição do modo como a narrativa mesma é organizada. O vir-
WXRVLVPRGDHGLÍÂRGRğOPHLQWHUIHUHQDDSUHVHQWDÍÂRGDELRJUDğD
GH(OP\UGH+RU\TXHGHIDWRH[LVWLXWHYHXPDŁFDUUHLUDłFRPRIDOVL-
ğFDGRUGHREUDVGHDUWH1RHQWDQWRRğOPHFKDPDPDLVDWHQÍÂRDR
SURFHVVRGHVXDUHDOL]DÍÂRFLQHPDWRJUÀğFDTXH¿QDUUDWLYDGH(OP\U
F for Fake narra a si mesmo, justapondo a colagem de vários depoi-
mentos com a construtividade da costura dos vários planos.

Essa aproximação entre narrativa e autoreferencialidade demonstra


que uma obra apresenta diversos níveis de percepção e representa-
ção e que, entre esses níveis, há a exposição de seu próprio processo
criativo. Muitas vezes associa-se a essa exibição de sua feitura as va-
lorizações as mais contraditórias, procurando-se normalizar o refe-
rente da obra, reduzir essa pluralidade de níveis e perspectivas a uma
PHUDRSRVLÍÂRHQWUHFRQFHLWRVDEVROXWRVGHğFÍÂRHUHDOLGDGHF for
FakeDRLQWHJUDURGRFXPHQWRHVXDVUHHODERUDÍÂRFRQğJXUDGRUDLU-
rompe como uma defesa do falso, da mentira, do fabricado, em uma
provocação a estas oposições absolutas como forma de preconizar a
UHDOLGDGHGDğFÍÂRVREUHDXQLIRUPLGDGHGRVDEVROXWRV2H[FHVVRGD
REUDPDQLIHVWDDGRFXPHQWDÍÂRQÂRGDYLGDGRIDOVLğFDGRUHVLPGD
DWLYLGDGHGRFLQHDVWDGDSRVVLELOLGDGHPHVPDGDğFÍÂRVHUFRPSUH-
HQGLGDFRPRSURGXÍÂRGHUHIHUHQWHVDSDUWLUGHVXDHVSHFLğFLGDGH
ŋLQWHUYLUQRTXHMÀH[LVWHUHGHğQLGRRUHFRQğJXUDQGRR

Diante disso, a heterogeneidade radical de aspectos de uma história


materializada em Verdades e Mentiras nos coloca diante do fato que se
é a organização da realidade que manifesta a sua percepção, a verda-
deira mentira é não compreendê-la ou representá-la na diversidade
GHDVSHFWRVTXHDFRPSøHP$VHFXODUTXDOLğFDÍÂRGHğFÍøHVFRPR
IDOVLğFDÍøHVGRTXHH[LVWHQDYHUGDGHÒXPDGHIHVDGHSURFHGLPHQ-
tos que procuram rebaixar procedimentos de problematização dos
referentes. A entronização da verdade, da realidade última, da única
versão dos fatos, é muitas vezes utilizada como forma de se restringir
o acesso e exposição dos modos como contextos são produzidos e
percebidos em sua elaboração.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 41


2ğOPHSRLVFRQMXJDTXHVWøHVHVWÒWLFDVÒWLFDVHSROâWLFDVDFDEDQGR
SRUFHOHEUDUDğJXUDGRFULDGRUGRDXWRUQÂRSRUXPDDWULEXLÍÂRGL-
vina ou fora da realidade e sim por aquilo que ele faz.

'HVVDPDQHLUDYHURğOPHHHQIUHQWDUVXDHVSHFâğFDFRQVWUXWLYLGDGH
é relacionar a experiência de platéia ao conceito da dinâmica de pers-
pectivas e interpretações que Verdade e mentiras enfatiza, mas que, em
verdade, está em experiências cotidianas e artísticas as mais diversas.

42 Curso de Especialização em Teatro à Distância


METATEATRALIDADE

6
&RPRYLPRVQDVVHPDQDVDQWHULRUHVREUDVFLQHPDWRJUÀğFDVHWHD-
trais partilham tanto a realidade multitarefa de sua preparação, re-
alização e recepção, quanto chamam atenção para si mesmas, para
seu processo criativo. A amplitude dessas obras faz transparecer seu
apelo para a consideração do modo como são organizadas. É o que
podemos chamar de metateatralidade. Explicando: normalmente, ao
DVVLVWLU XP ğOPH RX XPD REUD WHDWUDO DVVRFLDPRV R PXQGR UHSUH-
sentado com o mundo tal qual conhecemos. Mas algumas obras, por
meio modo como são organizadas e performadas, evidenciam rela-
ções diferentes da audiência com a encenação. No caso de obras tea-
trais temos o fato que tudo que é apresentado está disposto em um
espaço preparado, um arranjo de elementos e movimentos. Quando
o espectador é movido a enfatizar em sua percepção que aquilo que
observa é a própria organização e distribuição dos elementos. Ele se
localiza como estando um lugar chamado teatro vendo uma peça, um
FRQMXQWRGHDWRVHHVFROKDVEHPGHğQLGDV'DâWHPRVRWHUPRPHWD-
teatralidade: quando a cena se mostra como cena, quando o foco da
cena é a exibição mesma dos materiais e das atividades que possibi-
lita haver um espetáculo.

Há vários meios para se produzir esse efeito da obra sobre ela mes-
ma. Em Hamlet, por exemplo: na cena dos atores, temos uma peça
representada para o rei Cláudio. Ou seja, temos uma peça dentro de
uma peça. Outro exemplo: o centro do primeiro ato de A gaivota, de
Tchecov, é uma peça falhada. Novamente, um espetáculo dentro de
outro. Ou seja, temos metateatro.

Quando em alguns momentos os atores fazem referências ao fato de


estarem em um palco ou se valerem de termos relacionados à ativi-
dade teatral, como papel, cena, espetáculo, a audiência correlaciona
a peça de agora com uma experiência mais conhecida do teatro. Esta-
mos diante de metareferências teatrais.

Outra variação do procedimento da metateatralidade se encontra na


disposição das partes do espetáculo. Quando a forma de organização
ÒEDVHDGDHPFHQDVLQGHSHQGHQWHVFRPGLYHUVRVWLSRVGHGHğQLÍÂR
e arranjos, como canções, pantomimas, danças, diálogos, entre tan-
tos, com diversas modalidades de atração, a ênfase na forma e nos
números como partes autônomas também orienta a percepção para
o espetáculo como conjunto de espetáculos, como integração de for-
mas espetaculares diversas.

44 Curso de Especialização em Teatro à Distância


No caso de O bebê santo de MaconWHPRVFRPRQRğOPHGH/DUV9RQ
7ULHUXPJDOSÂRXPDğOPDJHPFRPSOHWDHPHVWĎGLRTXHVHRUJDQL]D
mais que Dogville a partir de suportes teatrais. Não apenas o espaço
ÒIRFDOL]DGR2ğOPHGH3*UHHQDZD\ÒXPDHQFLFORSÒGLDGHHVWLORV
e tradições teatrais e teatralizadas, passando pela Tragédia grega,
Missa católica, cerimônias de cortes reais, circo, ópera, entre tantos
outros. A complexidade de O bebê Santo de Macon reside justamente
nessa saturação de elementos de diferentes práticas e tradições, fa-
zendo com o que tudo que se mostre exiba essa diversidade de ele-
PHQWRVUHVLJQLğFDGRVQRSURFHVVRGHVXDUHXQLÂRHFROLVÂR

Note-se também o contraste entre o método de organização de F For


Fake e o de O bebê Santo de Macon. Enquanto que a heterogeneidade
do primeiro se relaciona com a edição, o do segundo está mais em
XPD PRQWDJHP GH LGHQWLğFÀYHLV UHODÍøHV HQFRQWUDGDV QD EDĎ GDV
formas teatrais, na experiência mesma de se observar um evento in
loco. A multiperspectivação de F For Fake encontra um contraponto
da reiterada manifestação de uma relação entre palco e platéia no
ğOPHGH3*UHHQDZD\

1HVVH VHQWLGR D PHWDWHDWUDOLGDGH GR ğOPH DJH FRPR XPD GLVVR-


nância cognitiva ao aproximar o mais antigo ao mais novo: formas
WUDGLFLRQDLV GH HQFHQDÍÂR UHGHğQLGDV D SDUWLU GH XP WUDWDPHQWR
cumulativo e não usual. Pois a moldura cênica é redistribuída nas
mais diversas situações e estilos durante sua recepção, induzindo a
audiência a tanto correlacionar o que vê como um teatro ao mesmo
tempo em que, pelos eventos representados e pela saturação efetiva-
da, experimentar uma dissolução da idéia de teatro. Dessa maneira, a
metateatralidade de O bebê santo de Macon é dupla: por um lado, in-
sere a audiência em uma disposição à experiência cênica previamen-
te conhecida; por outro, abole essa mesma experiência ao reiterar e
justapor suas múltiplas atualizações juntamente quando demonstra
quão impotente e limitada é a representação diante da crueldade dos
eventos encenados.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 45


46 Curso de Especialização em Teatro à Distância
ARTES EM
CONTATO

7
(VWD YDL VHU VHPDQD GLIHUHQWH YDPRV WHU XP ğOPH H XPD SHÍD
MXQWRV2ğOPHÒXPDYHUVÂRFLQHPDWRJUÀğFDGRWH[WRWHDWUDOBodas
de Sangue. Para melhor compreensão do conceito e a experiência de
campo interartístico, a análise contrastiva entre as duas obras será
fundamental. Inicialmente, em um curso que se vale de obras fílmicas
para se trabalhar conceitos teatrais o relacionamento entre diversas
artes é desde já um pressuposto de trabalho. Ou seja, durante todo
o curso nos valemos do conceito sem nomeá-lo. Estava explícito, mas
sem sua expressão verbal ou um tempo mais detido em seu exame.

Com isso aprendemos um traço característico da produção de teoria


em artes cênicas: em muitas ocasiões não há a formulação prévia de
FRQFHLWRVXPDDEUDQJHQWHUHGHGHGHğQLÍøHVHGHVFULÍÂRGHSURFHGL-
mentos quando nos deparamos com tradições, técnicas ou processos
criativos. Mesmo assim, a ação não é interrompida: há sempre a pos-
sibilidade de se realizar algo independentemente do pleno conheci-
mento de uma trama discursiva. Ainda: até quando as palavras não
parecem apropriadas ao que se faz, o ato pode ser efetivado. Este
intervalo entre o conceito e o ato é mais que uma abstrata dicotomia.
O esclarecimento conceitual não abrange toda a atividade represen-
tacional. Não adianta apenas mudar as palavras para se ter a ilusão
de saber mais e melhor sobre o que se quer fazer ou pensar.

$ FODULğFDÍÂR FRQFHSWXDO QÂR Ò DXWRVXğFLHQWH $QWHV HOD DSRQWD


para tradições interpretativas, para abordagens em confronto, para
UHDOLGDGH DOÒP GD OâQJXD H GDV LGÒLDV 1HVVH VHQWLGR D FODULğFDÍÂR
conceptual, como atividade integrante de processos que aproximam
saberes diversos, emerge como uma possibilidade, aplicável em dis-
cussões preparatórias, preliminares ou em outros momentos quando
for oportuno para aquilo que se está investigando.

Em nosso caso, tornou-se uma opção válida enfrentar explicitamente


a questão da relação entre artes após termos passado por experi-
ências com a multiplicidade de perspectivas de um evento teatral.
Assim, o campo interatístico das artes da cena se entende não apenas
por um agregado, uma adição de elementos. O pluralismo em teatro
não vem à reboque de soluções supletivas: há uma estreita correlação
entre a diversidade do evento cênico em sua materialidade e a inter-
relação entre artes

48 Curso de Especialização em Teatro à Distância


(PQRVVRFDVRLVVRğFDPDLVSHUFHSWâYHOTXDQGRHVWDPRVWUDEDOKDQGR
FRPYHUVøHV$HVWUDWÒJLDQÂRDFRPSDQKDUTXDLVDVPRGLğFDÍøHVRğO-
me produziu a partir da obra teatral. No trabalho com versões e adapta-
ções é preciso ter em mente que cada nova obra é um obra diferente. A
Sigo neste tópico as idéias
EXVFDSHORRULJLQDOVLPSOLğFDRSURFHVVRÉ no jogo entre similaridades de H-G. Gadamer (Verdade
e método. Vozes,1997) e M.
e diferenças que a atividade de adaptação melhor se compreende. Se Bakhtin (A poética de Dos-
toda obra é uma seleção de materiais e sua transformação, é impossível toievski. Forense Universi-
tária,1981 ; Cultura Popular
efetivar um processo criativo sem se valer de algo que já exista. No caso na Idade Média e no Renas-
cimento. Hucitec,1999; Ques-
a relação entre a nova obra e as com as quais há um intercâmbio se dá tões de Literatura e Estética.
Hucitec,1988.)
de diversas formas: há a tendência de se aproximar ou se distanciar mais
das obras anteriores, de parafrasear ou parodiá-las. Com isso, no lugar
V. Paródia, paráfrase & Cia. , de
de uma relação horizontal-causal entre obras – a obra ‘A’ gerou ou foi A. R. Sant’Anna(Ática,2000)
gerada pela obra ‘B’ – temos que cada nova obra é um ‘novo original’. O
passado é relido e reinterpretado a partir de uma instância atual. A qua-
lidade das apropriações e transformações não se deve à intensidade da
aproximação e/ou dependência com o que se incorpora ou cita.
.  
É claro que tais noções são melhor compreendidas no processo criati-
vos de eventos cênicos e que de nenhuma forma estabelece o plágio
como regra estilística. Simplesmente está manifesto que o material
com que trabalhamos em nossos processos criativos está no mundo,
é pré-existente. Porém, ao se lidar com este material estamos sujei-
tos tanto a ordenações estéticas, quanto jurídicas.

O caso da adaptação de Bodas de Sangue é bem esclarecedor. A peça


de Garcia Lorca se organiza em três atos que se subdividem em qua-
dros, com uma progressão bem marcada para a mútua morte entre os
SUHWHQGHQWHVGDQRLYDUDWLğFDQGRRWâWXORGDREUD$IRUD/HRQDUGRR
amante febril, todas as personagens não tem nome, deslocando o foco
dos acontecimentos das personalidades dos agentes em cena para as
metáforas e estrutura social. A poematização de um universo tão rude
e primitivo contextualiza as ações e seus efeitos. Atravessando a obra,
temos canções e falas ritmadas, corroborando o diferencial do espetá-
culo: encenar situações-limite na apresentação de extremos da lingua-
gem, dos afetos e dos movimentos. O baile durante a festa de casa-
mento, o baile então interrompido, cifra essa conjunção entre extremo.

2ğOPHDPSOLDDFRUHRJUDğDGDSHÍDHVFULWD(PVXDYHUVÂRFLQHPD-
WRJUÀğFD&DUORV6DXUDFRORFDRVLQRPLQDGRVDJHQWHVGHVVDWUDJÒGLD
anunciada nos bastidores do ensaio geral da peça homônima, nos ca-
marins e nas nos estúdio de dança como que se aquecendo para o
espetáculo. Este jogo entre os atores e as personagens, este jogo me-

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 49


tateatral, torna simultâneas as referências à peça e ao quotidiano dos
DWRUHV 7XGR DR ğP Ò UHSUHVHQWDÍÂR PDV D YLROÓQFLD VH WRUQD PDLV
violenta quando é exibida no amplo acesso de seus meios e agentes:
tudo que é necessário para que ela aconteça está disponível. Os mú-
sicos, o triângulo amoroso, a faca e os movimentos com a faca.

1RğOPHğFDPEHPHYLGHQWHVDVRSÍøHVGH&DUORV6DXUDTXHQÂRVÂRDV
mesmas de Garcia Lorca. Porém, o diálogo entre as obras é realizado não
apenas a partir dos elementos que permanecem. Carlos Saura amplia a tra-
PDFRUHRJUÀğFDSUHVHQWHQRIRUPDOLVPRSRÒWLFRGDREUDGH/RUFD1RWH[-
to de Lorca, as personagens habitam um mundo que se mostra por meio
de escolhas bem nítidas de linguagem, cores, espaços e contracenações.
2SWDQGRSRUWUDEDOKDUFRPğJXUDVFRPSHUVRQDJHQVWLSR/RUFDDGHQVD
a sensação de fatalismo do espetáculo por apresentar personagens que
cumprem programas narrativos pré-estabelecidos e se expressam em fa-
las sentenciais e poéticas que limitam perspectivas individuais. Como ma-
ULRQHWHVDVSHUVRQDJHQVUDWLğFDPRTXHGHODVVHHVSHUDHHVWDFHUWH]D
FDGDYH]PDLVHğFLHQWHGRTXHYDLDFRQWHFHURULHQWDHFDWLYDDUHFHSÍÂR

Carlos Saura, por sua vez, interpreta essa certeza autorefencial no


virtuosismo dos atores-dançarinos, que em suas movimentações e
FRQWUDFHQDÍøHVGLODWDPRWHPSRGRFRQĠLWRHGDPRUWHH[SORUDQGRD
tensão entre a sucessão de eventos expostos pela trama e pela peça e
DDWXDOLGDGHGRVDUUDQMRVFRUHRJUÀğFRVGRVGDQÍDULQRVHGDFÁPDUD
Assim, a tragédia de Lorca cede à festa interartística de Saura. Aquilo
que na peça está em segundo plano, a festa – que é interrompida –
JDQKDRSULPHLURSODQRQRğOPH'RPHVPRPRGRDFHUWH]DGDPRUWH
e sua progressiva atualização, não mostradas em cena, mas concreti-
]DGDVSHODVPHWÀIRUDVQDSHÍDğFDHPVHJXQGRSODQRQRğOPHFRP
o foco mais na estranha conjunção entre agressividade, técnica e be-
OH]D(PWRGRFDVRTXHOÓDSHÍDHYÓRğOPHğFDDWUDâGRSHORLPSDFWR
brutal de um triângulo amoroso que se amplia para além das habitu-
ais e verborrágicas ventilações de sentimentalimos epidérmicos.

1R ğOPH HVVD DPSOLDÍÂR GRV HIHLWRV H UHIHUÓQFLDV Ò HIHWLYDGD SRU-


meio da interação entre teatro, dança, música e cinema. A intensi-
dadedaquilo que se mostra está diretamente relacionada com sua
heterogeneidadedos meios. Assim fechamos as pontas de parte dos
conceitos eexperiências deste curso: a idéia de pluralidade, de múlti-
plos aspectose referências pelos quais um evento cênico é construído
e interpretado encontra uma contrapartida mais concreta no inter-
cruzamento de diversas artes em contato.

50 Curso de Especialização em Teatro à Distância


ÉTICA E
ESTÉTICA

8
&KHJDPRV DR ğP SHOR PHQRV GHVWH FXUVR ( SDUD HQFHUUDU YDPRV
LGHQWLğFDUVLWXDÍøHVWHDWUDLVEÀVLFDVHGLVFXWLODVSRUPHLRGRğOPH2
ğHOFDPDUHLUR1RğOPHWHPRVXPH[SHULHQWHDWRUVKDNHVSHULDQR
em torno do qual gira os integrantes de uma companhia teatral du-
UDQWHDVHJXQGDJUDQGHJXHUUD  2VFRQVWDQWHVERPEDU-
GHLRV DOHPÂHV QÂR LQWHUURPSHP DV YLDJHQV GD FRPSDQKLD 2 ğOPH
habilmente capta os bastidores das apresentações, exibindo como o
velho ator serelaciona com os companheiros, sejam eles atores, téc-
nicos e auxiliares. Nos extremos das tensões temos o ator principal
e seu ajudante mais próximo – Norman. Opostos na hierarquia da
companhia, eles vivenciam uma estranha cumplicidade, aproximando
afetos e mudança de status: ora o camareiro está no comando do in-
VHJXURHGHVTXLOLEUDGRDWRUSULQFLSDOLGHQWLğFDGRDSHQDVFRPRŁ6LUł
ora ‘Sir’ descarrega todo seu ódio e frustrações contra o humilhado
HIUÀJLOFDPDUHLUR1XQFDHVTXHFHUTXHRğOPHÒXPDDGDSWDÍÂR
FLQHPDWRJUÀğFDGDSHÍD7KH'UHVVHUHVFULWDSRU5+DUZRRGDSDU-
tir de suas experiências como camareiro de um ator shakesperiano,
HVWUHRXHP/RQGUHVHPHQD%URDGZD\HPWHQGRGHSRLV
YÀULDVUHPRQWDJHQV7RP&RXUWHQD\IH]RSDSHOGH1RUPDQQDVPRQ-
WDJHQVDFLPDFLWDGDVHQRğOPH

Entre os opostos, temos o relacionamento de ‘ Sir’ com os demais


atores e técnicos, explicitando uma cadeia de relacionamento que ex-
pande o que acontece no palco para fora dele. As ações em cena e nos
bastidores se completam, demonstrando a co-pertinência entre ética
e estética. Em nome da ‘arte’, ou melhor, de si mesmo, Sir realiza as
mais ditatoriais e intempestiva ações, justamente como aquelas que
o chamado mundo ocidental democrático parecia naquele momento
combater. Ao mesmo tempo, ao revelar-se tão terrível o velho ator
seduz e a todos comove.

Essa associação entre individualismo, carisma e poder no microcos-


mo de uma companhia teatral nos capacita a não pensar ingenua-
mente nas representações, isolando-as de todas as suas implicações.
2ğOPHPRVWUDEHPRFRQWUDVWHHQWUHDVEHODVSDODYUDVHPFHQDHRV
negativos atos fora do palco.

$VVLPRğOPHQRVDOHUWDFRQWUDDLGHDOL]DÍÂRGDDWLYLGDGHWHDWUDOFRQ-
tra a separação entre arte e existência. Em nome da arte, por melhor
que seja, não se pode permitir que barbaridades sejam cometidas. O
ğOPHDFRPSDQKDEHPHVVDGHFDGÓQFLDHPRUWHGH6LUHQFDVWHODGR
HPVXDUDGLFDOUHDğUPDÍÂRGHVLPHVPRSHUGHQGRFRQWDWRFRPRV

52 Curso de Especialização em Teatro à Distância


que em volta lhe prestam tantos serviços, e concedem tanta atenção.

Do outro lado, está Norman. Para que Sir se agigante, é preciso que o
outro se rebaixe. Os excessos desenham uma hierarquia real que se
DYROXPDHPXPDKLHUDUTXLDLPDJLQÀULDTXHDPSOLğFDPHGRVGHVH-
jos, ambições.

0DVDRğPSDUDDPHVPDDUWHTXHUHXQLXGLIHUHQWHVSDUWâFLSHVGH
Sir a Norman, temos a celebração de um fazer em todas as suas con-
tradições: para que haja a cena, todos deixam de ser quem são, todos
deixam suas picuinhas de lado e procuram salvar a cena de A Tem-
pestade.

(LV DV GLYHUVDV OLQKDV GH RULHQWDÍÂR GR ğOPH R HQWUHFKRTXH HQWUH
ética e estética, no jogo entre Norman e Sir é melhor explorado nos
momentos coletivos de trabalho em prol da arte que os aproxima e os
ID]HQWUDUHPFRQĠLWR'DâRVHQVRWUDJLF÷PLFRGRğOPHTXDQGRSHU-
cebemos que a tensão entre palco e bastidores não se completa, que
não a morte do ator principal ou mesmo suas ações em vida, mesmo
reprováveis, não produzem o efeito tanto de acabamento da obra ou
GDH[LVWÓQFLDTXDQWRGHXPDDUJXPHQWDÍÂRHRXDYDOLDÍÂRğQDOVR-
bre o que houve. A resposta emocional ambivalente ao percurso qui-
[RWHVFRGDGXSODLPSHGHTXHVHFRQYHUWDRğOPHHPFDUWLOKDPRUDO
$RDSUR[LPDUDFRPLFLGDGHGRWHUUâYHORğOPHQRVFDSDFLWDQÂRIXQGLU
ÒWLFDHHVWÒWLFDDGHVFRQğDUGHXPDDERUGDJHPGLVFXUVLYDTXHUHGX-
ziria os eventos da tela a modelos comportamentais. Pois o excesso
GHWRGDRUGHPDWXDOL]DGRQRğOPHSURPRYHRLQWHUYDORUHJHQHUDGRU
entre ações e suas motivações, entre conceitos e experiências, entre
palco e vida. E pensando este intervalo, essa impossibilidade de total
fusão entre discurso e existência que nos despedimos deste curso so-
bre Teorias Teatrais. Como de volta para o começo, tomamos parte de
uma consciência sobre as ações, sobre os atos de conhecer e produzir
conhecimento.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 53


54 Curso de Especialização em Teatro à Distância
A PERFORMANCE
COMO
ARGUMENTO: A
ESTE ARTIGO É UMA VERSÃO
CENA INICIAL DO
DIÁLOGO ÍON, DE
SINTÉTICA DE COMENTÁRIO
E TRADUÇÃO DE ÍON.
A TRADUÇÃO INTEGRAL
ENCONTRA-SE NO SITE
WWW. MARCUSMOTA.COM.
BR. ARTIGO PUBLICADO NA

PLATÃO
REVISTA VIS. REVISTA DO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM ARTES DA UNB. V.5. N.2,
JULHO;DEZEMBRO DE 2006,
80-93.S

9
“SÓCRATES
Mas olha se não é o famoso Íon! De onde você está vindo pra passar
agora um tempo com a gente? De Éfeso, tua terra?

ÍON
De jeito nenhum, Sócrates. Venho de Epidauro, das festas em honra
de Asclépio.

SÓCRATES
Então os habitantes de Epidauro também organizam concursos de
rapsodos para a divindade?

ÍON
Mousikê.
Isso mesmo, assim como concursos das outras habilidades.

SÓCRATES
E como foi? Você competiu? Fale! Como você se saiu?

ÍON
Ganhamos o primeiro prêmio, Sócrates.

SÓCRATES
Meus parabéns! Se continuar desse jeito, vamos ganhar até as Pana-
tenéias.

ÍON
Assim seja, se a divindade quiser.

SÓCRATES

Sabe, Íon, por muitas vezes eu senti inveja do que vocês, os rapsodos,
têm a capacidade de fazer. Por causa do que vocês fazem, vocês sem-
pre precisam tanto estar bem vestidos, com a aparência o mais esplên-
dida possível, quanto é necessário que vocês ocupem grande parte
do tempo com as obras de muitos autores excelentes, principalmente
Technês. Homero, o melhor e mais divino deles, e examinar a fundo mais seu
pensamento que suas palavras. Como isso é invejável! Não há como se
tornar rapsodo de excelência se não entender o que o poeta disse. Pois
o rapsodo deve ser, para os ouvintes, o intérprete do pensamento do
poeta. E é impossível fazer isso bem sem ter conhecimento do que o
poeta diz. Realmente todas essas coisas são dignas de inveja.”

56 Curso de Especialização em Teatro à Distância


O dialogo platônico Íon é articulado por apenas dois agentes. Ini-
cialmente, como podemos observar, temos uma marcada estru-
tura de abertura, de começo da situação de confrontação. Nesse
momento, o contato entre os dois agentes é explicitado. Sócrates
saúda a chegada de Íon e o interroga seguidamente de modo fa-
zer conhecer 1- quem é seu interlocutor; 2- de onde ele vem; 3- o
que ele faz. Ao mesmo tempo, tal analítica, que decompõe Íon,
patenteia que o centro do espaço de representação, a hegemonia
da cena já está ocupado. Na abertura, o contato é orientado em
função da assimetria entre os agentes: a reiterada marcação de
posições excludentes em um mesmo espaço. O espaço de repre-
sentação é o desempenho dessa assimetria.

Além disso, não só o espaço de representação é constituído. Na atu-


alidade do encontro, Sócrates interroga o rapsodo Íon a respeito de
coisas que se deram em outro lugar e em outro tempo. A curta narra-
tiva do que aconteceu ‘não aqui’ e ‘não agora’ duplica a ‘não pertença’
de Íon ao tempo e ao espaço de Sócrates.

Mas, junto com essa assimetria, é-nos oferecida também a inicial ex-
cepcionalidade do estrangeiro. Íon é um vencedor de disputas, um
performer premiado. Por mais que, já desde a abertura, Sócrates ma-
QLSXOHRVGDGRVGDVUHVSRVWDVGH…RQFLUFXQVFUHYHQGRRV¿VXDGHğ-
QLÍÂR¿GHğQLÍÂRTXH6öFUDWHVDSUHVHQWDGH…RQHVWDPRVGLDQWHGH
um rapsodo que chega após conquista de vitória em concurso (Epi-
GDXUR SDUDJDQKDURXWUD 3DQDWHQÒLD …RQYHPSDUDJDQKDURIHVWLYDO
de Atenas, festival da cidade para toda a Hélade.

Sócrates se posiciona no meio do caminho dessa carreira vitoriosa do


rapsodo Íon, interrompendo esse vencedor transcurso, de modo a en-
fatizar que o rapsodo não é deste lugar e que suas ações são passadas.
Neste encontro, Sócrates aproxima-se de Íon para rivalizar com ele.

Entre as habilidades de rapsodo, temos sua itinerância, a capacida-


de de transpor espaços. Viajando para tantos e diferentes lugares,
seguindo um calendário de festividades e concursos, um roteiro de
ocasiões para competir e demonstrar suas habilidades, Íon insere-se
em uma tradição de rapsodos cuja mobilidade e performance não se
associam diretamente ao que Sócrates valida. Emendando a questão
sobre a origem, Sócrates pergunta se Íon está vindo de sua terra na-
WDOSURFXUDQGRUHODFLRQDU?LGHQWLğFDUSHVVRDHHVSDÍR

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 57


As perguntas de Sócrates, pois, não visam uma interação com seu
interlocutor. Nesse encontro inicial entre quem havia acabado de che-
gar e aquele que já ocupa o espaço conhecido de suas performances,
há desde já a disputa desempenhada. Ambos são lutadores, competi-
dores, rivais. A partir da saudação inicial a nova competição já come-
ça. O emparelhamento inicial dos litigantes, distribuídos em quanti-
GDGHEDODQFHDGDGHOLQKDVORJRVHUÀPRGLğFDGRHPSUROGH6öFUDWHV
O contato somente havia aproximado os díspares. E essa disparidade
será cada vez mais exibida no restante do diálogo.

Primeiramente, Íon é um competidor e vencedor nos espaços espe-


FâğFRVGHIHVWLYDLVHRFDVLøHVSĎEOLFDVTXHH[LJHPDVXDGHPRQVWUD-
As perguntas iniciais de Só- ção de habilidades. Já para Sócrates, a arena está nesses encontros
crates evidenciam aspectos da intersubjetivos, de platéia reduzida. Sócrates habita Atenas, mas se
atividade competitiva de Íon,
como identificação da com- comporta na contramão da cidade. Íon está no espaço de competição
petição e sua organização e
sede, habilidades requeridas, de Sócrates. Para um rapsodo, a relação com um massivo auditório,
tipos de provas, disputa e pre-
miação.
determinante para sua performance, está ausente, contrariamente
a Sócrates. Temos, pois, em Íon, um rapsodo fora de sua situação de
representação entrando no espaço de competição ao qual é alheio.

1RPöGXORVXEVHTđHQWHDSöVHVVHVSUHOLPLQDUHVDWRVRHPSDUHOKD-
mento dos agentes é alterado. Sócrates ocupa uma posição mais fo-
cal, expressa por bloco de falas mais contínuo e extenso. A partir des-
se momento, Sócrates terá as maiores falas do diálogo e determinará
DVDÍøHVGH…RQ$FRQWUDFHQDÍÂRDVVLPÒWULFDYDLLQYHUWHUDVTXDOLğ-
cações primeiras presentes no módulo inicial de contato: o vencedor
Íon vai se constituir em objeto de zombaria.

Em sua primeira longa fala, Sócrates situa seu encontro com o rapso-
do em termos de rivalidade e falso elogio do adversário. A ‘inveja’ que
6öFUDWHVDğUPDSRVVXLUTXDQWR¿DUWH¿SURğVVÂRGH…RQQÂRYHPGH
DJRUD0DLVGHXPDYH]PXLWDVYH]HVLVVRVHGHX7DOIUHTđÓQFLDSRVWD
Sócrates como um familiar membro da audiência dessas competições,
um observador contumaz de performances. Ao mesmo tempo, tal fre-
TđÓQFLDUHYÓRFRQWDWRLQLFLDO2DFDVRGRHQFRQWURFHGHOXJDU¿RFD-
VLÂRSUHPHGLWDGD(PIXQÍÂRGLVVRWRGDVDVDğUPDÍøHVYÂRJDQKDQGR
contexto. As perguntas de Sócrates, desde a saudação, melhor se com-
preendem.Como Sócrates já observava as performances competitivas
de rapsodos, o encontro com um rapsodo fora de seu espaço de com-
petição e exibição possibilitará a performance mesma de Sócrates. Um
adversário preparado e um outro desavisado se entrevêem.

58 Curso de Especialização em Teatro à Distância


$VVLPDVSHUJXQWDVGH6öFUDWHVVHXLQWHUURJDWöULRŋSRLVDğQDOTXDLV
são as armas, as habilidades de Sócrates além das palavras? – partem
de alguém já em situação de disputa. Dessa maneira, a performance
verbal de Sócrates é um desempenho competitivo que se caracteriza
por entremear negação e sedução de seu oponente, testando, por
aproximações e sobreposição de ordens valorativas, o saber que este
possui ou não do que está acontecendo. A inveja de Sócrates quan-
WR¿VKDELOLGDGHVGRUDSVRGRDTXLHQFRQWUDVXDGHğQLÍÂRHWHQVÂR
Pois, ao mesmo tempo em que Sócrates se coloca como que afetado
pelo que os rapsodos fazem quando atuam, o próprio Sócrates não
VöUHGX]HVVHLPSDFWR¿EDQDOLGDGHGHğJXULQRGDVURXSDVHGDFRP-
postura que o performance como também ele mesmo age como um
rapsodo, seguindo um modelo competitivo e de impacto sobre sua
audiência. Íon agora deixa de ser o encantador de multidões para se
converter em platéia e ‘escada’ de Sócrates.

A forte admiração, que Sócrates tem pelos rapsodos o posiciona em


XPDFRPSOHPHQWDUUHFXVDHUHDğUPDÍÂRGHVVDWUDGLÍÂRSHUIRUPDWL-
va. Sócrates, de fato, argumenta contra a performance a partir da per-
formance. Tal mistura de rivalidade e admiração se torna mais claro
na coordenação que Sócrates faz das duas coisas que mais ele inveja
dos rapsodos: a bela aparência física e o tempo passado com as obras
de grandes poetas. Igualando a arte dos rapsodos a cuidados cons-
tantes com roupas\compostura e ocupação com poetas, Sócrates
manifesta uma junção aristofânica de coisa diversas, apontando, em
um primeiro momento, nessa cômica metáfora, para uma identidade
HQWUHVXSHUğFLDOLGDGHHSHUIRUPDQFHUDSVöGLFD

Mas a metáfora se amplia se examinamos seu contexto de remissão,


seu endereçamento. Antes de se isolar em sua fala, Sócrates intera-
gia com seu interlocutor, tornando-o alvo de suas falas, citando Íon,
dirigindo-se diretamente ao rapsodo em sua frente. A partir do mó-
GXORVHJXQGR6öFUDWHVPXGDRIRFRHHQGHUHÍDVXDIDOD¿SURğVVÂR
do rapsodos, e a todos os performers dos quais Íon é apenas mais um.

Tal inclusão e ampliação do referente acontece justamente no mo-


mento em que Sócrates desliga-se do emparelhamento dialogal inicial
e ocupa o centro hegemônico das performances. Há um movimento
complementar entre a mudança da posição dos agentes na cena e os
comentários sobre a performance produzidos por Sócrates. A intensa
LQ GLVSRVLÍÂRGH6öFUDWHVIUHQWHDWRGDSUÀWLFDSHUIRUPDWLYDGRVUDS-
sodo leva o grande ironista a igualar caracterização e tempo gasto com

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 59


os poetas. Inversamente, tempo gasto com poetas, com a tradição per-
IRUPDGDSHORVUDSVRGRVÒLGHQWLğFDGRFRPFDUDFWHUL]DÍÂR0RYHQGR
se de um pólo ao outro, do rapsodo Íon a todos os rapsodos, e de todos
rapsodos à tradição performativa helênica, Sócrates incrementa mais
ainda a aplicação do que está se propondo a dizer em virtude da redu-
ção do escopo da performance a elementos cosméticos.

Contudo, ao revertermos o argumento socrático, podemos ver que


o exercício da rapsódia é uma atividade que exige certas habilida-
des, como: domínio de repertório, fisicidade e prontidão de pre-
sença, efeito sobre o auditório e audiovisualidade. Tais habilida-
des precisam ser efetivadas e testadas em concursos, o que leva
o rapsodo a estar continuamente envolvido na excelência de seu
desempenho. Dessa forma, o ardor com o qual Sócrates se arre-
messa contra os rapsodos e contra Íon nos informa sobre aquilo
que é negado nesse impulso. O exercício da rapsódia é e ao mesmo
tempo não é aquilo que Sócrates afirma e degrada. Desde o início
do encontro, estratégias de restrição de presença foram postas em
ação por Sócrates a fim de estabelecer o nexo, o vínculo entre os
membros de uma situação que, aos poucos, vai se tornando a per-
formance de Sócrates. O rebaixamento do rapsodo é proporcional
à assunção plena do ironista. A limitação dos atos e da presença de
Íon efetivados até aqui, são explicitados verbalmente neste módu-
lo, e expandidos para todos os rapsodos.

Tais ajustamentos do contato atingem a contingência mesma do exer-


cício do rapsodo, demonstrando a diferença entre as performances
de Sócrates e dos que performam como Íon. Ao colocar em excessivo
relevo somente aspectos de exteriorização da presença do performer,
Sócrates interpreta negativamente o corpo e a situação mesma do
rapsodo. Esse esvaziamento do corpo por sua cosmética exuberante
desvia a atenção dos concretos efeitos e das habilidades de alguém
que performa diante de um auditório obras da tradição ao mesmo
tempo em que, por esse desvio, denigre também tais obras como re-
ferência de conhecimento e qualidade. Daí podemos observar essa
identidade forçada entre ‘corpo ataviado’ e ‘clássicos da cultura’. Se
VHOHYDWDQWRWHPSRHGHGLFDÍÂRDSHQDVSDUDVHDGRUQDUHğFDUHVWX-
dando estes autores, tudo isso –corpo e autores - não passa de um
desperdício. Pois a situação mesma de se apresentar diante de um
auditório massivo não é essa coisa tão complexa assim como Sócrates
parecer mostrar...

60 Curso de Especialização em Teatro à Distância


7RGDVDVRXWUDVFRQVHTđHQWHVGHVYDORUL]DÍøHVŋWUDGLÍÂRGRVUDSVR-
dos, tradição cultural – encontram seu fundamento na ação exercida
por parte de Sócrates contra a presença e a corporeidade. Desvincu-
lando a excelência física de outras habilidades relacionadas ao de-
sempenho diante de um auditório, Sócrates atinge uma instância que
acarreta um determinado saber sobre a performance que prescinde
da performance mesma. O corpo é apenas um veículo para mostrar
algo que não precisa necessariamente do corpo. E modo excessivo
FRPR LVVR Ò H[SRVWR QD LQWHQVLğFDÍÂR GHVVH UHVXOWDGR GH LPDJHP
na qual a performance se transforma, aponta para o máximo ponto
que tal desempenho pode chegar. Toda a preparação, todas as ha-
ELOLGDGHVDOFDQÍDPVRPHQWHLVVRTXHSRGHDJRUDVHUGHğQLGRFRP
vantagem por Sócrates. É como se tudo, essa forma de espetáculo,
WLYHVVHğFDGRSDUDWUÀV(6öFUDWHVTXHWHPREVHUYDGRRVUDSVRGRV
PXLWREHPSDUHFHGHFUHWDURğPGHVVDHUDDFRQFOXVÂRHVXSHUDÍÂR
desse tipo de performance. Por muitas vezes e em várias ocasiões Só-
crates havia sido afetado pelos rapsodos. Agora não mais. Agora, na
situação representacional em que Sócrates desempenha, inverteu-se
o centro atrator, alterou-se regime de fascinação.

Dentro desse módulo, a atualidade da performance desabonadora


de Sócrates reverte para si mesma. Excluindo-se dos outros, ao apre-
sentá-los e descreve-los, Sócrates expõe-se, torna observáveis seus
recursos, suas habilidades em situação de performance. A assimetria
entre os partícipes da contracenação será o foco dos atos de Sócrates.
A diferença de conhecimentos entre os que contracenam será o ma-
terial mesmo para a constituição do diálogo.

Em função disso, ironicamente, temos, ao mesmo tempo, a inscrição


mesma de Sócrates na interação e a ampliação do destinatário. Antes,
durante o contato inicial com Íon, Sócrates não se referia a si, mas
exclusivamente a Íon, juntando-se a Íon apenas em plural compar-
WLOKDGR YHQFHUHPRV …RQSRUVXDYH]UHIHUHVHDVLD6öFUDWHVHD
tudo que este solicita. Agora, quando Sócrates mesmo assume mais
explicitamente o comando da performance, ou melhor, quando ele
exibe suas habilidades, não há réplica e passamos deste rapsodo para
todos os outros.

