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A UNIDADE BRRASILEIRA :UMA QUESTAO, PRELIMINAR NO PROCESSO DE INDEPENDENCIA Maria de Lourdes Viana Lyra* RESUMO. 0 artigo analisa 0 processo histérico da formagiia da unidade brasileira, questionando abordagens historiogrificas e procurando identificar as razdes da adogdo inicial de uma prética adménistrativa marcada pela dispersdo, para, em seguidla, verificar a conjuntura na qual a wnidade foi sugerida, instalada e consagrada, tentando compreender as iniplicacdes sdcio-econdmicas e palitico- ideolégicas que atuuram no processo de formagao do Estado nacional, Unitermas: tmidade luso-brasileira; wnidade brasileira; Independénci do Estado nacional: rrmagiio O processo de Independéncia da América portuguesa, um dos temas mais complexos da Histéria do Brasil, pela ambigilidade inerente, tem exigido dos estudiosos uma atengdo continua quanto a recuperagio de dngulos, aspectos, questées ainda nao abordadas ou insatisfatoriamente analisadas, que prop6em a retomada da discussao sobre novas formas de pensar a Histéria da Independéneia. Uma das quest6es ainda muito pouco atentadas tem sido a da unidade politica - resultante do processo de Independéncia - do vasto territério que, até os primeiros anos do século XIX, constituia apenas uma unidade geografica genericamente designada com o nome de Brasil. Este é um aspecto quase nunca fealgado, mas quc reputamos fundamental na ampliagao da andlise do processo de formagiio do Estado Nacional. Ante a confirmagio da inexisténcia de uma anterior unidade politica do Brasil, a unidade brasileira - vista sempre como decorréncia natural do modelo de colonizagio portuguesa, que univ e integrou, desde 0 inicio, a vastidio dos seus dominios na América - torna-se foco de novos questionamentos. Variadas tém sido as explicagdes para o fendmeno dessa unidade. A historiografia tradicional - ainda bastante presente nos manuais escolares- situa aorigem da unidade brasileira na ado colonizadora da metrépole portuguesa, * Pro? Dr’, Adjunta do Dep? Histéria da UFRJ. Rev. Inst. Est, Bras., SP, 34:121-138, 1992 tat a qual teria implantado, desde o inicio, uma administragio centralizadora que integrou 0 territ6rio ¢ resultou na “natural” unidade dos vastos dominios lusos na América meridional. Contudo, a corrente historiografica mais recente nega a existéncia de uma unidade politica na América portuguesa, relevando o carater dispersivo das partes do Brasil até 1808 quando - com a instala¢ao no Rio de Janeiro do completo aparelho de Estado portugués - interiorizou-se a metrépole ¢ instalaram-se efetivamente mecanismos de ligacao entre a nova Corte ¢ os demais nticicos de povoamento ¢ de produgiio ora existentes. Colocam-se, assim, novos questionamentos. Se nao existiu umaunidade anterior que demonstrasse a pré-existéncia de interesses comuns entre os varios nticleos coloniais, como entendcr a unidade constituida e consolidada com o processo de Independéncia ? Registremos que as duas correntes historiograficas sustentam a versio da Independéncia processada através da implantagdo do Estado imperial, sob a forma de monarquia constitucional ¢ administrativamente centralizada, proposicao vista por ambas como consensual a todos 0s grupos de forca politica de todas as provineias do Reino-Unido do Brasil. E que, quem a esta proposta se opés, o fez propondo a desagregagio da unidade e a adogdo da forma de governo republicano. Perguntamos entio: se nado mais se aceita a versio de uma unidade anterior (nos trés séculos de dominagao colonial nao existiu um ccntro interno de poder politico-administrativo) ¢ se essa verso também derruba a tese da passividade do movimento ( houve guerra civil em varios pontos do territorio até que o projeto de Estado unitario fosse implantado em todas as provincias do Brasil) ¢ se ja nao sc aeeita a mistificagiio do 7 de Setembro, nem 0 recorte de uma cronologia restrita aos acontecimentos de 1821 a 1822, como continuar vendo 0 processo de construgiio do Estado Nacional movido por um projcto politico unico, consensual a todos ¢ que atendia a todas as partes distintas.e dispersas da ex-colénia Brasil? E certo que a transplantagdo da metrépole para o Rio de Janeiro significou a real instalag3o de um governo central no Brasil. Mas este fato seria suficiente para criar, em tao pouco tempo, uma identidade tal a ponto de mover a aceitagdo das diretrizes tragadas pelos grupos ligados 4 Corte do Rio de Janeiro? E se acreditarmos que a inversio acontecida foi tio significativa que criou e realgou, em pouquissimo tempo, interesses idénticos entre os distintos nucleos coloniais, quais scriam esses intcresscs ? Nessa linha de considcragdes, percebcmos 0 quanto a questdo da unidade reveste-se de fundamental importancia na ampliagdo do conhecimento sobre o processo de Independéncia e de formacgdo do Estado nacional. Acreditamos que a luta pela unidade representou a idéia-forga do movimento cmancipacionista ¢, intimamente ligada a ela, cncontra-se a também complexa e ainda pouco elaborada “questdo nacional”. Se nao existiu uma unidade anterior, como aceitar-se ainda o discurso “scparatista” construido com a intengo de passar a imagem de uma unidade nacional ainda nao existente ? Antc as questées aqui levantadas, propomos a retomada da discussao sobre a questo da unidade - partindo de um rapido exame do quadro colonial paraentenderasrazées da dispersdo administrativa objetivamente determinada ¢, em scguida, apreender o momento histérico cm que a unidade é sugerida, instalada econsagrada, ou seja, compreender as implicagdcs sécio-econdmicas 122 Rov. inst. Est. Bras., SP, 34:121-198, 1992 € politico-ideolégieas que encaminharam o processo de Independéncia na diregiio da unidade politica de todas as partes das terras do Brasil. A Dispersao dos Nicleos Coloniais. Viajantes ¢ cronistas que observaram o Brasil no século XIX apontaram sempre a inexisténcia de ligagdo entre as capitanias ou regides da colénia portuguesa da América. O francés Horace Say aqui estando, em 1815, observou sero nome Brasil apenas uma “designagdo genérica das possesses portuguesas na América do Sul mas que ndo existe por assim dizer, unidade brasileira um governador-geral residiu na Bahia até meados do século pasado e depois se fransferiu para o Rio de Janeiro, Estava longe, contudo, de exercer autoridade ativa ¢ influente sobre a drea que vai do Amazonas ao Prata”(1) Ohistoriador alemao H. Handelman, em sua Histéria do Brasil, escrita ¢ publicada na Alemanha em 1860, analisando a acdo colonizadora da metropole portuguesa no Brasil afirmou que “O império colonial do Brasil formava, portanto, apenas ima unidade geogrdfica, porém nao um corpo de Estado organizado; o sett centro politica ficava além dos mares, em Lisboa, onde o principe herdeiro da coroa de Portugal, desde 27 de outubro de 1645, usava o titulo de “Principe do Brasil”, e onde tinha a sua sede 0 denominado “Conselho Ultramarino’”.(2) E em 1908, Oliveira Lima, em D, Jodo VI no Brasil, reafirmava que “Ao teipo da chegada de D. Joao VI, era o Rio de Janeiro capital mais no nome do que de fato. A residéncia da Corte foi que comegou a bem acentuar-the a preeminéncia, foi que a consagrou como centro politico, intelectual e mundano (3) Nido ¢ rara a referéncia aos “Brasis” em documentago do periodo colonial, ¢ bastante significativa éa afirmagiio do poderoso ministro do governo portugués, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ao escrever “As provincias da América, que se denominam com o generico nome de Brasil” quando, nos anos finais do século XVIII, apresentou ao Consclho de Estado um projeto de reformulagao da administragao do império portugués, tratando em especial das partes do Brasil.