Esta correlação entre atualidade da exploração das habilidades de


Sócrates e a generalização da audiência próxima esclarece o desem-
penho do ironista. A expansão da presença do performer Sócrates efe-
tiva-se no desdobramento das referências do auditório, simultanea-

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 61


mente situado entre alvo e tema do discurso. Íon é um rapsodo para
o qual Sócrates fala. Mas Sócrates também está falando dos outros
rapsodos. E de outros que não são os rapsodos. Com quem e de quem
Sócrates fala então? Para se fazer ouvir e para fazer calar, Sócrates
aproxima o interlocutor do tema de seu discurso, transformando o
próprio interlocutor em alvo da performance, em objeto da ação do
performer. A simultaneidade dessa mútua pertença imediatamente
atribui ao destinatário próximo uma distinção, como se ele fosse a
razão de ser do evento. Entre o rapsodo de agora e os rapsodos todos,
Íon parece inserido em algo mais que a sua posição de agora. Com
isso, Sócrates quase que se apaga, impessoaliza-se. Mas é justamente
nessa atualidade na qual simultaneamente se efetivam atribuições
sequencialmente excludentes que se manifesta a habilidade de Só-
crates de saber intervir e modelar a audiência.

Estabelecendo nexos dispostos entre extremos excludentes sincrô-


nicos, Sócrates pode movimentar-se entre as concessões que lhe são
dadas. Pois tal complexa abordagem do interlocutor produz a coexis-
tência de desorientações e consentimentos apressados, em virtude
GHDVDğUPDÍøHVGH6öFUDWHVSDUHFHPDFDGDPRPHQWRFRPRFRQFOX-
sões às quais já não se é capaz de retornar. Em prol de um efeito cada
vez mais próximo do ‘agora’, da atualidade da performance, Sócrates
YDL HOLPLQDQGR DV ĠXWXDÍøHV GH FRQWDWR H RV DWULEXWRV PHVPRV GR
interlocutor. Sócrates infunde porque confunde.

Falando com uma autoridade não questionada sobre os rapsodos, ao se-


lecionar algumas de suas características e habilidades, Sócrates atinge
o ápice da sobrevalorização depreciativa ao chegar a Homero. De Íon a
Homero - esse percurso se dá por inclusão hiperbólica, como se cada vez
mais um limite fosse atingido e ultrapassado, reunindo o mais próximo
e o mais distante, tudo pela voz de Sócrates. Sem sair do lugar, conheci-
mentos e referências são pontuados e englobados pela dicção socrática.

Homero comparece coroando uma cadeia gradativa, um rol que


começou Íon, generalizou-se nos rapsodos, ampliou-se nos po-
etas e encontrou seu ápice em Homero. A prática de correlacio-
nar valores depreciativos e afirmativos em um mesmo sintagma
desdobra-se na ordenação que posiciona um ponto mais alto na
FDGHLDHQXPHUDGDHFRQVHTđHQWHQRYDGLVSRVLÍÂRKLHUÀUTXLFDGR
que fora apresentado como primeiro e melhor item da lista. Ao
fim da ordenação, o que ficou para trás está em desvantagem e só
ganha seu status em função do último elemento citado, o ‘cabeça’

62 Curso de Especialização em Teatro à Distância


do conjunto. Mas, como temos uma sucessão de renovadas substi-
tuições de ápices, há o esvaziamento potencial da série, a abertura
da posição concludente.

Dessa forma, a cadeia hiperbólica, de tanto apresentar novas en-


tradas e novas hegemonias, aponta não mais para os dados dispos-
tos, e sim para sua elaboração, para seu excesso, para o registro de
seu fazer. O máximo dos máximos ao fim da série nos informa so-
bre um percurso de negações, de inclusões negativas que iludem
pela abrangência porque, na sucessão, quase que ilidem o resul-
tado das operações realizadas. Na verdade, essas inclusões hiper-
bólicas, dentro do contexto de contracenação do diálogo, atuam
como uma maneira de defenestrar a atualidade e a presença do
interlocutor, separando Íon da pertença a essa tradição de artistas
perfeccionados.

$ VHSDUDÍÂR H LVRODPHQWR GD ğJXUD GH …RQ HVWÀ SUHVHQWH HP WRGD
a demonstração de saber quanto ao ofício rapsódico que Sócrates
apresenta nesse módulo. Entre Íon e Homero, temos dois não grupos
plurais não pessoais, genéricos de classe. Íon, aquele que atravessa
cidades, encontra-se afastado do rapsodo modelo. Então a estraté-
gica citação de Homero vem marcar o alheamento de Íon quanto à
tradição que ele se vê vinculado em sua atividade performativa. A
série apresentada por Sócrates é uma ordenação genética que vai
FXPXODQGRGHTXDOLğFDÍøHVSRVLWLYDVRSRQWRGDFDGHLDTXHPDLVVH
apresenta distante de Homero, o ponto-origem.

Em outras palavras, “bom não é você, Íon, rapsodo de agora. Em geral, os


rapsodos parecem bons, até que se mostre bem quem são. Mas bons mes-
mo são os poetas que eles performam, e melhor ainda de todos é Homero,
TXHQÂRHVWÀDTXLń2ORXYRUGH+RPHURÒDGHVTXDOLğFDÍÂRGH…RQ

Essa habilidade de vincular referências excludentes em uma atuali-


dade enunciativa é produzida durante sua fala por coordenações, por
adições, que vão deixando para trás algo que poderia ser recusado,
debatido. É para um resultado discursivo que as coisas vão se encami-
nhando. Quando se vê, o espaço entre o primeiro e último elo da cadeia
é tão grande, ou não relevante agora, que não se pode ou não se decide
recuperar o que se passou. Sócrates movimenta-se por outra ordem de
LWLQHUÁQFLDTXH…RQ2HVSHFâğFRQRPHGH+RPHURÒHQFDL[DGRGHQWUR
de uma coordenação de adjetivos que gravitavam em torno do gené-
rico nome de ‘ poetas’. Homero, dessa maneira, é, ao mesmo tempo,

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 63


elemento do grupo ‘ poetas’ e superordenador do grupo, reunindo e
ultrapassando os atributos ali arrolados. Entre os inúmeros e excelen-
tes artistas que serviram de modelo e material para os rapsodos, há o
que se afasta e separa de todos eles em excelência – Homero. Homero
não só particulariza o geral duplamente anunciado antes, como tam-
EÒPVHGLODWDSDUDIUHQWH PHOKRU HSDUDWUÀV RULJHP MXVWDPHQWHQR
módulo quando Sócrates apresenta-se performando suas habilidades
e restringindo seu interlocutor Íon. Ao distribuir valores e posições para
seu interlocutor e para as referências a amplitude do julgamento e do
encadeamento expostos, a presença do nome de Homero remete-nos
para a fonte da voz que tudo ordena – Sócrates. O ironista assimila as
qualidades do proto-rapsodo.

A posição extraordinária de Homero, pois, somente se efetiva e ganha


seu destaque em virtude da série. Nela, não apenas se diviniza Home-
ro. Através da série, justapõe-se o melhor de todos, Homero, com seu
FRQVHTđHQWHSLRU…RQ$VVLPHQFDL[DQGRRUGHQVHTXDOLğFDWLYRVTXH
PDLVHPDLVWUDQVIHUHPSDUDRWHUPRVXEVHTđHQWHXPDDPSOLDÍÂRGH
abrangência e excelência, Sócrates constrói um aparente consenso no
qual a inserção dos interlocutores, dos integrantes do diálogo e seu
posicionamento na cadeia exposta somente serão compreendidas
pela conjunção entre o que é exibido e o modo como isso é articulado.

No entanto, no mesmo modo de se dizer, outras coisas são enuncia-


das. Primeiro, o cume é atrelado à queda, pois a excedência aplicada
a Homero se faz dentro de um crescente que é positivo e negativo
ao mesmo tempo. Assim, estar no topo da cadeia é ser o melhor em
algo que tanto é elogiado, quanto denegrido. O melhor de alguma
coisa que é ruim torna-se, pois, o pior de todas essas coisas já arrola-
GDV3DUDğFDUFODURYHMDPRVQRYDPHQWHHVVDHVWUDQKDVÒULHD…RQ
o rapsodo premiado; b- A classe dos rapsodos, da qual Íon faz parte,
FDUDFWHUL]DGDSRULPHGLDWDFRQğJXUDÍÂRHWHPSRGLVSHQVDGRFRPUH-
SHUWöULRF&ODVVHGRVSRHWDV UHSHUWöULR PXLWRVHH[FHOHQWHVDRV
quais se entrega o tempo; d- Homero, incluído nessa última classe,
mas ultrapassando-a completamente. Como se pode observar, há um
constante reprocessamento da instância anterior, favorecendo um
esquema em que cada instância no seu momento deixa de se deter-
minar apenas por meio da negatividade que aplica a quem lhe prece-
de. A esquematização das práticas e das tradições envolvidas na per-
IRUPDQFHGHXPUDSVRGRLQGLYLGXDOFRPR…RQWHPSRUFRQVHTđÓQFLD
eliminar a pluralidade e a complexidade dos nexos e das instâncias
em separado. Um rapsodo vencedor é destronado pelo esclarecimen-

64 Curso de Especialização em Teatro à Distância


WRTXHVHXSURFHVVRFULDWLYRQÂRSDVVDGHFRVPÒWLFDğJXULQRHGHV-
perdício de tempo. O tempo gasto com estudo desses bons poetas
é associado a tal desperdício e inutilidade. Assim, Homero, como o
PDLRUGHQWUHHVWHVSRHWDVÒXPDRSRUWXQLGDGHSDUDUDWLğFDUFRPRR
exercício desse ofício é uma inutilidade total e completa.

Homero reúne e esclarece o melhor e o pior, o alvo crítico desse mó-


dulo. Sócrates vale-se dele como contra-exemplo para Íon ao mesmo
tempo em que engloba toda essa cultura performativa em uma vani-
dade só. Sócrates faz tudo isso a partir mesmo dessa cultura que ele
nega, mas a qual emprega em sua performance mesma.

Diante disso, torna-se claro até aqui é esse tentativa socrática de exor-
bitar sua presença, a atualidade da performance diante de alguém e
seus efeitos transformadores sobre a audiência. Sócrates havia ten-
tado coordenar Íon a um espaço único de ocorrência sem contexto
de performance ou tirar do rapsodo o seu lugar de exibição, seja no
festival em honra de Asclépio, seja em honra de Atenas. Não obstante
LVVR6öFUDWHVDIDVWDVHGRUDSVRGRLQGLYLGXDOHGHVFUHYHVHXRğFLR
DWÒFKHJDU¿ğJXUDSURWRWâSLFDGH+RPHUR7HQGRHPVXDVPÂRVXP
panorama do ofício, Sócrates pode, sem ser um rapsodo e sem fazer
o que um rapsodo faz, dizer como o rapsodo deve ser e o que ele tem
de fazer. A presença do rapsodo depende agora do que dele se fale.
Seu corpo agora manifesta aquilo que as palavras de um outro que
QÂRÒUDSVRGRGHWHUPLQD2GLWRVXSODQWDDğJXUDHDYR]SUHVFLQGH
GHRXWUDVYR]HV+ÀXPSRGHUWUDQVIRUPDGRUQDSDODYUDTXHXQLğFD
as diferenças, porque as diferenças perderam seus suportes de ex-
pressão e sua pertinência a situações e modalidades de realização. A
GLYHUVLGDGHGHVVDVVLWXDÍøHVHWUDGLÍøHVHPFRQWDWRHFRQĠLWRHVWÂR
submetidas, nesse momento, à aplicação de um critério que extrapo-
la seus contextos.

(VVHUHWLUDUVHGRHYHQWRTXHSOXUDOPHQWHÒGHğQLGRSDUHFHVHUXPD
estratégia da performance de Sócrates desde o início do diálogo. A
ŁVÒULHłTXHFXOPLQDHP+RPHUREHPGHPRQVWUDLVVR$ğQDHVVDÒD
base da rivalidade entre Íon, o de muitos lugares, e Sócrates. Plurais
estão ao lado de Íon: ele é um rapsodo que passa por cidades, fes-
tivais e que se defronta com muitas habilidades. Já Sócrates vê nos
rapsodos um ofício cuja peculiaridade de seu resultado de produção
é redundantemente referido como ‘aparência’. Na preparação para a
performance só se faz uma coisa também e, mesmo com tantos auto-
res e obras para se estudar, para preparar somente um é importante

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 65


- Homero. Os duplos atributos coordenados, os muitos conjuntos de
coisas enumeradas, as hipérboles, os plurais – tudo recai numa coisa
Vö2PĎOWLSORLGHQWLğFDGRÒSUHWH[WRSDUDVHXIXQGDPHQWRVHPDOWH-
ração. Todas as coisas são transformadas em ausência de movimento
HPRGLğFDÍÂR2VHQFDL[HVYÂRFRQVROLGDQGRXPDSDLVDJHPGHGHğ-
QLGRVHGHğQLWLYRVFRQWRUQRV$H[FOXVÂRGRPĎOWLSORFRUUHODWRGDUH-
dução do corpo do rapsodo à mera aparência, é verbalmente indicada
SHODDğUPDÍÂRTXHORJRVHVHJXHDRORXYRUGH+RPHUR0LVWXUDQGR
seleções do que os rapsodos fazem com elementos positivos e nega-
tivos, Sócrates agora comparece com seu próprio método de produzir
conhecimento, inscrevendo-se, como havia anunciado no plural pes-
VRDOQDTXLORTXHUHIXWD$RğPGDVÒULHQRYDPHQWHSRUXPHQFDL[H
que se liga à descrição do que os rapsodos têm de fazer - e que, por
LVVRFDXVDDGLVSRVLÍÂRGH6öFUDWHVFRQWUDHOHVWHPRVDDğUPDÍÂR
que os rapsodos precisam conhecer a fundo o sentido e não as pala-
vras do que estudam.

$DğUPDÍÂRHPXPSULPHLURPRPHQWRSDUHFHSHUWHQFHUDRFRQMXQWR
de atos que constituiriam a imagem seletiva do que os rapsodos fa-
zem ao se prepararem para a performance e ao executarem-na, como
VHSRGHSHUFHEHUQDVÒULHGHLQğQLWLYRVTXHVHVXFHGHP0DVHQWUHR
ocupar-se\ desperdiçar tempo com dos poetas e a nova ordenança
de se aprofundar no ‘sentido’ e não na performance, há um hiato – a
H[RUELWDQWHğJXUDGH+RPHUR(QWÂRDVÒULHQÂRÒUHJXODUOLQHDU$
TXHEUDQDSHUIHLÍÂRGRHQFDL[HÒVLWXDGDQRWÒUPLQRGDVHTđÓQFLD
(RUHFXUVR¿DVVLPHWULDQRWÒUPLQRGDVHTđÓQFLDÒXWLOL]DGRDTXLHR
fora na série que vai de Íon a Homero. E nas duas o elemento deses-
tabilizador é o mesmo Homero.

$VVLPSRU+RPHUR6öFUDWHVIDODVHPVHULGHQWLğFDGRDRTXHIDODDWUL-
buindo a outros, a uma pretensa validade indiscutível o paradigma das
ações que acarretará transformações em seu auditório próximo.

Contudo, se se observa com cuidado aquilo que é dito, podemos con-


cluir que as implicações disso vão contrariamente ao contexto de pro-
dução e ao que os agentes deste contexto efetivamente realizam e va-
OLGDP$DğUPDWLYDGH6öFUDWHVGL]PDLVUHVSHLWRDRTXH6öFUDWHVSHQVD
e faz que aos rapsodos e a Homero. É uma ação sobre a performance
do rapsodo, sobre a tradição mesma dos rapsodos que determina o
que Sócrates faz. É a partir de desempenhos que o desempenho de
6öFUDWHVVHGHğQH2DUGRUFRPSHWLWLYRHPUHODÍÂRD…RQHVHXRIâFLRÒ
uma recusa mesma dessa modalidade performativa e de sua tradição.

66 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Após muito observar, após por muito tempo ter sido platéia desses
eventos, Sócrates rompe com os nexos entre o rapsodo e sua audi-
ência, para efetivar uma outra modalidade performativa. Sócrates
inverte e subverte a lógica rapsódica e seus vínculos receptivos. No
começo do diálogo, Sócrates saúda o performer. Já a partir deste se-
gundo módulo há o reposionamento dos interlocutores, e Íon ocupa
o lugar da audiência. Dessa maneira, o recurso para o pensamento,
para o racional que podemos ver no socrático comando somente se
compreende quando o inserimos no contexto reativo dentro do qual
se forma o antagonismo entre corpo e mente. A possibilidade de afas-
tar-se de um contexto de performance efetiva tal oposição. Sócrates,
pois, não parte de e nem advoga um pensamento puro, completo em
si mesmo. O que ele está fazendo é inserir, a partir de uma série atos
atribuídos aos rapsodos - atos esses negativamente caracterizados
- um tipo de habilidade que não necessariamente torna um rapsodo
um melhor performer, como Homero foi.

Essa habilidade consiste de um exame atento no conteúdo das falas,


exame este que, em virtude de ênfase em operações mentais, desliga-
se, afasta-se de habilidades e exigências que se tornam necessárias
durante o desempenho. É justamente a partir da performance que
essa habilidade mental se desenvolve e se singulariza. A abertura de
um espaço intelectual entre a hegemonia da cultura da performance
é o que consiste o desempenho socrático. Tanto que em sua realiza-
ção, a abertura é concretizada a partir do modelo performativo da
tradição – relação performer\ audiência.

A dissociação entre conteúdo das falas e seu desempenho já havia


sido proposto a partir do momento em que a presença, a atualidade
da performance, fora relegada a um segundo plano, seja pela des-
valorização da itinerância e das conquistas de Íon, seja pela redução
da corporeidade do performer a uma pura presença desligada de seu
processo criativo. Ora se, segundo Sócrates, não importa aquilo que
aparece, se aquilo que aparece em si mesmo não se sustenta, é em
outra direção que se torna necessário buscar o entendimento do que
está acontecendo. O evento de agora deve ser entendido por outro
fator que não se apresenta perceptível durante seu acontecer. Na ver-
GDGHHVVHPHVPRDFRQWHFHUHGHVHPSHQKDUÒTXHGLğFXOWDPDSHU-
cepção de seu fator explicativo. Por isso, é preciso romper com o nexo
imediato entre recepção e performance, mover o pensamento daqui-
lo que aparece para algo além disso, atravessar a aparição, tornar o
pensamento independente daquilo que se mostra pelo desempenho.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 67


Logo, é tal operação, a habilidade de dissociar exame acurado do con-
WHĎGRGDVIDODVHSHUIRUPDQFHTXHDRğPGDVÒULHGHDWRV TXH RV
rapsodos executam, deve ser o primeiro, o melhor, o fundamento da
formação do performer.$VÒULHPHVPRFXOPLQDQHVVDKDELOLGDGHğJX-
rando um afastamento das habilidades em situação de apresentação.
(HVVHDIDVWDPHQWRDTXLVHFRQğJXUDFRPRXPDSUHYHQÍÂRFRQWUDR
ilusionismo que a própria performance desencadeia em seu executor.
O executor, imerso nos desempenhos, pode tornar-se apenas alguém
que performa, e que não entende, não conhece, não controla o que
faz, nem conhece a si mesmo.

Daí o a enfático comando ‘de examinar o pensamento’, logo em se-


guida ao enfático destaque a Homero. Tudo isso consagra a habili-
dade de abstrair, da multidão de acontecimentos e procedimentos,
o melhor, o que mais dista e se afasta da contextura variacional e
hipnótica da performance.

$ HVVD UHGXQGDQWH DğUPDÍÂR GH VXD SUöSULD GHğQLÍÂR GH KDELOLGD-


de para a excelência performativa, Sócrates justapõe a seguinte ex-
clamação conclusiva encaixada: “isso é invejável!” Pela segunda vez,
marcando partes desse módulo, Sócrates insere em sua fala referên-
cia explícita a uma disposição que determinou a sua transformação
de platéia de eventos performativos em performer que recusa tais
eventos. O que é invejável nesse segundo momento não é o que os
rapsodos fazem, mas sim o que Sócrates faz e advoga em frente a
um rapsodo. Tanto que, em seguida, Sócrates dirige-se novamente ao
ofício dos rapsodos para determinar uma condição exclusiva da exis-
tência desse mesmo rapsodo, segundo a habilidade que o ironista
mesmo acabara de defender e invejar.

Todas as noções que Sócrates tem trabalhado até aqui encontram seu
esclarecimento em um modelo que justapõe o melhor e o pior, ou um
movimento que se baseia em restringir a multiplicidade em prol de um
estado separado, consumado e excelente, estado esse fruto de esfor-
ços de diferenciação e afastamento. Esse não comum e extraordinário
não se atinge por meio das práticas desempenhadas pelos rapsodos. O
consumado rapsodo só existe no plano da virtualidade, do condicional.

Assim, Sócrates reafirma um conhecimento, uma habilidade que


os rapsodos não possuem, limitando o ofício e a performance des-
tes. Essa operação é fundamental para compreender o alcance da
recusa socrática da performance. Pois, de qualquer forma, Sócra-

68 Curso de Especialização em Teatro à Distância


tes e os rapsodos estão vinculados. É na possibilidade de limitar o
alcance da tradição performativa que o desempenho de Sócrates
acontece. É por ser capaz de condicionar tal tradição a algo que
não a define completamente que Sócrates efetiva a abrangência
de sua atividade. O argumento contra a performance nos coloca
diante da performance como argumento. Logo, Sócrates só con-
segue fazer operar o seu ardor antiperformativo quando pensa
os desempenhos dos rapsodos em termos de condições absolutas
de existência. Só pode haver o rapsodo se e somente se tal e tal
requisito for preenchido. A exclusividade trabalha contra o plu-
ral. Mas nos coloca diante da possibilidade ou não de se pensar a
performance. Dentro de seu espaço de atuação, a fala de Sócrates
modifica-se. Da paródia chegamos ao discurso argumentativo. Os
conectivos coordenativos cedem lugar aos subordinativos. A alter-
nância entre encaixes de frases e focos personativos é substituída
SRUXPIOX[RPDLVFRQWâQXRGHDQWHFHGHQWHHFRQVHTđHQWH(VVD
réplica interna, que transforma a fala em exibição das habilidades
de exame atento e continuidade do argumento, pode ser vista na
VHTđÓQFLDGHIUDVHVDEHUWDVHFRDQGRFRQMXQÍøHV

Quanto mais avançamos nesse módulo no qual Sócrates se isola de


Íon e performa suas habilidades, mais se torna perceptível uma pas-
sagem da imagem reduzida do rapsodo para uma outra caracteri-
zação mais próxima do circuito socrático. A mudança na linguagem
e a sucessão de vocábulos conectados com atividades que exigem
PHQRV ğVLFLGDGH PDUFD R QRYR FRQWH[WR UHSUHVHQWDFLRQDO 3RUÒP
mesmo assim, em meio a essa transformação, o que mais é digno
de nota é o fato que ainda se atribui ao rapsodo tarefa e posiciona-
mento que a ele não se aplicam. Como Sócrates havia restringido a
atualidade do rapsodo a uma aparição inútil e transferido a exce-
lência desses performers para o repertório com o qual se familiari-
zam – autores, dentre os quais melhor de todos é Homero –, nada
mais restou aos rapsodos senão o lugar de intermediários entre o
repertório e a audiência. A presença é um médium para outro acon-
WHFLPHQWR$SHUIRUPDQFHHPVLPHVPDQÂRVHEDVWD(ODÒGHğQLGD
por outra coisa, que falta. O rapsodo suplementa o entendimento
do repertório para a audiência. Todavia esse modelo aural aplicado
a Sócrates produz distintos efeitos. Ao ironista em situação de me-
diador é conferido, ao invés da restrição, o incremento de suas ha-
bilidades. Pois, em suma, tudo consiste em se ater a examinar uma
obra e expor para a audiência esse desempenho, em conhecê-la sem
executá-la dentro de sua tradição performativa.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 69


Por isso, para Sócrates, que inseriu sua modalidade performantivo-
argumentativas durante o processo de parodia do ofício dos rapso-
dos, a audiovisualidade da presença do músico-poeta-performer é
DSUHVHQWDGDFRPRGHSHQGHQWHGHRXWUDLQVWÁQFLDSDUDVHGHğQLUŋR
vestuário, a maquilagem. São as coisas postas sobre o corpo, que en-
cobrem o corpo, que mostram o que o rapsodo faz e não seus gestos,
seus movimentos, sua musicalidade, sua expressão facial, sua des-
treza em correlacionar o ritmo e as referências das palavras, entre
outros procedimentos. Porque o rapsodo não transfere explicitamen-
te um saber nem sobre o que é performado, nem sobre seu desem-
penho mesmo. E, desse modo, consegue agir sobre uma audiência
mesmo sem colocar em questão o conhecimento utilizado para efe-
tuar tamanho impacto sobre ela. De forma que contra o ilusionismo,
contra o autofechamento da performance, Sócrates estabelece um
PRGHORHXPDKLHUDUTXLDGHQWURGHLQWHUDÍÂRDXUDOPHQWHFRQğJXUD-
da, centrando em uma atividade cognitiva predominantemente não
ğVLFL]DGD R IXQGDPHQWR GH WRGR R SURFHVVR $VVLP R FRQKHFLPHQ-
to do conteúdo não atualizado em performance da obra dos poetas
deve ser apreendido em toda sua extensão pelo rapsodo. E, após o
tempo envolvido nesse esforço cognoscente, tal conhecimento deve
ser disponibilizado para a audiência.

A partir do modelo socrático, várias oposições entre os membros


do interação são efetivadas. Em um primeiro momento, podemos
notar como rapsodo\poetas se encontram dissociados e hierarqui-
zados. O foco da atividade do rapsodo é uma ação voltada para os
poetas. Inversamente, há um hiato entre ouvintes\poeta, de forma
a não haver contato entre eles a não ser pela mediação do rapso-
do. Assim, simetricamente, rapsodo e ouvintes ocupam extremos
pontos desse circuito, sempre mantendo uma incompletude fren-
te ao conjunto que os reúne. Enfim, a oposição rapsodo\ouvintes
retoma a primeira oposição e a hierarquia que os correlaciona. Em
todos os casos, presente ou ausente, o rapsodo é determinado,
circunscrito, confinado.

Contudo, para Sócrates o modelo coloca o ironista no centro de conver-


gência da tradição e da pólis. Não há Sócrates sem interlocutores e um
mundo a ser pensado em seus nexos. De maneira que podemos con-
FOXLUTXHHVVHPRGHORWHPDSOLFDÍøHVHFRQVHTđÓQFLDVGLYHUVDVSRUTXH
seu pressuposto é socrático, advém do exame atento das condições
dos acontecimentos, e não do acontecimento em sua efetividade.

70 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Concluindo a série de atribuições ao rapsodo mais auto-aplicáveis a
Sócrates, o ironista retoma e reforça as coisas ditas por meio de uma
hipérbole negativa: “e é impossível fazer bem isso quando não se co-
nhece o que poeta diz.” Como vimos, as hipérboles têm sido utilizadas
por Sócrates para expor a distância intelectual entre ele e seu interlo-
cutor, pois, nos contextos em que foram proferidas, tornavam sonora
sua aplicabilidade imediata. Nesse caso é mais gritante ainda porque
6öFUDWHVDOÒPGHULGLFXODUL]DUDFLQWRVDPHQWHRRğFLRGHUDSVRGRGLDQ-
te de um rapsodo excelente, vencedor, Sócrates mesmo vestiu-se de
rapsodo e contra o ofício performou um elogio das habilidades daque-
le que foi capaz de ridicularizar sem ser percebido. Em meio a esses
mirabolantes disfarces, Sócrates, mascarado e difícil de ser controlado,
DğUPDTXHTXHPQÂRHQWHQGHRTXHÒGLWRQXQFDVHUÀXPERPUDSVR-
do. A comicidade da situação está em dizer a mesma coisa e reforçar a
mesma situação em meio a variações de focos e referências. Fecha-se
o cerco a Íon, quando Sócrates insistentemente apela para o entendi-
mento como base de tudo, e o rapsodo de agora não se vê capaz de
juntar a voz que fala com o saber que se elogia e se requer.

Novamente, o fazer bem, a excelência, passa por um encontro, uma


prova, uma disputa com Sócrates, que se colocou no centro dessa are-
na e dela não arreda o pé. Ao ‘dever saber’ de antes, temos a ignorân-
cia de agora. Entre um e outro extremo, a mudança de status entre
Íon e Sócrates. O rapsodo passa então a ouvir o que Sócrates assinala.

Assumindo essa centralidade, o ironista encerra o módulo com a


reafirmação da mesma disposição que abriu seu bloco de fala: re-
almente tudo isso é digno de ser invejado. Se acompanharmos os
momentos em que o ardor competitivo de Sócrates é enunciado e
o correlacionarmos com a performance de Sócrates diante de Íon,
podemos perceber que a repetição da referência a essa disposição
é um suporte para as viragens, as transformações que ocorrem no
transcurso da fala. Assim como as séries, as cadeias hierarquizado-
ras, as hipérboles, Sócrates utilizasse de repetições para organizar
a sua performance. E, como se pode bem observar pelo contexto
do desempenho, as séries e ordens e repetições não pertencem
somente a uma instância exclusiva do pensamento, mas intera-
gem com e se esclarecem a partir da atividade mesma de se pro-
por uma situação de contato. Tudo tem de adquirir sua eficácia in
situ, durante a ocasião mesma em que são efetivados os vínculos e
as transformações interindividuais.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 71


A tentativa do Ironista em descaracterizar seu oponente e, ao mesmo
tempo, de distinguir as performances, acaba por se reverter contra
seu próprio articulador. O desproporcional embate entre o calado Íon
e o falante Sócrates aponta para as razões daquilo que se quer negar
com tanta ênfase. Por que Sócrates empreende desmesurado esforço
HPVLPSOLğFDUEDQDOL]DUULGLFXODUL]DUWDORIâFLR"

Examinando com atenção os procedimentos de Sócrates notamos


que ele trabalha com: a- transitividade de focos e papéis, ocasionan-
do fusões, inversões, impessoalidades que manipulam os posiciona-
PHQWRVWDQWRGRHQXQFLDGRUTXDQWRGDDXGLÓQFLDEPRGLğFDÍÂRGRV
QH[RVGRVHQXQFLDGRVGRULWPRIUDVDORTXHĠH[LELOL]DDVIURQWHLUDV
entre tradições performativas cômicas e não cômicas, ao mesmo tem-
po em que possibilita a apropriação e presença de falas e vozes de
variados contextos; c- esquemas e apoios performativos, tais como
UHSHWLÍøHVHVHTđÓQFLDVGHPRGRDVHUYLUFRPRVXSRUWHVHH[SHFWD-
tivas para o performer e para a audiência d- contextura observacional
da audiência que atravessa o transcurso do desempenho.

Se continuarmos a examinar a performance socrática, veremos os compo-


nentes da descrição que o ironista empresta do ofício dos rapsodos – pre-
paração da performance e sua execução - também se aplicarem a Sócrates.
Pois o improviso de Sócrates diante de seu atônito interlocutor é consti-
tuindo de recursos previamente estudados – hipérboles, séries, repetições,
que são utilizados em performance. A performance de Sócrates diante de
Íon efetiva-se em função da interação do momento enunciativo com esse
conjunto de procedimentos de modelação de desempenho.

Acima de tudo, o diálogo socrático não se consuma ou conforma na


tematização em torno de um conhecimento ou assunto em si mes-
mos, independentes de seu contexto de execução. Sócrates age sobre
um auditório e, para tanto, na atualidade e premência dessa ação,
explicita os expedientes de seu ofício.

$R ğP R VDEHU HVVH H[HUFâFLR FRQVWDQWH GH DWHQÍÂR VREUH R TXH R
poeta diz, é um saber sobre a performance, sobre operacionalidade
dos procedimentos colocados em cena para produção de determina-
dos efeitos. É isso que Sócrates exige de seu interlocutor, agindo por
meio de tantas máscaras e improvisos. Se você quer ser um perfor-
mer consumado, excelente, basta compreender o que um performer
consumado faz. Se não, ocupe o lugar de platéia. Essa transmissão
de conhecimento durante a observação das práticas é válida tanto

72 Curso de Especialização em Teatro à Distância


para tradições performativas quanto para o círculo socrático. Mas
Sócrates esforça-se em distinguir as modalidades assemelhadas e
GHVTXDOLğFDURUDSVRGR$RğPGRPöGXORDLQYHMDPXGRXGHREMHWR
Desejável e digno de louvor e admiração é o que Sócrates faz.

Assim, temos:
5. o modelo socrático de excelência não se aplica em toda sua ex-
WHQVÂRDRRğFLRTXHWUDEDOKDFRPğVLFLGDGHV

6. a limitação do modelo socrático nos remete para particularida-


des insubstituíveis das performances de Sócrates e Íon, rela-
FLRQDGDVFRPVXDVHVSHFâğFDVSUÀWLFDVHKDELOLGDGHVHIHWLYDGDV
durante desempenhos.

7. PHVPR GLDQWH GHVVDV HVSHFLğFLGDGHV DV SHUIRUPDQFHV SDUWL-


lham de habilidades de interação tais que a limitação do mode-
lo socrático pode ser remetida até para o próprio desempenho
GRLURQLVWDIUHQWHDRXVRGHUHFXUVRVğJXUDWLYRVWDLVFRPRĠH-
xibilidade de foco e impessoalidade;

8. esse partilha consagra a amplitude e plasticidade da tradição


GDFXOWXUDSHUIRUPDWLYDKHOÓQLFDFRPRHQJOREDQWHHGHğQLGR-
ra até mesmo de performances antiperformativas. Em situação
performativa, tudo ganha a dimensão de evento. O que se diz
se esclarece em função do que está acontecendo. E o recurso
socrático a uma instância maior, outra que a atualidade da per-
formance, na verdade acaba por incrementar a performance
mesma de Sócrates e seus efeitos.

Logo, a argumentação, o exercício verbal-cognitivo é determinado


pelo horizonte do desempenho. Aquilo que é dito, aquilo que é feito,
as escolhas, os recursos, as habilidades – tudo se encaminha para
o embate entre os interlocutores. Mesmo que os pressupostos, pro-
gramas possam ser formulados e discutidos independentemente de
uma situação de contato e interação, é no embate, no diálogo, que
HVVHV SURFHGLPHQWRV GLVFXUVLYRV H LQWHOHFWXDLV JDQKDP VXD MXVWLğ-
cativa e seu esclarecimento em função da moldura representacional
que os reúne, distribui e escolhe. Daí a unilateralidade da premissa
dominante do programa socrático - o rapsodo não sabe o que faz e
naquilo que faz não há saber – pode ser mais bem contextualiza-
da. Assim como esse programa não se explica em si mesmo, mas se
aplica e pode ser discutido e analisado a partir da totalidade do di-

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 73


ÀORJRGRPHVPRPRGRDFDULFDWXUDGH…RQQHPUDWLğFDDSURSRVLÍÂR
socrática nem muito menos se remete ao mero confronto entre os
interlocutores. O que se torna necessário é não desperdiçar a opor-
WXQLGDGHQDTXDOVHDSOLFD¿WUDGLÍÂRXPUDGLFDODWRUHĠH[LYRTXHÒ
GLYHUVLğFDGRHSUREOHPDWL]DGRSHODVDSURSULDÍøHVHDWRVUHFHSWLYRV
dos membros do diálogo. Dessa forma, o rapsodo que quer continu-
ar a ‘embelezar’, chegando até aos pensamentos, e um ironista que
quer ridicularizar, mas que se veste com as vestes daquele a quem se
imputa descrédito, faculta-nos uma prodigiosa ocasião para ir além
da inalterabilidade de atividades cognitivas, e ver como a situação de
representação mesma não só altera pressuposições como também
VHGHğQHHPIXQÍÂRGHVVDVVLJQLğFDWLYDVPRGLğFDÍøHVHPWXGRTXH
vem à cena. Para além de nossa monomania racional, o diálogo Íon
coloca a nossa disposição um espetáculo onde várias habilidades são
H[SRVWDVHHQIDWL]DGDV$WöSLFDGDMXVWLğFDÍÂRUDFLRQDOGRUDSVRGR
dá lugar à amplitude dos atos performativos.

BIBLIOGRAFIA
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LORD, A . The Singer of Tales+DUYDUG8QLYHUVLW\3UHVV

MILLER, A. Plato’s Ion.%U\Q0DZU

MURRAY, P. Plato on Poetry&DPEULGJH8QLYHUVLW\3UHVV

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74 Curso de Especialização em Teatro à Distância


APROXIMAÇÕES
A UMA
DRAMATURGIA
FÍLMICA A
ESCRITO EM 1999. TEXTO
PARCIALMENTE PUBLICADO
COMO “DRAMATURGIA FÍLMICA”,
COMUNICAÇÃO APRESENTADA
PARTIR DO CASO
EISENSTEIN
À IV REUNIÃO CIENTÍFICA DA
ABRACE, 2007, BELO HORIZONTE.
AGORA PARTE INTEGRANTE DE
MEU LIVRO RUMO AO DRAMA, EM
PUBLICAÇÃO PELA EDITORA UNB.

10
10.1 TEATRO
CINEMATOGRÁFICO
Essa pureza recalcitrante cria
as ambivalentes definições de Em 1951, no ensaio” Teatro e cinema”, André Bazin, refutando
extra-cinematográfico, através D SXUH]D GD OLQJXDJHP FLQHPDWRJUÀILFD FLQHPD SXUR  H R ŃSUH-
das quais o monopólio técnico
de produção de filmes exclui conceito contra o teatro filmado” , propõe que se reconsidere “
uma dimensão composicional
mais integral. O argumento a história do cinema, não mais em função dos títulos e sim das
da pureza da linguagem cine- estruturas dramáticas do roteiro e da mise-en-scène”. 2&  O
matrográfica, ao fim, aplica-se
a questões não estéticas. Em sucesso das adaptações de obras teatrais para a tela realizadas
razão disso, a aproximação de
obras cinematrográficas a ou- por Laurence Olivier ( Hamlet 2UVRQ:HOOHV Macbeth-Reinado de
tras estéticas e processos cria-
tivos questiona este purismo e
sangue H:LOOLDQ:\OHU Pérfida HQWUHRXWURVH[SXQKDQÂRVöD
sua exclusividade narrativa. fragilidade do apagamento e ocultação do suporte teatral opera-
Para maior agilidade da leitura, do pela narrativa cinematográfica clássica. Exibia, passava para a
uso as notas referência biblio-
gráfica e siglas seguidas do nú- tela, a teatralidade do drama, de forma a evidenciar que “ o tema
mero da página. Refiro-me aqui da adaptação não é o da peça, é a própria peça em sua especifici-
ao livro O cinema (São Paulo,
Brasiliense, 1991) pela sigla OC.. GDGHFÓQLFDń 2& 

Essa interferência da teatralidade chama a atenção para os supor-


tes dramáticos da linguagem fílmica, para aquilo que não deve ser
exposto: a heterogeneidade do cinemático e sua dependência a
uma situação “extracinematográfica”. As convenções fílmicas são
desnudadas pela exorbitância da teatralidade. O drama é a caixa-
preta do filme.

No mesmo ensaio, ao procurar reorientar mais reflexivamente as


difíceis relações entre teatro e cinema para uma conexão mais
produtiva e reflexiva, Bazin formula três tempos-situações dessa
problemática história :

10.1.1 MOMENTO 1
Resumido na rubrica o “ teatro acode o cinema”, postula que a tra-
dição multissecular do texto teatral pode enriquecer intelectual-
mente os roteiristas. Provocativamente, ”quanto mais o cinema se
SURSRUSRUVHUğHODRWH[WRH¿VVXDVH[LJÓQFLDVWHDWUDLVPDLVQH-
FHVVDULDPHQWHDSURIXQGDVXDOLQJXDJHPń 2& 

76 Curso de Especialização em Teatro à Distância


10.1.2 MOMENTO 2
Ssob a rubrica é “O cinema salvará o teatro”, Bazin argumenta que,
por meio da exploração da teatralidade operada pelo cinema em es-
calas massivas, renova-se a concepção de mise-en-scène teatral. O
teatro vê-se confrontado com suas origens populares, repensando o
divórcio entre palco e público;

10.1.3 MOMENTO 3
$UXEULFDŃGRWHDWURğOPDGRDRWHDWURFLQHPDWRJUÀğFRńğQDOPHQWH
aparece como uma síntese onde a cinemática correlacionada a uma
teatralidade proporciona a emergência de uma performance desse
tempo, uma mise-en-scène contemporânea. Mais que mídias diferen-
tes, Bazin aponta para uma forma de espetáculo integral que rom-
pa com a oposição entre teatro e cinema. Modernidade e tradição se
conjugam nessa mise-en-scène contemporânea na qual o dispositivo
fílmico é modelado por suportes teatrais.

0DVRTXHÒHVVHWHDWURFLQHPDWRJUÀğFR"$FRPSRQHQWHFÓQLFDGHV-
VHWHDWURFLQHPDWRJUÀğFRUHVWULQJHVHDRTXH%D]LQFKDPDGHŃYLU-
WXDOLGDGHVHVWUXWXUDV FÓQLFDVń 2&   2 HVSHWÀFXOR SRUÒP Ò GD
competência da componente fílmica. O foco de análise de Bazin é o
TXHVHSRGHFKDPDUŁğOPHGHDUWHł2FLQHPDFRPRDUWHÒGLYLVDGRQD Concepção monumentalizan-
incorporação de tradições representacionais históricas como pintura te do teatro que, a partir de
leituras da Poética, de Aristó-
e teatro. É PARA CONTRIBUIR COM O TEXTO DO FILME QUE A INCOR- teles, defende a subordinação
do espetáculo ao texto, como
PORAÇÃO DA TRADIÇÃO TEATRAL É REIVINDICADA. O TEATRO CINE- ilustração do texto. A partir
MATOGRÁFICO DE BAZIN É UM CINEMA CUJO ROTEIRO É DIGNIFICADO das obras de Corneille e Racine
até o Naturalismo,tal concep-
COM “ VIRTUALIDADES CÊNICAS”. ção determinou um estilo de
interpretar e construir obras,
formando um público atento
à convencionalidade de uma
Correlativamente, o teatro é visto pelas lentes de Bazin como teatro representação teatral grandi-
literário, no qual há a primazia do texto sobre o espetáculo. O idealis- loqüente e verborrágica. Virou
alvo critico básico do contex-
mo estético desta postura, contrária mesmo à renovação contempo- to reativo das vanguardas te-
atrais. Para uma apresentação
rânea da linguagem para a cena, deixa em aberto a concretização do crítica de seus procedimentos
WHDWURFLQHPDWRJUÀğFRQRTXDODFRPSRQHQWHFÓQLFDÒXPDHYLGÓQ- consulte-se meu livro Ima-
ginação Dramática (Brasília,
cia não discutida. to&imagem,1998:160-188).