(4) Naquele momento 0 ministro demonstrava ter sido objetiva a oricntagao da politica administrativa portuguesa quanto A ligagdo direta da metrépole com cada uma das partes dos scus dominios, ao declarar que “as relagées de cada dominio ultramarino devem em reciproca vantagem ser mais ativas e mais animadas com a metrépole do que entre si, pois 86 assim a unio ea prosperidade poderdo elevar-se ao maior auge”.O que nao deixava dividas quanto 4 determinagio da dispersio na agdo colonizadora praticada por Portugal como forma de evitar a unido de interesses entre as capitanias, 0 que Possivelmente acarretaria a quebra da unidade a metropole. Alias, esse aspecto da inexisténcia de interligaco cntre as partes do | Apud. HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Heranca colonial - sua desagregagio. fu; HGCB, Tomo UL vol. 1. So Paulo, Difel, 1962, p. 15. 2 Cf. HALDERLMAN, H. Histéria do Brasil. Tomo 2, Belo Horizonte, Itatiaia; Siio Paulo, EDUSP, p. 170, 3 Cf. OLIVEIRA LIMA. D. Jodo VI no Brasil. Vol. 1. Rio de Janeiro, José Olympio, 1945. p. 127. 4 CE. Projeto de reformulagio do império colonial portugués. Colegio Linhares. Secgio de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janciro. 1-23,13,16. Publicado por Marcos Cameiro de Mendonga “O Intendente Camara” Sio Paulo, Cia Ed. Nac.,1958, p. 277 a 299, Rev. inst. Est. Bras., SP, 34:121-138, 1992 123. Brasil s6 deixou de ser relevado por aqueles que, no periodo de consolidacao do Estado recém-instituido engajaram-se na tarefa de escrever uma Historia do Brasil onde o todo, ou seja, as caracteristicas gerais e definidoras da unidade politica, entéoestabeleeida no vasto territério chamado Brasil, fossem realgadas, em detrimento da constatacio da dispersdo e das diversidades até 0 momento existentes. Essa “Hiséria” produzida buscou situar, na ago colonizadora portuguesa, a origem integradora do territério, para demonstrara pré-cxisténcia de uma unidade “natural”, elemento basico 4 “nagdo "” que se formava. Assim, ao abordar o tema da administragao no periodo colonial, Francisco Adolfo de Varnhagen, o fundador dessa corrente hisloriografica, afirmou, por exemplo, que “Resolvido o governo da metropole a delegar parte de sua autoridade em todo o Estado do Brasil...) determinou fixar a sede do governo-geral na Bahia, por ser a porto mais central\...). Deste modo, a centralizagao administrativa propriamente dita, acompankada dos negécios da Justiga e da Fazenda, sujeitos aos cargos de ouvidor-geral e de provedor-mor...) se instituiram”.(5) Varnhagen deixava, no entanto, de fazer uma analise complementar sobre a inexisténcia de vias de comunicagio entre as eapitanias e que eram imprescindiveis 4 construgao da unidade, evidenciando, assim, a auséncia de um suposto centro administrativo na colénia. Também a existéncia de duas repartigdcs administrativas completamente distintas entre si - Estado do Brasil e Estado do Maranhdo - foi registrada por Varnhagen sem a menor relevancia parao fato, porsi sé transparente, da nao existéncia de um unico centro de poder interno e, portanto, de uma unidade politica na América colonial portuguesa. {6) Tais omissGes foram absorvidas por grande parte das anilises posteriores, resultando numa visdo generalizante e/ou falseada da realidade colonial, comprometendo a interpretagao do processo de formagiio do Estado Nacional. Hoje, as andlises historiograficas mais recentes ja demonstram que no periodo colonial nao predominou uma unidade politica entreas varias capitanias e/ou regides, nem existiu um centro interno de poder.(7) Uma analise mais apurada do tema nos revela que no period colonial predominaram, na realidade, nicleos administrativos diversos ¢ dispersos, sem ligacao eauténomos entre si, mas diretamente subordinados a metrépole e sob a vigilancia severa do Conselho Ultramarino, constituido cm 1642, para atuar como um verdadeiro “ministério das colonias (8) O estabelecimento de um governo-geral na Bahia, em 1549, visou sobretudo - além do comando dircto da coroa sobre os trabalhos de busca dos metais e pedras preciosas -o controle da arrecadagiio das rendase ocuidado com a defesa da costa, do que, propriamente, a criacdo de um centro de poder no interior da colénia, embora o Regimento de Tomé de Sousa definisse que ao titular daquele cargo coubesse a tarefa de “governar as terras da Bahia e das outras capitanias ¢ terras da costa". (9) 5 VARNHAGEN.F. A. Histéria Geral do Brasil. Tomoll, vol. 1. Belo Horizonte, It EDUSP, 1981. p. 232, 6 Iden, Ihid., Tomo I, Tomo HL, p. 193. 7 CE PRADO JR, Caio. Formagdo do Brasil Contempordneo. Sio Paulo, Brasiliense, 1983; HOLANDA, Sergio Buarque de. A Heranga colonial... Ed. cit; DIAS. Maria Odila da Silva, A Interiorizagao da Metropole. In: 1822: Dimensdes. Sio Paulo. Perspectiva, 1972. p, 160. 8 Cf. HANDELMAN, H. op. cit. p. 170. 9 Regimento de Tomé de Sousa. Apud HOLANDA. Sérgio Buarque de. A Instituigio do Governo- Geral, In: HGCB. op. cit, Tomo I, 1° vol., p. 122. 124 Rav. Inst. Est. Bras., SP, 34:121-198, 1992 Analisando os regimentos do governador-geral, ouvidor-gerale provedor- mor da Fazenda Real verificamos que dedicavam atengio quase exclusiva as formas de arrecadagao das rendas devidas 4 coroa ou as formas de puni¢io pela falta de pagamento dos impostos, nao se encontrando referéncias a criagdo de vias de comunicagao entre as capitanias, providéncia basica ao estabelecimento de um centro interno de poder na colénia. Dentro desse enfoque é bastante significativa a proibigdo da passagem dos habitantes de uma capitania para outra, sem licenga expressa das autoridades compctentes, as quais faziam recair sobre os infratores castigos corporais ou multas elevadas. O Regimento do governador geral era incisivo ao estipular que “ndo irdo de umas capitanias para outras por terra sem licenga dos ditos capitées ou provedores (...) para evitar alguns inconvenientes quedissoseguem sob pena de ser acoitado sendo pedo e sendo de maior qualidade pagara vinte cruzados, ametade para os cativos ea outra metade para quem os acusar”.(10) Obscrvemos, pois, que mesmo levandoemcontaa dificuldade documprimento, Arisca, de tal medida, a sua estipulagao demonstra com clareza a diretriz de uma politica intencionada em evitar a criago de lagos dc relagdo entre os espacos coloniais 0 que impedia, conseqiientemente, a existéncia pratica de um centro interno de poder. Percebe-se, portanto, que a criagiio do governo-geral significou mais uma medida centralizadora de uma politica imperial, cuja marca era o controle direto da coroa, através de funciondrios fiéis sobre o trabalho de pesquisa mincral ¢ sobre o fruto das rendas geradas na colénia, mas cujo centro de poder situava-sc na metropole.(| 1) Eainda que, a inexisténcia de lagos entre os varios nicleos de colonizagao era mais interessante 4 diminuta metrépole, que encarava com desconfianca ¢ temor a unio das varias partes do seu vasto dominio. E mesmo a passagem do Brasil 4 categoria de Vice-Reino, em 1640, a conscqiiente mudanga do titulo de governador-geral para o de vice-rei e a posterior transferéncia da sede do Vice-Reino para o Rio de Janeiro, em 1763 - onde a proximidade estratégica das areas mineradoras ¢ do rio da Prata, aliada a0 dinamismo da regidio em virtude da produgo aurifera, tomnava essa capitania mais interessante como sede de governo - continuou sem indicar uma direcio Para a concentragdo de poder ou para uma unidade politica das reparti¢des coloniais. Certamente instituido para passar a idéia da existéncia de uma unidade - 0 que fortaleceria a colénia no combate as constantes invasdes estrangeiras - o titulo de Vice-Rei acrescentava ao cargo prerrogativas de pouca ou nenhuma significagdo, como a precedéncia em rclagdio as honrarias. Na pratica, a mudanga apenas aumentou 0 aparato que o titulo requeria.(12) Nocntanto, convém anotar queé no periodo pombalino (1750-1777) que se passaa reforgar o principio da interdependéncia entre os dominios portugueses da América, mas somente no que se referia ao encargo da defesa do territério. Nas Instrugdes passadas pelo governo da metrépole aos vice-reis ¢ capitics- generais, encontram-se referéneias ao “Sistema Fundamental que hoje forma 10 Apud HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visdo do Parais 1969. p.315 11 idem, tbid. p.45. 