Mesmo assim, as relações entre texto, teatro e cinema comparecem


como elementos para uma futura coordenação mais esclarecedora.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 77


10.2 O CASO EISENSTEIN
O caso Eisenstein foi sugerido
por uma releitura da disser- Coube a um homem de teatro e posteriormente cineasta e teórico do ci-
tação de mestrado de Maria
Maia (UnB 1998) “A escritura nema interrogar mais detidamente estes elementos. As difíceis relações
fílmica dramaturgia do enredo
e dramaturgia da forma”. Se- HQWUHFLQHPDHWHDWURRFXSDUDPQÂRVöDDUWHFRPRWDPEÒPDELRJUDğD
gundo ela, retomando como
modelo as mudanças de foco
de S.Eisenstein. Antes de se notabilizar como cineasta, não só foi aluno de
nos ensaios de Eisenstein, o XPGRVUHQRYDGRUHVGDVDUWHVGHFHQD 90H\HUKROG FRPRWDPEÒPGL-
filme nasce do conflito entre
os elementos constitutivos rigiu e encenou peças experimentais. Um detido exame de sua passagem
plano/montagem e argumen-
to ou enredo. Uma linguagem GDFHQDSDUDDWHODHTXDQGRGDHPHUJÓQFLDGRğOPHVRQRURXPŃUHWRU-
específica interagindo com no” ao drama, pode nos auxiliar na superação do idealismo estético que
uma narratividade específica
marcam a textualidade fílmica. HORJLDDFRPSRQHQWHWHDWUDOGDDWLYLGDGHFLQHPDWRJUÀğFDPDVFRQWXGR
Em minhas considerações, po-
rém, ressalto um fator “extra- não efetivamente determina o contexto de produção dessa componente.
cinematográfico” mais efetivo,
pouco comentado e anterior à
narratividade: a dramatização, O teatro para Eisenstein surge no contexto de renovação da lingua-
concentrando-me em proble-
mas de composição ao invés gem para a cena teatral que a tradição antinaturalista (e antimiméti-
da analogia língua/filme.
FD PRGHUQDHPSUHHQGHX2GHEDWHHQWUH&RQVWDQWLQ6WDQLVODYVNLH
VHXDOXQR9HVHYRORG0H\HUKROGVLWXDQD5ĎVVLDHVWDWUDGLÍÂRGHUXS-
tura. Eles divergiam, principalmente, quanto à preparação de atores.
V. primeira parte deste livro. 6WDQLVODYVNLUHDJLQGRFRQWUDDIDOWDGHSURğVVLRQDOLVPRH FRQV FLÓQ-
Com a divulgação de docu- cia dos atores de seu tempo, procurou desenvolver um conjunto de
mentos, sabemos que a ques-
tão dos atos físicos em Sta- princípios para a atuação, através do qual os pensamentos e as emo-
nislavski fora ampliada. No
entanto, a questão decisiva ÍøHVGRLQWÒUSUHWHDGTXLULDPXPDFRHUÓQFLDğHO¿LQGLYLGXDOLGDGHGH
ainda reside no ponto de par- uma personagem criado por um autor. Centrado na análise do texto
tida e na ênfase de orientação
de um processo criativo. e no isolamento da personagem frente ao público - reação contra às
concessões do teatro comercial das companhias- , este conjunto de
princípios parecia, em um primeiro momento, dar menor atenção à
exteriorização da ações. A preparação intelectual do ator e a interna-
lização de uma imagem textual eram mais focalizados .

0H\HUKROG, diferentemente, orienta-se para pensar e produzir ações


Sigo aqui em profusão o livro físicas. Ele parte das ações físicas para estruturar a representação.
de Alma La e Mel Gordona
Meyerhold, Eisenstein and Bio-
Esta inversão é uma verdadeira subversão não só na preparação de
mechanics (Londres, Mcfarland atores como na construção do espetáculo. Coloca-se em evidência o
Company, 1998) não só pela
riqueza de informações,como contexto realizacional da performance cênica. Ao invés de o espe-
também pelos textos sobre a
biomecânica traduzidos do táculo ser um veículo para comunicar idéias do autor, a exposição é
original russo, texto de discí- um acontecimento físico sujeito à materialidade de sua efetivação.
pulos de Meyerhold e textos
pouco conhecidos da obra de A audiência é um fato físico concreto inerente a essa exposição. A
Eisenstein. Dou-lhe a sigla
MEB. observância de um espetáculo é a interação com os movimentos no
espaço realizados por corpos expressivos.

78 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Dessa maneira, é preciso reduzir a distância entre palco e platéia,
dinamizar formas de espaço cênico (espaços simultâneos e focos
PĎOWLSORV HH[SORUDUDWULGLPHQVLRQDOLGDGHGRFRUSRKXPDQRHP
VLWXDÍÂRGHUHSUHVHQWDÍÂR 0(% 

0H\HUKROGLQWHJURXWRGDVHVVDVDWLYLGDGHVHPXPHVWLORLQWHUSUHWD-
tivo chamado ‘Biomecânica’. A preparação física do ator, através do
conhecimento do corpo e da exploração de suas possibilidades ex-
pressivas, determinou a perda de uma absoluta autoimagem do ator Atrações no sentido de efeito
sobre a platéia através do mo-
FRPR KRUL]RQWH GH FRHVÂR GD DWXDÍÂR 0(%   $R LQYÒV GH LQWHU- vimento físico de espetáculos
tais como circo, boxe, music
nalizar essa imagem, ele deve aprender tornar factíveis movimentos hall, acrobacia, teatro chinês,
expressivos. Agora ele se confronta com a continuidade material de paradas militares foi o que
Meyerhold pensou e Eisens-
um auditório. Dessa maneira, todas suas exteriorizações devem pres- tein aplicou ao cinema em seu
famoso artigo “Montagem de
VXSRUHVVDFRQWLQJÓQFLDUHFHSWLYD2FRUSRLQWHLUR 0(% HPVXD atrações” de 1924.
muscular presença é observado. Por isso, é preciso que o movimento
seja expressivo, com uma precisão capaz de predizer e gerar audiên-
cia, atrações.

Aqui está o ponto-origem das produções fílmicas e teóricas de Ei-


senstein: uma dramaturgia que singulariza a experiência de obser-
vância produzida por procedimentos que exploram essa experiência.
A representação não é a atualização de uma idéia sem o contexto
material de sua realização. Na própria representação este contexto é
explorado. O que é mostrado não é a reprodução de uma realidade,
mas a exibição de uma analítica tempo-espacial, que torna factível a
compreensão do que se observa.

Ao basear a representação em aspectos físicizados e materiais a Bio-


mecânica forneceu para Eisenstein o embasamento de um método
HVSHFâğFRGHSURGX]LULPDJHQVTXHDJHPVREUHRHVSHFWDGRU$RU-
ganização do movimento - explorada no rendimento de seu efeito
- exibida em cena fornece os parâmetros pelos quais o observador
coopera em sua observância do o espetáculo.

Dessa forma, o que antes pareceria um contra-senso, em um teatro


onde só se comunicam idéias, um teatro de cabeças falantes, agora Movimento expressivo é um
fundamenta o espetáculo: é precisamente o movimento expressivo, conceito-síntese da Biome-
cânica. A decomposição dos
construído sobre um fundamento orgânico correto que é capaz de movimentos e sua conexão
entre eles como forma de agir
orientar a recepção. O espectador é atraído pela forma do movimento sobre o espectador amplifica
executado diante dele. Há uma complexa mímesis na qual os mo- em termos corporais o que Ei-
senstein pensa sobre a mon-
vimentos expressivos exibidos através do apelo muscular dos movi- tagem.

PHQWRVGRDWRUVÂRUHHODERUDGRVSHODDXGLÓQFLD 0(% 

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 79


Com o cinema, o forte contexto antimimético vanguardista da Biome-
cânica e o controle da representação visual poderiam melhor ser efeti-
YDGRV&LQHPDÒDQWHVGHWXGRSDUD(LVHQVWHLQXPDğFÍÂRH[SORUDWöULD
que, por meio da integração das contingências espaço-temporais, pos-
VLELOLWDRHVWXGRHDğJXUDÍÂRGHLPDJHQVTXHRWHDWUROLPLWDYD

De A forma do filme ( Rio de $ FRQWUDSRVLÍÂR HQWUH R WHDWUDO H R FLQHPDWRJUÀğFR VH WRUQD PDLV
Janeiro, Zahar, 1990). Sigla FF
visível a partir do momento em que a realidade representada não se
Basta ver que em 1939 sobre afasta da faticidade material da realidade não representada. Este é o
esta época Eisenstein afirma” eu espírito de seu ensaio “Do teatro ao cinema”, uma variação do Mito
estava crescendo, saindo do te-
atro para o cinema”(FF 168).Em ao logos. O título reivindica um trajeto que assinala certa ultrapassa-
1928 mesmo ele proclama que
“estou convencido que o cinema gem , uma medida valoração evolutiva, uma defasagem entre início
é o nível de hoje do teatro. De HğPGHSHUFXUVR
que o teatro em sua forma mais
antiga morreu e continua a exis-
tir apenas por inércia”(FF 33)
No teatro, “a impossibilidade da mise-en-scène se desenrolar pela pla-
téia, fundido palco e platéia em um padrão em desenvolvimento”(FF
 VXDJHRPHWULDFRQYHQFLRQDOGHMXVWDSRUPRYLPHQWRVHPFRQWL-
JXLGDGHUHGXQGDUDPHPXPDKLSHUWURğDGDUHSUHVHQWDÍÂR+ÀXPD
impossibilidade física do teatro em coordenar os movimentos disjun-
tivos que se mostrem em uma unidade que supere seu localismo. As
tentativas plásticas (eliminação de painéis pintados, utilização de
objetos cênicos, movimentos corporais, música, superposição de ima-
JHQVSURMHWDGDVHDWRUHV GHVXSHUDUHVVDOLPLWDÍÂRGDPDWHULDOLGD-
GH OLPLWDÍÂRIUDJUDQWHSHODLPDJHPFLQHPDWRJUÀğFD GHYROYHPWDO
LPSRVVLELOLGDGHUHSUHVHQWDFLRQDO$OLQHDULGDGHVHTđHQFLDOGRTXHVH
expõe em cena não tem o aprofundamento de detalhe e estrutura
que o plano e suas transições fílmicos facultam.

Então é preciso ao invés de uma mise-en- scène, uma mise-en-cadre,


isto é, “composição pictórica de cadres SODQRV PXWXDPHQWHGHSHQ-
GHQWHVQDVHTđÓQFLDGDPRQWDJHP )) ń

O convencionalismo do teatro dominante, avesso aos requisitos téc-


QLFRVGDPDWHULDOLGDGHFÓQLFDHODERUDXPDUHDOLGDGHDUWLğFLRVDTXH
é refutada pela montagem fílmica. A montagem possibilita o registro
e exposição de escalas apropriadas para o que é enfatizado, tornando
a descrição não proporcional de um movimento um evento organi-
camente efetivo. Dessa maneira ao “ desbastar pedaços da realidade
FRP R PDFKDGR GD OHQWH ))  ń R FLQHPD RSHUD XPD LQWHUYHQÍÂR
que explicita seu modus operandiGHPRQVWUDHPRVWUDDUHğJXUDÍÂR
dos materiais que exibe.

80 Curso de Especialização em Teatro à Distância


As imagens em movimentos do cinema, como uma Biomecânica fíl-
PLFDSURYLGHQFLDPXPDFRPSRVLÍÂR HVTXHPDJUÀğFR TXHRULHQWD
DUHFHSÍÂR HPRÍøHVUD]øHVGRHVSHFWDGRU 4XDQWRPDLVKRXYHUXP
rigoroso sistema de relações na composição maior será o impacto so-
bre a recepção.

v QR HQVDLR Ń'UDPDWXUJLD GD IRUPD GR ğOPHń   TXH R SRVLFLR-
namento de Eisenstein quanto à superação do teatral encontra-se
fundamentada. Ele já havia realizado duas grandes obras cinemato-
JUÀğFDV^O encouraçado Potemkin  HOutubro  `TXHVHUYL-
UDP FRPR H[SHULPHQWRV FRQğUPDGRUHV GDV SRVWXUDV TXH GHIHQGLD
O título mesmo postula não uma dramaturgia relacionada com uma
situação de observância teatral e sua concretização tempo-espacial,
mas a incidência de atenção sobre obtenção de um espetáculo visual-
musical. A concretude material dentro do plano em suas disposições
e reapropriações pela montagem geram orientações associativas
através das quais se pode esperar encontrar ”uma dramaturgia da
IRUPDYLVXDOGRğOPHWÂRUHJXODGDHSUHFLVDTXDQGRDH[LVWHQWHGUD-
PDWXUJLDGRDUJXPHQWRGRğOPHń )) $VLQWD[HYLVXDOSUHYDOHFH
sobre a semântica . A dramaturgia aqui é o planejamento do modo
HğFLHQWH GH FRPELQDU GLIHUHQWHV H[WHQVøHV GH SODQRV H DV WHQVøHV
GHFRUUHQWHVFRPRIRUPDGHLPSDFWDUDDXGLÓQFLDID]HQGRDLGHQWLğ-
FDURVFRQĠLWRVGRVPDWHULDLVH[SRVWRVFRPRDWXDOL]DÍøHVDYDOLDWLYDV
GRVFRQĠLWRVTXHVÂRFRQFHSWXDOL]DGRVQRUHIHUHQWHGRVPDWHULDLV

O processo mecânico e técnico da montagem se transforma em princípio Essa centralidade da monta-


gem, explicitando sua mo-
construtivo. Planos independentes e até opostos colidem e, quando pre- tivação reativa à práticas re-
presentacionais miméticas,
viamente arranjados e planejados, destinam seu confronto para a garan- abunda no exercício especula-
WLDGDKRPRJHQHLGDGHGRUHSUHVHQWDGR3RULVVRSDUDPDLRUHğFLÓQFLD tivo de diferenciar modalida-
des de montagem, como se vê
do processo de montagem, é preciso uma metodologia da forma despro- no artigo de 1929 ”Métodos
de montagem ”(FF 77-84),
vida de referência ao conteúdo ou enredo. Mas a “dramaturgia” da forma no qual temos a definição
GRğOPHFRQWLQXDDSDJDUGLYLGHQGRVSDUDIDWRUHVWHDWUDLV de montagens métrica, rítmi-
ca, tonal, atonal e intelectual.
Tudo agora é montagem, mas
em diferentes níveis qualitati-
Eisenstein foi perceber, depois, que somente o design GRğOPHQÂR vos de sua utilização.
HUDVXğFLHQWHSDUDXPDH[SHULÓQFLDFLQHPDWRJUÀğFDFRPSOHWD$WH-
oria do cinema intelectual, que transforma conceito abstrato em for-
ma visível na tela revelava haver uma descontinuidade entre idéia e
YLVXDOLGDGH$VXEVWLWXLÍÂRH[DXVWLYDGRFRQWHĎGR )) H[LELDVHX
VXFHVVRHPXPDHğFLÓQFLDUHGXWRUD$YLVXDOLGDGHQÂRÒXPDHYLGÓQ-
cia, mas o registro de uma situação observacional. As imagens fazem
ver quem as observa. Surge então a questão de se “retratar uma ati-
WXGHHPUHODÍÂR¿FRLVDUHWUDWDGDń )) 

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 81


Tal ”viragem” tornou-se mais palpável inicialmente quando de suas
DWLYLGDGHVGLGÀWLFDVQR,QVWLWXWR(VWDWDOGH&LQHPDWRJUDğD  (P
XPFXUVRQHVVHPHVPRDQR(LVHQVWHLQDğUPDTXHńFRQVWUXLUDFLQHPD-
WRJUDğDDSDUWLUGDLGÒLDGHFLQHPDWRJUDğDHGHSULQFâSLRVDEVWUDWRVÒ
bárbaro e estúpido. Apenas através da comparação crítica com as for-
mas primitivas básicas do espetáculo é possível dominar criticamente
DPHWRGRORJLDHVSHFâğFDGRFLQHPDń )) $LQGDSHQVDQGRHPWHU-
PRVGHXPDGLIHUHQÍDWÒFQLFD ŁIRUPDVSULPLWLYDVł KHVLWDÍÂRTXHSR-
siciona a perspectiva e a valoração do cineasta - Eisenstein reinsere o
estudo do teatro como algo inseparável do estudo do cinema.

(VWDUHLQVHUÍÂRGRŁWHDWURłDOLQKDVHFRPDHVFULWXUDFLQHPDWRJUÀğFD
O elemento não fílmico é requisitado para a expansão do fílmico. A
OXWDSHODDOWDTXDOLGDGHGDFXOWXUDGRğOPHSDVVDSHODTXHVWÂROLWHUÀ-
HERINGTON 1985 ULDGDHVFULWXUDFLQHPDWRJUÀğFDDRVHLQFRUSRUDUHVXSHUDUDWUDGLÍÂR
de textualidade artística existente. O cinema transparece como uma
máquina transformadora de tradições artísticas, como a tragédia
grega o fora 2500 anos atrás.

Em 1926 Eisenstein, em um Eisenstein vê nessa mudança um desvio e uma correção de percurso


manifesto conjunto com V.I
Pudovkin e G.V.Alexandrov a no qual a forma não é negada, e sim realçada com o aprofundamento
respeito do futuro do cinema
sonoro, argumentava que a e ampliação das formulações temáticas e ideológicas que as “ques-
utilização do som é uma faca
de dois gumes pois poderia,
WøHVGHFRQWHĎGRńWUD]HPDRFLQHPD )) $JRUDRRUJÁQLFRHR
ao invés de melhoria na re- patético interligados podem fornecer a possibilidade da “total apre-
presentação, causar inércia
composicional e recepcional. ensão de todo o mundo interior do homem, da reprodução total do
Advoga a não sincronização
do som e das imagens. Claro PXQGRH[WHULRU )) ń
se vê nessa recusa o não em-
parelhamento do cinemático
com o dramático em função $PXGDQÍDVHLQWHQVLğFDDLQGDPDLVFRPRDGYHQWRGRFLQHPDVR-
da palavra e suas articulações
em cena. Pudovkin (Argumen- noro. Eisenstein, que havia sido pioneiro no cinema mudo, hesitou
to e realização, Lisboa, Editora GLDQWHGDQRYLGDGH6HXSULPHLURğOPHVRQRUR$OH[DQGUH1LHYVNLÒ
Arcadia 1961- sigla AR) temia
que o filme sonoro fosse uma de 1938. Sua dúvida residia em como coordenar som e imagem pro-
variedade fotográfica de peças
teatrais e bradava que nunca dutivamente. Perguntava-se se nessa modalidade de composição:
deveria ”mostrar o homem e
reproduzir ao mesmo tempo
ŃRTXHYRFÓYÓTXDQWRHVWÀRXYLQGRQÂRPHUHFHDWHQÍÂR"ń )) 
sua fala exatamente sincro- - preocupação inerente a quem tinha métodos estritamente formais,
nizada com o mover de seus
lábios”(AR 196). 5 TXDQGRWRGDH[SOLFDÍÂRWHPXPDMXVWLğFDWLYDWÒFQLFD

A sincronização e igualdade rítmica entre som e movimento repre-


sentados se oferecem não só como problema compositivo-técnico,
como também aproximação da atividade cognitiva da obra. Com a
complexidade de níveis da realização fílmica - agora não é só ver, e
sim avaliar vendo e ouvindo avaliações - mobiliza-se a inteligibilidade
GHVVDFRPSOH[DHVWUDWLğFDÍÂR2inter-relacionamento criativo das

82 Curso de Especialização em Teatro à Distância


bandas sonoras e visuais é a proposição de sua própria compreen-
VÂR6HŃQÂRÒVXğFLHQWHDSHQDVYHUalgo tem de acontecer com a
representação, algo mais tem de ser feito com ela, antes que deixe de
Conf. O sentido do filme (Rio
VHUSHUFHELGDFRPRDSHQDVXPDVLPSOHVğJXUDJHRPÒWULFD 6) ń de Janeiro, Zahar , 1990) Si-
gla SF.
coloca-se em questão a imagem total da obra e sua receptibilidade. É
SUHFLVRTXHńRğOPHVHUHYHOHFRPRFRQVWUXÍÂRGLDQWHGRHVSHFWDGRU
6) 

É o que acontece não por uma justaposição mecânica de níveis, mas


quando tudo é plenamente desenvolvido e resolvido em um ”avanço
simultâneo de uma série múltiplas de linhas, cada qual mantendo um
curso de composição independente e cada qual contribuindo para o
FXUVRGHFRPSRVLÍÂRGDVHTđÓQFLD 6) ń(VVHPRYLPHQWRHPGL-
reção a uma totalidade integrada traça a trajetória de movimentos
futuros, gerando a atratividade do espectador, o qual ”experimenta o
SURFHVVRGLQÁPLFRGRVXUJLPHQWRHUHXQLÂRGDLPDJHP 6) ń

Ao invés de ser oferecido ao espectador o que Eisenstein chama de Nesse sentido também o fra-
casso, fracasso formal, de
”distorção de nossa época”, - possibilidades de justaposição e não D.W.Griffth em Intolerance é
analisado por Eisenstein, em
análise do material justaposto, é imprescindível “a necessidade da virtude de o cineata ameri-
exposição coerente e orgânica do tema, do material, da trama, da cano ter justaposto materiais
sem integração dramática já
DÍÂRGRPRYLPHQWRLQWHUQRGDVHTđÓQFLDFLQHPDWRJUÀğFDHGHVXD no intraplano, não levando
em conta o conteúdo dos
DÍÂRGUDPÀWLFDFRPRXPWRGR 6) ń fragmentos, a natureza real
dos fragmentos (FF 203).
Ironicamente, as realizações
Contudo, a correção de percurso é transformada em nova recusa. Já de Griffth haviam desco-
nectado o cinema do teatro,
em 1939 esta síntese e totalização do cinema é contraposta às limi- produzindo uma tensão e
vigor dramáticos fílmicos, ao
tações das artes como a pintura, escultura, literatura, música e, claro, movimentar a câmera , antes
teatro. Sobre esta última, como não poderia deixar de ser, Eisenstein fixa, sugerindo a visão do es-
pectador em uma platéia, e ao
é mais incisivo. Após se congratular com a riqueza da representação utilizar mais integralmente a
montagem paralela, interrom-
DXGLRYLVXDOTXHRFLQHPDSURSRUFLRQDDJRUDPDLVHğFD]DWUDYÒVGD pendo o registro ininterrupto
QDUUDWLYDHOHDğUPDTXHHVVDULTXH]DQÂRÒSDUDRWHDWURńHVWHÒXP da cena antes do começo de
outra cena.
nível acima de suas possibilidades. E quando quer superar os limites
dessas possibilidades, não menos do que a literatura, tem de pagar o
preço de suas qualidades naturais e realistas.... Que entulho de anti-
realismo o teatro inevitavelmente despeja no momento em que se
HVWDEHOHFHPHWDVŁVLQWÒWLFDVł 6) ń2WHDWURSDUDDPSOLDUVXDUH-
presentação, desmaterializa-se, explicitando nesse movimento seu
próprio suporte físico negado. O anti-realismo, pensado como expan-
são da linguagem de cena, converte-se na redução de sua atividade
representacional.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 83


Note-se que a síntese das artes Esta certeira crítica de Eisenstein à parte do vanguardismo teatral
enfatiza o projeto concorren- que ele próprio recusou, porém, é manobrada para notabilização da
cial do cinema de Eisenstein
com o drama, posto que a OLQJXDJHP FLQHPDWRJUÀğFD 6RPHQWH FRP R FLQHPD Ńpela primeira
prática da tragédia grega se
tornou ideal estético para o vez alcançamos uma arte genuinamente sintética- uma arte de sín-
Ocidente.
tese orgânica em sua própria essência, não um concerto de artes
Nessa mudança, recrudes- coexistentes, contíguas, ‘ligadas’, mas na realidade independentes
ce a obliteração do teatro.
A dramaturgia integral do   'HIRUPDTXHRPÒWRGRGRFLQHPDTXDQGRWRWDOPHQWHFRPSUH-
filme,prpugnada por Eisenstein
vai buscar suas comprovações endido nos capacita a revelar uma compreensão do método da arte
em romancistas( Dickens, Tós- HPJHUDO 6) ń2FLQHPDVHFRQYHUWHHPXPDSRÒWLFDGDUHSUH-
toi), pintores(El greco) e até em
poetas ( Pukhin), mas nenhum sentação. Seu realizar é a visibilidade do modo como se constituem
autor teatral é utilizado como
modelo. A ruptura com o teatro SURFHGLPHQWRVLQWHJUDGRVGHğFFLRQDOL]DÍÂRGDUHDOLGDGH2FLQHPD
literário duplica-se na ruptura exibe a formatividade do mundo. A liberação do teatral, às expensas
com a cena teatral. Pelo menos
na defesa da linguagem cinema- da narrativa, transforma as capacidades técnicas e representacionais
tográfica.
do cinema em uma arte total.

10.3 UMA DRAMATURGIA


FÍLMICA POSSÍVEL
O percurso rico e hesitante de Eisenstein diante da tradição dramáti-
ca nos situa diante dos problemas compositivos da atividade audio-
visual cinemática. O domínio e exploração da projeção de imagens
apelam para a correlação dessa atividade de manipular o que mos-
Francesco Casetti em Inside trado em um espetáculo com problemas de dramatização. O diferen-
the Gaze (Indiana Universi-
ty Press,1998- original é de cial compreensivo e formativo da totalidade da imagem da obra cine-
1988)procura investigar o
modo como o filme designa PDWRJUÀğFDVHID]¿VH[SHQVDVGHSURFHGLPHQWRVGHGHWHUPLQDÍÂR
seu espectador estruturando do modo como o visto é integrado a uma apropriação recepcional.
sua presença(p 15).Mas o âm-
bito de sua criteriosa pesquisa A descontinuidade dos materiais expostos submete-se à continuida-
está na enunciação fílmica e
a possibilidade de formalizar de de um projeto interacional executado. A presença irremovível de
essa estruturação da audiên- uma audiência pagante e determinada a avaliar e entender o que
cia, e não na efetividade com-
posicional da realização fílmi- vê direciona a representação a singularizar sua forma na medida
ca. O dramático ainda é uma
analogia.. em que promove a situação interpretativa do espectador. A duração
do visível se dá proporcionalmente à orientação da audiência. A re-
SUHVHQWDÍÂRFLQHPDWRJUÀğFDVHYÓOLPLWDGDDFRQVLGHUDUHQWUHVHXV
problemas composicionais o horizonte integrante e completador da
exposição audiovisual

84 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Marc Ferro em Cinéma et his-
2 FRQĠLWR HQWUH R GLVSRVLWLYR IâOPLFR H D LQWHJUDWLYLGDGH GUDPÀWLFD toire (Paris, Editions Denoël/
Gothier, 1977), propondo
tem sua História. 3DUD-HDQ0LWU\SRUÒPPDLVGHWLGDPHQWHTXH%D- uma leitura histórica do filme
zin, antes da dissociaçãoRğOPHLQVWLWXLXVHFRPRHVSHWÀFXORńLPL- e uma leitura cinematográfica
da História, chama as imagens
WDQGRDFHQDWHQWDQGRVHWRUQDUHVSHWÀFXOR $3& ń do filme de imagem-objeto
cujas significações não são
só cinematográficas. Em meu
O ideal da concentração dramática, fornecendo os padrões de dispo- caso, mais modesto, opto por
uma outra historicidade, a de
VLÍÂRGRTXHVHYÓWDQWRGDVğJXUDVUHSUHVHQWDGDTXDQWRGRPRGRGH uma imaginação dramática de
longa duração concretizada
H[LELÍÂRSDUHFLDQRUPDVDVHUHPVHJXLGDVVHQGRRğOPHRUHJLVWUR nos modos como o espetáculo
é composto e realizado. Conf.
GRHVSHWÀFXOR $3&  meu livro Imaginação dramá-
tica op. cit.

$SöVDVUHDOL]DÍøHVGH*ULIIWKFRPRIRLYLVWRDĠH[LELOLGDGHGDUHSUH- Sigo aqui as colocações de Mitry


em The Aesthetics and Psycho-
sentação fílmica chocou-se com a rigidez da concentração dramática logy of the Cinema, Indiana
e suas convenções tempo-espaciais. University Press, 1997.(O origi-
nal é de 1963) Sigla é APC.5

'HDFRUGRFRP0LWU\IRL7KRPDV,QFHTXHPPDLVVLVWHPDWLFDPHQWH
resolveu essa liberação da concentração dramática ao dissociar te-
atro e dramaticidade, buscando no drama não mais sua estrutura
teatral e observacional transposta para a tela, e sim uma estrutura
GUDPÀWLFDFLQHPÀWLFD $3& ,QFHUHMHLWDDDGHTXDÍÂRGRSDOFR¿
tela mas generaliza a dinâmica representacional dramática como co-
erência da inteligibilidade emocional do espectador. A concentração
dramática é o paradigma para o controle do que é mostrado na tela.

Tal transcendência operacional da teatralidade frente ao teatro se dá


ao se considerar a construtividade do drama como um conjunto de
procedimentos de singularização tanto do que representam como da
orientação desta representação para uma audiência.

$ SRVLWLYD DUWLğFLDOLGDGH GR GUDPD QR VHQWLGR GH DUWLIâFLR DWUDYÒV


da qual a sucessão e simultaneidade do que é mostrado se faz em
função de escolhidos eventos dispostos em uma pré-ordenada con-
clusão, como no caso da tragédia, faz com que tudo contribua con-
juntamente para a revelação tanto do modo de expressão quanto
GRTXHÒUHSUHVHQWDGR $3& 'UDPDWL]DUGHYHVHUXPDLQVWÁQFLD
antepredicativa da construção fílmica onde se pensa e se resolve a
estruturação de eventos inteligíveis e receptíveis.

Ouvir e ver não se reduzem a uma técnica audiovisual. Ouvir e ver


LPDJHQVHVRQVÒFRPSUHHQGHUVXDğQLWDDUWLFXODÍÂRHPXPDHVWUX-
tura que torne possível suas distinções relacionadas à modalidades
diversas e mutuamente implicadas de compreender um espetáculo
em sua totalidade. De forma que a dessincronização da palavra e da

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 85


imagem é transformada em ponto de partida para a dramatização
TXHSURFXUDVLJQLğFDULPDJHQVFRPSDODYUDHSDODYUDVFRPLPDJHQV
DSDUWLUGDGHğQLÍÂRGRWHPSRVXFHVVÂRHGXUDÍÂRHLQWHUHVVHGHVXD
H[SRVLÍÂR$VVLPŃDLPDJHPGRğOPHDWXDQRFLQHPDH[DWDPHQWHD
PHVPDIXQÍÂRGDVSDODYUDVQRWHDWUR8PğOPHSRGHVHUFRQVLGHUDGR
como uma peça, seu ‘conteúdo’ pode ser baseado na concentração de
diferentes tempos e espaços. De outro lado, o papel da imagem no
ğOPHÒVLPLODUDRGRSDSHOGDVSDODYUDVQDSHÍD $3& ń

A passagem do teatro para o dramático, advista como instituidora


GDOLQJXDJHPFLQHPDWRJUÀğFDÒDVROXÍÂRSURSRVWDSRU0LWU\SDUD
VHWRUQDULQWHOLJâYHORğOPHWDPEÒPSDUDRUHDOL]DGRU2ğOPHFRPR
peça é mais que uma analogia. Expõe determinadas atividades rela-
cionadas com à composição do espetáculo e sua inteligibilidade. Uma
dramaturgia fílmica toma do dramático o princípio estético para ex-
SORUDURWHPSRFLQHPDWRJUÀğFRSDUDDEHUWXUDGHSRVVLELOLGDGHVUH-
presentacionais ‘roteirizáveis’. O dramático se apresenta como modo
transformar referências em orientações de um espetáculo, estabele-
cendo parâmetros de compreensão do que se representa ao levar em
conta os efeitos da extensão e duração do que se exibe.

Dessa maneira, a visualidade é reestruturada como campo de emer-


JÓQFLD GH XPD VLWXDÍÂR LQWHUSUHWDWLYD EHP HVSHFLğFDGD 2 YHU Ò
integrado a um saber que se confronta com a marcação dos even-
tos representados. A focalização dramática, emoldurando a tela, vai
constituindo uma experiência de interpretar essa marcação.

Op cit. Na verdade, a concep- Seguindo Pudovkin, o cálculo e o conteúdo de cada plano e a ordena-
ção de roteiro de Pudovkin
é extensão da montagem. ÍÂRGDVXFHVVÂRHULWPRGDVVHTđÓQFLDVDSDUWLUGRHVWXGRSUHOLPLQDU
Segundo ele, “o argumento
divide-se em seqüências, estas e detalhado do argumento com objetivo de mostrar que deve ser vis-
em cenas, e as cenas em to- to parece caracterizar é o que nos dá a totalidade fílmica.
madas separadas (planos) que
compreendem os pedaços iso-
lados que ligados firmemente
formarão o filme”(AR 106) Segmentação e busca de totalização parecem ser dois procedimentos
sua fala exatamente sincro- interligados na composição fílmica. A aplicação de uma dramaturgia
nizada com o mover de seus
lábios”(AR 196). 5 ao roteiro de representação do que deve ser apresentado em espe-
WÀFXORFLQHPDWRJUÀğFRHIHWLYDDLQWHJUDÍÂRGHSDUÁPHWURVFRPSUH-
HQVLYRVTXHHYLWDPDFRQIXVÂRHQWUHHVSHFLğFLGDGHHUHGXFLRQLVPR
A dissecação do argumento não estrutura a recepção do que se vê,
pois o contexto de recepção não se alcança por uma tática de contro-
le e monitoramento da representação apenas.

86 Curso de Especialização em Teatro à Distância


6H R GUDPÀWLFR VH UHYHOD QD HVWUXWXUD GR ğOPH TXDQGR R ğOPH GH-
monstra esta estrutura em sua exibição, o processo de dramatização
Ò D FRPSUHHQVÂR GR ğOPH HP VXD HVWUXWXUD ( VHQGR HVWD HVWUXWX-
Explorando as tensões entre
UDUHYHODGDSHODGUDPDWL]DÍÂRÒGUDPÀWLFDDHVWUXWXUDGRğOPH'H cinema e teatro, temos, mais
recentemente, a publicação
PRGRTXHRHVSHFâğFRğOPHVHID]HPYLUWXGHGHVXDGUDPDWL]DÍÂR de AUMONT 2008.
A dramaturgia fílmica, hesitante em Eisenstein, elogiada por Bazin e
UHLQVHULGDSRU0LWU\ÒXPDFKDYHGHDFHVVR¿FRPSUHHQVÂRGRHVSH-
WÀFXORFLQHPDWRJUÀğFRHVXDWH[WXDOLGDGH

10.4 ERWIN PISCATOR E


O FIM DA ILUSÃO Parte integrante de meu livro

DA ILUSÃO TEATRAL Rumo ao drama,em publica-


ção pela Editora UnB.

-RKQ+HDUWğHOGFRQWUDUHJUDHQFDUUHJDGRGHSUHSDUDUXPWHOÂRSDUD
‘ O mutilado’, atrasado como sempre, aparece à porta de entrada da
sala quando a peça já estava na metade do primeiro ato,com o telão
enrolado e metido debaixo do braço,.

HEARTFIELD
Erwin, pare! Estou aqui!

Atônitos, todos voltam-se para aquele homenzinho, de rosto forte-


mente avermelhado que acabara de entrar. Não sendo possível con-
tinuar o trabalho, Piscator levanta-se e abandona por um instante o
seu papel de mutilado e grita:

PISCATOR
Por onde você andou? Esperamos quase meia hora (murmúrio de
DVVHQWLPHQWRGRSĎEOLFR HFRPHÍDPRVVHPRVHXWUDEDOKR

HEARTFIELD
9RFÓQÂRPDQGRXRFDUUR$FXOSDÒVXD FUHVFHQWHKLODULGDGHQRSĎEOLFR

PISCATOR
 ,QWHUURPSHQGR R  )LTXH TXLHWR -RKQQ\ SUHFLVDPRV FRQWLQXDU R
espetáculo.

HEARTFIELD
 ([WUHPDPHQWHH[FLWDGR 1DGDGLVVRDQWHVYDPRVHUJXHURWHOÂR

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 87


Como HEARTFIELD não cede, PISCATOR volta-se para o público, pergun-
tando-lhe o que deveria ser feito: continuar o espetáculo ou pendurar
PISCATOR 1968:53.
o telão. A grande maioria decide pela última alternativa. Cai o pano,
monta-se o telão e, para contentamento geral, espetáculo recomeça.

O trecho acima é adaptação de um episódio que, segundo E. Pis-


FDWRU  MRFRVDPHQWHIRLDIXQGDÍÂRGR7HDWURUÒSLFR
PISCATOR 1968:53.
Concluindo o relato, Piscator afirma: “Considero John Heartfield o
fundador do teatro épico.”

Em nossa adaptação, convertemos a nota de rodapé, que apresenta o


episódio, em um roteiro teatral, com o objetivo de tornar mais com-
preensíveis os procedimentos relativos a este Teatro Épico.

Seguindo o roteiro, notamos que a interrupção de uma representação


proporciona o contexto para diversas ações do ator, do público e do
agente invasor. É a partir da ampliação dessa interrupção que temos
estes diversos atos estritamente vinculados entre si.

A extensão da duração do que se interrompe vai formando um novo


momento dentro do espetáculo, providenciando novos nexos, outro
padrão de interação entre cena e platéia, revisando o padrão ante-
rior. À frontalidade da cena - manifesta na unidirecionalidade entre o
mundo dos atores e o mundo do público - contrapõe-se a correlação
entre o cênico e o não cênico, simultaneamente.

'HVVD PDQHLUD D LQWUXVÂR GH +HDUWğHOG SRVVLELOLWD QÂR VRPHQWH D


ruptura com a ‘ilusão’ do que se representa. A unidade da representa-
ção e seu padrão de interação são colocados em xeque.

Mas, ao mesmo tempo e irreversivelmente, esta intrusão é inte-


grada a uma continuidade que redefine tanto a unidade da re-
presentação quanto seu padrão de interação. À diferenciação de
eventos representados corresponde uma diversificação das res-
postas da audiência.

Os chamados ‘prejuízos’ causados pela interrupção da representação


- a dispersão recepcional e a falha na continuidade actancial - são
incorporados pelo curso subsequente das novas participações do pú-
blico no espetáculo. Ou seja, a ruptura com o espetáculo, a desconti-
nuidade, produz uma nova continuidade.

88 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Ora este espetáculo dentro do espetáculo amplia os nexos recepcio-
nais ao mesmo tempo em que amplia o mundo representado e a pró-
pria representação. O público quer tudo, o telão e o espetáculo.

E é para esta ampliação da cena que ruma a proposta de Piscator.

Se a descontinuidade pode produzir tanto novos atos recepcionais


quanto actanciais, ampliando a cena, isso só se torna possível em vir-
tude de haver o descentramento do centro de orientação do espetá-
FXORTXDQWRDXPSRQWRXQLğFDGRUGRTXHÒPRVWUDGR

2UDDH[SDQVÂRHGLYHUVLğFDÍÂRGRVQH[RVDJHPGLUHWDPHQWHVREUH
uma proposta de homogeneidade. Se se considera imprescindível co-
RUGHQDUDWRVHHYHQWRVKHWHURJÓQHRVHPVHTđÓQFLDHVLPXOWDQHLGD-
de, então volta-se a totalidade desses procedimentos contra o totali-
tarismo da cena fechada sobre sua forma de apresentação.

Assim, a proposição de uma cena expandida reage diretamente con-


tra procedimentos redutores da cena.

Contudo, a diferença de Piscator não está na substituição de formas.


PISCATOR 1968:53.
Para ele, “o critério não está no formal, está no problemático” .

Como então compreender esta diferença que tem um parâmetro com-


posiocional, mas que ao mesmo tempo não se limita à composição?

Justamente, quando se inserem questões composicionais que contro-


lam opções formais em questões outras não puramente estéticas é
que começamos a nos aproximar da amplitude que Piscator advoga.
Há, pois, uma estreita conexão entre procedimentos de composição e
UHDOL]DÍÂRHDGHğQLÍÂRGHHVSHWÀFXOR

O impulso para esta conexão reivindica um contexto reativo, um cla-


ro posicionamento contra o conluio entre esteticismo e subjetivismo Idem notas pág. 77 “Essa
arte dramática é lírica, quer
que permeava a cultura teatral alemã dos primeiro decênios do século dizer não é dramática. São
obras líricas dramatizadas.
XX. Conquistas técnicas do teatro, como luz elétrica e palco giratório Na miséria da guerra, que foi,
são incorporadas, por Max Reinhardt, por exemplo, no fortalecimento na realidade, uma guerra da
máquina contra o homem,
do lirismo dramático, em uma naturalização do mundo representado procurou-se , pela negação,
pesquisar a alma do homem.”
como registro e clausura da ‘alma individual’.

Dessa forma, o dispositivo cênico magnetiza o observador, isolando-o, ao


ğJXUDUDÍøHVSHQVDPHQWRVHHPRÍøHVTXHQÂRXOWUDSDVVDPDLQVWÁQFLD

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 89


do próprio sujeito que as performa. O incremento técnico da cena, ou
este uso da técnica, consagra a apresentação de referências desprovidas
de situações que não se reduzem a ações/reações individuais.

Mas há outras maneiras de se efetivar as aplicações do dispositivo


FÓQLFR$VPRGLğFDÍøHVWÒFQLFDVDRLQYÒVGHQDWXUDOL]DUHPXPDFHQD
subjetiva podem capacitar um deslocamento do “indivíduo com seu
idem, 156 destino particular pessoal” para uma amplitude histórico-social. “A
FULDWXUDQRSDOFRWHPSDUDQöVRVLJQLğFDGRGHXPDIXQÍÂRVRFLDO1R
ponto central não está sua relação consigo próprio, nem sua relação
com Deus, mas sim a sua relação com a sociedade.”

Mas que histórico-social é este? A mera adoção de uma perspectiva


política capacita este teatro multidimensional que Piscator objetiva?

'HYROWDDRHSLVöGLR$VFRQIXVøHVHQWUH3LVFDWRU+HDUWğHOGHRSĎEOL-
co durante a peça ‘O mutilado’, de K.A. Wittfogel aconteceram dentro
idem, 51 das limitações do Teatro Proletário. Sindicatos e centrais trabalhistas
apoiavam um palco de propaganda, determinado em promover “ape-
los para se intervir no fato atual e fazer política”

Este teatro popular, performado em salas e locais de assembléia,


distinguia-se tanto dos teatros comerciais quanto dos teatros socia-
Idem, idem
listas de seu tempo:” não se tratava de um teatro que pretendia pro-
porcionar arte aos proletários, e sim uma propaganda consciente.”

Um outro espaço, um outro nexo entre a cena e o auditório: estes


dois parâmetros de composição, realização e recepção teatrais pro-
MHWDPVHFRQWUDDGHğQLÍÂRGHDUWHH[LVWHQWHHUDWLğFDPXPDGLYHUVD
GHğQLÍÂR GH HVSHWÀFXOR 'RV HVSDÍRV IHFKDGRV VXQWXRVRV H FRQVD-
grados, para as salas e ambientes acanhados com cheiro de” cerveja
velha e urina”, com cenários de “telões simples, pintados às pressas”
H[SOLFLWDVHXPDYHUGDGHLUDVLPSOLğFDÍÂRGRVPHLRVHGDVSRVWXUDV
que proporciona o foco naquilo mesmo que deveria ser a atividade de
representação dramática: a interação entre cena/audiência.

(P FRQGLÍøHV PâQLPDV HP GLğFXOGDGHV ĠDJUDQWHV WHPRV R WHDWUR


mínimo: “o teatro não devia mais agir apenas sentimentalmente no
espectador, não devia especular apenas a sua disposição emocional;
Idem, 53.
pelo contrário, voltava-se para a razão do espectador. Não devia tão
somente comunicar elevação, entusiasmo, arrebatamento, mas tam-
bém esclarecimento, saber, reconhecimento”

90 Curso de Especialização em Teatro à Distância


A pedagogia do espectador é impulsionada pela diferenciação dos ma-
teriais que lhe são apresentados. Simultaneamente, a economia dos
meios de expressão efetivava tanto o rigor da aplicação desses meios
quanto o controle e a compreensão de seus efeitos. Aquilo que se mos-
tra não é mais algo apenas para se contemplar. A contiguidade entre
objetos, ações e situações em cena com as fora de cena acarreta uma in-
teração palco/platéia que concretiza este deslocamento da esfera sub-
jetiva/ilusionista do teatro para uma arena interindividual dos eventos
UHSUHVHQWDGRVHFRQVHTđHQWHH[FLWDÍÂRFRJQLWLYRDIHWLYDGRSĎEOLFR

Alterando-se o que se mostra a partir dos nexos recepcionais, fun-


damenta-se um conjunto de metas e procedimentos que podem ser
explorados e se tornar operacionalizáveis, e que não mais se circuns-
crevem ao lugar e ao público onde foram utilizados e testados. Como
a interação palco/platéia relaciona-se com os meios empregados na
realização do espetáculo e com o deslocamento da cena individual
para a cena sócio-histórica, vemos que a mútua implicação desses
HOHPHQWRVÒRTXHUDWLğFDDDPSOLWXGHGRTXHVHUHSUHVHQWDHQÂR
apenas um somatório ou escolha aleatória dos meios empregados. A
cooperação entre meios técnicos, referências transubjetivas e nexos
recepcionais mais cognitivos providencia um programa de atividades
representacionais que transcendem o ponto origem de seu encontro
e manipulação. Eis os procedimentos e parâmetros do processo cria-
tivo de Piscator rumo a uma cena expandida e ampla.

No espetáculo Bandeiras  HVWDPRVORQJHGDVDVVHPEOÒLDVGH


VHXVRGRUHVHGRVDWRUHVQÂRSURğVVLRQDLV'HDFRUGRFRP3LVFDWRU
“pela primeira vez tinha eu em mãos um teatro moderno, o teatro
Idem 67,68
mais moderno de Berlim, com todas suas possiblidades, e eu estava
resolvido a aproveitá-las em função do sentido da peça, a qual, no
tema, correspondia a minha atitude polícia fundamental”

O texto de Bandeiras, de Paquet, era escrito em forma intermediária


entre conto e drama onde “um frio sentimento do autor o proíbe de
participar intimamente da sorte de suas personagens e do curso da
ação.” Assim, a impessoalidade no tratamento do material narrativo
libera o escritor a trabalhar mais as cenas, descentrando a voz autoral Idem, 69
como guia e condutor da atividade interpretativa do leitor. Concen-
trando-se mais no que mostra que no que julga ou diz sobre o que
mostra, o narrador aplica-se melhor ao planejamento e concatenação
GDVFHQDVHGRGHVDğRGHVXDLQWHOLJLELOLGDGHDRLQYÒVGHXQLğFÀODV
em prol de uma mensagem prévia autoral.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 91


Essa situação do escritor é homóloga ao do diretor. Piscator com este ma-
terial narrativo tinha a oportunidade de efetivar no palco o seu romance-
Idem, ibdem drama, o seu teatro épico. E no que consistia sua atividade de diretor?
“ampliação da ação e do esclarecimento dos seus segundo planos; uma
continuação da peça para além da moldura da coisa apenas dramática.”

2X VHMD IUHQWH ¿ HOLPLQDÍÂR GH XPD SHUVSHFWLYD FHQWUDO TXH XQLğ-
ca toda a representação no próprio mundo apresentado, no mundo
da mensagem autoral e sua interpretação restrita do que se mostra,
3LVFDWRUGLYHUVLğFDDVUHIHUÓQFLDVSURGX]LGDVHPFHQDYDOHQGRVHGH
meios e procedimentos que dilatam o horizonte atual. Os atores con-
WUDFHQDYDPFRPWHOøHVTXHH[LELDPRUDIRWRJUDğDVRUDWH[WRV

'HVVDPDQHLUDRHVSHFWDGRUVLPXOWDQHDPHQWHLQWHUDJLDFRPDVğJXUDV
em cena e com os meios. A visibilidade dos meios não se limitava à du-
plicação redundante do mundo representado. Antes, no mesmo espaço
e ao mesmo tempo o espetáculo se desdobrava em níveis de referência
pertencentes a mídias e performances diversas que expandiam o pre-
sente de cena. A presença dos meios técnicos fornecia uma abertura
imaginativa da representação , contrariando o pressuposto do apaga-
PHQWRGDVPDUFDVGHğFÍÂRSUHVHQWHVQRXVRLOXVLRQLVWDGRVQRYRVUH-
cursos cênicos. A exibição tanto dos meios quanto de seus efeitos in loco,
frente às personagens e à platéia, proporcionava um recrudescimento da
pluralidade representada e da pluralidade de atos receptivos. A hetero-
geneidade dos níveis referenciais co-presentes em cena faculta o mútuo
aprofundamento dos horizontes da representação e da audiência.

Assim, retome-se o episódio da peça O mutilado: a interrupção da re-


presentação, a descontuinuidade provocada pela presença dos meios
é produtora de uma nova continuidade que atravessa o espetáculo -
a continuidade da metareferência. O espetáculo demonstra-se como
espetáculo para assegurar o vinculo entre os materiais que disponi-
biliza e os extensos contextos que busca apresentar para a audiência.

Esse uso da metareferência, incorporando-a à atividade representa-


cional, favorece a construtividade da cena, a orientação da seleção,
combinação e distribuição dos meios em função dos atos de entendi-
mentos da recepção. A inteligibilidade da cena conjuga-se à inteligi-
bilidade da audiência.

Em sua forma de representação, o espetáculo Bandeiras era dividido


Idem, ibdem.
em “numerosas cenas individuais, algo de revista.”

92 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Seguindo o descentramento de uma perspectiva autoral privilegiada,
TXHXQLğFDYDRPXQGRUHSUHVHQWDGRHRXQLğFDYDHPSDWLFDPHQWH¿
recepção, vimos que Piscator optara por procedimentos que vertica-
lizavam a interação cena/platéia através de múltiplos e heterogêne-
os níveis de referência e de meios. Não subjugadao à apropriação e
reprodução de uma individualidade restrita ao particularismo de sua
presença e contexto, a forma de revista forneceria um modelo de re-
alização que poderia efetivar a liberação do processo criativo para a
FHQDGHXPDXQLğFDÍÂRSHUVRQDWLYDDFWDQFLDO

Assim, a forma revista com seus números diversos compostos de mí-


GLDVHSHUIRUPDQFHGLYHUVDVFXOPLQDULDDGHğQLÍÂRSOXUDOGRHVSHWÀ-
culo de Piscator contra a homogeneidade reprodutiva do ilusionismo
individualista anterior.

Note-se que a abertura às possibilidades de representação opera-


da pelo processo criativo de Piscator, ao radicalizar a heterogenei-
dade da cena como forma de se abarcar contextos de ação mais
amplos, acaba por justapor performances diversas, subvertendo e
refutando uma pretensa unidade midiática do espetáculo. Assim,
“música, canção, acrobacia, desenho instantâneo, esporte, proje-
ção de cinema, estatísticas, cena de ator alocução” - tudo vem à
cena. A diversidade midiática corresponde à diversidade dos con-
textos de ação representados.

2UDHVVDGLYHUVLGDGHPLGLÀWLFDGDGHğQLÍÂRGRHVSHWÀFXORGH3LVFDWRU
em muito ultrapassa a dramaturgia de seu tempo e se converte em um
ponto de partida para a dramaturgia ulterior. A circunscrição da dra-
maturgia à escritura das falas e à distribuição das ações e das partes
da peça em função de um enredo havia reduzido as possibilidades ex-
pressivas do espetáculo. Sempre tudo convergia para um centro sub-
jetivo, para um hipersujeito arquimodelo de todos atos,pensamentos
os desempenhos em cena e na platéia.

Com a diversidade multimidiática do espetáculo de Piscator, a drama-


turgia se confronta com novas tarefas - a ilusão da ilusão do centro
subjetivo é refutada desde o processo criativo. Ao isolacionismo do
autor, fechado em seu gabinetismo idealtípico, temos agora a inser- Idem, 80.
ção de seu trabalho em outros trabalhos, um processo criativo coleti-
vo e colaboracionista. “os diversos trabalhos de autor, diretor, artísti-
co, músico, cenógrafo e ator se entrosavam incessantemente.”

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 93


Desse modo, conjugam-se processo criativo, mundo representado e
atos recepcionais na heterogeneidade de referencias e interreferên-
cias que produzem.

A forma revista, dispondo eventos midiáticos diversos em sucessão,


apresenta-se como exibição dessa heterogeneidade que abarca tan-
to a composição quanto a realização e a recepção do espetáculo. Ao
mesmo tempo a forma revista não é uma resultante simples de atitu-
des ou procedimentos. Tal forma aberta delimita o horizonte proble-
mático de sua realização: os limites de sua inteligibilidade a partir do
posicionamento dos materiais exibidos. Toda forma que recusa uma
continuidade imediata, atua sobre a continuidade mesma. A expecta-
tiva de acabamento do material exposto exige estratégias complexas
de exibição mesmo deste acabamento. Com a abertura da forma, te-
mos a prerrogativa dos suportes recepcionais.

O êxito do espetáculo Apesar de tudo  PDQLIHVWDRâPSHWRGHVR-


lução de problemas impostos pela forma revista. Em destaque temos o
XVRGHğOPHVHPFHQD$VLQFURQL]DÍÂRGHPâGLDVGLYHUVDVHUDRSUREOH-
Idem, 80. ma a ser enfrentado. Nas palavras de Piscator ŃSHODSULPHLUDYH]DğWD
de cinema se ligaria organicamente aos fatos desenrolados no palco.”
3RLVDIRUPDGHUHYLVWDQÂRGL]UHVSHLWRDSHQDVDRVHTđHQFLDPHQWRGH
partes diferentes, mas sim à estruturação mesma de cada parte.

2VğOPHVHVWDYDPGLVWULEXâGRVSRUWRGDDSHÍD(UDPLPDJHQVGHDUTXL-
vos, ŃğOPDJHQVTXHDSUHVHQWDYDPEUXWDOPHQWHWRGRRKRUURUGDJXHUUD
Idem, 81.
ataques com lança-chamas, multidões de seres esfarrapados, cidades
LQFHQGLDGDVDLQGDQÂRVHHVWDEHOHFHUDDPRGDGRVğOPHVGHJXHUUDń

-XQWRVFRPRVğOPHVHUDPDSUHVHQWDGRVDRSĎEOLFRGLVFXUVRVUHFRU-
WHVGHMRUQDOFRQFODPDÍøHVIROKHWRVIRWRJUDğDV7XGREHPGLVSRVWR
Idem, 82. com os atores em um palco giratório, efetivando “uma unidade da
construção cênica, um desenrolar ininterrupto da peça, comparável a
uma única corrente de água”

Assim, essa unidade advinda da montagem e da sucessão de even-


tos midiáticos diversos era o espetáculo mesmo de sua possbilidade
de realização e compreensão. Piscator tinha uma dupla ansiedade:
Idem, 83.
“primeiro, de que modo resultaria a mútua ação condicionadora dos
elementos empregados no palco; segundo, se realmente se chegaria
a realizar-se algo do que forma projetado”

94 Curso de Especialização em Teatro à Distância


A dupla perplexidade frente à composição e realização do espetácu-
lo foi resolvida pelo papel ativo da recepção em dar acabamento às
FHQDV'XUDQWHDSHUIRUPDQFHGDSHÍD3LVFDWRUDğUPDTXH“a massa
LQFXPELXVHGDGLUHÍÂRDUWâVWLFD  2WHDWURSDUDHOHVWUDQVIRUPD
Idem, 83-84.
se em realidade. Em pouco tempo cessou de haver um palco e uma
platéia, para começar a existir uma só grande sala de assembléia, um
ĎQLFRJUDQGHFDPSRGHOXWD  IRLHVVDXQLGDGHTXHQDTXHODQRLWH
SURYRXGHğQLWLYDPHQWHDIRUÍDGHLQFLWDPHQWRGRWHDWURSROâWLFRń

Note-se que ao se expor os meios e materiais em cena, incrementou-


se a interação palco-platéia. A comum-unidade dessa interação difere
de uma projeção emotiva do público à mensagem do individualismo
estético e o ilusionismo de sua representação. A motivação afetiva foi
impulsiona pelo esforço cognitivo. A contracenação das mídias en-
tre si facultou a magnitude da apreensão recepcional. A audiência
podia conjugar fatos diversos no diferencial tanto midiático quanto
referencial e disto compreender e reunir a totalidade do que era exi-
bido. A tensão do espetáculo estava na disparidade dos meios e dos
contextos e no modo como esta disparidade é enfrentada em prol de
nexos recepcionais. A contracenação entre mídias concretizava a con-
tracenação entre palco e platéia. A ‘resolução’ da disparidade, pois,
não é a sua anulação, o mero cancelamento do heterodoxo, mas o
provimento de atos vinculantes, de nexos.

Assim, o espetáculo atua em função de sua interação ao invés de ser


um veículo para idéias autorais. A realidade multimidiática da cena é
o que possibilita a interpretação de contextos de ação extremos. Atos
representacionais e atos da audiência colaboram. O projeto compo-
sicional culmina no acabamento recepcional. Nas palavras de Pisca- Idem, 98.
tor: “no palco tudo é calculável, tudo se entrosa organicamente. Para
mim, igualmente, o ator que eu vejo no efeito total do meu trabalho
deve, sobretudo, exercer uma função, tal qual a luz, a cor, a música o
cenário, o texto.”

Mais importante: o documento exposto, difundido estava em mesmo


nível com o documento examinado, fraturado, reordenado. A monta-
JHPFRORFDYDHPPHVPRSODQRRGRFXPHQWRHRğJXUDWLYRGHPRGR
a possibilitar a intervenção recepcional no que era representado e
não simplesmente a paráfrase de um original, de uma fonte auto-
ral da informação. Nesse entrelugar, nessa região limítrofe onde os
limites do objetivo e do subjetivo projetam áreas impessoais e des-
conhecidas é que a peça é executada. A imponderabilidade dos extre-

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 95


mos absolutos converte esse entrelugar em um choque contra toda e
qualquer ortodoxia.

A obra total que o processo criativo de Piscator realizava exigia um


teatro total. O sucesso de público determinou a abertura do Teatro
e Estúdio Piscator, nos quais espetáculos e pesquisas sobre a arte
WHDWUDOVHULDPHIHWLYDGRV&RP:*URSLXV  RWHDWURWRWDO
pode ser construído.

3LVFDWRUMXVWLğFDYDHVVDPÀTXLQDWHDWUDOQRYDŃXPDSDUHOKDPHQWRGR-
tado dos meios mais modernos de iluminação, de remoção e rotação
Idem, 83. no sentido vertical e horizontal, com um sem número de cabines cine-
PDWRJUÀğFDVLQVWDODÍøHVGHDOWRIDODQWHV” como algo que possibilitas-
se tecnicamente “a execução do novo principio dramatológico.”

Esta máquina teatral refutava a câmara ótica que por meio do pano
e cova da orquestra mantinha o espectador separado do palco. Ao
invés de único centro de atenção, multiplicavam-se os palcos em cena
XP FHQWUDO H GRLV ODWHUDLV  H HQJUHQDJHQV TXH HQYROYLDP H FHUFD-
vam o público distribuído em torno desses palcos. Assim, de todas
as direções as performances se abatiam sobre o público. A audiência
pertence espacialmente ao palco, e vê-se confrontada e tomada pelas
performances, meios mecânicos e projeções luminosas.

Assim, é na atividade exercida sobre a recepção que este teatro total


encontra sua efetividade.

Posteriormente, a cena expandida e multimidiática de Piscator se de-


IURQWDULDFRPDUHSUHVHQWDÍÂRGHğJXUDVLVRODGDVFRPDUHSUHVHQWD-
ção do herói, como em As aventuras do bravo soldado Schwejk. Seria
um recuo, como disseram de Alexander Nieviski, de S. Eisenstein ? Ora
QD DPSOLWXGH GR HVSHWÀFXOR GH 3LVFDWRU D GHVFRQVWUXÍÂR GD ğJXUD
individual não se torna a revalidação de centro subjetivo. Antes, há o
UHIRUÍRGDVPDJQLWXGHVWHDWUDLVTXDQGRGDGHVFRQVWUXÍÂRGHVVDğ-
gura. O isolacionismo do herói e o recurso à máquina da faixa corren-
WHQDTXDOGHVğODPDVSDUWHVWRGDVGHXPHVFÀUQLRFRPSOHPHQWDVH
na globalidade do que foi mostrado.

$VVLPDVUHĠH[øHVHRVSURFHGLPHQWRVGRWHDWURSROâWLFRGH3LVFDWRU
ultrapassam as motivações ideológicas e conjuntura histórico-políti-
ca de sua ocorrência. Mas aí, temos uma nova história.

96 Curso de Especialização em Teatro à Distância


10.5 TRADIÇÃO E RAZÃO:
MODERNIDADE E Publicado na Revista Humani-
dades 40(1996), 28-33. Repu-

MITO EM RUMBLE blicado em Imaginação Dra-


mática.  Texto&Imagem,1998.

FISH
Não é novidade ou redundância, mas urgência estreitar os vínculos
HQWUHDUWHFLQHPDWRJUÀğFDHGUDPDWXUJLD7DODSUR[LPDÍÂRXOWUDSDVVD
DVPHUDVUHIHUÓQFLDVWHPÀWLFDVTXHVHFRQğQDPHPHOHQFDUVLPLOLWX-
des sem o questionamento a respeito da natureza mais fundamental
dessa proximidade. Ora, como processos de construção da realidade,
SHUWHQFHPDFRQWH[WRVFXOWXUDLVGLVWDQFLDGRVQRWHPSR $QWLJđLGDGH
H0RGHUQLGDGH $VVLPVHQGRSRGHUVHLDDğUPDUTXHDPDQHLUDPDLV
DGHTXDGD SDUD FRQğJXUÀORV QXP PHVPR SODQR VHULD QHXWUDOL]DU D
diferença epocal e fazer falar um pelo outro.

&RQWXGRDUHĠH[ÂRSDXWDGDSHORVGLWDPHVGDDGHTXDÍÂRVöVHVXV-
tenta na provisória instância predicativa que apresenta o que discute
por meio de estratégias de entendimento normalizadoras. Ou seja,
discute-se com o objetivo de tornar indiscutida a estrutura e o signi-
ğFDGRGRIHQ÷PHQRYLVDGR LPDJLQDÍøHVSDUDDFHQDGLIHUHQFLDGDV 
Teatro e cinema comparecem como momentos-luminares da tradição
ocidental quanto à apreensão e interpretação dos eventos. Mais que
ilusionismos estéticos reprodutores de ordens históricas localizadas,
ambos são atualizações do dramático - experiência humana de com-
preensão dos acontecimentos.

Estranho que se pense assim, que se medite medeando passado e


presente sem as sempre válidas comparações. A arte cênica e a ati-
vidade fílmica possuem narração, atuações personativas, represen-
tações englobantes que envolvem jogos intersemióticos (cor, som,
PRYLPHQWR JHVWR SDODYUD  HVWDEHOHFHP SDUWLFLSDÍøHV HQWUH R TXH
se mostra e quem vê. Pertencem, resumidamente, às contingências
da visualidade. E encontram-se na dinâmica das recepções: a passa-
gem dos grandes públicos para as pequenas platéias no transcurso
WHPSRUDOGRWHDWURH RLQYHUVRQRFLQHPD FRPRVHXPDDUWHGHVVH
a senha para a outra.

Continuando as similitudes, passaríamos das informações pulve-


UL]DGRUHV SDUD VLJQLğFDGRV PDLV LQWHJUDGRUHV $PERV RV PRGRV GH

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 97


representação da realidade surgem em contextos de excessos de
XWLOL]DÍÂRGDYLVXDOLGDGHFRPRPHLRVGHUHVROXÍÂRGRVFRQĠLWRVFRJ-
QLWLYRVDIHWLYRVHYROLWLYRV1RPRPHQWRJUHJRDDQWURSRPRUğ]DÍÂR
GRVGHXVHVLQWHQVLğFDGDSHODUHIRUPDKRPÒULFDHGHQXQFLDGDSRU
Xenófanes -, atribuía aos deuses, aos terríveis-desconhecidos-ausen-
tes, formas humanas tão evidentes, imputando-lhes desejos, crimes
e vícios - o que acarretava a indistinção entre divinos e mortais. O
apagamento da diferença é contemporâneo do arrefecimento do sa-
grado, instaurando uma crise religiosa sem precedentes que é a crise
das relações com a verdade, motivo depois utilizado no debate entre
ğFÍÂRHUHDOLGDGH

O teatro ateniense desenvolve-se nesse drama da cultura. Cultura é


XQLGDGH GH FXOWR (XGRUR GH 6RXVD  UHYHUHQFLDPRV DTXLOR HP TXH
acreditamos. Quando essa crença situa-se no limite de sua possibili-
dade, necessita a reelaboração interpretativa desse limite.

E eis o teatro. Encena-se, dentro das festividades dionisíacas, o herói


homérico, corrigindo, pela curva do destino, o ímpeto de sua desvi-
talização. Vive o personagem a arquiviagem de seu deus. O herói é
imolado no sacrifício aos ausentes.

Temos, então, uma dupla disposição dos eventos. Na sua estrutura


DSDUHQWHGHVğODRSHUâRGRKHUöLFRJUHJRHPVXDHVWUXWXUDSURIXQGD
acena-se para a dimensão mítica que subliminarmente emoldura o
que se encena.

Desse modo, o que se apresenta é mais do que uma mera presença


mimética que se reduz à atualidade do visto. Registra-se uma totali-
zação que supera o isolacionismo das partes dramatizadas.

'XSORGHXPVHUGHVGREUDGRHQFRQWUDPRVQDFRQğJXUDÍÂRPHVPDGR
espetáculo dramático, essa pluralidade de níveis recuperada por meio
da ‘ilusão cênica’. Nessa, público e palco passam a existir conjuntamen-
te em um jogo de distâncias e proximidades, dentro do qual cada mo-
mento atual do teatro investe-se da construtividade do tempo. Aquém
e além das marcas de referenciação estereotipadas, distende-se o rit-
mo de representação, no encontro e no mútuo envio de realidades per-
tencentes a contextos diversos de ação, mas reunidas em diversa tele-
ologia que se utiliza do descontínuo como linguagem compatível com
o modo através do qual nos inserimos em outra factualidade. Tanto
ğFFLRQDLVFRPRFRUSRUL]DGRVVHHQFRQWUDPRVTXHYÓHPHRVTXHVÂR

98 Curso de Especialização em Teatro à Distância


vistos. Desdobra-se a peça agora contemporânea de seu processo en-
formador. Ver e imaginar não são incompatíveis, mas atividades inter-
dependentes que experimentam a problematização dos modos e dos
meios da efetividade do afetivo, da doação de um logos para o pathos.

Tempo, espaço, linguagem, pessoa nutrem-se dessa descontinuidade


pluralizante assumida estruturalmente na arte cênica. Não se trata de
LGHQWLğFDUDPELJđLGDGHVQDVIDODVGRVSHUVRQDJHQVGHQRWDUFRPR
VXDVDÍøHVSHUWHQFHPDGLIHUHQWHVRUGHQVVLPEöOLFDVGHYHULğFDUD
arquitetura multifacetada dos personagens elaborados na contrace-
nação e partipantes de nexos interindividuais que proporcionam um
estatuto metafórico a seu ser.

Não se trata de perceber esses elementos isoladamente e sim de pas-


sar do plano do conteúdo para o plano da expressão e ver que tais
técnicas de elaboração do evento cênico são processos que demons-
tram a singularidade do ‘dramático’.

O dramático não se guia pelos ditames da organicidade da obra de


arte que o condenariam a assumir total dependência do estético a
uma dimensão extra-artística ocupada na mímesis de uma unidade.
7DOFRGLğFDÍÂRğORVöğFDGRIDWRDUWâVWLFRLQVWUXPHQWDOL]DRHVWÒWLFR
ID]HQGRFRPTXHHOHUHVSRQGD¿FDUWLOKDGRVğOöVRIRVGRĎQLFRXQR
XQLğFDQWHH[SXUJDQGRSRUPHLRGHHVTXHPDVDEVWUDWRVGHHTXLOâ-
brio e normatividade, o contraditório do seio do mundo.

$RFRQWUÀULRDDWLYLGDGHFÓQLFDFKDPDSDUDVLRFRQWUDGLWöULRHRFRQĠL-
tivo. Contrariando as generalizações formalistas de Aristóteles, que viam
na tragédia certa máquina de efeitos emocionais reforçada pelas causa-
lidades determinantes do enredo, o que se constata é o vertiginoso apro-
fundamento do contraditório como forma de se atingir a integratividade
e diferenciação de níveis da realidade. O dramático é a dupla fenomeno-
logia da compreensão, pois interpreta os acontecimentos concretizando-
os no horizonte existencial e imaginativo de sua efetivação.

Em Rumble Fish, de Francis-Ford Coppola, os suportes cênicos se fa-


]HP SUHVHQWHV FRQGLFLRQDQGR R HQWHQGLPHQWR GR ğOPH (QWUHFUX-
zam-se dois planos narrativos básicos. Dois irmãos e suas duas vidas
aproximam-se e afastam-se ao mesmo tempo. O irmão mais novo,
5XVW\ -DPHV SURFXUD FRQFUHWL]DU R LGHDO FRPSRUWDPHQWR GH VHX LU-
mão mais velho, cognominado de ‘o garoto da motocicleta’. O que te-
mos é a representação do heroísmo nos tempos modernos.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 99


5XVW\-DPHVKHUGDRJHUHQFLDPHQWRGRFRQĠLWRTXHRKHUöLSRVVLEL-
OLWD&RQWXGR5XVW\-DPHVH[SXOVDDDPELYDOÓQFLDRQGHTXHUTXHHOD
possa estar, nivelando os acontecimentos ao saturá-los com o modelo
ĎQLFR GH UHVSRVWD TXH Ò R UHĠH[R UHLWHUDGR GH VHX LQGLYLGXDOLVPR
(PWRGRVLQVWDQWHVGHVHXSHUFXUVRDFWDQFLDOQRGHVDğRGHJDQJXHV
na família, na escola e no amor, permanece ele incólume, imune aos
contextos diferenciados, agindo do mesmo modo e reagindo da mes-
ma maneira, impondo o saciar de sua presença.

5XVW\-DPHVHQFDUQDRSOHQRRWXGRDRPHVPRWHPSRDJRUDXOWUD-
SDVVDQGR DV VLQJXODULGDGHV FRQğJXUDQGRDV QD REHGLÓQFLD GH XP
YLWDOLVPRFHJR5XVW\-DPHVQÂRVRIUHQÂRKÀSHUGDVRXJDQKRVSDUD
ele. Feito imortal, entidade olímpica, cultiva o ilimitado, em uma ra-
zão cativa de sua egolatria. Seu saber é o da esperteza, um reduzido
ORJRVGH8O\VVHVTXHVHFRPSUD]QDPDQXWHQÍÂRGHXPDWUDQVFHQ-
dência vazia que se perpetua para além das diferenças.

Esse herói de uma presença atual, pontual, sem memória, confronta-


se com a serenidade do irmão mais velho, antigo líder de gangues,
TXHYLXWRGRHVVHJHUHQFLDPHQWRGHFRQĠLWRVQÂRUHQGHUPDLVVHQWL-
do para sua existência. O garoto da motocicleta vai embora para Ca-
lifórnia e volta, dinâmica de entradas e saídas cênicas que proliferam
DDEUDQJÓQFLDGHVXDğJXUD1HJDQGRRKHURâVPRDSROâQHRGRHWHUQR
retorno do mesmo, mímesis extemporânea da supressão dos limites,
HOHLQWHUYÒPQRVGLYHUVRVPRPHQWRVGDJHVWDGH5XVW\-DPHVLQVX-
ĠDQGRDGHUHĠH[ÂRHSHUFHSÍÂRVREUHRREWXVRGHVXDSHUVSHFWLYD

Com ele, pensar e sentir não se encontram separados. O garoto da


motocicleta pergunta e difunde saber. Os contextos são assimilados
GHQWURGRKRUL]RQWHFRPSUHHQVLYRTXHRVHPROGXUD$VHVSHFLğFLGD-
des dos momentos se integram na lógica subjacente que os constrói.
Para além das categorias de exibição e atemporalidade, a vida não é
EDUJDQKDFRPRLPHQVRHWHGLRVRPRYLPHQWRGHXQLğFDÍÂRGDVVLWX-
ações existenciais.

Na grande cidade onde os irmãos vivem, o plural realça o unívoco.


Dia e noite se sucedem na ciclomitia da névoa que habita todos os
espaços e todos instantes, desvanecendo e dessubtancializando os
contornos e as formas do mundo. Viver aqui é sobreviver em meio
ao que já se orienta entre carcaças de coisas. É preciso o rigoroso vi-
gor aplainador das diferenças para permanecer na grande cidade. Os
nexos interindividuais, seja no amor seja na lealdade, expressam-se

100
Curso de Especialização em Teatro à Distância
em estratégias comportamentais que asseguram seu enquadramen-
to em um circuito padrão de referências. Indivíduo e grupo, mesmo
e outro, todo e parte se associam em unidade orgânica que se apre-
senta como representação globalizadora do parcial, circunscrição do
diverso ao monológico.

5XVW\-DPHVÒRKDELWDQWHHKHUöLGHVVDFLGDGH6HXLUPÂRRTXHQH-
gou tal envoltório rumando para a utopia que ela aponta (Califórnia,
a imagem do prazer sem limites, a imensa prostituta maquiada e do-
HQWH YROWD,UHYLUHVWDUHQÂRHVWDUSHUWHQFHUHQÂRSHUWHQFHUREMH-
tivam a complexa rítmica de dispersão, cujo emblema é de integrar e
GLYHUVLğFDU

$PERVFRQWUDFHQDPXPFRQĠLWRGHVDEHUHVTXHXOWUDSDVVDDGLIHUHQ-
ça de opiniões.

Em determinado momento da narrativa, os irmãos discutem sobre


uma mulher denominada Cassandra, homóloga da personagem da
peça AgamenonGHvVTXLOR5XVW\-DPHVRTXHVöFRQKHFHRTXHVH
UHFRQKHFH LPHUVR HP VXD OöJLFD XQLğFDQWH GHVFRQKHFH D WUDGLÍÂR
Interroga-se, realçando sua instância descontextualizadora: “E o que
os gregos têm a ver com isso ?”

Cassandra era a profetisa que previu a própria morte e que, em sua


agonia, recuperava a morte do rei Agamenon. Longe da exposição con-
temporânea da morte, preocupada no quantitativo e no informativo da
PRUWDQWDGHHGRPRUWâIHURPRVWUDVHHVHGHPRQVWUDDğQLWXGHFRPR
possível expressivo, como palco outro que dramatiza a estrutura da sen-
sibilidade relacionada a uma estrutura da imaginação, para que se regis-
tre o acontecimento do limite como limiar compreensivo. A morte não
é região última e intransponível, que só se doaria em feitos irraciona-
lizáveis, depósito sedimentado de emoções. Ao invés de resíduo trans-
cendental do nada, a morte comparece em sua plasticidade originante,
FRPRGHVDğRDRVPHLRVGHFRQVWUXÍÂRGHVLJQLğFDGRV3RULVVRQXWUHGH
agonias, esperas, dúvidas, incertezas, desconhecimentos - momentos cê-
nicos que, em sua entreabertura mediadora de contrários, possibilitam,
HPVLPHVPRVDVIRUPDVHRVFRQWHĎGRVGHVXDUDWLğFDÍÂR

O que os gregos têm a ver com isso ? Passados dois mil e quinhentos
DQRVHQWUHDSHUJXQWDGH5XVW\-DPHVPRGHODUKHUöLGDVXEMHWLYLGD-
GHPRGHUQDHDğJXUDGH&DVVDQGUDDFRQWHFHUGDPRUWHQDWUDJÒGLD
grega, recupera-se uma pergunta que repõe um saber transhistórico.

101
ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro
Sempre diante daquilo que ultrapassa o horizonte comum da experi-
ência humana, diante de signos que retomam uma ausência que nada
mais é que desvinculação com os pressupostos cristalizados e com o
imediato, sempre a hesitação ante a ambivalência do desconhecido ir-
rompe: ou interdita-se o ignaro pelo conhecido, ou se assume as frin-
FKDVHDVEUHFKDVGHLQGHWHUPLQDÍÂR +XVVHUO GRVIHQ÷PHQRVFRPR
tempos próprios da compreensão e ruma-se para dinamizar o cógito
em sua saciedade de sombras, no lascinante jogo espectral multiforme
do claro-escuro da consciência.

O que os gregos têm a ver com isso ? Há dois mil e quinhentos anos
o teatro ateninense produzia uma arte-conhecimento que propõe
o descontínuo, o contraditório como modo de concretização dessa
consciência. Naquele tempo também surgiu a pergunta ” E o que Dio-
niso tem a ver com isso ? ”, diante da incompreensão do fundo mítico
agente e subagente na arte dramática. Veja-se a transhistoricidade
da questão, pois aqui se assenta a Modernidade, a Modernidade de
todas as épocas. Em determinado momento, há uma crise de ordens
na cultura. Já não se percebe mais o horizonte de tudo o que é ou
existe. Agora há somente a urgência de se interrogar pelo nexo das
coisas, pelos vínculos que situam os encontros entre as diferenças.

Tradição x razão - eis a problemática que encampa tal interrogar (Gada-


PHU 'HQWURGHXPHVSDÍRWHPSRDVFHQGHPRV¿SOXUDOLGDGHGHQâYHLV
estruturantes dos acontecimentos, sendo que esses níveis são percebi-
dos como não pertecentes ao mesmo fenômeno. São tão divergentes
as ordens de sentido que não mais convergem para o intervalo nodal
que os consagra. Consequentemente, engendra-se uma ‘tradição’, um
pretérito como imagem de algo que perdeu seu vigor e seu valor, e
uma ‘modernidade’ que hospeda o que pode ser racionalizável e per-
tencente à urgência fulcral do necessário e do característico. Relega-se
ao museu de formas passadas tudo o que reforça a atualidade coesa e
coerente do que faz sentido em sua clareza e harmonia estabelecidas.

A temporalidade aqui é constituída e cifrada em atitudes de exclusão e


interdição que patenteiam um processo de referenciação ocupado em
PDQWHUFRQVWDQWHVGHVHQWLGR$OJRQÂRSRVVXLPDLVVLJQLğFDÍÂRSRLV
não obedece mais ao esquema canônico de representação. Repercute-
se certa Razão, certa estratégia interpretativa que uniformiza as per-
cepções agora como reprodutoras do modelo-base e não como aproxi-
mações ao diferencial da diferença dos eventos. Pensar aqui é conduzir
a compreensão para entronizar o já sabido, o já sentido, o já desejado.

102 Curso de Especialização em Teatro à Distância


5XVW\ -DPHV Ò R WHDWUR YLYR TXH HOLPLQD R GUDPÀWLFR 2 FRQWUD-
ditório não pertence à sua esfera de ação. Quando não sabe de
algo, seu não saber é apenas conclusão de que esse algo não faz
parte e nunca fará daquilo que ele de antemão conhece. Quando
não percebe, seu não perceber é a reposição do mesmo esquema
cognitivo que expulsa tudo e todos que escapam desse esquema.
Por isso pergunta, desdenhando da própria pergunta. Por isso “o
que os gregos têm a ver com isso?” Não é interrogação, mas afir-
mação que capitula diante do que não é previamente determinado
por suas respostas já automatizadas. No questionar já não há mais
questão, mas a pergunta já diz de si o que procura como resolução
da dúvida, que é dívida com o necessário meio de sobrevivência
na grande cidade - o espetaculoso crepúsculo da razão frente à
eliminação de suas virtualidades.

5XVW\-DPHVSRGHUÀVHIHULUQDEULJDGHJDQJXHVPDVQÂRYDLPRUUHU
poderá perder a namorada, mas não sofrerá; será expulso da escola
e ainda continuará senhor de sua pessoa. Negará o que está próximo
de si e sairá incólume da vida - como entrou, saiu.

No entanto, o garoto da motocicleta vai morrer, vai morrer, pois


se arriscou muito mais. Viver é muito perigoso quando se atinge
RV OLPLWHV GD H[SHULÓQFLD KXPDQD *XLPDUÂHV 5RVD  (OH TXH IRL
e voltou, que saiu da grande-pequena cidade, realiza a transvia-
gem, que é visagem da transcendência maior. O mais importante
sempre está perto de nós. Transcender é tornar imanente, mais
consciente e partícipe daquilo o que no jogo entre proximidade
e distância acusa a essência variacional dos seres e dos aconteci-
mentos. Ser herói é ultrapassar a arena de vitoriosos e perdedores
e repor o conflito, a descontinuidade impressa e inerente a tudo
que é ou existe. Além e aquém se complementam na intensificação
de suas disponibilidades.

2JDURWRGDPRWRFLFOHWDHPXPğOPHHPSUHWRHEUDQFR FRUHVDQ-
WLJDVSDUDHWHUQRVSUREOHPDVQRYRVHYHOKRVWHPSRVVHUHXQLQGR 
vai morrer, pois todo herói morre. Morre para libertar os animais
de suas jaulas, para fazer voar os pássaros, para retornar ao mar os
peixes briguentos. Coloridos, azuis e vermelhos, são os peixes que
OXWDULDP LQğQLWDPHQWH HWHUQDPHQWH DWÒ FRQWUD VL PHVPRV FRPR
azuis e vermelhos, contraditoriamente, são as cores que vêm do car-
ro da polícia, logo para ele, daltônico, que não percebe as cores, mas
FRPSUHHQGHRVFRQĠLWRV

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 103


A História não se escreve com os heróis, mas com o dramático. A aver-
sivaYHUVÂREUDVLOHLUDGRWâWXORGRğOPHHYRFDXPWUDJLF÷PLFRğOWURUR-
PÁQWLFRHKLSHUUHDOLVWD2ğOPHLQWLWXODVHRULJLQDOPHQWHRumble Fish,
referência à singular espécie de peixes briguentos, mas foi batizado
aqui como O selvagem da motocicleta. O tom apelativo da nova em-
balagem comercial traduz o que hoje se entende por dramático e por
artístico. Revela-se nessa versão traidora um problema cultural básico.