12 Ch. HOLANDA, Sérgio Buarque de. A Jnstituigdo do Governo-Geral. Ed. cit. p. 136; PRADO. JR., Caio. Formagao do BrasilContemporineo. Ed. cit. p. 298. >. So Paiulo, Cia. Ed, Nacional/EDUSP, Rev. inst. Est. Bras., SP, 34:121-138, 1992 125 o Governo Politico, Militar e Civil de toda a América Portuguesa, aplicado a cada uma das capitanias daquele continente, segundo a situagao de cada uma delas" estabelecido peto ministro marqués de Pombal, em 1757, e que diziacm um dos seus itens: “Todas as colénias portuguesas so de Sua Magestade, e todos os que as governam so vassalos seus: E nessa inteligéncia tanta obrigagdo tem o Rio de Janeiro de socorrer a qualquer das capitanias do Brasil, como cada uma delas de se socorrerem mutuamente, umas as outras (...) logo que qualquer das ditas capitanias for atacada, ou ameagada de o ser; Sendo certo, que nesta reciproca uniao de poder, consiste essencialmente a maior Jforga de um Estado, e a falta dela, toda a fraqueza dele"(13) Observemos que a unido de esforgos na defesa dos dominios do rei passava a consistir a responsabilidade maior dos administradores reais, os quais deveriam verna “reciproca unido "a forca necessariaao combate das investidas estrangeiras, A chamada sobre a quem verdadeiramente pertenciam as terras do Brasil, devia-se 4 constatagio de um “perigoso” enfraquecimento da presenga do Estado portugués na colénia, o que levou ao marqués de Pombal a par em exccugio um programa geral de reorganizagdo das bases institucionais do Estado, procurando modernizar a estrutura administrativa a partir de uma maior centralizagao, mas do poder da metrépole, a quem cabia definir as prioridades da ago dos governos coloniais. E naquele momento, quando se definiam as fronteiras dos dominios da América - Tratado de Madri - competia maior reforco na defesa dos dominios lusos. Mas é importante no esquecer que, com Pombal, a ago centralizadora do governo metropolitano continuou sendo Processada no reino ¢ foi se tornando cada vez mais presente através da consolidagao da autoridade real ¢ nao na colénia, onde continuou inexistindo sinal de interrelago, a nao ser aquele do principio de ajuda miitua no caso de defesa externa.(14) Ainda no final do século XVII ¢ inicio do século XIX, persistia a total independéncia entre 0 novo Estado do Gréo-Pard e Rio Negro e o Estado do Brasil. O antigo Estado do Maranhao - criado por Carta Régia de 13 de junho de 1621 ecompreendendo as capitanias do Maranhio, Para e Ceara - foi extinto cm 1772 permanceendo, no entanto, as capitanias da regidio amazénica, ou seja, a do Par ¢ sua anexa Rio Negro (criada em 1757) com governo independente ¢ ligado diretamente a Lisboa. O Estado do Brasil abrangia todo o litoral, inicialmente da capitania de Sfio Vicente 4 do Rio Grande-do-Norte, posteriormente da capitania do Rio- Grande de Sao Pedro 4 do Maranhio. No decorrer do século XVIII, as 13, dpud. MENDONCA, Marcos Cameiro de. 0 Marqués de Pombal a unidade Brasileira. fn: RIHGB, Vol. 219, 1953. p. 73. 4 Sobre © periodo pombatino em geral consultar : MACEDO, Jorge Borges de, Pombal, Marquis de, In. Dicionario da Historia de Portugal. Vol. V. Porto, Iniciativas Ed., 1971. p. 415.5 FALCON, Francisco J. C. A Epoca Pombalina: politica econdmica e monarquia iltstrada. Sio Paulo, Atica, 1982. Sobre o periodo pombalina no Brasil consultar ; Visconde de Carnaxide, O Brasil na Administracéo Pombatina. S3o Paulo, Cia Ed. Nacional.,1940; AVELAR, Hélio de Alcantara, Historia administrativa do Brasil. Rio de Janeiro, DASP, 1970; ELLIS, Myriam. O Monopalio do Sal no Estado do Brasil. Sio Paulo, USP-Boletim n° 197, 1955. p. 23 € segs. 126 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:121-138, 1992 “Capitanias Hereditarias” foram desaparecendo ¢ sendo substituidas pelas “Capitanias Reais", subdivididas, por sua vez, em “Capitanias Prineipais”ou “Gerais ”,asde “primeira ordem”e “Capitanias Subalternas ",as de "segunda orden”. Independentes entre si c revestidas de iguais direitos, as “Capitanias Principais” eram governadas por um funcionério real, chamado de “capitéo- general”, nomeado pelo rei ¢ a ele diretamente subordinado. Dependentes dessas, as ““Capitanias Subalternas” eram governadas por um “capitéo-mor”, indicado pelo capitao-general da capitania-principal correspondente ¢ a ele diretamente subordinado.