No embate histórico entre Tradição e Razão, instrumentalizou-se o


contraditório em prol do unívoco, racionalizou-se a Tradição a ponto
de esquematizá-la em conceitos tornados ‘clássicos’.

Complementar a esse direcionamento do passado por um olhar me-


GXVDQWH R GUDPÀWLFR TXH DOLPHQWD R FRQĠLWREDVH GD FXOWXUD IRL
negativado. Por isso o acréscimo do epíteto “selvagem” ao garoto
da motocicleta. Tal emblema é verdadeira legenda que reduz o fe-
nômeno ao seu valor abstratamente atribuído e não à sua realidade
efetiva. O selvagem evoca e provoca a esfera irracionalizavel a qual
pertenceria o dramático. Lá, nessa região que deve ser obstruída e
esquecida, as ambivalências e as contradições, o caótico e o amor-
fo, as potências misteriosas e o sagrado habitam. Somente lá, nessa
região-licença-parêntesis pode existir. Negativar o drama, situando-o
na derrocada das estratégias cognitivas do mundo, é eliminar todo
saber que se defronte com a compreensão de seus limites. É subordi-
nar todo pensamento, toda ação, todo desejo à mímesis distributiva
de uma normalidade perene, exclusiva e absoluta.

Contra essa modernidade de todas as eras, existe a premente recusa


de não aceitar a perda da dimensão plural dos acontecimentos de
sentido – aquilo que muitas vezes o teatro encena e para a qual o
cinema, em certos momentos, aponta.

7RGD REUD GH DUWH IDOD GH VL PHVPD (P FDGD ğOPH HP FDGD SHÍD
exibe-se uma realidade como linguagem das escolhas assumidas, de
SRVVâYHLV FRQFUHWL]DGRV $ DUWH FLQHPDWRJUÀğFD H D DUWH WHDWUDO VH
aproximam como vigilantes perpetuações do dramático, da capaci-
GDGHGDFRPSUHHQVÂRHPHIHWLYDUDFRQVWUXWLYLGDGHGRVFRQĠLWRVDR
invés do gerenciamento metafísico e conclusivo destes.

Num palco, numa tela o que se apresenta é mais do que se represen-


ta. Vê-se uma fatal combinação de presenças e ausências sobredeter-
minadoras do imaginário, que se faz no momento de sua recepção.

104 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Ver aqui é dinamizar a compreensão na assimilação dos diversos, em
uma lógica outra que mantém a pluralidade do que se concretiza. Ver
aqui é contextualizar o processo de referenciação na construtividade
GH VXD LQVWÁQFLD IRUPDWLYD 9HU Ò FRQğJXUDU Ò WUDQVFHQGHU R YLVWR
para patentear o horizonte construtivo do que se apreende. Eis a ex-
periência do dramático: concretizar no intervalo entre o real e o ima-
JLQÀULRPHGHDURLQğQLWRQRğQLWRPDWHULDOL]DURWHPSRGDRULJHP
na experiência originária da estrutura da compreensão conectada à
estrutura da criatividade.

A cena e a tela, meus amigos, ainda podem vencer a arena.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 105


106 Curso de Especialização em Teatro à Distância
CINEMA E
TEATRALIDADE:
O BEBÊ (SANTO)
DE MÂCON,
ESTE TEXTO É PARTE
INTEGRANTE DO LIVRO O
CINEMA E SEUS OUTROS,
ORGANIZADO POR RENATO
CUNHA, A PARTIR DE UMA SÉRIE
DE DODECACINE, UMA SÉRIE DE
DE PETER
GREENWAY
CONFERÊNCIAS REALIZADAS NO
SEBINHO (SQN 206), BRASÍLIA,
EM 2008. AGRADEÇO AO RENATO
CUNHA POR SUA LEITURA
ATENTA DO TEXTO.

11
11.1 PRELIMINARES

Cinema e teatro, atividades espetaculares, co-participam de um his-


WöULFRGLÀORJRTXHUHGHğQHFRQFHLWRVHSUÀWLFDVGHDPERV. Para além
Ver partes dessa história em GDVDQDORJLDVDSUHVVDGDVHSRQWXDLVXPDUHĠH[ÂRDSDUWLUGDGUDPD-
André Bazin, O cinema (São
Paulo: Brasiliense, 1991).
turgia fílmica de O bebê de Mâcon  GH3HWHU*UHHQDZD\HIHWLYD
o esclarecimento do jogo de apropriações e transformações existente
em eventos interartísticos e multidimensionais.

Inicialmente, é bom se ter em mente que as relações entre teatro e


Ver Marcus Mota, “Dramatur- cinema nem sempre foram assim amistosas. Há paradigmas antitea-
gia fílmica” (Belo Horizonte:
Anais da IV Reunião Científica trais em alguns momentos do percurso do cinema. Eisenstein (1898-
da Abrace, 2007) e Damiana
Cerqueira Rodrigues, O cinema  SRUH[HPSORDRORQJRGHVXDFDUUHLUDYDOHVHGHUHIHUÓQFLDV
teatral de Eisenstein: década de ao teatro, concebendo-o como modelo estético e dispositivo técnico
20 (dissertação de mestrado,
Universidade de Brasília, 2007). que precisa ser ultrapassado. Desse modo, a ampliação das possibili-
dades do cinema passaria pela ultrapassagem de sua moldura cênica.

(QWUHWDQWR R FKDPDGR ŃSULPHLUR FLQHPDń   DSUHVHQWD


se marcado por fortes laços a eventos performativos: a exibição de
Ver Laurent Mannoni, A gran- imagens em movimento para uma audiência em espaços de exibição
de arte da luz e da sombra (São
Paulo: Unesp/Senac, 2003) e
próprios de eventos circenses, de magia, pantomimas e aberrações —
Flávia Cesarino da Costa, O atrações que tanto maravilhavam o espectador. O teatro de varieda-
primeiro cinema (Rio de Janei-
ro: Azougue, 2005). des, o vaudeville, e sua localização da audiência e do lugar de exibição
cedo foram modelo para o registro cinemático de performances, com
a câmera em posição frontal a um proscênio e autonomia dos planos.

Ver Erwin Piscator, Teatro (DLQGDHVWÒWLFDVWHDWUDLVUHYROXFLRQÀULDVGH0H\HKROGD3LVFDWRUYD-


político (Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 1968). Para leram-se de projeções de imagens em movimento em suas encenações.
as contemporâneas experiên-
cias entre cinema e teatro, ver
Hans-Thies Lehmann, Teatro Assim, esse fértil intercampo de realizações estimula mútuos escla-
pós-dramático (São Paulo: Co-
sac Naify, 2007).. UHFLPHQWRVHUHGHğQLÍøHVGRTXHYHQKDDVHUŃFLQHPDńRXŃWHDWURń
Diante da estreita conjugação entre tecnologia e espetáculo, nem
teatro é mais aquela forma de expressão baseada em diálogos ilus-
trados por cenários inertes, nem muito menos cinema é uma história
ilustrada por imagens. Nos dois casos, por meio de uma aproximação
mais enriquecedora e exploratória, cinema e teatro seduzem o espec-
tador pela explicitação da heterogeneidade de efeitos e recursos que
organizam a elaboração e recepção de obras audiovisuais.

108 Curso de Especialização em Teatro à Distância


11.2 O FILME

0ÁFRQXPDFLGDGHDRQRUWHGH/\RQDNPGH3DULVFRQFUX]GHFD- Maria Esther Maciel, “Pe-


ter Greenaway’s encyclopa-
minhos, foi palco de guerras sangrentas entre católicos e protestantes edism”, em Theory, culture
no século 16. De sede da antiga diocese, Mâcon integrou o Sacro Império & society (UK: Nottingham
Trent University, vol. 23,
5RPDQRSHUğODQGRXPDORQJDKLVWöULDUHODFLRQDGDFRPUHOLJLÂRHSRGHU 2006), p. 53: “To call Peter
Greenaway’s cinema encyclo-
paedic is to recognize it as
this web of knowledge fiel-
ds, languages, metaphors,
A política de Mâcon é reinterpretada pela dramaturgia fílmica de Pe- allegories, literary references,
organized according to some
WHU*UHHQDZD\SRUPHLRQÂRVöGDLQWHUSHQHWUDÍÂRGHLQVWLWXLÍøHVH rigorous principles of order
— even if provisional and ar-
JUXSRVVRFLDLVYÀULRV LJUHMDFRUWHLQWHOHFWXDLVSRYRDUWLVWDV FRPR bitrary — to deal with a disor-
WDPEÒPGDFRQMXJDÍÂRGHDUWHV PĎVLFDöSHUDSLQWXUDIRWRJUDğD derly, ultimately absurd world.
Art History, Literature, Music,
OLWHUDWXUDWHDWURFLQHPD $DPSOLWXGHGRXQLYHUVRUHSUHVHQWDGRPD- Theatre, Dance, Cookery,
Architecture, Cartography,
terializa-se na diversidade interartística. Tal determinação de reunir Mythology, Electronics, Zo-
díspares e tornar simultâneos os diferentes multiplica os nexos, as ology, Botany, Landscape,
Gardening, Psychoanalysis,
referências, as associações produzidas . History, Calligraphy, Engine-
ering, Aeronautics, Geometry,
Como horizonte dessa heterogeneidade, temos a moldura teatral dos Anatomy, Astronomy, Phi-
losophy, among other fields
eventos expostos. Se tudo é mostrado, se tudo vem à superfície do of knowledge, compose this
mundo, do sexo à morte, tudo ganha um status de coisa exibida e cinema that, more and more,
moves away from the limits
percebida em sua exorbitância cênica: o excesso das coisas dispostas of the screen to expand itself
into several other artistic spa-
para se ver e ouvir acopla-se ao excesso de sua observação, pois atra- ces”. Para outras tentativas
vessa a sucessão dos acontecimentos a marcada presença de uma de definição da obra de Peter
Greenaway, ver Rosa Cohen,
platéia in loco. Em alguns momentos chegamos ao extremo de não Motivações pictóricas e multi-
mediais na obra de Peter Gre-
saber se assistimos ou não a uma peça diante do acúmulo do emol- enaway (São Paulo: Ferrari,
duramento teatral dos eventos. 2008); Wilton Garcia, Intro-
dução ao cinema intertextual
de Peter Greenaway (São Pau-
lo: Annablume, 2000); João
Carlos Gonçalves, “Banquete
dos signos: o estranhamento
Giovana Dantas, “Trânsito de imagens no cinema de Peter Greenaway: cinema, teatro, da recepção em Peter Greena-
artes visuais”, em Leituras contemporâneas (Salvador: Faculdades Jorge Amado, v. 1, way”, em Revista nexos (São
n. 2, 2003), p. 94: “O bebê santo de Mâcon (1993) é uma película que também leva o Paulo, 2001, p. 41-56); Maria
cinema a dialogar com o teatro. O filme trata de uma encenação, com platéia, em que Esther Maciel (org.), O cinema
toda a ilusão é desmistificada no final, quando a câmera recua e vai inserindo os espec- enciclopédico de Peter Gree-
tadores da peça no enquadramento. Enquanto isso, os atores agradecem os aplausos, ao naway (São Paulo: Unimarco,
tempo em que retiram seus adereços e a maquiagem. Apesar de utilizar uma composição 2004); Clélia Mello, O cinema
de plano extremamente simétrica e ordenada, com uma perspectiva acentuada que en- em cena: uma aproximação
fatiza a ilusão espacial das pinturas renascentistas, ele desmonta essa mesma ilusão, ao hipertextual à encenação de
se deter na natureza teatral do filme”. Peter Greenaway (Edição de
autor, 2001, hipermídia em
CD-ROM); Gilberto Alexandre
Sobrinho, “Espaço e sentido
em O bebê santo de Mâcon”,
em Cadernos da pós-gradua-
ção – Instituto de Artes/Uni-
camp (Campinas, v. 4, n. 1,
2000, p. 175-180).

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 109


Ivana Bentes, “Greenaway e a
estilização do caos”, em Ivana O imenso galpão que se abre em novos tablados abrange e não comple-
Bentes (org.), Ecos do cinema
(Rio de Janeiro: UFRJ, 2007), ta as tensões entre fé e ciência, que logo descambam para manobras de
p. 175: “A tela vira um palco interesses particulares. Ninguém escapa dessa nivelação dos valores. A
medieval e um tableaux vivant,
a história do bebê santo é en- cidade faminta, rodeada pela praga, converte-se no teatro de sua auto-
cenada dentro de uma catedral
e a platéia participa ativamen- fagia, na necessidade de fomentar mitos e de literalmente os devorar.
te do espetáculo no papel do
coro que narra e comenta a
história ao mesmo tempo. O
filme tem a estrutura de uma
ópera ou farsa cheia de sim- 2WHDWURQRFLQHPDFRPSDUHFHQÂRVöQDFODUDLGHQWLğFDÍÂRGRGLVSR-
bolismos”.
sitivo técnico-cênico.3DUDRPXLWRH[LELURğOPHH[SORUDXPDWHDWUD-
OLGDGHJHQHUDOL]DGD$TXLORTXHVHPRVWUDQÂRVHFRQğQD¿DSDULÍÂR
Comparar abordagem de Gree-
naway com a de Orson Welles, GRVHOHPHQWRV$PROGXUDWHDWUDOÒDFRQWLQXLGDGHGRğOPHLQWHUIH-
em Citizen Kane (1941), a de
Fassbinder, em Querelle (1982), e rindo na percepção do espaço das ações e dos comportamentos. Essa
a de Lars von Trier, em Dogville interferência intensifica a sensação de que tudo ali é construí-
(2003).
do, é um arranjo para sua recepção. Daí os fatos mais cruentos,
Sobre o conceito de “moldu-
ras”, ver Erving Goffman, Fra- na exorbitância de sua oferta, do estupro ao despedaçamento ritual,
me analysis: an essay on the organizarem-se como eventos teatralizados, e manifestando a sua
organization of experience (2ª
ed., Boston: Northeastern Uni- FRQğJXUDÍÂRHPFHQD
versity, 1986; 1ª ed. em 1974).

&RPDVPXGDQÍDVGHSODQRHGRVSDOFRVQDFRUHRJUDğDGDFÁPHUD
que vai do centro da cena aos bastidores, rompe-se com a clausura do
PXQGRUHSUHVHQWDGRHPXPğOPHFRPRXPDSHÍDğOPDGDFRPRXP
texto ilustrado por imagens. A trama narrativa contrapõe-se à trama
multimidiática, como espetáculos dentro do espetáculo. A história su-
cumbe ao mito, ao encenar o acontecer da crença, do como acreditar
em algo sem fundamento que se torna o fundamento dos atos.

Em Mâcon é preciso acreditar. Seus habitantes precisam crer. E nós,


que tudo vemos, também. O terrível e o sublime grotescamente se
encontram, e a mentira assumida como verdade depois se completa
no desmascaramento vingativo.

Quando tanto o omitir, a mentira, quanto o revelar são modos recí-


procos e falhados, a existência da comunidade se articula nessa ple-
tra do vazio, na superabundância do limite. Não há nada a esconder.
7RGDDPÀTXLQDGH*UHHQDZD\IDEULFDHHUJXHXPDFLGDGHTXHQRV
devolve seus escombros, seu cotidiano de sobreviver à míngua, nessa
fome de mais vida, nessa miséria da manipulação, dos embustes, do
auto-engano, do gozo dos simulacros.

2VKDELWDQWHVGDFLGDGHHYLGHQFLDPVHFRPRğJXUDVFRPRWLSRV1ÂR
KÀMXVWLğFDWLYDVGHFRPSRUWDPHQWRVHSRUPHLRGHVXDVIDODVRXWUDV
YR]HVSRGHPRVRXYLU(OHVQÂRVÂRSHUVRQDJHQVGHğQLGRVDSDUWLUGH

110 Curso de Especialização em Teatro à Distância


um programa de ação e verossimilhança. Eles são objetos mostrados
dentro dessa saturação antiperspectivista. Não há como haver identi-
ğFDÍÂRHPRFLRQDOFRPHOHVSRLVDVğJXUDVHPFHQDVÂRSDUWHVGHVVD Roberto Tietzmann, “Leituras
múltiplas de filmes plurais:
cidade, como o movimento da câmera e as coisas que se mostram. O interpretando o cinema de
Peter Greenaway”, em Sessões
ğOPHÒXPDH[SHULÓQFLDDXGLRYLVXDOTXHQÂRVHFRQğQDQDVFDWHJR- do imaginário (Porto Alegre:
ULDVDULVWRWÒOLFDVRXQHRDULVWRWÒOLFDVGHXQLğFDUDUHSUHVHQWDÍÂRSRU Famecos/PUCRS, vol. 1, n.
17, 2007), p. 14: “Para Gre-
meio de uma narrativa . enaway os realizadores teriam
se acomodado ao basearem
seus filmes em arquitramas

11.3
textuais vindos de outros
suportes, ao invés de experi-

POR UM mentarem jogos experimen-


tais de imagem e conteúdo

CINEMA NÃO
que permanecem — segundo
ele — amplamente inexplo-
rados no cinema. Portanto

EXCLUSIVAMENTE
o diretor afirma que ‘prova-
velmente não vimos nenhum
cinema ainda, vimos um pró-

NARRATIVO logo de 100 anos’, sendo que


o que teríamos visto agora é
apenas ‘texto ilustrado’”. Para
uma crítica do aristotelismo
como modelo dramatúrgico
Um esboço de defesa de um cinema não exclusivamente narrativo pode ser encontrado em Márcio e pressuposto interpretativo
Carneiro dos Santos, “O paradigma não-narrativo: do cinema de atrações à realidade virtual” (São de obras multidimensionais
Luís: Intercom, X Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, 2008). Seguindo Tom ver Florence Dupont, Aristote
Gunning, vemos que o repertório para a esta defesa não se reduz ao early cinema. As implicações de ou Le Vampire du théâtre oc-
um “cinema heterogêneo” não se restringem ao efeito sobre o espectador (atração). Temos questões cidental (Paris: Flammarion/
de dramaturgia, ideologia e operacionalização técnica, entre outras. Já André Parente, em Narrativa Aubier, 2007).
e modernidade: os cinemas não-narrativos do pós-guerra (Campinas: Papirus, 2000), ressalta outro
repertório (pós-guerra) e diverso arcabouço conceptual (Deleuze).

3HWHU*UHHQDZD\HPVXDVREUDVHVIRUÍDVHSHODH[SORUDÍÂRGHKLEULGLV-
PRVGHPRGRDHQIDWL]DUFRPRWDQWRVRXWURVğ]HUDPTXHDUWHFLQHPD-
WRJUÀğFDQÂRVHUHVXPHDFRQWDUKLVWöULDV$FLPDGHWXGRRğOPHPRVWUD
RğOPHGHPRQVWUDVHFRPRHYHQWRRUJDQL]DGRHSHUFHSWâYHO$RUHFXVDU
DH[FOXVLYLGDGHGLHJÒWLFD*UHHQDZD\SUREOHPDWL]DDKLVWöULDGRFLQHPD
HQRVVRVPRGRVGHFRQFHEHUHGHğQLUHYHQWRVPXOWLGLPHQVLRQDLV2TXH
está em jogo são nossas estratégias para compreender obras cuja espe-
FLğFLGDGHVHH[SUHVVDQDDPSOLWXGHGHVHXVPHLRVHHIHLWRV

Daí a importância da teatralidade: na cultura ocidental a situação de É preciso que algumas postu-
ras e equações sejam revistas,
performance, o ato de dispor para uma audiência materiais e habili- como, por exemplo, cinema =
narração, teatro = emoção, per-
dades in loco, encontra-se inseparável de sua inteligibilidade. Tanto sonagem = pessoa. Ver Marcus
que pode ser ensinada, comunicada, reconhecida. Esta tecnologia das Mota, A dramaturgia musical
de Ésquilo (Brasília: UnB, 2008)
representações implicada em uma situação performativa tem como
correlato nocional uma abertura ao simultâneo, ao múltiplo, ao he- Daí, seguindo Deleuze, a ten-
terogêneo. &RQWUD D LOXVÂR GR XQR ĎQLFR XQLğFDQWH WDO WHFQRORJLD tativa de se definir o cinema de
Peter Greenaway como “cinema
oferece-se a processos criativos os mais diversos. As decisões em um barroco”. Ver Susana Dobal, Pe-
ter Greenaway and the baroque:
processo criativo atualizam o drama da expressão, a encenação de writing puzzles with images
(tese de doutorado, The City
suas possibilidades, o roteiro de suas escolhas e exclusões. University of New York, 2003).

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 111


Por meio de uma generalizada situação de observância, de uma mol-
dura cênica, O bebê de Mâcon GHV PRQWDQRVVRVKÀELWRVGHDVVLVWLUD
REUDVFLQHPDWRJUÀğFDVSRUHVWâPXORVGLYHUVRVHFRQWUDDQDUUDWLYD
para que se veja que há diversos modos de se contar uma história,
como aquela com pedaços, os nacos de carnes de um anjo, nosso de-
sejo por um céu.

Este teatro que se abre em outros teatros, que se dobra sobre si mes-
mo, e se destrói, ruminando espaços múltiplos, além da peça sobre a
peça, expande a contingência de sua espetacularidade, oferecendo
ğJXUDVIDQWDVPDJöULFDVHQWUHOX]HVRPEUDVTXHDSHQDVVXEVLVWHP
no refazer suas verdades, em um cotidiano de aderir intensamente
àquilo que as fascina, sem conseguir ir além daquilo que em frente
delas cresce de valor pelo sopro do desejo.

Ver Marcus Mota, “O teatro Mise-en-scène, mise-en-cadre, mise-en-abyme. Mâcon é a cidade-ca-


como metaestética: subjetivi-
dade e jogo segundo H-G. Ga- verna em que se celebra o esteticismo cruel, única instância em que
damer”, em ReVISta (Brasília,
2005, p. 86-94). se engendram os sons e as imagens da tribo, as quais são a comida
e moeda, o que se quer e o que existe. Pois estamos e não estamos
Ver Wolfgang Iser, “What is li- em um teatro. O bebê é e não é divino. Tudo não passa de encena-
terary anthropology? The diffe-
rence between explanatory and ções, no sentido de que tudo é exibido, inclusive sua construtividade:
exploratory fictions”, em Michael do teatro à teatralidade. O recurso a molduras cênicas manifesta a
P. Clark (ed.), The revenge of the
aesthetic: the place of literature PDWHULDOLGDGHGRLPSXOVRPHWDğFFLRQDOTXHUHJHDVREUDVGH3HWHU
in theory today (Berkeley/Los
Angeles: University of California, *UHHQDZD\TXHVÂRDRPHVPRWHPSRREUDVHWHRULDVVREUHDWLYLGD-
2000, p. 157-179).
des representacionais.

(QğP LPSORGLQGR D SUHWHQVD XQLGDGH UHSUHVHQWDFLRQDO GR FLQHPD


HDQRUPDWLYDRUWRGR[LDGDŁHVSHFLğFLGDGHGDREUDFLQHPDWRJUÀğFDł
DGLYHUVLGDGHPDWHULDOHHVWÒWLFDGRFLQHPDGH*UHHQDZD\UDWLğFDD
busca por paradigmas pluralizados na compreensão e realização de
eventos multidimensionais.

112 Curso de Especialização em Teatro à Distância


11.4 O MELHOR DO PIOR:
HIPER-REALISMO E Publicado no livro Rádio Maior. Es-

REPRESENTAÇÕES peranças de um Homem. Brasília,


Arte&Contexto, 2005.

Marcus  Mota

2004

Revisto  em  Abril  de  2006

1RLQWHUYDORGHDSHQDVXPPÓVHPWLYHPRVHVWUÒLDVGHğOPHV
baseados em duas principais fontes da cultura ocidental: Cristo, em A
paixão de Cristo, de Mel Gibson, e A Ilíada/Odisséia, em Tróia, de Wol-
IJDQJ3HWHUVHQ (YHPPDLVSRUDâFRPR$OH[DQGHUGH2OLYHU6WRQH

Esta feliz ocasião, entretanto, só pode parcialmente ser comemo-


rada. E o motivo da comemoração reside em razão diversa daquilo
TXHSRGHULDKDYHUHQÂRKÀTXDQGRHVWDVKLVWöULDVFRQĠXHP9DPRV
por separado, pois as diferenças de tratamento do material excluem
qualquer tentativa de comparação. Por enquanto.

Primeiro A paixão de Cristo. Antes de tudo, é preciso adiantar que, in-


dependentemente das polêmicas religiosas, A paixão de Cristo não é
XPğOPH&RPRUHDOL]DÍÂRFLQHPDWRJUÀğFDQÂRVöÒSÒVVLPRFRPR
também um fracasso e desperdício do material utilizado, desde a par-
te técnica, e seus inúmeros e evidentes problemas de acabamento
- cenas mal iluminadas, cenários mal construídos, focos trêmulos e
embaçados - até a dramaturgia, que é sofrível – não há personagens,
QÂRKÀLQWHUSUHWDÍøHVDOÒPGDğJXUDGH3LODWRV&ULVWRORJRGHLQâFLR
é surrado no rosto, tem seu olhar eliminado, eliminando, desse modo,
VHXQH[RFRPRHVSHFWDGRU(DVğJXUDVTXHVHVHJXHPRXVXVSLUDP
e choram ou são estereótipos de vilões, rindo quando agem mal ou
quando espancam. A alternância entre cenas presentes e as memó-
rias é frouxa, não havendo qualquer relação entre estes grandes pla-
nos e contraplanos, a não de ser o de produzir um enxerto bizarro e
sem sentido na continuidade. Nem continuidade temos.

(VVD FRLVD TXH QÂR Ò XP ğOPH SDUHFLD FRPHÍDU EHP $ HVFROKD GD
FHQDQRMDUGLPGR*HWVÓPDQLFRPRDEHUWXUDHDSRGHURVDğJXUDGH
Jim Carvizel dando concretude à potencialidade dramática daquele
momento prenunciavam isso. Mas logo vieram 1- um pobre efeito de

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 113


máquina de fumaça e 2- uma melodiazinha de atmosfera, uma mu-
siquinha tão óbvia, padrão de momentos climáticos, que fez tornar
SHUFHSWâYHORWUDEDOKRGHGHVGUDPDWL]DÍÂRGDVHTđÓQFLDHPSUROGH
objetivos bem tangíveis e imediatistas. Dali para frente, a represen-
tação de Cristo não teria nenhuma outra prerrogativa senão a pre-
valência dessa intervenção explícita e detectável de quem manipula
a história, de quem faz ver o que deve ser visto: o diretor, com sua
sensibilidade de marombeiro.

E não há mais enganos. Cristo sem rosto e sem qualquer relação com
VHXFRQWH[WRQDUUDWLYRHKLVWöULFRÒXPSUHWH[WRSDUDH[HPSOLğFDÍÂR
GHXPHVTXHPDLQĠH[âYHOGHFDUDFWHUâVWLFDVTXHFRPELQDDWUDMH-
tória pop GR KHUöL TXH DSDQKD DSDQKD H DSDQKD FRPR QRV HP ğO-
mes dos brutamontes como Silvester Stalone e do próprio Mel Gibson
(lembre-se o indefectível Pay Back ŋDWRUPHQWRVDvia crucis católica
e seus quadros e contabilidade de quedas e injúrias e participantes. A
via crucis e o heroísmo pop convergem e mutuamente se alimentam
formando a coerência e a coesão de tudo o que é exibido na tela.

Essa viragem do Cristo para o esquema pop-religioso fundamentalista


é explicitamente apresentada e explorada durante a primeira tortura
de Jesus. Soldados romanos se revezam nos golpes diante de um Jesus
DPDUUDGRDRFHSR$SöVXPDH[WHQVDHHVWĎSLGDVHTđÓQFLDGHYLROHQWD
pancadaria, com a platéia já enfastiada diante de tanto sangue, Jesus
cede, rendido e aparentemente desmaiado. Mas não é assim. Não em
uma ‘obra’ como esta. Para perplexidade do público e dos soldados ro-
manos, Jesus recobra vigor e quer mais, mais porrada, como que pro-
vocando, exigindo que batam nele. Daí para frente é a mesma porcaria,
até a cruz, tudo metodicamente exposto, chegando ao anticlimax bi-
zarro-cômico dos corvos comendo o ladrão que ofendeu Jesus. A partir
dessa provocação, as portas da estupidez estão abertas e o pseudo-
retratismo de Gibson torna-se sem pudor algum um livre exercício de
suas limitações intelectuais, uma equivocada transposição do falso he-
URâVPRTXHYHPRVHPRXWURVğOPHVGRSUöSULR*LEVRQCoração Valen-
te e O patriota. A partir desse ponto, não há mais lugar para a platéia. A
saturação da violência expulsa, denuncia e nega qualquer constrangi-
mento. O que temos ali então senão um corpo mutilado cada vez mais,
um corpo em remendos, o corpo-hematoma, o não-corpo como veículo
para essa este espetáculo pop-fundamentalista? Não há nada o que fa-
]HUDJRUD9ÀHPERUDRXğTXHDWÒRğQDO$IXQGHVHQDFDGHLUDHHVSHUH
essa cansativa reiteração da mesmice passar.

114 Curso de Especialização em Teatro à Distância


O mais estranho é ver gente, gente de verdade chorando, se emocio-
nando com um negócio que foi feito para saturar a sensibilidade, para
de(in)senbilizar. Mas não deveria haver estranheza. Por séculos o cris-
tianismo dominante tem se valido dessa abstração sentimental, des-
se racionalismo da representação para eliminar qualquer vínculo do
crente com uma dimensão maior que a imagem. Presos ao epidérmico,
à pele esfolada, sofremos a impossibilidade da ação, a impossibilidade
de pensar e agir além do esquema imposto. Por isso o pop-religioso.
Diante da via crucis, não há nada o que fazer senão chorar por não fazer
nada. O que é realmente lamentável é que o drama da morte de Cristo
tenha se renovado secularmente nesse repugnante amortecimento de
nossas capacidades de pensar, sentir e agir. Todos nos transformamos
em uma massa anônima de incapazes e brutos, vivendo da contem-
plação e autopunição diante do sofrimento inocente. E isso nos acusa
e por séculos vai continuar a nos acusar: a omissão, o deixar de agir,
primeiramente conosco mesmo, o tornar inviável uma mudança que
pode acontecer com qualquer um, individualmente, quando o fascínio
da inércia é rompido e por livre e espontânea vontade um contato pes-
soal e único com esta história é realizado sem as muletas de sempre,
sem a cegueira e a lepra de agora.

$ğQDOÒSDUDHVVHFRQWDWRFRQFUHWRSDOSÀYHOTXHDQDUUDWLYDGH&ULVWR
se dirige. E. Auerbach, em sua básica obra Mimeis, ao fazer uma história
da representação da realidade no ocidente, atribui às narrativas em
YROWDGDğJXUDGH&ULVWRDUXSWXUDFRPUHJUDVHSURLELÍøHVHVWLOâVWLFDVH
ideológicas que limitavam a aparição do cotidiano à comicidade, nunca
ao sublime. A presença de Cristo, em seus encontros nos caminhos e nas
casas e suas conversações com as pessoas das mais variadas classes so-
ciais, fez explodir distinções, reunindo paradoxos e contrários na carne
viva e pulsante do mundo. Cessou a perspectiva privilegida que dividia
o mundo em atores e contempladores. Todos agora são personagentes.
O evangelho é para todos, não no sentido de um rebanho tangido pela
dependência psíquica a um sofrimento inoculado na semana santa e
nos natais. Para todos, porque não há uma instância prévia que nos
usurpe o valer-se de nossas próprias prerrogativas.

Ao invés disso, temos A paixão de Mel Gibson, sua obsessão em sodo-


mizar todo mundo com essa reciclada porcaria de uma mesma atitu-
de diante da narrativa de Cristo. Péssima montagem e acabamento,
perda de oportunidade e recursos, tudo para reperpetuar uma emo-
cionalidade sem objeto, um sentir sem vínculo, um sofrer sem porquê
além do próprio sofrer. Sofrendo o sofrimento, validando a invalidez,

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 115


pode-se continuar vendo e consumindo essa droga, sem precisar ler
RWH[WRYHURTXHHVWÀHVFULWRPXGDU$UHĠH[LELOLGDGHGXSOLFDDDEV-
tração: anulando a ocasião, opta-se pelo mergulho em si mesmo. Daí
o conforto ao se rever as mesmas imagens da paixão. Pois o Cristo lá
da tela não é outro senão eu, euzinho, um corpo pisado e oprimido,
o incompreendido anônimo sem rosto. Ou, melhor, o Cristo lá da tela
não sou eu, é um outro que não quero, por isso piso e oprimo qual-
quer possibilidade dele pode vir a me falar. Entre um e outro pólo, a
mesma exclusão. Entre o sofredor e o agente da tortura renova a dis-
posição de por pancadas e golpes simular um contato com algo que
não se quer contactar, por recusa, receio e omissão de acontecer algo
diferente do que vinha acontecendo.

E para piorar, o Cristo das pancadas, esse corpo moído e esquadrinha-


do, o detalhamento da violência, a violência generalizada torna-nos
contemporâneos e perpetradores de um saber e de uma habilidade
em conhecer o corpo para destruí-lo, uma ciência contra o corpo, para
fazê-lo calar, ciência essa elaborada durante a Inquisição. Os moder-
nos contempladores da tortura na tela tornam-se adoradores da vio-
lência praticada. Pensam que no hiper-realismo da representação, no
detalhamento dos golpes insaciáveis podem adentram na intimida-
de do sofrimento do mestre. Mas na verdade a única intimidade que
essa desmedida brutalidade contra alguém sem rosto e sem marcas
GHLGHQWLğFDÍÂRDFDUUHWDÒDLQWLPLGDGHFRPRDOKHDPHQWRÒDLQWL-
midade como mutilação e a eliminação da presença. Ferir é recusar,
Ò QHJDU Ò XP GHVHMR GH QÂR TXHUHU VDEHU 2 GHVğOH VDQJXLQÀULR H
gratuito dessa via crucisÒRGHWDOKDGRDIDVWDPHQWRFRPDğJXUDGD
tela. É nosso modo de abandonar, de dizer adeus: batendo, batendo,
batendo. Vocês, os novos inquisidores.

E tudo isso disfarçado, confundindo em uma pseudo-busca de verossi-


milhança histórica, ao se colocar pessoas falando em aramaico e latim...

Tróia, por sua vez, é um grato presente. A quase impossível missão de


dispor na tela os milhares de versos de Ilíada e outras mais de Odis-
VÒLDHQFRQWURXQHVWHğOPHXPDIHOL]VROXÍÂR3ULQFLSDOPHQWHQRTXH
diz respeito à atitude antibélica que atravessa essas obras. A confe-
deração liderada pelo chefe aqueu Agamenon para conquistar o povo
troiano e sua cidadela é uma oportunidade que, por meio de parale-
OLVPRVGHPRQVWUDDFRUUHODÍÂRHQWUHRVPXQGRVHPFRQĠLWR2HQWUH-

116 Curso de Especialização em Teatro à Distância


choque revela as complementaridades e diferenças. Temos reis como
GHWHQWRUHVGHSRGHUHPGHFLVøHVHTXLYRFDGDV $JDPHQRQH3ULDPR 
KHUöLVWRUQDGRVFDGÀYHUHV $TXLOHVH+HLWRU UHODFLRQDPHQWRVDPR-
rosos formando casais entre inimigos, mas que acabam sucumbidos
SHORVDWRVGHJXHUUD 3DULV+HOHQD$TXLOHV%ULVHLGD 'HQWURGRDWXDO
contexto de intolerância entre os povos e do expansionismo estadu-
nidense, as narrativas de Homero parecem ser reescritas diariamente
nos noticiários.

0DVDSULQFLSDOFRQWULEXLÍÂRGRğOPHGH3HWHUVRQÒGDU+RPHUR¿V
massas e renovar o contanto com a cultura clássica. Os Estudos da An-
tiguidade, em virtude do trato com suas complexas fontes e opções
metodológicas, têm se tornado patrimônio e privilégio de estudiosos
e especialistas. Nenhum problema. Porém, muitas, muitas vezes, em
nome de um purismo seja ideológico, seja metodológico, é produzida
uma moldura interpretativa em torno da recepção da cultura da Anti-
guidade, que acaba por controlar e determinar os modos através dos
quais se dá o acesso a esse conhecimento. Decorre dessa atitude um
certo elitismo nos estudos clássicos, uma predominância de se achar
que em qualquer lugar que você estude a Antiguidade as perguntas
devem ser as mesmas. E todo o esforço de dominar os textos em seus
originais torna-se após, muitas vezes, o vaidoso desempenho de ex-
SORUDUVLJQLğFDGRVHFRQFHSÍøHVDVPDLVSURIXQGDVHVXWLV

No entanto, vejamos e ouçamos Homero. Tróia traz para a tela as grandes


ğJXUDVLQGLYLGXDLVRVJUDQGHVSODQRVDVFHQDVGRVGXHORVHQDUUDWLYDV
que tornaram principalmente modelar o estilo homérico. A cinematogra-
ğDSUHVHQWHQRWH[WRGD,OâDGDÒLQWHUSUHWDGDDXGLRYLVXDOPHQWHHP7UöLD
A violência de Aquiles, a chegada das Naus, a sagacidade de Ulisses, a
EHOH]DGH+HOHQD2ğOPHTróia é uma antologia homérica.

Realmente há alguns problemas de interpretação, principalmente no


exagero da atuação informal de Brad Prit. Quando ele contracena,
seja com Ulisses, seja com Briseida, e alguns closes nos quais faz seu
famoso biquinho, vemos a estrela internacional e não Aquiles. Nesses
momentos, Brad Prit faz mais o papel de Helena que o de um fami-
gerado guerreiro. Mas na ira e no combate, é Aquiles que nos fascina.

2XWURHOHPHQWRGLVFXWâYHOÒWUDPDDPRURVDGRğOPHTXHVHQWLPHQWDOL-
za uma cultura que não trabalhava com nossos padrões de afetividade.
Mas vivemos em outros tempos. Toda visão do passado é feita a partir
do presente e com a mídia de hoje. E o amor nessa guerra apresentado

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 117


não em si, e sim como contraste ao amor à guerra, viabilizando concre-
WDPHQWHQDWHODDSHUVSHFWLYDDQWLEÒOLFDGDREUDKRPÒULFDHGRğOPH
Note-se como as lutas mesmas não recaem em uma exibição de deta-
lhes sanguinários – são sujas e tumultuadas, como se os membros do
FRQĠLWRVHLJXDODVVHPOXWDQGRFRQWUDVLPHVPRVFRQWUDVHXVDOLDGRV
confundindo, na loucura da guerra, perdedores e vencedores.

Esse fratricídio em meio a locações maravilhosas demonstra a estupi-


dez dessa batalha e de todas as outras que virão. A glória, a imortali-
dade gritada por Aquiles faz ecoar a possibilidade de uma outra vida.
Aquiles, em sua fúria assassina, será lembrado não como o melhor e
PDLVJXHUUHLURFRPR+HLWRU2IDVFâQLRGHVXDğJXUDÒSURSRUFLRQDO
àquilo que ele perde, ao que ele deixa de ganhar em cada vitória. A
máquina cega de matar esvazia o mundo em sua frente, deixando
uma trilha de cadáver da qual ele mesmo vai fazer parte. Quanto mais
DYDQÍDPDVVHGHVWLQDDRTXHID]PDLVVHDSUR[LPDGHVHXğP

( DVVLP VHQGR PDLV R PHOKRU DFDEDQGRVH HP VL PHVPR D ğJXUD


GH$TXLOHVHDVRXWUDVJUDQGHVVLQJXODUHVğJXUDVKRPÒULFDVDSUHVHQ-
tam-se fora da história, são mais que a vida. Sua imortalidade provém
desse excesso, dessa continuado realizar atos para além da experiên-
cia comum até que o advento da morte, que interrompe e delimita
esse movimento de excedência(QWÂRRHVSHFWDGRUğFDFRPDWUDMH-
WöULDHQÂRFRPRğQDOGRSHUFXUVR$PRUWHÒDSDVVDJHPGDREUDGR
contador da história para obra do sonhador da história. Mais que uma
sentença moral, o além-mundo atua sobre o aquém-sepultura.

'HVVDPDQHLUDDVğJXUDVSRGHPVHUHQRYDURFRQWDWRFRPDQDUUDWL-
va é atrativo. Tróia captou esse realismo representacional Homérico,
determinando um revitalizado encontro com essa milenar tradição.

E, podemos perguntar, o que fazer com tantas não correspondências


GRğOPHFRPDVREUDVKRPÒULFDV2QGHHVWÂRRVGHXVHV"2VGHXVHV
não estão presentes em Tróia. E Agamenon? Ele não morre em Tróia.
Morre quando voltar para casa. E Pátroclo: ele vai para a guerra com o
consentimento de Aquiles, segundo o texto homérico.

Bem, só sabemos da morte de Aquiles e da queda de Tróia e o cavalo


de Tróia em Odisséia, e não na Ilíada. Odisséia é um intertexto, uma
paródia, uma crítica da Ilíada. O ato de contar histórias se faz sobre
histórias anteriores. E cada história feita é um original, é uma ocasião
ĎQLFDFRPREHPQRVHQVLQDUDP03DUU\H$/RUGLQWÒUSUHWHVGDWUD-

118 Curso de Especialização em Teatro à Distância


dição homérica, autores que ousaram aproximar a épica clássica de
cantadores modernos. O desaparecimento dos deuses, a morte deles
ÒFRLVDTXH1LW]VFKHMÀEUDGDYD1RğOPHRVKRPHQVHQWUHJXHVDRV
seus negócios, a si mesmos, às piores coisas que eles próprios podem
querer e realizar, os torna destrutivos e carcaças inúteis. O desapare-
cimento dos deuses é uma interpretação de muitas de nossas secu-
lares de nossa cultura. E também, com a ausência dos deuses, outras
coisas mais também deixam de ter relevância.

Já Agamenon, o modelo do poder político beligerante expansionista, va-


lendo-se do sacrifício de seus homens em prol de realizar um insaciável
GRPâQLRSODQHWÀULRÒPRUWRQRğOPHSRUXPDPXOKHU%ULVHLGDFRPR
Clitemnestra, sua esposa e real algoz. E o heroísmo por osmose, doentio
HSDUDVLWÀULRGRMRYHP3ÀWURFORQRğOPHÒFDQFHODGRSRUVXDPRUWHFRP
ou sem consentimento de Aquiles, o que refuta, desse modo, o anti-mo-
delo guerreiro duplicado e assimilado pelos mais moços.

Mas não é preciso defender Tróia. O que é preciso é felicitar iniciativas


que devolvam para as pessoas a oportunidade de entrar em contato
com narrativas que atravessam nosso envoltório intelectual, nosso es-
capismo. E, em virtude disso, um renovado impulso em direção a essas
obras é proporcionado. Muitas pessoas saíram do cinema com uma in-
crível vontade de reler e reler Homero, perplexos ao saber que essa his-
tória foi contada há séculos. E então se defrontaram com as traduções.

As nossas traduções continuam enquadrando essas obras em um pe-


dantismo elitista ilegível. Ou transformam textos clássicos em pre-
textos para experimentalismos estéticos descompromissados com a
OHJLELOLGDGHHLQWHOLJLELOLGDGHRXHUXGLWL]DPRWH[WRğ[DQGRRSRU
meio da sintaxe e do vocabulário, em um português mofado e insí-
pido. As pessoas querem ler, mas não há texto. Pegue-se a recente
tradução da Ilíada feita por Haroldo de Campos. Há versos isolados
brilhantes. Mas não há texto. O leitor tem de se tornar um catador de
conchas, separando pedras e o que interessa. Essa ‘trans-helenização’
é na verdade um neoparnasianismo mais preocupado com recriação
GH GHWDOKHV OLQJđâVWLFRV TXH FRP R WRGR  D LQWHJUDÍÂR GR OHLWRU ¿
obra. Não consideração na narrativa, dos recursos de se envolver uma
audiência na trama que se conta. Não somos nem helenos nem do
remanescentes do século XIX para sofrer com esse atomismo verbal.

Ora, senhores muito estudiosos, por favor nos dêem textos melhores para
ler! Nos dêem, como Petersen, um grato presente, não o cavalo de Tróia!

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 119


3

Enfim, a impossível comparação. Mesmo sendo complicado dis-


cutir coisas já feitas, pois a discussão revolve-se sem a menor
alternativa de o produto venha a ser revisto, ou ainda, mesmo
sendo extremamente arriscado colocar em debate obras midio-
lógicas, como veremos, a resolução de olhar mais atentamente
para estes dois filmes e para outros mais pode ser usada de outra
forma que a nossa familiar rede de breves-comentários-após-o-
cinema-com-o-objetivo-de-não-dizer-nada-já-falando-alguma-
coisa. Complicado e arriscado é comentar obras e não fazer
obras, porque o melhor comentário de uma obra é uma outra
obra, assim como complicado e arriscado discorrer contempla-
tiva ou intelectualmente sobre produtos de consumo preso ao
circuito produto-consumidor.

7DQWRXPDHRXWUDUHVSRVWDDRVğOPHVSRGHPUHVXOWDULQVDWLVIDWö-
ULDV2FRPXPDLVVRWXGRÒDVHQVDÍÂRTXHXPğOPHÒDSHQDVXP
ğOPHHQDGDPDLV1HVVHSRQWRLOXGHPVHDVFUâWLFDVTXHDSHQDVYL-
sam desideologizar atos de consumo, apontar pressupostos de ma-
QLSXODÍÂRGDUHDOLGDGHFRPRVHVRPHQWHğOPHVIRVVHPLQWHUSUHWD-
ções distorcidas do mundo. Armados de uma artilharia conceptual,
até um simples conto infantil dá margem a tratados e artigos e
SXEOLFDÍøHVHPÒWRGRVSDUDLGHQWLğFDUHDQLTXLODUSHQVDPHQWRVGH
dominação. É muita artilharia para discutir tão pouca coisa. Notabi-
liza-se o crítico e não a crítica.

Em nosso caso, não estamos diante de grandes obras para fazer


uma análise tão multidimensionada. A paixão de Cristo é uma por-
caria, e TróiaXPğOPHFRUUHWR+ÀYDOLGDGHGHVHIDODUGHDOJRTXH
QÂRVHMDXPDREUDSULPD"0DVFRPRLGHQWLğFDULVVRSURGXÍøHVTXH
se distingam esteticamente? Obras audiovisuais colocam em xeque
muitas das práticas analíticas tradicionalmente válidas. Diante dis-
so, muitas vezes nada resta ao intérprete isolar-se em seu gosto
tido como particular ou desconsiderar a validade de se defrontar
com esses produtos de consumo. Entretanto, o que fazer quando
SURYRFDGRVŋVHÒTXHSRGHPRVDLQGDLGHQWLğFDUXPDSURYRFDÍÂR
- quando solicitados por realizações que se apropriam de materiais
historicamente fundamentais ? O que fazer quando algo que nos
pertence é referido e utilizado?

120 Curso de Especialização em Teatro à Distância


4

A história da guerra de Tróia e a vida e morte de Cristo atravessa-


ram séculos sendo oralmente transmitidos, desencadeando va-
riações e apropriações diversas em diversas situações. A situação
mesma de se ouvir estas histórias permaneceu durante muito
tempo como a única possibilidade de concretização dessas his-
tórias. Contar essa guerra e essa vida permeava atos e eventos
especiais de audiência e performance. Os filmes de Mel Gibson
e Wolfgang Petersen pertencem a essa longa tradição de apro-
priação e transformação desses relatos. Mas assim como há uma
longa história de apropriações, há também de orientações des-
sas retomadas. Cada retomada é única, pois faz vir à cena o relato
e sua orientação receptiva. Quando essas antigas histórias são
revistas, quem as apresenta hoje quer mostrar o que são essas
histórias hoje.

Para Mel Gibson o tempo de agora é isso o que ele exibe na tela: a
ênfase no que importa para as pessoas que vêem o que ele mostra. A
opção do hiper-realismo, na estranha atração e repulsa pela violência
física se complementa na perspectiva de platéia que domina o con-
servadorismo emergente, conservadorismo esse alheio a qualquer
forma mais complexa de pensar ou representar.

11.5 SOBRE O FILME


CAPOTE, DE BENETT
MILLER
Marcus  Mota

3/4-­‐março-­‐2006

Dentre tantos aspectos que poderiam ser abordados, destaco neste


comentário três: a interpenetração dos destinos do escritor e do as-
VDVVLQRDKRPRVVH[XDOLGDGHHUHODÍÂRHQWUHYLGDHğFÍÂR

Capote explora um momento decisivo na trajetória artística e pessoal


GRHVFULWRUDPHULFDQR7UXPDQ&DSRWH ŋ RVORQJRVDQRV
GHSHVTXLVDHDDJRQLDğQDOŋGHDSDUDHVFULWXUDGROLYUR
A sangue Frio$RPRVWUDURHVFULWRURğOPHDSUHVHQWDWDPEÒPRKR-
PHP(HVWDUHODÍÂRHQWUHDXWRUHVXDELRJUDğDPDLVTXHXPJÓQHUR

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 121


FLQHPDWRJUÀğFRFRORFDQRVGLDQWHGHXPDVLWXDÍÂRTXHXOWUDSDVVDD
JODPRXUL]DÍÂRGRELRJUDIDGR)RLRTXHRURWHLURGRğOPHFRQVHJXLX
realizar com muita qualidade.

1D YHUGDGH PDLV TXH H[LELU D YLGD GH 7 &DSRWH WHPRV QR ğOPH R
modo como o escritor T. Capote envolveu-se, em seu processo criati-
YRFRPDVUHODÍøHVHQWUHYLGDHğFÍÂR

A obsessão pela história, por uma história escabrosa - o assassinato


de uma família – que pertenceria mais às páginas policiais dos jornais
transformou-se, ao mesmo tempo, tanto em um dos grandes livros
PRGHUQRV TXH PXGRX R MRUQDOLVPR H XP SRXFR D SURVD GH ğFÍÂR
quanto praticamente sepultou a carreira do autor.

Durante o filme somos apresentados à figura de um escritor que


demonstra um gosto enorme por suas próprias performances em
ambientes sociais - comportamento que lembra O. Wilde - ex-
presso em comentários chistosos para agradar uma platéia se-
denta por novidades e jogos de “civilidade”. Em contraponto a
esse ambiente elitista e superficial, acompanhamos o escritor
em sua arquiviagem em torno de um acontecimento terrível. Das
rodas sofisticadas de Nova York a uma cela de prisão, Capote des-
dobra-se entre procurar acomodar estes ambientes diferidos ao
encanto de sua personalidade e sobreviver ao impacto que estas
realidades lhe ocasionam.

Em um primeiro momento, parecemos ver um anjo no lodo, um escri-


tor na sarjeta. As rodas artísticas de Nova York em nada se parecem
com os lugares relacionados com o crime: uma cidadezinha do inte-
rior do Kansas, o lar provinciano do delegado da cidade, a prisão.

Entre esses mundos, está o afamado homossexual T. Capote, ami-


go de artistas famosos, ele mesmo uma afamada estrela. Ao pro-
curar submeter estes mundos aos ditames de sua escritura, Capo-
te nos oferecerá um outro drama, que coloca a própria situação de
escritura em xeque.

Investigando os personagens envolvidos no crime, Capote detém-se


QDğJXUDGRDVVDVVLQR1HVWHPRPHQWRGRğOPHGHVGHRHQFRQWURQD
delegacia até a série de encontros da prisão, desloca-se a relevância
do crime para o envolvimento de Capote com o criminoso. A perspec-
tiva de Capote altera a realidade. O espectador chega até acreditar

122 Curso de Especialização em Teatro à Distância


que Capote afeiçoou-se ao assassino, o que é reforçado por alguns
FRPHQWÀULRVGHRXWUDVğJXUDVTXHSDUWLFLSDPGDYLGDSULYDGDGRHV-
critor - como o namorado de Capote.

1DYHUGDGHQRğOPH&DSRWHÒDWUDâGRWDQWRHVWHWLFDPHQWHHTXDQWR
pessoalmente para o criminoso. Esteticamente, por perceber que o
contato com esse material e seu desenvolvimento em livro poderia
lhe abrir as portas de um novo status na literatura americana – o de
alguém que rompe gêneros, inova. Essa busca por inscrever seu nome
no rol da fama determina todas as suas ações. De outro lado, pesso-
almente, a história do criminoso se aproxima da história do próprio
Capote. Capote não apenas interroga o outro, como também narra
sua própria vida.

A interpenetração entre o escritor e o personagem é tanta que sobre-


posições tamanhas se acumulam. Como toda história é uma seleção,
uma invenção, Capote mostra e esconde, manipula o contato com seu
interlocutor, agindo do mesmo modo como age em New York. Para
FRQVHJXLUYHQFHUQDDUWH&DSRWHVDFULğFDHPSDUWHVXDLQWLPLGDGH
produzindo um jogo perigoso para o escritor. O que é importante fri-
sar é o fato que Capote inicialmente parece ter controle do que está
fazendo. Mas o prosseguir da história transforma o autor em persona-
gem dessa trama que é maior que ele.

Assim, com um pé no esteticismo novaiorquino e outro na dura realida-


de da vida, Capote, de modo precário, procura conduzir-se. No entanto,
acaba por sucumbir à trama criada em volta dos acontecimentos.

Querer se conservar ileso em um processo radical que não negocia


diferenças e limites entre obra e vida é uma tarefa que nem o incrível
personalismo de Capote consegue. A ilusão da neutralidade, de uma
subjetividade que paira por cima dos eventos, é arruinada. A manipu-
lação da relação com o assassino demonstra isso. A maldade física e
brutal do criminoso, que matou a sangue frio quatro pessoas de uma
família, justapõe-se à maldade psicológica de mentiras, omissões e
sutilezas de Capote. Em ambos os casos, os dois homens mostram
duas culturas de sobrevivência, suas armas, suas estratégias. E, neste
entrechoque de culturas, Capote pensa que pode vencer valendo-se
apenas de recursos de retórica – argumentação e afetividade.

O paradoxo disso é que o sedutor escritor é seduzido por uma trama


que coloca em sua frente o prêmio estético, a glória, obtida somente

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 123


através do enfrentamento e negação daquilo que esse mesmo este-
ticismo reforça: o eu. Para ganhar, terá de perder, perder-se. Porque,
quando a base de tudo, da glória, do reconhecimento, do fazer artís-
WLFRVHIXQGDPHQWDQDUHDğUPDÍÂRGDVXEMHWLYLGDGHDPDLRUUDGLFD-
lidade, a maior conquista, a maior recompensa é justamente pôr em
ULVFRVDFULğFDUORJRHVWDEDVHHVWHIXQGDPHQWRRHX$UXSWXUDGH
Capote acontece dentro do horizonte daquilo em que ele acredita.
Realizada a ruptura, dissolve-se o mundo e seu horizonte, abatem-se
os limites da mesma estrutura. Para o mundo de Capote chegar ao
seu clímax, o mundo de Capote, Capote mesmo terá de ruir. E a ruína
psicológica de Capote está em contraponto à aceitação de morte por
parte do assassino. Capote, que começa como um ardiloso manipula-
dor dos outros, acabar por fugir deles, a tentar recusar a presença de
alguém além de si mesmo. Mas, de tanto invadir os outros, de tanto
ampliar sua forte presença, agora não consegue se esvaziar, não con-
VHJXHLPSHGLUDGHVDJUHJDÍÂRGDSUHWHQVDXQLGDGHGHVXDğUPHVXE-
jetividade. Porque Capote está na prisão junto com o assassino. Está
na prisão de suas crenças, de suas certezas. O assassino, por um lado,
vai se livrar da prisão morrendo; já Capote, de outro, ele completará
um longo ciclo de agonia, sem nunca mais terminar um livro.

Mais que a questão da ética entre entrevistador/pesquisador/escri-


tor e pesquisado, temos justamente esse núcleo duro de uma cultura
que se autocelebra através do culto à personalidade. Capote deseja
ardentemente terminar seu livro para entrar no panteão dos grandes
HVFULWRUHV3DUDUDWLğFDUVXDDPELÍÂRHOHWDQWRHVWHQGHRWHPSRGD
execução dos assassinos para obter relatos e informações para seu
livro quanto abrevia este mesmo tempo para se livrar de suas fontes
HGDUXPğQDODVXDREUD$JLQGRFRPR'HXVHOHDEUHYLDRXGLVWHQGH
GHVWLQRV$ĠH[LELOLGDGHQRWUDWRFRPDYLGDGRVRXWURVSDUHFHUHDğU-
mar a rigidez do plano escritural. Justamente é aí que se encontra o
grande problema – esta adequação entre obra e vida.

Antes, o homossexualismo. Aberto em Nova York, contido em Kansas.


Tanto que alguns dias depois, na cidade do interior, o próprio Capote
começa a se vestir menos espalhafatosamente. Para conseguir infor-
mações em uma entrevista, ele fala dos preconceitos quanto aos ho-
mossexuais. Alguns olhares, o jeito de Capote falar, andar e se vestir...
Essa esperteza, essa inteligência, manipulação... Em muitos casos tais
características, como se vê em O talentoso Ripley, perpetuam estere-
ótipos, baseados na pretensa identidade entre argúcia, homossexua-
lismo e maldade.

124 Curso de Especialização em Teatro à Distância


1R ğOPH R PHOKRU QÂR Ò R IDWR GH &DSRWH DPDU KRPHQV PDV VLP
de ele não gostar tanto de pessoas. E isso não tem sexo. Projetando
para o ofício de escritor algumas prerrogativas estritas, Capote vê-se
se cercado por gente, precisa de gente para fazer seu livro, precisa
de gente para o acompanhar, mas nunca adere a elas com o mesmo
entusiasmo e presença. Não há reciprocidade. Ele ama conhecer, bis-
bilhotar, saber, possuir o melhor e o pior dos outros, contudo recusa
conhecer a si ou mostrar-se com a mesma intensidade. Capote não é
homossexual, é pan-sexual, no sentido de estar eternamente insa-
tisfeito com coisas que não se reduzem ao circuito de seu controle e
,disso, parte para devorar tudo o que pode. Ele está em todos os luga-
res, nas festas em Nova York, em uma casa de verão na Espanha, em
presídios, alimentando-se insaciavelmente de tudo e todos. Faz tudo
isso porque pensa que a arte engloba o mundo, que o mundo nasceu
para aparecer nas páginas de um livro - o seu. E por isso não vai ter
sossego, não vai ter paz, e a realidade que não se deixa dominar por
quem quer que seja, a realidade pulsante e plural vai explodir em sua
cabeça porque o mundo não se limita à idéia que se venha a ter dele,
porque nós mesmos somos essa matéria viva e pulsante, a qual não
se pode pôr em parênteses e para a qual é impossível estabelecer um
espaço absoluto de atuação.

A falaciosa afetividade dessa subjetividade ditatorial e em colapso de


&DSRWHFRPHÍDDğFDUHPHYLGÓQFLDDSDUWLUGRPRPHQWRHPTXHR
assassino resiste em contar detalhes da fatídica noite. Diante dessa
GLğFXOGDGHTXHDWUDSDOKDWDQWRDDFRPRGDGDLQWLPLGDGHGH&DSRWH
com seu namorado quanto, pior, o prosseguimento do livro, o escritor
encontra um limite para seus propósitos. O outro é ao mesmo tempo
a fonte e obstáculo para a obra.

Quando pressionado, o assassino confessa o crime. As fronteiras entre


o mundo da obra e o mundo da vida são devassadas. A preocupação
em escrever um livro, que até aqui tinha dominado o relacionamento
entre Capote e o assassino, choca-se com a faticidade do crime. Até
certo momento, com a sedução de Capote se manifestando, o assas-
sino era um homem, alguém digno de ser amado. Não era um malfei-
tor. Atraindo o mundo para a sua obra, Capote nos proporciona certa
sublimação do terrível. Porque aquilo que ele experimenta, aquilo
que ele quer ver, aquilo que ele prova ganha autoridade em função
da qualidade de intensa expressão. A uma vivência obsessiva parece
corresponder uma escrita delirante. Pois em uma e outra sempre nos
ğDPRVDVVRPEUDGRVSHODğJXUDGHXPJUDQGHHPDUDYLOKRVRDXWRU

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 125


No entanto, o assassino confessa, narra com detalhes o sórdido ato,
que não passou de um hiperbólico e inútil assassinato, realizado por
descontrole e sem nenhuma recompensa econômica. A inutilidade le-
vada aos extremos não se chocaria com a obra-prima, fruto de tanta
mentira? Ou melhor - será que as festinhas intelectuais de Nova York
não são como as gaiolas de gente das prisões interioranas?

O assassino está confuso. Descobre em Capote um estranho amigo,


um ambivalente ajudador. O interesse por sua história, por sua vida
louca, consumir essa desgraça toda vai aos pouco surgindo ao as-
sassino quase que como um consolo. O desespero da morte esvai-se
GLDQWHGRGHVHVSHURGHTXHPğFD

Porque não houve amor nem sexo. O homossexual aberto a todas


as experiências, o homem fascinante fulgura nu e desolado. Todos
RV SURFHGLPHQWRV HIHWXDGRV SDUD JDUDQWLU D REUD ğ]HUDP FRP TXH
Capote perdesse sua existência. A obra, a glória da obra não lhe de-
volveu todos os esforços, todo o imenso esforço que empregou em
GHL[DUGHVHUDOJXÒPSDUDVHUXPHVFULWRU$VVLPFRPRDELRJUDğDGR
DVVDVVLQRHDGH&DSRWHVHLQWHUSHQHWUDYDPQRLQâFLRGRğOPHFRPR
XPDHVWUDWÒJLDGHVHGXÍÂRDJRUDHVVDVELRJUDğDVQRYDPHQWHDSUH-
sentam paralelas, mas de modo cruel: os dois tiveram infâncias, co-
PHÍRVGLIâFHLVDJRUDWÓPğQVDVVHPHOKDGRV2HQUHGRGRDVVDVVLQR
HPVHXLQâFLRPHLRHğPÒDKLVWöULDGH&DSRWH&DSRWHTXHUHQGRHV-
crever, acaba escrito. A escrita não é salvaguarda contra o mundo. Ao
se aproximar do sem sentido da vida, da vida em seus tantos absur-
dos deve-se ter em mente que não há como se refugiar em si mesmo.

Em último lugar, fechando as pontas, o impressionante é que


este filme sobre um escritor, acaba por se mostrar como meta-
ficional, uma discussão mesma sobre as relações entre ficção e
realidade. Pelo exemplo de Capote fica patente que quem quer
que se valha de material cotidiano ou biográfico para escrever
vai se defrontar com uma pluralidade de questões que se resol-
vidas apenas por oposições isso pode acarretar dificuldades não
só para a escrita, como também para o próprio escritor. Para nós
que vimos o filme, a obsessão com uma vivência alheia sempre
é uma obsessão com a vivência própria. Nós nos apropriamos o
tempo inteiro dos outros e da imagem que os outros têm de nós.
E, em algum momento, parece que temos certeza de quem so-
mos. Logo depois um outro que conhecemos ou um outro que diz
algo de nós chega e tudo muda. O que mais impressiona é que a

126 Curso de Especialização em Teatro à Distância


agonia final de Capote pode ser entendida como a perplexidade
que nos toma quando queremos definir quem somos. Manipulan-
do relações interpessoais, submetendo as mais abjetas figuras a
uma convivência pragmática - tudo em função de um resultado
que considerava o melhor e sublime - Capote desrealizou-se, des-
humanizou-se. Em um primeiro momento, era bom e doce ver e
ouvir por meio dos olhos de Capote. Após, o mundo ficou terrível,
desabitado, morto – Capote um assassino, fazendo desaparecer
as pessoas; o mundo de Capote desvanecendo-se... Ao fim do
filme, pelos olhos de Capote, pelos olhos do grande ator Philip
6H\PRXU +RIIPDQ VREUDP DSHQDV DTXHODV SDLVDJHQV LPHQVDV
distantes, fixas que atravessam o filme, aquela sensação de não
haver ninguém ali há muito tempo.

11.6 CAPOTE E A
MARCHA DO
IMPERADOR?
QUE ESTRANHA
APROXIMAÇÃO...
Marcus  Mota

13-­‐03-­‐2006

Mas a auto-destrutiva subjetividade da personagem Capote partilha e mui-


WRGDLQĠDÍÂRGDVXEMHWLYLGDGHYLVWDHPA marcha do Imperador. Negativa
ou positivamente, acompanhamos essa luta contemporânea em pessoali-
zar todos os atos, em marcar todos os valores e julgamentos sob o signo
GDğJXUDKXPDQD$$FDGHPLDPHVPDVHWRUQRXXPFast food, com teorias
TXHSDUHFHPMXVWLğFDWLYDVGHRSÍøHVSDUWLFXODUHV&RPDTXHGDGRVJUDQ-
des ideais, a cultura ocidental optou por naturalizar tudo em torno de um
centro de orientação: emoções pessoais, a intimidade devassada.

Se não, vejamos. A marcha do Imperador seria um documentário so-


EUHELFKRV0DVRğOPHGH/XF-DFTXHW HVWRXFRPHQWDQGRRRULJLQDO
IUDQFÓV TXLVH[WUDSRODULVVR3DUDTXHID]HUPDLVXPGRFXPHQWÀULR"
O material riquíssimo e surpreendente da expedição de Jérome Mai-
son, que passou 13 meses nas geleiras da Antártida observando os
SLQJđLQVLPSHUDGRUHVÒHQWUHPHDGRSRUFDQÍøHVHQDUUDÍøHVHPoff.
Ciência e entretenimento são conjugados.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 127


O material de observação apresenta a gigantesca façanha desses pin-
JđLQVTXHWRGRDQRFRPRDSUR[LPDUGRLQYHUQRVHGLULJHPSDUDXPD
certa região da Antártida para cumprir com os rituais de procriação
que asseguram a continuidade de sua espécie. Os longos percursos
GHPDFKRVHIÓPHDVSHODEUDQFXUDLQğQLWDGRJHORRVSHULJRVRFXL-
dado com a prole, a luta contra as intempéries do tempo – tudo isso
fornece para o espectador um painel ao mesmo tempo épico e frágil
de um grupo de animais. Frágil, porque uma drástica mudança do
clima pode exterminar toda a raça.

Agora o tratamento artístico do material. Ao invés do épico, temos


DVDWXUDÍÂRGROâULFR2VSLQJđLQVJDQKDPYR]HVHWULOKDVRQRUD2V
milhares de bichinhos são reduzidos a uma família: um papai, uma
PDPÂHHXPğOKLQKR$VYR]HVHPoffDWULEXHPDRVSLQJđLQVLGÒLDV
emoções, reações tipicamente humanas e classe média. O auge des-
sa afetuosa representação está no clímax audiovisual do intercurso
FDUQDO HQWUH SDSDL H PDPÂH SLQJđLP 6RE D DXUD GH XPD FDQÍÂR
breguíssima tipo motel, nós vemos aquelas geladeiras ambulantes
fazendo... amor!... E falando, falando, falando, declarando-se. Como
se fala na França!

Colocar bicho pra falar é uma velha tradição. Mas aqui não há fábula
e sim uma bizarra mistura de um papo conservacionista com uma
novelinha. Essa bizarra mistura não é nem uma narrativa dramati-
zada nem um discurso coerente. Não é gente falando, nem muito
PHQRVELFKRDJLQGRFRPRELFKR$VFDQÍøHVTXHDWUDYHVVDPRğOPH
ora relacionam-se com os eventos em cena, ora duplicam o discurso
conservacionista, mas, nesta duplicação, ainda vale-se de recursos de
marcação emocional exacerbada.

2XVHMDDQWHVGDSULPHLUDPHWDGHGRğOPHWHPRVXPDVDWXUDÍÂRGR
KXPDQRHPXPğOPHTXHPRVWUDDQLPDLV$IDPâOLDYHQFHQGRVREUH
todos os obstáculos, contra a natureza mesma, é a emblemática con-
FOXVÂRGRğOPH7XGRÒWÂRSHULJRVR7XGRÒWÂRDPHDÍDGRU2XQLYHU-
so inteiro conspira contra o casal e seu bebê. Momentos alegres se
revezam com momentos tristes. Em quase duas horas vemos a vida, a
YLGDWDOFRPRHODÒ2ğOPHQÂRÒVREUHSLQJđLQVÒVREUHQöV

vHVWDGLPHQVÂRDXWRUHĠH[LYDGHQRVVDFXOWXUDTXHVHGHVWDFDQHVVH
HPSUHHQGLPHQWRFLQHPDWRJUÀğFR2WHPSRLQWHLURVRPRVQöV1ÂR
há nada que ande, voe ou se arraste que não venha adquirir uma mol-
dura daquilo que a comunidade humana conheça.

128 Curso de Especialização em Teatro à Distância


(VWDLGHQWLğFDÍÂRDQWURSöLGHÒDQWLJD2SHQVDGRUM÷QLFR;HQöIDQHV
no século VI a.C. , censura aqueles não sabiam distinguir as frontei-
ras entre o humano e o não humano. Para ele, “Homero e Hesíodo
atribuíram aos deuses tudo quanto entre os homens é desonroso e
repreensível – como roubo, adultério e mentiras uns com os outros.
 2VPRUWDLVDFKDPTXHRVGHXVHVQDVFHPHTXHWÓPURXSDVYR]H
corpos como os mortais têm.” Esse traço semita encontra-se no Gêne-
sis bíblico com a um Javé dizendo que criou o homem à sua imagem
e semelhança.

Bastou um século com duas guerras mundiais e dezenas de outros


fatores para que se implodisse esse humanismo e que no lugar dele
se colocasse a globalização, a mundialização do sujeito consumidor,
alheio a um mundo maior que o de sua residência, sentado em seu
sofá, comendo e contemplando as coisas em sua tv. Este esvaziamen-
to de grandes perspectivas, de perspectivas maiores que o ato de pa-
gar com o cartão de crédito ou clicar um botão acarreta uma nostalgia
de um lugar seguro, de uma referência. Quando Deus, Estado e Indi-
víduo soçobram diante das desgraças repercutidas pelos meios de
comunicação e reproduzidas em largas escalas nos produtos culturais
massivos, é preciso encontrar um lugar estável, uma segurança.

Porque o que está ameaçado, o que está marchando para a sua extin-
ÍÂRQÂRÒRSLQJđLPLPSHUDGRU$SöVWDQWRVVÒFXORVFHOHEUDQGRDVL
mesma, nossa cultura defrontas-se com seu esgotamento ou com seu
GHğQLWLYR TXHVWLRQDPHQWR VHUÀ TXH H[LVWH DOJR DOÒP GR KXPDQR"
(VVDKLSHULQĠDÍÂRGDLQWLPLGDGHH[SRVWDQRLQWHUFXUVRHQWUHPDPÂH
HSDSDLSLQJđLPQÂRVHULDXPDGHPRQVWUDÍÂRGHQRVVDDJRQL]DQWH
falta de plasticidade. Com o mesmo barro há séculos forjamos uma
imagem nossa em tudo que nos cerca. Contra este envoltório, forja-
mos uma autoimagem capaz de estar em todos os lugares o tempo
inteiro. E agora só vemos isso – nós.

Capote nos mostra a extinção do homem por ele mesmo, sua morte
em vida, sua desrealização. O ímpeto de uma pessoa só em conformar
vidas alheias acaba por desvitalizar a sua própria vida. E como autor
e como pessoa, Capote deixa de ser para se perder no labirinto que
reagiu contra seu arquiteto.

O estrondoso sucesso da novelinha-documentário A marcha dos


pingüins nos aponta para aceitação da saturação da pessoa. Tudo é
pessoal, tudo foi feito para você, porque você é importante. Essa re-

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 129


DğUPDÍÂRGDSHVVRDHPXPPXQGRFDGDYH]PDLVPDUFDGRSHODLQ-
tolerância e conservadorismo é um canto de vitória da não mudança,
da restrição ao que vai além do círculo em volta de nós mesmos. Cada
vez mais tudo é particular. É a universalização da coisa própria pela
expropriação da coisa alheia.

Mas em alguns momentos, quando a imagem captada se descola de


seu aparato, podemos ver o bicho, o bicho mesmo, como ele às vezes é.
A montagem das imagens e a redundância da música cessam seu im-
perioso reino de seduzir e podemos ver algo que não nos pertence ou
que nos pertence de uma outra maneira. Essa descontinuidade, esse
estranho lugar vazio na imagem nos mantém em expectativa, uma ex-
SHFWDWLYDTXHGXUDQWHRğOPHQÂRVHFRQğUPDQÂRHQFRQWUDVHXREMH-
WR8PğOPHPRVWUDPXLWDVFRLVDVHHQWUHHODVFHUWRVYâQFXORVTXHQÂR
VHJXHPDLQH[RUÀYHORUGHQDÍÂRGRĠX[RGDTXLORTXHÒH[LELGR

Esse rasgo, essa cova atrai tanto como a novelinha. Junto com a trama
SDSDLPDPÂHğOKLQKRREVHUYDPRVDOJRTXHQRVHQFDQWDHHQWXVLDV-
PD$UHĠH[LYLGDGHGDSHVVRDTXHSDUHFHRWHPSRLQWHLURUHSHUFXWLU
em todos os produtos da cultura, ganha aqui seu limite e seu funda-
mento: será que expandimos obsessivamente nossa presença na ter-
ra como modo de reagir àquilo que desconhecemos e que ultrapassa
HPSRGHUDTXLORTXHSRVVXâPRV"3RLVDğQDOGHFRQWDVGHYHKDYHU
DOJXPDUD]ÂRSDUDğFDUPRVQRYHOL]DQGRXUVLQKRVSDQGDVJROğQKRV
cães e gatos e, principalmente, nós mesmos.

7DOYH]SRUTXHVHMDLVVRPHVPRTXHVRPRVğJXUDVğJXUDDJLQGRSRU
ğJXUDVHVHPWULVWH]DRXDOHJULDVöWHPRVXPOLPLWDGRDFHVVR¿TXLOR
TXHHVFDSDDQRVVDUHDOLGDGHGHğJXUDVTXDQGRHPDOJXQVPRPHQ-
WRV EUHYHV GHL[DPRV YHU SDUD QRV FRQğUPDU H QRV WUDQVIRUPDPRV
em coisas entre coisas.

130 Curso de Especialização em Teatro à Distância


11.7 SYRIANA!!! ENTÃO
HOLLYWOOD É
ADULTA AGORA?
   Marcus  Mota  

21-­‐03-­‐2006

Novamente a questão da dramaturgia. A tentativa de abarcar cul-


turasdiversas por meio de um roteiro frouxo coloca diante de nós a
descontinuidade entre bons propósitos e sua resolução. Há tempos é
preciso que se tenha em mente que não é com boas intenções que se
ID]XPERPğOPH6HIRVVHDVVLPDPDLRULDGHREUDVGHQRPLQDFLR-
nais teria alguma qualidade.

3ULPHLURYHMDPRVDVLQWHQÍøHV$VYÀULDVKLVWöULDVDSUHVHQWDGDVQRğOPH
procuram mostrar como a questão do petróleo e suas implicações econô-
micas interferem na vida de pessoas das mais variadas culturas megacor-
porações, pequenas empresas, gente simples, agente secretos, um emir
reformista, um garoto paquistanês convertendo-se em homem-bomba...

Essa busca pelo global, esse didatismo marxista, contudo, esbarra


nas limitações de sua organização. O importante não é englobar o
mundo, para mostrar quão importante é isso o que se está defenden-
do. O problema é falhar nisso. Aí entra a dramaturgia. Pois a transpo-
sição de uma aguda cartilha marxista para a tela – o que poderia ser
uma coisa inteligente, adulta – constitui aqui um despropósito, uma
perda de oportunidade, o desenvolvimento de expectativas negati-
vas frente a empreendimentos futuros assemelhados, um desserviço.

Olha, se você quer ser sério, você tem de ser sério em tudo. Não basta
delegar a relevância do tema para o público. É você mesmo que tem
de fazer algo relevante. Nisso temos a falha de todos os bons propósi-
tos, de todas as boas intenções. Todos são louváveis, necessários. Mas
não passam de algo sobre o que a gente apenas fala, perpetuando a
convivência com questões que não são resolvidas.

A dramaturgia é a chave. A amplitude da questão do petróleo é veicu-


lada através de tramas paralelas. Estas tramas paralelas são exibidas
HPVHTđÓQFLDVGUDPÀWLFDVTXHQÂRVHUHODFLRQDPHQWUHVLGXUDQWHD
PDLRUSDUWHGRğOPH

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 131


0DV R HTXâYRFR PDLRU QÂR HVWÀ QLVVR 2 HTXLYRFR HVWÀ QDV VHTđÓQ-
cias mesmas. Elas são frouxas demais, muitas vezes informativas em
excesso, com pessoas falando, falando sem que haja realmente ação
além de dizer palavras e contracenação. Estes papagaios de cartilha
marxista aparecem na tela, vêm e vão ao sabor das imagens sem que
retomem ou projetem ou construam alguma presença válida. A frou-
[LGÂRGDVSDUWHVLPSORGHDSHUVSHFWLYDJOREDOL]DQWH$RğPUHVWDR
LQYHUVR GDV LQWHQÍøHV 'H ğOPH GHQĎQFLD GH ğOPH DGXOWR GH ğOPH
VÒULR6\ULDQDFRQYHUWHVHHPXPDOLPLWDGDJHQHUDOL]DÍÂRGHFULDQÍDV
alimentadas no leito expansionista e imperialista norte americano. O
ğOPHUHSURGX]HVVDYLVÂRLPSHULDOLVWDHVVHLQIDQWLOLVPRQDVXWRSLDV
e destruição de utopias das personagens e na ausência completa e
DEVROXWDGHğJXUDVIHPLQLQDV

Ah, sempre o negativismo... Para ser adulto e sério as pessoas preci-


VDP QHJDU WXGR0DV RV FRZER\V FRQWLQXDP PDOYDGRV $JRUD EULQ-
cam de conspirar, de procurar mostrar que sabem mais que todo
mundo, por que estão envolvidos ativamente nas maiores desgraças
GRV ĎOWLPRV DQRV 1ÂR SRU DFDVR R GLUHWRU GH 6\ULDQD 6WHSKHQ *D-
JKDQÒRURWHLULVWDGH7UDIğF(8$HDVGURJDV2XVHMDJOREDOL]DÍÂR
é fruto do provincianismo.

Propondo um filme sem nexos entre as situações e sem situações


TXHVHDSURIXQGDP6\ULDQDDWXDOL]DHVVHPXQGRGHQWURPXQGR
esse autismo da cultura norte americana, no qual a informação é
mais importante que a real vivência. A aparente complexidade do
filme e do tema é uma ilusão fundada na autocelebração dessa
cultura autista. Na verdade, tudo é mais bem simples do que aqui-
lo que o filme apresenta. Bastam certas decisões. E essa confusão
tomada por complexidade faz parte de uma mente juvenil que não
consegue deglutir o que devora por que tem medo de se expor,
de participar do que realmente é. É tão infantil esta pretensão de
seriedade do filme que há um enorme esforço em não se recair em
aspectos emocionais, em não haver envolvimento entre os perso-
nagens. O que move os personagens são idéias. Mas uma coisa é
sentimentalismo, outra marcação emocional. Na busca de tentar
VHGLIHUHQFLDUGHRXWURVILOPHVSLSRFD6\ULDQDUHFDLQDPHVPDDU-
madilha: uma homogeneidade da resposta da audiência, aqui pro-
duzida via um desorganizado painel de alguma coisa que sugere
ser importante, mas que soçobra, vira ruína diante de seu trata-
mento cinematográfico.

132 Curso de Especialização em Teatro à Distância


(QğPYHQGRRğOPHRHVSHFWDGRUğFDQDTXHOHLPSDVVHRWHPDGR
ğOPHÒLPSRUWDQWHPDVRğOPHÒFKDWR6HQÂRHQWHQGRHQÂRVRX
LGLRWDRXVXSHUğFLDO6HHQWHQGRHGLJRTXHJRVWRHVWRXPHQWLQGR
,PSDVVHIÀFLOGHVHHVFDSDUYLHVHLSRUTXHRğOPHQÂRSUHVWD$VVLP
DRQGDDGXOWDHP+ROO\ZRRGVöH[LVWHSDUDTXHPQÂRTXHUFUHVFHU
(QWUHXPğOPHTXDGUDGLQKREHPIHLWRHHVVHGHVDUWLFXODGRHSVHX-
dointelectual e artístico não há muita diferença. Não é por falta de
denúncia e boas intenções que o mundo continua o mesmo. É por se
criar esta moldura, este paraíso ou inferno em volta de tudo que as
FRLVDV FRQWLQXDP FRPR HVWÂR 2 QRPH 6\ULDQD TXH GÀ WâWXOR DR ğO-
me traduz isso: refere-se a uma idealização da realidade, a uma pres-
suposição por parte dos ocidentais quanto a uma região do Oriente
Médio. O Oriente do Ocidente é um interesse que se explicita tanto
QDVPDQREUDVSROâWLFRPLOLWDUHVTXDQWRVQDVUHSUHVHQWDÍøHV6\ULDQD
DLQGDHIHLWR6\ULDQD

11.8 COMICIDADE:
ADAPTAÇÃO
DE PEÇAS DE
ARISTÓFANES
NO ESPETÁCULO
A ÉTICA É UMA
COMÉDIA
Marcus  Mota

23-­‐5-­‐2006

Aristófanes vale o ingresso. A adaptação de parte de Um Deus Cha-


mado Dinheiro e de As nuvens produz esta despretenciosa comédia
A Ética é uma comédia$HğFLÓQFLDGDDGDSWDÍÂRHVWÀHPDOJXQVGH
seus recursos de materialização da comédia. Os senões se encontram
justamente quando trazem Aristófanes sem esses recursos. Eis o pa-
radoxo: a parte mais engraçada não é Aristófanes, mas é por causa de
Aristófanes que as coisas se tornam engraçadas.

Tal paradoxo se esclarece: a comicidade está muito relacionada com


a cultura, com as referências. Rimos do que conhecemos, do que sa-
bemos, mas não queremos discutir. Em parte aquilo que a adaptação

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 133


OHYRXSDUDRSDOFRSDUHFHVHUXPSUREOHPDTXHKRMHWDQWRQRVDĠL-
ge – ética -. No entanto, esse não era o alvo crítico de Aristófanes.
A seriedade do tema não torna uma comédia algo relevante. Nesta
montagem, os trechos selecionados de Aristófanes procuram incre-
mentar essa pressuposta postura desmascaradora da comédia, que
denunciaria todos aqueles que querem agir em benefício próprio em
detrimento de valores e da sociedade.

Mas o melhor está na criativa apropriação da comédia de Aristófanes em


ritmo meio chanchada, meio teatro de revista, tanto com a marchinha
Ł0LQKDWHUUDWHPSDOPHLUDłIRUPDQGRDVDEHUWXUDVHğQVGHSDUWHVTXDQ-
to nas atuações caricatas. Os exageros, as caretas, os cacos, os palavrões,
as péssimas dancinhas - tudo isso não importa. A esculhambação organi-
zada da peça não veio para agradar classicistas empedernidos.