(15) Se bem que essa subordinagiio tenha geralmente secaracterizado como “frouxa e vacilante”, o que reforga a marca da dispersio. Eurgente anotar, contudo, que esse enfoque da dispersdo administrativa nio deve ser visto isolado de um quadro maior, 0 da diversidade regional, o que requer uma vistio conjunta sobre o modo adorado na forma de ocupagao do espagocolonial. Assim, impde-se a andlise do espago produzido, que,em suma, significa o estudo da ago do homem sobre o meio natural que o transforma de acordo com os seus interesses. Torna-se oportuno, portanto, identificar a regido no espaco colonial ¢ para tanto é necessdrio atentar para o sistema de relagées que vio se produzindo ¢ se modificando de acordo com os interesses que comandam a sua produgio.(16) Acompanhando o proceso de ocupagio do espaco geografico brasileiro como um todo, ¢ de identificagdo dos espagos regionais, perecbemos a acao colonizadora do homem guiando a produgao desse espaco segundo intcresses ¢ objetivos determinados. A localizagio dos portos, por exemplo, demonstra uma intima relagdo com os ntcleos econémico- politico- )-administrativos. Tomemos como exemplo os dois primeiros ¢ principais espagos de concentragao das relagdes sociais e de produgao neste periodo: o baiano- pernambucano, com base na economia agucareira e girando em torno dos importantes portos de Salvador e Recife ¢ 0 paulista-fluminense baseado respectivamente no apresamento do indio ¢ na produgao do agtiear e girando ein torno da vila de Sdo Paulo e do porto do Rio de Janeiro. Percebemos como © estabelecimento dessas relagdes correspondem 4s praticas inerentes aos quadros do antigo sistema colonial. Ou seja, apreendemos que a forma de ocupacio e de produgao da colénia se deu em sintonia com a acao propria do sistema de exploragao colonial, cujo objetivo prioritario foi o de produzir para dinamizar 0 mercado europeu. E ainda, que a ocupagio do territério colonial se processou em fungio desse mecanismo de organizacao da economia, o que explica a concentragao da atividade produtiva na faixa litoranea, excetuando- se a atividade subsidiéria de apresamento do indio e da criag3o do gado, inicialmente, e, mais tarde, a da produgdo mineradora, Scnio vejamos. A hoje chamada regifio Nordeste, primciro espago a ser ocupado em termos demograficos e econdémicos, sc identificou como unidade culturat ¢ geografica através da produgio da cana-de-agicar, assumindo Posigao de destaque entre as demais regides. Asrelagées foramse estabelecendo 15 DAURIL, Alden. Roval Government in Colonial Brasil. Univ. California Press, 1969; MAURO, Frédéric, Au Brésil: Origines des Etats et Formation des Municipes. Cahiers des Amériques Latines, 1973. 1° 7. 16 A anélise aqui desenvolvida segue, cm linhas gerais, a orientagio do estudo de Manuel Correia de Andrade e Femmanda Amazonus. A Dinimica da Produgio do Espago. Espago e Urbanizagio. Comunicagdes 27. URPE. Roy. Inst. Est, Bras., SP, 34:121-198, 1992 127 ne nivel da produgao e da comercializagaio do setor dominante (a cana-de- agticar), da interrelagdo com a atividade pastoril (a criagdo do gado desbravou 0 interior) ¢ com o setor de subsisténcia, propiciando uma agio integradora e de identificagao regional. Em paraleio, o sistema administrativo foi sendo moldado dentro dessasrelagdes que se estabeleciam. A capitaniade Pernambuco, por exemple, carro-chefe da economia