$OLGLDQWHGDTXHODSREUH]DGHFHQÀULRVHGHğJXULQRVEHPIXQFLRQDLV
HHğFD]HVRSĎEOLFRSRGHULDHVWDUFRPRQD*UÒFLDGLDQWHGHDOJRIHLWR
para rir e para pensar, mas, antes de tudo, diante de um espetáculo
engraçado. Nunca um palavrão foi tão gostoso, como as intervenções
do nosso Strepsíades, o Adalberto Nunes. Nunca a bichice atribuída aos
atenienses foi tão grotescamente explorada como no nosso Sócrates
Roberto Wagner e seu coro de nuvens. Quando não se tem te pagar pe-
dágio, a pista é livre, e dessa liberdade advém algo: uma total e precio-
sa falta de ridículo,de um ridículo como defesa pra agradar intelectual.

Certo que há problemas. A limitação dos comediantes com o texto os


coloca algumas vezes atrás das palavras, expondo não o personagem,
mas o ator e sua falta de preparo para a cena. Mas um comediante não
é um ator stanislavskiano. Um comediante não se aprofunda na criação
de personagens, mas sim nas habilidades para enfrentar a situação de
produção de comicidade. E o que um ator da comédia de Aristófanes
fazia senão estabelecer contato com seu público, reinterpretando o
que em cena era apresentado? Este tipo de interpretação atravessada,
difusa, enviesada, segue um distinto padrão de construção.

Ora, está na hora de julgar e apreciar a comédia pelo que ela é. Direto-
res, comediantes e público precisam assumir a comédia em sua total
dimensão. Fazer comédia não vai salvar o mundo, nem revelar o que
MÀVHVDEH1ÂRYDPRVğFDUPDLVVÀELRVQHPPDLVLEVHQLDQRV(QIUHQ-
tar a disposição comunal que a comédia efetiva já é um ato político.
Rir, rir junto, rir junto com o que os comediantes realizam – esta é
uma forma de ultrapassar nosso pobre individualismo. O quedai vier

134 Curso de Especialização em Teatro à Distância


MÀÒFRQVHTđÓQFLD1ÂRDGLDQWDğ[DUDPHWDDQWHV$ÒWLFDÒXPDFR-
média, mas a comédia tem sua ética. Um título desses faz parecer que
DVSHVVRDVYÂRVHUHXQLUSDUDXPDSDOHVWUD3UHğUR'XDV;$ULVWöIDQHV
ou qualquer outra coisa.

$FLPD GH WXGR WHPRV DOJR FRQFUHWR PĎVLFD DWXDÍøHV FRP SHUğO
SRSXODU WUDGLÍÂR QDFLRQDO WHDWUR GH UHYLVWD  H XP SDâV TXH GHL[RX
de rir para virar platéia de eventos mediados pela pauta televisiva.
Há muito trabalho pela frente. Este encontro entre o mais antigo e
nossa tradição esculhambadora poder ser rica, se não recair em sua
esquematização, nos velhos e bolorentos recursos a bordões, à inútil
e redundante referência às atualidades, ao xingamento, ao palavrão
autoreferente. Viva Aristófanes! Viva nós! Pqp!

11.9 DRAMATURGIA
DE MULHER,
DRAMATURGIA
FEMININA E OUTRAS
DÚVIDAS, A GAROTA
DA VITRINE
Marcus  Mota

1-­‐4-­‐2006

Recentemente assisti a um espetáculo que se dizia fundamentado


em uma dramaturgia de mulher. Mulheres contaram suas experiên-
cias e a partir disso, uma mulher colocou no papel o roteiro do es-
petáculo. Alguns questionamentos vieram à minha mente. Grande
parte de minha dramaturgia procura desconstruir valores atribuídos
DRPDVFXOLQR3RUGXDVYH]HV HP,$*2HHP',$'()(67$ SURFXUHL
acercar-me de situações ditas do universo da mulher. Mesmo lendo
DOJXPD ELEOLRJUDğD VREUH TXHVWøHV GH JÓQHUR H DOJXPD SURGXÍÂR
orientada por questões, certas soluções e conclusões dessa provo-
cante temática não me deixavam satisfeito. O espetáculo acima refe-
rido por exemplo. Ele é todo articulado em fragmentos, fragmentos
TXHPRVWUDPğJXUDVHVWLOKDÍDGDVğJXUDVGHDOJXÒPHPEXVFDGHVL
mesmo, e que sempre se depara com um Outro- o Homem – fonte e
móvel dessa busca. A identidade está lá fora, no Outro. E todos os es-
tilhaçamentos e verborragia em cena são uma luta contra isso. Tudo é

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 135


XPVRIULPHQWRVö1ÂRKÀKXPRUQHPGHğQLÍÂRGHDÍøHVHUHVROXÍøHV
que superem os entraves. Em meio a esta convulsão que se revolve na
PHQWHGDVğJXUDVWHPRVLPDJHQVEâEOLFDVŋ(YDVHUSHQWHLPSXUH]D
– que reforçam uma visão que a estilhaçada personagem tem de si a
SDUWLUGR2XWUR$RğPFRPRXPDOLEHUDÍÂRGLVVRDğJXUDUHFODPD
uma nostalgia do passado, uma resposta na infância: virar criança.

Ora, essa dramaturgia feminina é uma dramaturgia masculina, é uma


dramaturgia feminina às avessas. Continua presa ao Outro que a de-
ğQH$OLEHUWDÍÂREDVHDGDHPXPDSXUH]DLQIDQWLOÒFRQWUÀULD¿H[SH-
riência, à continuidade da experiência. Os encontros causam traumas,
problemas, mas ensinam e não são eternos. E eu não sei por que tudo
tem de ser tão sofrido, tão doloroso. Sob a imagem-princeps do hí-
men é que toda essa dramaturgia se articula. O contato com o outro
é sempre uma ocasião para a dor e decepção. O outro é o invasor, o
outro me faz mal. Para me livrar disso, preciso me refugiar, livrar-me
do outro: ser criança.

Mas a gente precisa crescer um dia. Essa idealização preventiva da re-


DOLGDGHÒDXWLVWD$RLQYÒVGHIDODUIDODUIDODUGHVğDQGRRVGHWDOKHV
do rompimento e da desilusão, é preciso ir além da intimidade de-
vassada. É preciso ir além da cerca, sair da janela. A beleza das belas
palavras, esse lirismo consolador, essa poesia de si mesmo é muito
juvenil. Por que não uma épica, um avançar, um conquistar, um hero-
ísmo de fronteiras ?

$RğPRWUDWDPHQWRGHDOJRLPSRUWDQWHIHLWRGHPDQHLUDHTXLYRFD-
da acaba por proporcionar uma situação para discussão e não para
representação. Acho essa uma armadilha de alguns espetáculos te-
máticos. A importância do conteúdo discutido supera seu tratamen-
to artístico. Pois, nesse caso, só nos resta nos solidarizar com aquela
mulher que sofre, sofre e vira uma menina. Muita gente coloca dor e
FULDQFLQKDVHPğOPHVSDUDTXHKDMDXPDXQDQLPLGDGHXPDSDUWLOKD
de emoções. A gente concorda com tudo. A gente continua na mesma.

Contudo, eu me revolto contra isso. Porque, de outro lado, há uma ou-


tra dramaturgia, que não sublima nada: é violenta, impactante e sem
QRVWDOJLD/HPEUDUÒWHUUâYHO$JLUÒPDWDU$FDUQLğFLQDGRVKRPHQV
a longa história do terror ao qual homens submetem outros homens
HWRGRVRVKDELWDQWHVGDWHUUD QÂRDFDEDVöFRPDPHQWHQÂRVH
deixa aprisionar por belas palavras. O terrível, o grotesco, a violência,
o abuso, a desgraça – tudo isso precisa ser vencido pelo grito, pelo

136 Curso de Especialização em Teatro à Distância


constrangimento e pelo ridículo. E eu espero força, mais força, ódio
até de mulheres escrevendo, de dramaturgias de mulher. Porque é
com força e violência que certas coisas se mostram. Quando não há
brisa alguém precisa soprar. Não espero por pessoas inteligentes e
sutis: quero pessoas objetivas e diretas.

Quando um homem nasce, muito se espera dele. Mesmo que os tem-


pos tenham mudado, um homem é um homem, e não há como fu-
gir disso. Até que chegue a idade que escolha o que quiser, não há a
criança, o menino. Nesse duro ofício, em casa e hoje muito mais na
UXDHOHYDLWHUGHVHH[SRU1ÂRYDLğFDUQDMDQHODROKDQGRQHPVL-
mulando outra casa com seus brinquedos. Se chora, vai ter que calar.
Se fraqueja, vai ter que se tornar forte. Para frente, para fora, para
depois, é sua meta. Precisa acertar, bater e fazer cair. As pessoas lhe
pedem isso. Seu corpo também. E não pode parar. Não há descanso
para ser homem. Não há paz. Daí vem um certo orgulho, daí vem a
certeza da recompensa. Ele deve ser recompensado por toda luta, por
todo trabalho. Pode suportar tudo por essa recompensa: cobranças
e exigências dos familiares, provocações dos amigos, competições.
Isso é o homem: alguém que se esforça por um prêmio, uma raça que
precisa ser recompensada. Por isso se chamam heróis. Por isso toda
essa imensa máquina cultural de violência e destruição que acompa-
QKDHVVDHVFDODGDVHWRUQDLQFULYHOPHQWHMXVWLğFDGDSRUPDLVWHUUâYHO
brutal e injusta que seja.

Acho que as mulheres precisam parar de chorar e sofrer. Precisam


parar de idealizar negativamente os machos, dimensionar um novo
heroísmo que as liberte e liberte a nós. Que elas parem de lamentar o
seu sangue derramado e gozem.

Muitas mulheres têm escrito sobre isso, têm vivido assim. São minha
inspiração para essas linhas.

2ğOPH$JDURWDGHYLWULQH Shopgirl, EUA, 2005) de Anand Tucker, não veio


de um experimentalismo feminino, mas possui algumas soluções me-
OKRUHV$PXOKHUGRğOPHÒDOYRGHGRLVVXMHLWRVHFRPRVGRLVGRUPHv
uma mulher como outra qualquer, solitária, trabalhando em um pequeno
emprego, morando em uma espelunca. Sem neutralizar muito diferenças
entre homens e mulheres e mesmo trabalhando com alguns estereótipos
DPXOKHUSUHFLVDVHUFXLGDGD RğOPHQRVPRVWUDDOJXÒPXPDPXOKHU
que decide por sua própria conta e risco fazer algo de sua vida ao invés de
esperar do Outro alguma solução. Algumas de suas opções não dão cer-

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 137


to. Há sofrimento, mas a vida segue adiante. Não há o trauma do hímen
URPSLGR%RDSDUWHGRğOPHDSUHVHQWDXPDPXOKHUVHQGRIHOL]HQTXDQWR
é feliz e triste porque está triste. Nada daquela tristeza metafísica, tristeza
GRJÓQHURWULVWH]DGHVHUPXOKHU'HSRLVRğOPHUHFDLHPXPFHUWRUHGHQ-
cionismo via homem da promessa. Porém, a mulher que assumiu risco e
mostrou-se real e não apenas vulnerável porque é mulher, é isso que pro-
duziu em mim algo de bom. Pois me mostrou alguém vivo.

Que contraste: a mulher geral, genérica, das idéias, e a mulher da


ORMDGRH[SHULPHQWDOFDEHÍDDRğOPLQKRWROR

Acho que a questão de gênero não deve se neutralizar pela abstração


do humano - todos somos humanos e representar o humano é o que
deveria motivar as obras.

Entretanto, ao invés do humano, ou dos coitadinhos homem e mulher,


SUHğURYHUJHQWHJHQWHHPVLWXDÍÂRGHJHQWHJHQWHTXHYLYHHVREUH-
vive, porque não há como fugir de continuar a existir. Podemos trocar
nossa solidariedade e compaixão na desgraça e dor pela alegria e co-
munhão na persistência. Persistir ainda – não como uma idéia, mas um
programa de realizações, um roteiro a se escrever cada dia.

11.10 V DE VINGANÇA
Marcus  Mota

14-­‐04-­‐2006

A premissa de V de Vingança é tentadora, terrorista e utópica: jogar


uma bomba e começar tudo de novo. É preciso destruir o mundo para
melhorá-lo. E desde que o mundo é mundo, reformadores de todas
as espécies têm se dedicado a isso, sem que haja melhora alguma. Na
YHUGDGHDVXSRVLÍÂRGHGHVWUXLUWXGRDSHQDVLQWHQVLğFDHJORULğFDR
projeto e o autor do projeto de renovação.

Mas o que realmente me intriga é o estado pré-bomba, pré-destrui-


ÍÂRTXHMXVWLğFDULDWDODWRH[WUHPR2TXHPRWLYDDOJXÒPRXXPJUX-
po a fazer o que faz?

1RğOPHH[LVWHXPDFRDOL]ÂRHQWUH(VWDGRH0âGLDTXHVXEPHWHRV

138 Curso de Especialização em Teatro à Distância


cidadãos aos interesses de uma liderança duvidosa. O Estado é que é
WHUURULVWDLQVXĠDQGRPHGRHWHUURUSDUDREWHUKHJHPRQLDHFRQWUROH

Frente a isso, a única solução, a única alternativa é jogar uma bomba.


Mas é isso mesmo? Pode haver assim esta hegemonia totalitária e ex-
clusivista de um poder? Pode haver esta coalizão tão absoluta entre
mídia e Estado de forma que a fabricação da realidade adquira um
status de realidade?

1RğOPHWDODQÀOLVHGRSRGHUFRPRHVSHWÀFXORPRVWUDXPHVSHWÀ-
culo pobre em sua articulação. Fatos são mostrados na tv de modo
distorcido, favorecendo sempre aquilo que o Estado apresenta como
YHUGDGH2ğOPHVHSURSRUDVHUXPH[HUFâFLRGHIXWXURORJLDGHFRPR
serão as coisas daqui a algumas décadas, mas lembra mais Hitler e
seu Estado-nação.

Tal caricata hegemonia do Estado via coalização midiática fundamen-


ta-se no tipo de domínio que os produtos da cultura de massa exerce
sobre nós. Diferentemente de uma dominação autoritária, esta domi-
QDÍÂRSURPRYHRSUD]HUHQÂRRVRIULPHQWR$VFRQVHTđÓQFLDVSRGHP
ser terríveis, para o que convence, o que seduz não é o argumento da
IRUÍD1RğOPHR&KDQFHOHUSUDWLFDWHUURULVPRHSURYRFDXP(VWDGR
de terror por meio de armas biológicas. O povo vota no Chanceler
para obter proteção. Depois o Chanceler descobre a cura para a praga
e a vende. Dos lucros e da repressão advêm a hegemonia.

2HTXâYRFRHVWÀHPVHLGHQWLğFDUR0DOHPVHUHGX]LUR0DODXPD
pessoa e a uma posição. Grupos de interesse e uma grande parcela
da população interessada em seus próprios interesses - isso é uma
combinação explosiva. Mais que uma violenta e sanguinária tomada
do poder, temos um acordo, uma combinação de vontades. Mais que
bombas, lutas, desgraças e reviravoltas, as coisas se fazem mais sa-
tisfatórias e convenientes e nem por isso mesmo menos terríveis. Há
um imenso trabalho de bastidores, de convencimento, de negociação,
de partilha dos lucros e benefícios que imediatos impulsos. Essa con-
tabilidade do poder é cautelosa e assassina; invisível, mas presente.
Não uma dinamite.

Assim, os vilões caricatos, monomanícos, isolados em sua obsessão


de dominar, explicitando todo momento seus comandos e sua ego-
latria, precisam ser substituídos por algo que escapa ao indivíduo,
que é mais que uma pessoa, mesmo que seja alguém agindo. Essa

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 139


forte ação anônima, partilhada, esta hegemonia operante não se
mata com bombas. Os participantes dessa hegemonia podem ven-
der essas bombas, podem até comprar o detonador. Mas será preci-
VR RXWUR PHLR SDUD UHSUHVHQWÀORV SDUD LGHQWLğFÀORV HOHV RV YHU-
GDGHLURVGRQRVGRPXQGR(QTXDQWRRVğOPHVPRVWUDPFDULFDWXUDV
eles renovam-se em outras formas que não cabem na tela. É preciso
uma nova representação para tornar visível essa nova ordem, cada
YH]PDLVLQVWUXâGDHğFLHQWHHDQLTXLODGRUD&RPRGHVWUXLURTXHWXGR
destrói ? Com escapar de sermos caracterizados de ressentidos, por
falarmos de um modo negativo do poder que desconhecemos? Na
verdade se fôssemos incluídos nessa ordem não faríamos a mesma
coisa? Difícil...

11.11 O FILME O CÓDIGO


DA VINCI: NAO
BASTA FALAR MAL
Marcus  Mota

24-­‐05-­‐2006

(HQğPDERPEDHVWUHRXO código da VinciRğOPH

Todo esse rebuliço foi por água abaixo. Ficou parecido com o bug do
milênio: as pessoas e as instituições esperavam algo novo e nada
aconteceu.

Talvez isso mesmo a novidade: tentar fazer algo diferente, mesmo


que um coletivo engano.

Aqui temos três vértices: produtos, receptores e produtores.

Sob o ângulo do produto, O código da VinciÒPXLWRUXLP3DUDXPğOPH


que se diz suspense, um thriller, ter como única coisa ameaçadora al-
guém apontando uma arma é realmente frustrante. Psicologicamente
não há emoção alguma que efetive tensões e expectativas durante o
ğOPH8PDFRLVDVÂRDVH[SHFWDWLYDVSUÒYLDVIRUMDGDVSHODPÀTXLQDGH
GLYXOJDÍÂRGRğOPH2XWUDVÂRDVGDREUDPHVPD'HRXWURODGRWHPRV
muitas cenas mal acabadas, mal resolvidas, como se tudo tivesse sido
feito meio ás pressas e sem um conceito orientador da realização. É o
FKDPDGRSURğVVLRQDOLVPRFXPSULUXPDVÒULHGHDWRVHSURQWR$PDLRU
HPHOKRUFHQDGRğOPHÒRGHXPEOÀEOÀEOÀVHPğPQRTXDOWXGRÒ

140 Curso de Especialização em Teatro à Distância


explicado. Essa pseudo-aula de história, com alguns recursos visuais-
FRPRRVXVDGRVQRğOPH0HQWHEULOKDQWHGRPHVPRDXWRUÒRQĎFOHR
GRğOPHDJUDQGHUHYHODÍÂR0DVGHSRLVGHDOJXQVPLQXWRVDJUDQGH
revelação é passado. É uma idéia atrativa que não tem prosseguimen-
WR TXH EöLD QR ğOPH 7DQWR TXH R SÒVVLPR ğQDO  XP ğP VXVSHQVR
GHQWURGHXPDREUDGHVXVSHQVH"ŋVöFRQğUPDRTXHHVWDFHQDFHQWUDO
mostrou: a personagem é da linhagem de Jesus.

Do ponto de vista da recepção temos duas situações: uma é a do homem


médio, suscetível a mídia, aberto a atualidades e também a algo que to-
que a transcendência, a uma transcendência que se pode comprar e usu-
fruir. Outra é a das instituições religiosas, sentindo-se ameaçadas com
a popularização de frágeis idéias. O que é de se destacar que toda essa
revolta e polêmica religiosa apenas mostra quão frágeis são essas insti-
tuições que se arvoram em protetoras da fé. Essas instituições é que pre-
FLVDPGHFUHGLELOLGDGH6HFDGDEREDJHPSXEOLFDGDHğOPDGDSURYRFDU
uma reação desmedida, essas instituições não vão passar de institutos
de medir reações, opiniões e efetivar retaliações. Entre o Ibope e Procon,
tais protetorados da fé valem-se de uma delegação dos crentes para to-
PDUDWLWXGHVERPEÀVWLFDVWÂRVXSHUğFLDLVHPLGLÀWLFDVTXDQWRDTXHOHV
TXHSXEOLFDPğOPDPSRUFDULDV$RğPHVWÂRWRGRVQRPHVPRVDFR

O terceiro vértice é um desdobramento deste: já que tanto se põe em


circulação tais produtos quanto quem interdita seu consumo estão
em sintonia, tudo é um mercado. As bombásticas revelações têm a
mesma função de escândalos políticos, sexuais, esportivos: propor-
cionar um certo esclarecimento que nada esclarece. Toneladas de li-
YURVHğOPHVVHDYROXPDPQDVHVWDQWHVHQDVVDODV4XDQGRPDLVVH
publica, quanto mais se torna público tal assunto menos ele é de fato
conhecido. Pois , tirando os caçadores de novidades, ninguém está de
fato pesquisando. O cara que compra na banca de revista da esquina
HVVDTXDQWLGDGHGHGYGVHğOPHVDFKDTXHSHORYROXPHGRPDWHULDO
que possui ele realmente empreendeu uma investigação. È como o
cara que compra livros e nunca os lê e pensa que a posse dos livros
lhe dá conhecimento. A imensa produção é a socialização de nossa
inércia coletiva. Não se trata de Jesus ou Maria Madalena – o negócio
ÒğFDUQRVRIÀQDSROWURQD(DVVLPDWÒRSUö[LPRFDSâWXOR3ULPHLUR
-HVXVQÂRPRUUHX'HSRLV-HVXVHUDFDVDGRHWHYHğOKRV'HSRLVPDLV
não foi traído. Daqui a pouco torcia pro Flamengo e vai votar no Lula
nas próximas eleições. Esse é o nosso Jesus de cada dia, cada vez mais
humano, vendável, cada vez menos interessante, até que se esgote.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 141


11.12 SERÁ? LEVANDO
PARA A CENA
OBRAS DE GRANDES
DRAMATURGOS:
MONTAGEM DE O
PEQUENO EYOLF, DE
IBSEN. Marcus  Mota

16-­‐5-­‐2006

(PYLDJHPIXLDVVLVWLUDPRQWDJHPFDULRFDGH23HTXHQR(\ROIQR
WHDWUR 6HVF &RSDFDEDQD   (VWH HVIRUÍR GH OHYDU ¿ FHQD
REUDVTXDVHTXHLQWHJUDLVGHJUDQGHVGUDPDWXUJRVÒXPGHVDğRWDQ-
to para os atores quanto para o público. Ainda mais Ibsen. Seu estilo
palavroso quando mal transposto para cena mata a poesia do texto, a
sutiliza da interpretação e a paciência da audiência. Foi o que infeliz-
mente ocorreu com essa montagem.

Inicialmente temos a beleza do cenário, um pequeno cais, as águas,


ğRUGH LPDJHQV IXQGDPHQWDLV GDV QöUGLFDV SDUDJHQV GD SHÍD 0DV
depois tudo acaba. As pessoas não param de falar em cena. Em nome
de realismo de ocasião, verdadeira praga que assola a mídia, vemos
atores submetidos aos ditames de passar adiante frases, conversa-
ções intermináveis que não mostram nenhum rosto, nenhuma verve.
([FHÍÂRIHLWDDFRQVWUXÍÂRGDğJXUDGDPXOKHUGRVUDWRVHGHDOJXQV
momentos de Borheim e de Asta Allmers, o resto é uma chatice só. A
promessa de uma beleza, de um atrativo espetáculo que o cenário e a
UÀSLGDHPDUFDQWHSUHVHQÍDGDğJXUDGH(\ROIDSUHVHQWDPÒVRODSD-
da pela burocrática performance posterior.

Que uma coisa é chata isso não basta. Por quê? Poderia ser diferente?

Primeiro temos as premissas básicas. Antes de tudo, por que Ibsen,


por que levar uma dramaturgia dessas para cena. Se a motivação é
DOJXPDHIHPÒULGHRXFRQĠXÓQFLDGHPDUNHWLQJFXOWXUDODVFRLVDVMÀ
começam a desandar. Por outro lado, com a presença cada vez mais
regular de cursos superiores de teatro, temos uma demanda quase
escolar de obras e autores, de um repertório continuamente revisita-

142 Curso de Especialização em Teatro à Distância


do. Por outro, é por que é culturalmente válido, é importante trazer
para o público este repertório. Ou seja, em todos os casos, questões
estéticas estão em segundo plano. A necessidade de se satisfazer ou
HVWLPXODUXPDGHPDQGDSDUHFHVHUDĎQLFDMXVWLğFDWLYD

Assim, encena-se Ibsen porque ele tem um nome, tem a força de um nome
HFRPLVVRğQDQFLDPHQWRVHVSDÍRVDWRUHVSĎEOLFRWXGRğFDPDLVIÀFLO

Mas e a obra mesma: o que ela tem a ver com esse pragmatismo?

Ora, O pequeno Eyolf, como se sabe, integra uma fase de maturidade


da carreira de Ibsen. O questionamento mesmo do intelectual, o ho-
mem de idéias por um dramaturgo que se pautou por idéias é deter-
mina essa produção. Lembre-se Quando despertamos dentre os mor-
tos, peça tão similar a essa, com mesmo questionamento do homem
de idéias, com a mesmo quadrado- os dois casais.

Como podemos ver, o próprio Ibsen entrou em crise com a cultura que
gravitava em torno do intelectualismo, da idéia de civilização que gran-
de parte de sua dramaturgia ajudou a construir. Há sempre um ranço
de presbítero, de reformador moralista em Ibsen. Muitas vezes resvala
para um certo discursivismo, como se o teatro fosse uma tribunal. Ib-
sen luta contra essa mão de tribuna, contra esse impulso loquaz.

$R ğP Ò XPD OXWD FRQWUD DV SDODYUDV FRP DV SDODYUDV 'L]HU VHUÀ
preciso fazer isso o tempo inteiro? Será preciso enunciar o que está
acontecendo, o que houve?

(VWHGHEDWHHQWUHDSDODYUDHDFHQDQDSDUWHğQDOGRWHDWURGH,EVHQ
contribuiu para a modernidade teatral, para emancipar a teatralida-
GHGHVXDSURYâQFLDGDOLWHUDWXUDHGDğORVRğD$VVLPRJUDQGHGUDPD
GH,EVHQÒXPGUDPDGHH[SUHVVÂRGHUHYHUVHFRPRSDQĠHWÀULRSDUD
encontrar-se como dramaturgo. As idéias têm uma vida independen-
te. E não se faz teatro só com boas intenções e grandes ideais.

Essa luta com o genérico resvala no texto uma certa poesia, imagens
HUHĠH[øHVFXUWDV¿VPDUJHQVGDIHUUHQKDPDFURHVWUXWXUDHGDVğ[DV
linhas dos personagens. Para um homem tão sisudo e com tão pouco
humor como Ibsen, essa fragilidade inominada, essa exploração de
DOJR DOÒP GDV UHYLVWDV GH GLYXOJDÍÂR FLHQWâğFD DFDUUHWD PRPHQWRV
de compaixão, de contato com algo além da enciclopédia. Deixando-
se levar por algo que está fora dos livros, que não reduz a palavras,

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 143


Ibsen mostra-nos instantes de um mundo outro, possível dentro da
organicidade vazia de uma realidade que ele tenta abolir com pala-
vras pra todos.

Como se pode ver, há uma enorme disparidade entre o pragmatismo


TXH LQVXĠD PXLWDV DWXDLV FHOHEUDÍøHV GH JUDQGHV GUDPDWXUJRV H D
problemática dramaturgia desses autores teatrais. Tudo vem à cena,
mas a cena não se deixa mostrar completamente nas coisas vistas.

O que se mostra nesta montagem de Ibsen não é a peça, mas o tipo


de processo criativo, ou sua falta, o tipo de opções que foram feitas,
as preocupações que motivaram a montagem. E, infelizmente, dentre
essas preocupações, a maior foi decorar o texto, pura e simplesmen-
te, sem uma escuta sensível aos detalhes, àquilo que a palavra não
diz, ao drama expressivo de Ibsen.

Um amigo meu disse que faltou emoção. Alguém poderia responder


TXHLVVRQÂRSUöSULRGDHVWÒWLFDGH,EVHQ6öVHLTXHSUHğURXPID-
latório do qual eu participo e saio do que uma verborragia que nem
mesmo seus articuladores se entendem ou interagem.

Assim, montar um grande autor somente porque ele é grande sem


HQIUHQWDUHPXPSURFHVVRFULDWLYRDHVSHFLğFLGDGHGHVVHDXWRUDFKR
que isso faz currículo, põe o circuito cultural em movimento, emprega
gente, mas perpetua um fordismo, uma linha de montagem industrial
TXHVRFLDOL]DHVWHUHöWLSRVHDERUGDJHQVVXSHUğFLDLVGHVVHVJUDQGHV
DXWRUHVTXHVÂRWRGRVLJXDODGRVQREOÀEOÀEOÀVHPğPVHPFDOGR
mediano de ilustração civilizatória.

Quando li O pequeno Eyolf ğTXHL FKRFDGR SHUSOH[R FKRUHL DWÒ 2Q-


tem oscilei entre isolados belos momentos e uma imensa vontade de
ir jantar. Com atores presos ao texto, sem esboçar reações aos terríveis
eventos em cena, não restava à platéia mais nada que esperar o tempo
SDVVDU8PFDVDOTXHRWHPSRLQWHLURYLYHHPGLIâFLOUHODÍÂRXPDğJXUD
estranhíssima que causa repulsa e atração, um menino que morre – en-
tre tantas coisas – e todos em cena inertes, jorrando palavras. E não me
venham dizer que na Europa, que na Noruega é assim!

6HDLVVRXQVTXHUHPFKDPDUUHDOLVPRGHUHVSHLWRDRDXWRUSUHğUR
crer que se trata de pressa...

144 Curso de Especialização em Teatro à Distância


11.13 TRAGÉDIA GREGA
EM CENA: O GRUPO
GIZ-EN-SCÈNE
Marcus  Mota

11-­‐06-­‐2006

şGHMXQKR4XLQWDIHLUDKRUDV$QğWHDWURORWDGRPDLVGHWUH]HQ-
tas pessoas, na sua maioria jovens estudantes. Todos reunidos para
ver e ouvir Filoctetes, de Sófocles. Não, você não está em Atenas. Es-
tamos em Araraquara, interior de São Paulo, no campus da Unesp,
diante de leitura dramática realizada pelo grupo Giz-en-Scène. Há 19
anos professores universitários seguidos por alunos colaboradores
têm se dedicado a levar ao público obras clássicas gregas, latinas e
sanscríticas. Especialistas em suas áreas, estes professores escolhem,
traduzem e adaptam os textos, com muita perícia e cuidado. Para me-
lhor tirar proveito da situação de apresentação, aliam a este trabalho
WH[WXDORGHSURGXÍÂRFHQÀULRREMHWRVGHFHQDğJXULQRGLYXOJDÍÂR
programas, ensaios. As leituras acontecem normalmente durante
eventos acadêmicos, quando o grupo é convidado não para ilustrar
RVGHEDWHVLQWHOHFWXDLVPDVVLPSDUDPRVWUDUDHğFÀFLDGHVWDVREUDV
mesmo após séculos de releituras e desleituras.

Com isso, o Giz-en-Scène efetiva uma imensa contribuição cultu-


ral ao nosso país. A democratização do contato com a performance
dos clássicos promove uma revisão de uma série de mal entendidos
quanto à função e transmissão dessas obras. Infelizmente, na maioria
das vezes, perdura ainda um certo elitismo diletantista em relação
ao legado clássico. Como saber é poder, o ter acesso a essas obras
muitas vezes acarreta uma certa aura mística, uma infeliz vaidade
que posiciona o investigador fora do tempo e da realidade do fazer
pesquisa em um país como o Brasil. Os que sabem, os se familiarizam
FRPWH[WRVFOÀVVLFRVVÂRğOWURVGHFRQKHFLPHQWRV'HYHPDJLUFRPR
facilitadores e não como obstáculos. O caríssimo custo de se manter a
HVWUXWXUDXQLYHUVLWÀULDH[LJHSURğVVLRQDLVÀJHLVHLQWHUDWLYRV

3ULPHLUDPHQWHSRLVR*L]HQ6FÑQHGHVPLVWLğFDRSURğVVLRQDOFRPHUX-
dição nos clássicos. Grande parte dos textos dessa afortunada tradição
se relacionava a contextos performativos. Performar é saber. A perfor-
mance produz conhecimento. Não só as condições materiais de perfor-
mance mas o ato mesmo de propor eventos para uma audiência difun-

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 145


GHP XPD H[SHULÓQFLD TXH PRGLğFD TXHP GHOD SDUWLFLSD )HUUDPHQWDV
performativas nos ajudam não só a materializar estas obras mas a com-
SUHHQGÓODVHPVHXVHVFRSRVUHIHUÓQFLDVHPDUFDVHVSHFâğFDV7UD]HQGR
estas obras para a realidade audiovisual, muitas de nossos pressupostos
são corrigidos. Os membros do Giz-en-Scène não são atores, assim como
nós não somos gregos. O que importa é que uma cuidadosa realização
e produção, mesmo com suas limitações performativas, esclarece muito
mais sobre uma tragédia grega que certas especulações completamente
divorciadas da concretude de um espetáculo.

Segundo, o centro de orientação não está somente em um saber li-


vresco. A platéia precisa participar, acompanhar, fazer um esforço.
Olha, Filoctetes e suas longas falas em uma quinta feira à noite sendo
aplaudido isso é raríssimo. Não é mais apenas o que o professor diz,
e sim aquilo que você como observador pode captar. A construção de
expectativas, o reconhecimento das partes do espetáculo, o cruza-
mento das referências, entre outras atividades, ativa um acabamento
do espetáculo, uma apropriação da obra por parte da audiência. As
palavras ditas são mais que palavras, mais que feitos de língua. Pois,
por mais que muito seja dito, há pessoas, há contextos, há atos, um
mundo que ultrapassa a linguagem – o mundo a ser compreendido. A
SHUIRUPDQFHGHVFHQWUDRWH[WRDLGHRORJLDGDSDODYUDğQDOGDLQWHU-
SUHWDÍÂRğQDOGHVHXSRUWDGRU$SHUIRUPDQFHIDFXOWDXPDH[SHULÓQ-
cia ampla, multiforme e ao mesmo tempo partilhada de um evento.
Não estamos sujeitos ao certo e ao errado, à reprodução de uma idéia
e de seus decorrentes privilégios. Todos estão assistindo. O espetácu-
lo é para todos. Não há uma voz privilegiada, uma instância superior
que autoriza, valida ou canoniza interpretações. Aqui o comentário
não predomina sobre a apreensão da obra em sua globalidade.

Terceiro, com esta operação de descentramento, a situação de apren-


dizagem é melhor enfrentada. Há uma homologia entre compreensão
e performance. Normalmente nos informamos de coisas que não co-
nhecemos nem experimentamos. Muitos estudam tragédia grega exclu-
sivamente lendo textos, decompondo-os. Nunca têm um contato com
sua realização audiovisual. É como aprender a mecânica de automóveis
e nunca dirigir um carro. É como sobrevoar uma cidade e nunca morar
nela. Os espetáculos que o Giz-en-Scène performa unem conhecimentos
que são separados, habilidades foram dissociadas pela nossa tradição de
ensino, que privilegia a transmissão verbal de conhecimento, a homoge-
neidade dos conteúdos e a centralidade do professor. Ora, se um profes-
sor pode dar suas aulas e ao mesmo tempo engajar-se nessas atividades

146 Curso de Especialização em Teatro à Distância


H[WUDFXUULFXODUHVLVVRVLJQLğFDTXHWHPRVXPDĠH[LELOLGDGHĠH[LELOLGDGH
tal que em muito contribui para o tipo de conhecimento que estamos
trabalhando. É impossível lidar com obras fundadas em contextos per-
formativos sem ferramentas performativas. Perguntem a qualquer outro
investigador de qualquer área se o conhecimento que ele produz não
está associado com as condições materiais efetivas de sua realização e
veja a resposta. Todo argumento e abordagem antiperformativo é uma
prática redutória. Essa torpe visão de ver espetáculos como instrumentos
didáticos que ilustram idéias não passa de uma recusa da amplitude da
SHUIRUPDQFHHVXDVFRQVHTđÓQFLDVSDUDRHQVLQRHDSUHQGL]DJHP3RLV
é muito mais fácil discutir conteúdos desprovidos de suas implicações
performativo-contextuais e criar teorias ou um senso comum que elimi-
ne as ‘perturbações performativas’ que enfrentar tais ‘perturbações’.

Falo de cadeira. A primeira vez que vi o Giz-en-Scène foi em 2001, du-


rante um congresso em Ouro Preto. No simpático teatro da cidade, o
programa cultural do congresso nos brindava com a apresentação de
uma tragédia e de uma comédia.

Naquela época eu estava escrevendo meu doutorado sobre a drama-


turgia musical de Ésquilo e toda hora tinha de me remeter a tradições
artística outras – ópera,cinema, teatro - para dar conta do contexto
de realização da tragédia grega. A interdisciplinaridade no meu caso
era uma questão de sobrevivência, já que estudava enfrentando a fal-
ta de um contato com obras, com uma tradição de obras dramático-
musicais que se apropriavam dos clássicos.

Mas aquela noite foi fulgurante para mim. De uma hora para outra
meus olhos se abriram. Durante a leitura dramática de Antígona, na
FHQDGRWHUUâYHOGLÀORJRHQWUH&UHRQWHHVHXğOKR+HPRQPLQKDYL-
são sobre obras clássicas se alterou profundamente. Antes, eu sabia
o que não queria. Agora, diante de mim, estava o que eu precisava.
Grande parte do imenso material acumulado durante anos de leitura
se esclareceu. Isso podia ter acontecido antes, não durante um dou-
torado, se eu tivesse a oportunidade, como os jovens em Araraquara,
de ver e ouvir Sófocles em uma noite. Mas antes tarde do que nunca...

Bem, ali, no palco, Creonte esforçava-se para manter sua posição


PHVPRGLDQWHGRTXHRVIDWRVPRVWUDYDP6HXğOKRVXEOHYDVHFRQ-
WUDHVVHDXWRULWDULVPRUHDğUPDQGRTXHDLJQRUÁQFLDHDDUURJÁQFLD
não têm idade. Hemon desestrutura a prepotência do tirano, daquele
que pensa que a cidade é o que o homem quer que ela seja.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 147


Esta cena é desempenhada em um debate verbal verso a verso (es-
WLFRPLWLD $WURFDÀVSHUDGHIDODVLQFHQGLRXRWHDWURFRPRVHHVWL-
véssemos assistindo a uma luta de boxe. Parte do público era jovem.
E dele vieram demonstrações sonoras de torcida. No mesmo tempo,
alguns mais velhos, seja surpreendidos com uma resposta corporal
e concreta, seja querendo impor uma certa dimensão polida e sacra
aos eventos, estes vigilantes da ordem começaram a pedir silêncio,
FRPSRVWXUD3DUDPLPğFRXFODURQDTXHOHPRPHQWRTXHDOXWDHQ-
tre Hemon e Creonte se duplicara no auditório. Sob os estímulos da
esticomitia, a audiência se dividia entre posições antagônicas e co-
presentes. O drama de Sófocles se materializava nas perspectivas em
FRQĠLWRDXGâYHLVSUHVHQWHV

Assim, um procedimento dramatúrgico de marcar rivalidades, de re-


gistrar atuações em agon, materizava-se na performance e na audiên-
cia. Um texto dramatúrgico é a contextualização de orientações para
performances tanto dos agentes dramáticos quanto da recepção.
Para além do texto e a partir do texto, uma compreensão mais ampla
do escrito, do registrado se fazia perceptível. O som da platéia, a pla-
téia auralmente dividida é que tornou compreensível o procedimento
que o texto registra. Esse teatro vibrante, de estímulos e respostas,
de atos e interações, de assimetrias entre seus participantes, isso es-
tava ali diante de nós.

Hemon ou Creonte – acho que nessa encruzilhada se distinguem duas


opções interpretativas, duas concepções de ensino-aprendizagem,
duas posturas em relação ao conhecimento e à tradição. O Giz-en-
Scène contribui imensamente para que o caminho de Hemon seja
responsavelmente feliz e produtivo. O grupo de professores e alunos
sediado em Araraquara deve se orgulhar dessa nobre e trabalhosa
atividade. Que outros mais possam fazer o mesmo. E tornar cotidiano
HVVDEHQÒğFDDWLWXGHGHVHUHQRYDURFRQWDWRFRPREUDVSHUIRUPD-
tivas através do contato performativo com elas. Tudo é exposto em
cena e uma memória das coisas imprime nos corações e mentes os
fatos da imaginação.

Parabéns Giz-en-Scène, pelos seus quase 20 anos. E muito, muito


obrigado.

148 Curso de Especialização em Teatro à Distância


11.14 MOLIÈRE: A
COMICIDADE E A
AMPLITUDE DA
CENA CÔMICA
EM O DOENTE
IMAGINÁRIO
Marcus  Mota

19-­‐6-­‐2006

Brasília teve a oportunidade de assistir à montagem de O doente imagi- Jacqueline Laurence, direto-
ra do espetáculo. Tradução e
nário  GH0ROLÑUH  ¯OWLPDSHÍDGH0ROLÑUHRHVSHWÀFXOR adaptação de João Bethen-
court. No elenco estão ainda
foi deliciosamente interpretado por Tonico Pereira e companheiros. Gláucia Rodrigues, como An-
tonieta; Nedira Campos, inter-
pretando Belinha; Flávia Fafiãs,
A montagem original foi marcada pela sobreposição entre a persona- que vive Angélica; Marcio Ric-
ciardi, que faz o Dr. Purgante;
gem da peça, um hipocondríaco interpretado pelo próprio Molière, e Paulo Carvalho e Gustavo Ot-
toni como pai e filho, os médi-
o homem Molière, o qual, após a apresentação de O doente Imaginá- cos Thomas Laxante e Thomas
rio, passa mal e morre horas depois. Laxante Filho; Frank Borges,
como Cleanto; e André Frazzi,
que interpreta o Tabelião. A
peça tem a participação espe-
Na montagem de agora grande parte da dramaturgia cômica de Mo- cial de Nildo Parente, na pele
lière pode ser apreciada. Inicialmente, temos o caráter enciclopédico de Beraldo

da peça. As personagens em cena estabelecem referências com várias


fontes de conhecimento, seja com a atualidade seja com a cultura
greco-latina. A audiência vê-se estimulada por materiais oriundos de
diversos saberes de práticas.

Por outro lado, toda essa gama de referências é armada dentro de


uma trama – Argan, um rico hipocondríaco explorado por médicos
HIDUPDFÓXWLFRV0RQVLHXU'LDIRLUXVHVHXğOKR0RQVLHXU3XUJRQH
pela nova esposa, Béline. A trama é o horizonte da ação, um amplo
contexto que coloca em confronto um homem que desconhece ou
não quer conhecer o que realmente está acontecendo ou importa.
Este autoengano, como uma automedicação, contudo, é revertido
pelas artimanhas da empregada Toinette e Béralde, irmão do doen-
WH8PHL[RSDUDOHORGDSHÍDVÂRDVGLğFXOGDGHVLPSRVWDVDRDPRU
GH $QJÒOLTXH ğOKD GH $UJDQ 'XSOR LQYHUWLGR GR SDL HOD IXQFLRQD
como um lado positivo de Argan, os bons valores que se preservam
em meio ao mundo corrompido.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 149


A contribuição de Molière está justamente em articular essa trama de
longo curso com as cenas, com os esquetes. Há uma tendência na dra-
maturgia cômica para o esquete, para a intensidade, para um tempo
mais breve porque mais tomado de convergências e simultaneidades.
Note-se que tais disposições estão inscritas na formatação de séries
televisivas, com as dramáticas com episódios de 1 hora e as cômicas
de meia hora.

0ROLÑUHĠH[LELOL]DDFRPÒGLDMXVWDPHQWHSRUFRQGX]LURSĎEOLFRWDQWR
para amplitude da cena, da trama quanto para aspecto pontual, epi-
sódico do esquete. Ao invés da tensão entre o esquete e a trama, Mo-
OLÑUHYDOHVHGHVWDGLQÁPLFDGHHVFRSRSDUDUHGHğQLURHVFRSRPHV-
mo de obras cômicas na cultura pós antiguidade. A comicidade assim,
inserida em dimensões e nexos mais extensos, ela mesma ganha um
estatuto que a aproxima de valorações consagradas à tragédia.

Por isso estamos além dos dualismos entre pressuposições restritivas


TXHUHJLVWUDPSDUDDWUDJÒGLDXPDUHĠH[ÂRJHUDOVREUHDFRQGLÍÂR
KXPDQDHSDUDDFRPÒGLDXPDIRWRJUDğDGHVLWXDÍøHVSDUWLFXODUHV
0ROLÑUHDSUHVHQWDQHVVHHHPRXWURVHVSHWÀFXORVUHĠH[øHVHTXHV-
tionamentos que poderiam estar em qualquer outra modalidade de
UHSUHVHQWDÍÂRVHMDHPXPDREUDğORVöğFDVHMDHPXPGUDPD

Contribui para isso o fato de a própria trama não se tratar de um es-


quema narrativo como veículo para as habilidades dos comediantes.
Ora, grande parte do material da trama não se reduz aos quipropós,
MRJRVGHGLVIDUFHHUHYHODÍÂR$QWHVKÀXPDğJXUDXPFRPSOH[RFRQ-
junto personativo, cheia de contradições e estranhezas que por si só
já é tanto um estímulo para a comicidade quanto um obstáculo para
a apressa correria das confusões e trocas de identidade.

(VVDğJXUDIXQFLRQDFRPRXPFHQWURDWUDWRUTXHWXGRGHYRUDTXHD
tudo atrai, mas que logo depois tanto perde sua hegemonia quanto
VHUHYÓVHPRGLğFD(VWHFHQWURLPöYHOHVVHVROUHDOL]DXPDQWLPR-
YLPHQWRIUHQWHDRĠX[RGRHVSHWÀFXOR(OHWUDEDOKDFRQWUDRHVSHWÀ-
culo, ele atravessa a moldura da obra, colocando em perigo a repre-
sentação. Sua recusa em mudar ou aderir a algo, ou o contrário disso,
RVLWXDFRPRH[FHVVRFRPRDOJRLQFRQWUROÀYHOSRUPDLVTXHLGHQWLğ-
FÀYHO1RHQFRQWURHQWUHDWUDPDHRHVTXHWHHVWDğJXUDDEHUUDQWH
trabalha como um diretor de cena, um participante e comentarista de
tudo o que está acontecendo. O acúmulo de referências e contradi-
ções da personagem é duplicado no acúmulo de suas funções e atos

150 Curso de Especialização em Teatro à Distância


QRHVSHWÀFXOR7DOğJXUDULYDOL]DFRPDVRXWUDVSHUVRQDJHQVHPFHQD
promove uma relação de aproximação e distanciamento com a pla-
téia, esvazia-se, retira-se em vários momentos do espetáculo, costura
SDUWHVGDREUDDRPHVPRWHPSRTXHDWXDQHVVDVSDUWHVHQğPHVWÀ
sempre em movimento por estar no centro imóvel de tudo. Contrace-
QD[LQJDGLDORJD]RPEDFDODFHQVXUDDUJXPHQWDğORVRID

'HVVDIRUPDUHXQLQGRDWRVHSURFHGLPHQWRVGLYHUVRVDğJXUDDEHU-
rante promove uma imagem ampla do espetáculo, sobrepondo nexos
e referências. Rir e pensar não se opõem. Daí a dramaturgia cômica
GH0ROLÑUHSRVVLELOLWDURDFHVVRDXPDGLYHUVLğFDÍÂRQÂRVRPHQWHGH
técnicas, mas de escopo da comicidade.

11.15 TEATRO, MÚSICA E


RELIGIÃO EM UNA
MADRE CORAJE...
MARCUS  MOTA

26-­‐06-­‐2006

Ainda bem que não choveu. Brasília ontem teve a oportunidade de


ver o bom espetáculo Uma madre coraje y sus hijos em el purgatório,
uma parceria criativa das companhias Teatro Del Silencio e Karkik
Dança Teatro,durante o Festival Internacional de Teatro, no CCBB.
Em uma estrutura com arquibancadas, ao ar livre, nuvens negras
no céu, muito frio, pode-se acompanhar série de quadros em mo-
vimento e muita música que reinterpretavam imagens e cenas das
obras de B. Brecht e Dante.

Inicialmente, estar nas arquibancadas é como assistir a um jogo de fu-


WHERO$GLVWULEXLÍÂRGRVMRJDGRUHVFRQğJXUDRHVSDÍRUHYHODRWLPHH
suas táticas. E assim foi. Os quadros em movimentos eram modos de
ocupação do espaço, de distribuição para os espectadores de determi-
QDGDVHVFXOWXUDV(VVDWHQVÂRHQWUHRğ[RHRPöYHOIRLDUWLFXODGDHP
função do espaço de observação: tornar visíveis certas sínteses visuais.
Daí a ilusão do movimento. Era a mesma escultura mudando de lugar
durante a música. O que realmente estava em movimento era a música.
E como se utilizou menos melodia, e sim parâmetros de intensidade e
repetição ritual de estruturas harmônicas, a reiterada manipulação de
blocos sonoros ampliou e presença pontual dos quadros.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 151


Tivemos belíssimos quadros, como o da terra adubada pelos cadáve-
res e das árvores com mulheres nuas.

Mas havia uma tensão entre a extensão do quadro e a relação entre


as esculturas e a música. O que fazer enquanto dura o som? A re-
distribuição das presenças dos bailarinos muitas vezes descambou
para estereótipos de um musical holliwoodiano, de um vídeo clipe
dos anos 80. A repetição de gestos e passos apenas para que haja
alguma algo enquanto a música soa ou apenas para que se ocupe o
tempo da duração da música tornou em alguns momentos descar-
tável a presença marcada e não marcante dos dançarinos. Assim,
escutávamos boa música e só.

Esta é uma questão da audiovisualidade do espetáculo. Ora, se se


optou pelo extremo, pelos limites da inteligibilidade, na mistura
de línguas, no cruzamento intertextual de obras, na descontinui-
dade da representação,a relação entre som e cena precisaria ser
também levada aos mesmos termos que a dramaturgia. É como se
existissem duas dramaturgias – uma para os quadros e outra para
a amplitude audiovisual dos quadros. E como não é possível sepa-
rar uma da outra, esta dualidade registra o não acabamento como
indefinição de como enfrentar esta audiovisualidade. Pois a músi-
ca avança, perdura, continua o seu movimento de aspirais e sobre-
posição de massas sonoras e intensidades enquanto que aquilo
que é para ser visto, após ser mostrado, espera seu término, sua
conclusão, pois acaba antes do fim. A tensão entre as dimensões
do que é visto e do que é escutado não é algo explorado, resolvido
criativamente. Temos boa música e belos quadros.

O que unifica o espetáculo é seu pathos, sua busca de uma respos-


ta emocional. O espetáculo ruma para o patético, para a mostra de
um sofrimento, de uma dor excessivos, como se fosse um clamor
que supera a denúncia daquilo que apresenta. Cada vez mais é
menos uma revolta contra a guerra e nosso cínico humanismo que
o fascínio pelo rastro de destruição que a mortandade deixa. Tanto
que quando repetiram o bordão que proclamava a necessidade de
um novo comunismo frente ao consumismo neo-liberal, algumas
pessoas do público se levantaram. Nesse momento pós-ideológico
suplicar pelas cantilenas dos vencidos não suscita nenhuma pie-
dade. E a experiência atual do socialismo no governo local não tem
dado bons exemplos.

152 Curso de Especialização em Teatro à Distância


1HVVHPRPHQWRğFDPFODUDVDVUHIHUÓQFLDV7RGRHVVHFODPRUQDWHU-
ra devastada modela-se como uma experiência religiosa. A relação
entre a misericórdia divina e a corrupção entre os homens foi outro e
PDLVHğFLHQWHERUGÂRGDQRLWH2VJULWRVDRPLFURIRQHDGDQÍDIUHQÒ-
tica, a música pesada , as imagens de horror – toda essa hiperbólica
performance procura materializar um apelo a algo que ultrapassa as
fronteiras e limites da experiência cotidiana. Como rituais primitivos,
com nossa maquinaria de agora, cantamos, dançamos e clamamos
para além de nós mesmos.

Assim, das arquibancadas, centenas de pessoas estão para achar bo-


nito ou não os fósseis de uma fé perdida, por isso celebrada. Essa mis-
tura de religião e arte em uma sociedade urbana e laica como a nossa
evidencia como ainda ressoam em nós padrões básicos de um impul-
so ao sagrado, ao mesmo tempo que revela o quanto fazemos para
nos proteger e negar esse impulso estetizando-o. A estética do horror
da guerra, de todos os horrores de nossa desumanidade são ambiva-
lentes demonstrações de nossa competição com um deus criador e
sanguinário aniquilador. Louvor e sacrilégio - formas de nossa precá-
ria luta contra os céus, contra todos. Ainda bem que não choveu.

11.16 BORAT:
CULTURALISMO,
COMÉDIA E
BOBEIRA
Marcus  Mota

17-­‐janeiro-­‐2007

Enfim Borat é um sucesso. O falso documentário intitulado Bo-


rat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation
of Kazakhstan arrecada milhões nas bilheterias, possui uma entrada
altamente informativa no Wikipedia, os roteiristas do filme dão uma
longa entrevista no último número de Written By, revista da associa-
ção dos roteiristas norte americanos, e o ator Sacha Baron Cohen, que
protagoniza o filme, acaba de ganhar o Globo de ouro como melhor
ator de comédia/musical.

2ğOPHVHHVWUXWXUDHPHVTXHWHVSRUPHLRGRVTXDLVDFRPSDQKDPRVHQ-
trevistas e situações da personagem em sua aventura de conhecer os EUA.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 153


O caráter tosco, grotesco e preconceituso de Borat é elaborado por uma
equipe de roteiristas treinados há anos em sugerir textos e contextos para
RDWRU6DFKD%DURQ&RKHQHPSURJUDPDGHVXFHVVRQDWY,QJOHVD 'D/L
G Show. O núcleo básico da equipe é Dan Mazer e o próprio Sacha Baron,
ambos vindos do humor universitário e daí para a televisão. Dan Mazer foi
roteirista também do famoso The Eleven O’Clock Show que, além de Sacha
%DURQUHYHORXğJXUDVFRPR5LFN\*HUYDLVGR7KH2IğFHRULJLQDO

Ou seja, estamos diante de mais uma invasão inglesa ditando moda nos
Eua, e daí sendo exportada para o mundo.

Satirizar os poderosos estadunidenses é uma ambígua provocação que


tanto revela o status que este país tem no mundo quanto a dependência
de outros países, mesmo países tidos culturalmente avançados, têm em
relação à sua fonte de comicidade.

2ğOPHÒGLULJLGRSRU/DUU\&KDUOHVTXHHQWUHVHXVFUÒGLWRVFRQWDFRPRRX
roteirista e ou diretor de episódios(ou ambos) de episódios de Mad about
You mas principalmente Seinfeld e Curb Your Entuasiasm. Ou seja, temos
assim o encontro entre a criatividade da comédia estadunidense e a inglesa.

7XGRLVVRSURGX]LXXPğOPHHVWUDQKRIHLRPDODFDEDGRHHQJUDÍDGR$V
HQWUHYLVWDVIRUDPFRVWXUDGDVHPXPDKLVWöULDPHLRVHPGHğQLÍÂRHPEXV-
ca da musa Pamela Anderson. Muita pós-produção tenta dar um arranjo
HPXPğOPHTXHGRPHLRSDUDIUHQWHVHDUUDVWDSDUDVXDFRQFOXVÂR

A base da comédia praticada em Boral é o insulto e o contrangimento.


Rumando contra a chamada cultura do politicamente correto, obser-
YDPRVFRPHQWÀULRVTXHGHQLJUHPMXGHXVPXOKHUHVGHğFLHQWHVIâVLFRV
além de situações mesmas que rebaixam todos os que dela participam.
Pois as pessoas envolvidas, os não atores, participam de uma armação,
XPDSHJDGLQKDHODVQÂRVDEHPTXHHVWÂRHPXPğOPHTXH]RPEDGH-
ODVQÂRVDEHUHPTXHHVWÂRHPXPğOPH$JUDÍDQRVVDÒYHUHVVDVSHV-
soas e seus contrangimentos diante de um estrangeiro que se comporta
fora dos padrões.

2 VHU HVWUDQJHLUR QR ğOPH Ò XP GLVIDUFH SHOR TXDO %RUDW FRPXQLFDVH
com a platéia, toma permissão do público para fazer o que quiser. As
SHVVRDVQRğOPHGÂRWDPEÒPHVVDSHUPLVVÂRSDUD%RUDW&RPRHOHÒXP
estrangeiro, elas permitem que ele seja bizarro e exótico. Pois o estran-
geiro é assim, café com leite dentro de nossa cultura, uma criança. Há
sempre um senso de superioridade nessa relação. Eu, que estou em meu

154 Curso de Especialização em Teatro à Distância


mundo, sei as coisas, conheço os nomes e os lugares. O estrangeiro está
confuso, não sabe, desconhece.

$VVLPHPXPSULPLHURPRPHQWRDVSHVVRDVGRğOPHVÂRFRQYRFDGDVD
HQVLQDURHVWUDQJHLURDHQWUDUHPFRQWDWRFRPDğJXUDDOWDHDORSUDGD
de Borat. Sendo estrangeiro, porém, e conversando com a câmera, Borat
reverte essa posição inferiorizado e os nativos é que viram piadas. Antes,
a piada era o estrangeiro. Agora, ri quem está do outro lado da câmera.
E não só isso: a seqüência de esquetes faz com que a reversão se torne
o padrão. Há sempre e renovadas expectativas de os nativos caírem no-
vamente na cilada.

Como estrangeiro em terras estadunidenses, eu ou qualquer um outro


se sente nessa situação de Borat. Há uma semana atrás, um membro de
uma família que já me conhece desde que estou aqui, há sete meses, me
perguntou se eu tinha computador e se sabia baixar uns arquivos. Daí,
como se fosse me ensinar, ligou o lap top e começou narrar tudo o que es-
WDYDID]HQGR6XDğOKDDRPHYHUFRPHQWDQGRDOJRVREUHRVKLVSÁQLFRV
VREUHVXDVGLIHUHQÍDVHPUHODÍÂRDR%UDVLOğFRXDGPLUDGDHGLVVHTXH
pensava que eu era hispânico, aquela velha coisa de a capital do Brasil
ser a Argentina.

Em um país que atrai a atenção do mundo inteiro, os Eua vêm-se diante


de enfrentar sua reação a essa demanda invasiva através do politica-
mente correto, do culturalismo massivo que invade telejornais e univer-
VLGDGHV 0DV WXGR ğFD QD HSLGHUPH &RPR -HFDV TXH KÀ SRXFR WHPSR
migraram para a cidade, os praticantes do culturalismo pregam a reli-
gião da tolerância, mas ensinam a insuportável cartilha de ‘todos somos
iguais’, versão new age da disney, onde os sonhos se tornam reais.

Na prática, há somente o interesse naquilo que interessa aos EUA: as


confusões da política externa estadunidenses no oriente médio basica-
mente e a questão do judeus e do petróleo, a europa continental (França
e Itália principalmente) como lugares de turismo cultural, a Inglaterra
como pátria mãe fabricante de factóides da realeza e os melhores ato-
res e músicos do mundo, a constante ameaça vinda do México e outros
SDâVHV FDULEHQKRV HQğP XPD JHRJUDğD SDQRUÁPLFD TXH VH DSUHQGH
em poucas horas, recheada de prevenções contra aqueles que estão de
olhos no país mais atrativo do planeta.

Assim, a agressividade das piadas de Borat é uma clara manifestação de


uma recusa dessa paz pregada na mídia e entre intelectuais. Cada vez

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 155


mais a cerca que protege os Eua do resto do mundo está cedendo. De
WDQWRRSDâVVHDğUPDUYHQGHQGRXPDLPDJHPGHVLHQDUHDOLGDGHVH-
lecionando os benefícos dessa venda agora não há mais como estancar
a torrente. A terra prometida cumpre um percurso que vai de fabricadora
de estereótipos para mais um estereótipo entre tantos.

Para Borat, os Eua é sexo. Tudo gira em torno disso. Há uma obsessão
em realizar o ato, em possuir Pamela Anderson. A ex- garota do Baywa-
tch e coelhinha da Playboy é a coisa mais preciosa para Borat, é a sua
América. Como novo Colombo, ele singra os mais diversos estados norte-
americanos em busca da oportunidade de alcançar a América Profunda.
Ou seja, o maior e mais poderoso país do mundo pode ser reduzido uma
pop-quase-porno-star. Nada dos ventos da liberdade e outras incríveis
e pretensas invenções estadunidenses. Os EUA são apenas uma vagina
descolorizada. Por isso, Borat destrói lojas, invade casas, defeca e dorme
na rua, o escambau! O ultrage soa a uma réplica. Mas, como em todo
embate das representações, não há ninguém melhor ou pior.

'HVHXODGRRğOPHFDPLQKDHQWUHHVTXHWHVPDOFRVWXUDGRVFRPRDQWR-
logia que busca sua coerência no acúmulo do pior, do mais escatológico
e chocante. Disseram que Borat é tipo um Jackass com cérebro. Acer-
taram em parte. Jackass e suas imitações é a outra cara americana, do
prazer somente com sofrimento, herança puritanista que mata o corpo e
celebra uma desumana pureza.

Em Borat a cena mais chocante para a maioria é a paródia das lutas ameri-
canas, aquela do bando de adultos pulando em cima dos outros e trocando
golpes de mentirinha, que no Brasil eram chamadas de telequete (de Tele/
&DWFK 3RLVDPDLRUFHQDGRğOPHÒDPDLRUVXUSUHVDWDPEÒPSRLVRHPED-
te não é mais entre Borat e os americanos e sim entre Borat e seu compa-
triota. A cena se constrói dentro do quarto do hotel, misturando telequete e
posições de sexo. Nunca o cinema foi tão fundo! É inesquecível ver o anús do
gordo compatriota na cara de Borat. É a visão do inferno. A risada vem do
nojo, do constrangimento, já que a enorme tela do cinema nos coloca face a
face com aquela bunda gorda, enorme, branca e cabeluda.

Não sabemos o que pode vir depois. Quando no Brasil surgiu aquela por-
caria chamada É o Tchan, chegando no meio dos anos 90 a vender mais
de dois milhões de cópias, com uma mulher de shortinhos dançando em
FLPDGHXPDJDUUDğQKDGL]HQGRQDVHQWUHYLVWDVŁTXHDPDOGDGHHVWÀ
QRVROKRVGHTXHPYÓłDFKHLTXHHUDRğP2ğPÒVHPSUHSRVWXODGRH
postergado: nunca chega.

156 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Vendo esse consórcio entre o melhor da comédia da américa e o melhor
GD FRPÒGLD LQJOHVD DFDEDU HP XP UDER ĠÀFLGR H SXSXODQWH HX SRVVR
me dizer vingado, contra minha vontade. Pois rir hoje é uma questão de
acúmulo de nojeira. Na próxima vez, o gordão poderia cagar na boca de
%RUDW-ÀID]HPLVVRKÀWDQWRWHPSRHPDOJXQVğOPHVSRUQ÷V-ÀTXHD
comédia tira dos que as pessoas consomem o seu material, por que en-
tão não ir mais adiante dessa porno-cena que domina a mídia? Tudo em
torno do sexo novamente. Essas são as lições culturais que Borat apren-
deu em sua ida para os Eua: o que importa mesmo é gozar.

Estamos em um tempo estranho para alguns,normal para outros, com si-


milares comportamentos distribuídos no planeta, em virtude dos acesso
IÀFLOHQÂRWÂRFRQWURODGRGHLPDJHQV7XGRÒğOPÀYHO(QWÂRWXGRSRGH
ser mostrado. Nesses tempos pós-policamente correto, a comédia luta
SDUDQÂRğFDUWRODHGHVFDUWÀYHO%RUDWÒXPDPDUFRQLVVR

11.17 DREAMGIRLS:
MUSICAIS DA
BROADWAY NO
CINEMA
Marcus  Mota

11-­‐JANEIRO-­‐2006

Transportar um musical para o cinema é um dos constantes recur-


VRV GH +ROO\ZRRG $ KLVWöULD PHVPD GR FLQHPD HVWDGXQLGHQVH HP
SDUWHVHGHğQHSRUHVVDHVWUDQKDUHODÍÂRPXLWDVYH]HVRPXVLFDOÒ
tido como modelo criativo. Noutras, um anátema. De qualquer forma
hoje o teste de audiência e elaboração da dramaturgia que a produ-
ção de um espetáculo musical efetiva consagra uma fonte de mate-
riais para o cinema. Nos últimos anos, tivemos os sucessos de Chi-
FDJR  7KH3KDQWRPRI2SHUD  IDQWDVPDGD˜SHUDH7KH
3URGXFHUV  &RPRVHSRGHREVHUYDUKÀMÀXPDWUDGLÍÂR1ÂRVH
WUDWDGHXPDPRGDSDVVDJHLUD7RGRDQRSRGHPRVDVVLVWLUDXPğOPH
dramático-musical.

O que o musical traz para Holliwood é, inicialmente, um fazer as pa-


zes com sua história. Filmes são entretenimento. E grande parte dos
artistas, escritores, produtores e público do cinema veio, no primeiro
quartel do século passado, justamente dos shows de variedade, dos

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 157


cabarés, das ‘revistas’. Nesses lugares, estímulos dos mais variados ti-
pos cativavam freguesses ávidos de emoções e ejaculações intensas.
Ao vivo, cantores, bailarinos, comediantes, atores, músicos surpreen-
diam platéias com a demonstração de suas habilidades e corpos. A
ğVLFLGDGHHSUHVHQÍDGRVLQWÒUSUHWHVÒTXHGHPDQGDYDXPDFRQWUD-
resposta física e atual do público.

$WÂRGHFDQWDGDŁPRUWHGRVPĎVLFDLVGH+ROO\ZRRGłTXHFRPHÍRXQRV
anos 60 e atingiu o climax nos anos 80 deve-se menos a um esgotamento
do gênero que às mudanças na cultura audiovisual estadunidense. Com a
popularização de eletrodomésticos reprodutores de música e programas
televisivos de auditório, a canção deixou de ser algo relacionado a um
grande evento preparado e passou a ser consumida independetemente
de uma situação de performance. Por outro lado, com o Rock, as pesso-
as foram é dançar, curtir, livrar-se da dança marcada, da reprodução. Os
românticos casais, as duplas em cena deram lugar aos diretos ritos de
acasalamento. Era muita palavra, muita discreção para pouca ação.

O incrível é que foi durante essa ‘morte’ que o musical atingiu uma
maturidade artística sem precedentes, como o caso de West Side
6WRU\(VVHGUDPDPXVLFDOÒRFRPHÍRGRğP$FRQMXQÍÂRHQWUHXPD
proposta realista,contemporânea e as metareferências do espetáculo
DVSHVVRDVGDQÍDPHFDQWDPFRPRVHIDODVVHPHVHORFRPRYHVVHP 
VLWXDEHPDWHQVÂRUHSUHVHQWDFLRQDOGHğOPHVPXVLFDLV

Hoje, quando celulares baixam clipes de músicas, a presença de musi-


cais é uma lembrança de que aquilo que está tão facilmente à dispo-
sição, ao alcance de um toque, não é algo tão fácil. Programas como o
American Idol têm, mesmo com suas mazelas oportunistas,comerciais
e ‘novelísticas’, mostrado que cantar diante de um público não é uma
atividade simples. A trajetória de pessoas com boa voz, mas sem pre-
sença de cena, para vencedores possibilita o educativo contato com
os parâmetros da performance.

E foi justamente desse programa, dessa nova cultura audiovisual, que


YHLRXPDGDVDWUL]HVVXSRUWHVGRğOPH'UHDPJLUOV-HQLIIHU+XGVRQ
de eliminada do American Idol para brilhar em Dreamgirls, como se o
ğOPHUHFRQWDVVHDSUöSULDKLVWöULDGH+XGVRQ

4XHPDVVLVWLUDRğOPHQÂRYDLSRGHUğFDULQHUWH¿JUDQGHFHQDTXDQ-
do Hudson canta “And I’m Telling You I’m Not Going”. A intensidade
da performance de Hudson dissolve todos os manuais de atuação

158 Curso de Especialização em Teatro à Distância


para cinema publicados. Tanto que em muitas resenhas críticas do
ğOPHğFDDSHUJXQWDVHDTXLORÒDWXDÍÂRRXXPDUDLYRVDHGHVFRQWUR-
lada descarga de emoções. Outros críticos comparam a performance
GH%H\RQFHFRPDGH+XGVRQPRVWUDQGRTXHDĎOWLPDHPVXDSUL-
meira aparição nas telas, não sabe cantar ao vivo, e que a primeira,
pela primeira vez, consegue atuar um pouco melhor, ao conter toda
sua aura de superstar.

Então o choque é entre um conceito de atuar, entre uma norma de


atuação que parece ser válida para todo e qualquer espetáculo, e os
fatos. E, no caso, os cantores, sempre tidos como péssimos atores,
estão em julgamento. Contribuindo para isso, temos o comediante
(GGLH0XUSK\PXLWREHPHPXPSDSHOQÂRF÷PLFR

&RPRVHSRGHYHURğOPH'UHDPJLUOVFRPFDQWRUDVYLVWDVFRPRDWUL-
zes e um comediante como ator, colocam para nós o questionamento
PHVPRGDGHğQLÍÂRGHDWXDU1DYHUGDGHKÀPDLVXPDVÒULHGHH[-
pectativas que um conceito mesmo. Cada obra tem sua intepretação.
Mas as implicações deste tipo de abordagem confrontam-se direta-
PHQWHFRPRUHJLPHğQDQFLVWDGRVğOPHVÒPXLWRGLQKHLURSDUDLQ-
vestir em algo assim extravagante. Contudo, a extravagância está em
pensar que há uma maneira só de intepretar. Ainda mais em musicais.

4XDQWR¿GUDPDWXUJLDRğOPHÒLUUHJXODUSULQFLSDOPHQWHQDUHODÍÂR
entre cenas cantadas e cenas não cantadas. Logo após a grande e
intensa cena de Judson, temos um canto despropositado, fraco, canto
GHSHUVRQDJHP2SUREOHPDQÂRÒTXHRğOPHWHPFDQÍøHVGHPDLV
A questão é usar o silêncio, usar cenas com menor tessitura. Senão,
tudo parece igual. Outra problema está nas canções. São irregulares.
Há ótimo material a partir da cultura afro-americana. Mas em alguns
duetos e canções que fecham cenas pode-se ouvir claramente a gra-
PÀWLFD GD %URDGZD\ H VHXV PDQXDLV GH 6RQJZULWLQJ DTXHOHV VRORV
com partes constrastantes e mudanças de tom obrigatórias. Um saco!
O cara faz aquilo sentado no vaso em uma hora.

Porém, nada se compara à explosão de “And I’m Telling You I’m Not
Going”. A cena começa com ensaio que é interropido pela chegada de
(IğH:KLWHSHUVRQDJHPGH+XGVRQ1RSDOFRTXHÒXPSDOFRPHV-
mo, estabelece-se uma discussão dramático- musical entre as perso-
QDJHQV(IğHFRQIURQWDHÒFRQIURQWDGD$PRYLPHQWDÍÂRHDVXFHV-
são de ataques e respostas cantadas vai ampliando o isolamento de
(IğH(QWÂRHODH[SORGHHWRGRVğFDPRVXQVPLQXWRVFRPRFRUDÍÂR

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 159


batendo mais forte e lágrimas nos olhos ao vermos e ouvirmos uma
afro-americana mostrando sua dor.Recusada e traída por todas, ela
treme, bate no peito, ergue os braços, canta como que suplicando.

Lógico que podemos ver que Hudson tem limitações como atriz.
Muitos de seus gestos são repetitivos, não econômicos. Sua postura
às vezes parece de alguém perdido em cena, procurando a câmera,
procurando para onde olhar. Pode quase parecer constrangedor. Em
algums momentos a igualdade entre gesto e canto parece primária.
0DVPLQKDJHQWHHODSRGHQÂRVHUQHQKXPD0HU\O6WUHHSPDVHVVHV
sete minutos produzem uma sensação de imenso desconforto, pois
ao mesmo tempo é atrativo e repulsivo tamanha exposição tanto da
personagem quanto da atriz que o tempo pára, a tela rasga e você
HVWÀ GLDQWH GH XPD SRGHURVD YR] GH XPD LQHVTXHFâYHO ğJXUD TXH
apela para os teus mais íntimos e profundos sentimentos.

Para além das marcas, da coisa bem feita, a rusticidade feroz de Hu-
dson me lança para primitivas imagens e ecos de uma época em que
não éramos tão civilizados, e um grito era mais que um grito – era um
comando, belo e forte como o perigo da morte.

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nutos temos mais vida que na grande parte da porcaria correta que dia-
riamente é lançada em nossos olhos e ouvidos. A cena pode lembrar algo
de exagero operístico ou de dramalhão mexicano. Pode até ser. Mas a
nossa recusa de compaixão e nossos hábitos de estetizar a vida sempre
nos fornecem soluções para racionalizar situações tão especiais.

160 Curso de Especialização em Teatro à Distância


11.18 APOCALYPTO E AS
AVENTURAS DA
VEROSSIMILHANÇA:
QUANDO AS
LÍNGUAS NÃO
SIGNIFICAM MUITA
COISA Marcus  Mota

19-­‐fevereiro-­‐2007

Chego em casa 11 e meia da noite após um sessão de Apocalypto,


de Mel Gibson. Não consigo dormir por causa da agitação. É como se
eu tivesse tomado uma mistura de café, coca-cola e guaraná. Sem
GĎYLGDÒRPHOKRUğOPHGRGLUHWRUEUXWDPRQWHV+ÀPXLWRVDQJXH
algumas piadas e comentários fora de contexto, equívocos em re-
ferências culturais, situações absurdas como a de um homem ferido
correr a noite inteira, erros básicos de continuidade, como o de mos-
trar um caminho de ida e o da volta na mesma orientação, e falta de
conhecimento dos astros, ao mostrar um eclipse após uma lua cheia.
Mas muitas dessas coisas quem percebeu?

7DLVLQWHUIHUÓQFLDVQDOöJLFDGRPXQGRUHSUHVHQWDGRHQDğOPDJHPVÂR
VXSHUDGDVSHORÀJLOFLUFXLWRFDÍDGRUFDÍDQRTXDORğOPHVHEDVHLD(VVH
FLUFXLWRFRPVHXVUHYHVHV RFDÍDGRYLUDQGRFDÍDGRU SRVVLELOLWDSDUWHGH
uma ambiência primivista para Apocalypto. Tudo se reduz a atos básicos
GHQWURGHXPDFXOWXUDGHVREUHYLYÓQFLD2PÒULWRGRğOPHHVWÀHPHVWHQ-
der ao máximo essa situação. Não há poesia nenhuma. Em certas situa-
ÍøHVFRPRQDğOPDJHPQDPDWDRXQDWUDQVIRUPDÍÂRGRKHUöLHPIHUD
poderia haver um tempo maior para que as imagens fossem melhor ex-
ploradas. Mas não há tempo. A perseguição se impõe com todos seus mira-
ERODQWHVHVTXHPDVGHIXJDHDWDTXH*LEVRQTXLVID]HUXPğOPHFUX0DV
não é porque eu não sei cozinhar que eu tenho de comer bife mal passado.
A monomania do diretor reduz o escopo cinematográgico da obra. Daí as-
VLVWLUPRVDXPğOPHPHLRPDOUHDOL]DGRFXMDPDLRUTXDOLGDGHUHVLGHQHVVD
manutenção de um opressivo vínculo com a platéia: a adiada catarse, na
YLWöULDGRKHUöLVREUHVHXVLQLPLJRV&RPFHUWH]DÒRPHOKRUğOPHGH*LE-
son, esbaldado pelo oscar em virtude de seus comentários contra judeus

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 161


e homossexuais, possuindo apenas indicações técnicas, como melhor ma-
quiagem e som. Apocapypto é bem melhor que a porcaria de A paixão de
Cristo2URWHLURDTXLÒPDLVIHFKDGRFRPDVXUSUHVDğQDOWUDEDOKDGDHP
IRUPDGHSURIHFLDGHVWUâEXâGDPDUJLQDOPHQWHQRğOPH$VVLPHPFRQWUD-
SRQWR¿FHJDSHUVHJXLÍÂRWHPRVRXWUDWUDPDTXHHFORGHDRğPHGÀXPD
apreensão maior aos eventos mostrados. Quando os caminhos do herói se
estreitam, irrompe uma outra posssibilidade.

8PGRVWUDÍRVPDUFDQWHVGH$SRFDO\WRÒTXHHOHÒIDODGRHP<XFD-
teque, uma língua maia. Mas isso não é um grande problema, pois,
DOÒPGDVOHJHQGDVHPJUDQGHSDUWHGRğOPHQÂRKÀIDOD(TXDQGR
se fala, predomina a trivialidade. Assim, o uso de uma outra língua, de
uma língua exótica, funciona como atmosfera, como um elemento de
FDUDFWHUL]DÍÂRWDOTXDORğJXULQRDPDTXLDJHPHRVREHMWRVHPFHQD
1DGDGHPXLWRVLJQLğFDWLYRÒGLWR$LQIRUPDÍÂRPDLVUHYHODQWHHVWÀ
naquilo que se vê e na moldura sonora dos eventos.

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LQGĎVWULDFLQHPDWRJUÀğFDKHJHP÷QLFDQÂRDFDUUHWDQHQKXPDPRGL-
ğFDÍÂR QR PRGR FRPR D YLVÂR UHGX]LGD GHVVD LQGĎVWULD UHSUHVHQWD
outras culturas. É impressionante como a desculpa de ‘mostrar os ou-
tros como os outros são’ é um marketing, o culturalismo é apropria-
do como uma maneira de vender. Nisso o culturalismo acadêmico se
aproxima do midiático: os ‘outros’ agora são palatáveis, são produtos.

A tradição de normalizar a referência a pessoas de outras culturas


através da seleção de traços característicos formando estereótipos é
antiquíssima. Trata-se de uma renovada experiência no qual aquilo
que difere do que eu sou é interpretado através daquilo que eu julgo
conhecer. O contato intercultural reforça a identidade. Os desiguais
são assimétricos e rivais.

No cinema estadunidense, em prol de uma verossimilhança, tais es-


tereótipos abundam no modo como os imigrantes são apresentados.
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ğOPHV&RPLGDVJHVWRVPRGRVGHYHVWLUIDODVWXGRÒH[LELGR(VVD
riqueza de aspectos confere aos estrangeiros o seu exotismo. Mas tal
riqueza é reduzida a uma mesma resposta - eles não são como nós,
eles são diferentes de nós. E da diferença, o valor: eles são piores que
nós. E exuberância do outro demonstra sua fraqueza, seu desperdí-
cio, seu excesso, esquemas esses presentes em uma peça como Os
persas, escrita há dois mil e quinhentos anos atrás por Ésquilo.

162 Curso de Especialização em Teatro à Distância


Diante dessa imposição do característico no campo das artes re-
presentacionais, há dezenas de manuais que ensinam os atores a
falar com marcas de diversas culturas. É muito engraçado. O cara
fala em inglês, mas inglês com sotaque. Para colocar o mundo na
tela, todo mundo tem que falar inglês. Mas um inglês ruim, cômi-
co, o que desde já desvaloriza o falante. Os estrangeiros continu-
am como estrangeiros, não inseridos. As diferenças são mantidas
como margens de um centro. Há manuais para os sotaques dentro
do Eua, dentro de outros países que falam inglês. E, enfim, para
linguas germânicas, eslavas e românicas. E os manuais vêm com
cds, para você treinar. Uma delícia.

Como se pode observar, a própria língua inglesa já é variável, em fun-


ção do grupo que a fala. Esse movimento de diferenciação do uso
remete-se inicialmente para as comunidades falantes. Entre eles já
há uma dispersão. Há uma pluralidade de falas dentro do mundo an-
glófono, seja motivada pelas diversidades históricas,seja decorrente
da histórica expansão colonialista. Países do Caribe, da África e da
Polinésia possuem seu inglês. E quem aprende a falar inglês para se
comunicar, também.

$VROXÍÂRFLQHPDWRJUÀğFDSDUDHVVDEDEHOÒVLPSOHV7RGRVVÂRYHU-
des, mas há um verde mais fundamental. Os outros são matéria para
divertimento. Por mais sério que seja aquilo que você diz com esse
seu sotaque, aquilo que você diz não tem o mesmo status de algo dito
por um nativo, pelo verdadeiro inglês.

A situação parece se complicar quando vemos produções faladas em


outras línguas, como o foram A Paixão de Cristo e este Apocalyto. No
caso do primeiro, tivemos línguas mortas, línguas de livros, faladas
por pessoas em movimento, vivas. No segundo, uma língua diferente
GDVOâQJXDVGHFXOWXUDVFRPSURGXÍÂRFLQHPDWRJUÀğFD

Em ambos os casos, o que importa não é a língua, nem o que se fala.


Tudo é apenas som. O roteiro de Apocalyto foi escrito em inglês, de-
pois traduzido. As bobagens e a perspectiva de Mel Gibson passaram
de um registro para outro. No caso, é a repercussão de uma proposta,
de uma visão primitivista e exageradamente brutal dos maias. Serve
mais como lema classe média “cuide de sua família, proteja os seus”.
É o mesmo lema que faz Bush detonar o Oriente Médio e quem vier.
Em nome da casa, do lar, da minha família, eu destruo você.

ƋƉƘDžƜƝƔƗTeoria da Arte e do Teatro 163


$ SUHVHQÍD GH ğOPHV HP RXWUDV OâQJXDV TXH WUDGLFLRQDLV HXURSÒLDV
foi um fato marcante no cinema dos anos 90 do século passado. O
cinema iraniano e o asiático impulsionaram essa grande revolução,
trazendo para as telas, não só exotismo linguistico, mas histórias,
pensamentos e comportamentos.

7DOSUHVHQÍDWUD]SDUDRPHUFDGRFLQHPDWRJUÀğFRPDLVTXHXPSUR-
duto culturalista. A questão é o enfrentamento da dramaturgia base-
ada em convensões estritas de caracterização. É o conceito mesmo de
personagem que está em jogo. Quando a câmera se libera de diálogos
HIDODVH[SOLFDWLYDVHHQFLFORSÒGLDVHODSRGHHQğPPRVWUDUDOJRTXH
não repercute os esquemas de apreensão de realidade que a indús-
tria considera como universais.

Acima de tudo, o enfrentamento da chamada ‘verossimilhança narra-


WLYDłSDUHFHVHURIXQGDPHQWRSDUDGLYHUVLğFDUDDUWHFLQHPDWRJUÀğ-
ca. Politicamente em nome da verossimilhança o ridículo e absurdo
procedimento de colocar gente sempre falando em inglês, até entre
H[WUDWHUUHVWUHV Ò XPD DğUPDÍÂR GD KHJHPRQLD DQJOöIRQD 5HSUH-
sentacionalmente é um empobrecimento das possibilidades de cons-
trução das referências e das expectativas da audiência. Educacional-
mente é uma desgraça, pois basta colocar legendas e enfrenta essa
inércia e comodismo. O mundo vem à minha sala. E eu continuo co-
mendo as mesmas porcarias, achando que estou no melhor lugar. Pra
pensar assim, não precisa falar em inglês. Basta não falar. Não pensar
em nada mais que o pacote de pipocas. Novamente, o problema não
é a língua e sim o espetáculo.

164 Curso de Especialização em Teatro à Distância

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