agro-exportadora, sediava o principal Porto de escoamento da produgdo, ao mesmo tempo que, exercendo papel aglutinador no espaco regional nordestino, constituia-se em capitania princi- pal com jurisdigdo sobre as capitanias subalternas - Ceara, Paraiba e Rio Grande do Norte - ¢ criava uma identidade de interesses evidenciada nas telagdes de aceitagdo ou de rejeigzio 4 dominacio do sistema de exploracio colonial. A capitania da Bahia, completamente dissociada de Pernambuco pelo tio Sao Francisco, estabeleceu relagdes ¢ interesses distintos organizando-se em nucleo administrativo (Governo-Geral e Vice-Reino) e centro de relagécs comerciais através do porto de Salvador. Observemos ainda que a sede do Governo-Geral, distinta dos demais nicleos, situou-se estrategicamente proxima aos primeiros pontos de entrada para o interior em busca dos cobigados minérios.(17) © progresso da atividade mineradora no decorrer do século XVIII, por sua vez, favoreceu o aceleramento da agiio integradora do primitivo espaco paulista-fluminense em cuja area geografica as relagdes de produgiio e de comércio se expandiram pelo interior, propiciando o desenvolvimento de um mercado interno incrementado pela atividade de subsisténcia da regio. O dinamismo da produgao do ouroc 0 conscqitente desenvolvimento do comércio, tendo como centro gerador das relagdes comerciais 0 porto do Rio de Janeiro, estimulou a ocupacio do espago, favorecendo a integracao da regio e a identificagiio de interesses entre as capitanias de Sdo Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A capitania de Sdo Paulo ¢ Minas do Ouro, criada em 1709 em fungao da atividade mineradora que entdo se acelerava foi sendo desmembrada ~ Minas Gerais em 1720, Goids ¢ Mato Grosso em 1748 - perdendo as prerrogativas de nucleo administrativo e se submetendo A jurisdigao do Rio de Janeiro. Sede do Vice-Reino, o Rio de Janeiro concentrou as fungdes de centro administrativo com jurisdi¢ao sobre as demais capitanias do Sul do Estado do Brasil, a0 mesmo tempo em que sediava o principal porto gerador da atividade amercantil. Ao Norte, a ago integradora e formadora de uma outra regio colonial foi se fazendo cm estreita ligagdo com as relagdes de produgio ¢ de comércio especificos 4 regiio amazénica, integrando 0 Estudo do Grao-Pard e Ouro Negronum quadro complementar diverso ¢ totalmente independente dos outros niiclcos ¢ regides do Estado do Brasil. Até 0 alvorecer do século XIX esse era 0 cenario observado pelos viajantes e cronistas da América colonial portuguesa, de onde sobressaia 0 carater da diversidade ¢ isolamento regional e 0 da dispersio administrativa, sem indicar, em nenhum momento, uma diregao paraa unidade politica do todo chamado Brasil, sé estabelecida posteriormente com a instalacao da sede do governo da metrépole no Rio de Janeiro, ¢ consolidada mais tarde, ja com o novo Estado independente. 17 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visdo do Paraiso, Ed. cit. p. 317. 128 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:121-138, 1992 A Unidade Luso-Brasileira. A transferéncia da sede da Corte portuguesa para a colénia, ou seja, a instalagdo do governo da metrépole portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, rompeu com a dispersdo administrativa, caracteristica do periodo colonial, ocasionando a efetiva instalacdo de um governo central no Brasil. S6 a partir de entdo se fez sentir o peso da autoridade de uma sobre as demais instancias administrativas do territério colonial. Com a localizagao do eixo dinimico da ago centralizadora do Estado absolutista portugués no Rio de Janciro, criou- sc um ponto de convergéncia, isto é, um eentro de unido, ndo apenas entre as varias partes do territorio chamado Brasil, como entre este ¢ o rcino de Portugal na Europa, demarcando um movimento particular - em termos de relagdes sociais, politicas, ideolégicas, econdmicas e institucionais - no processo de formagao do Estado nacional. E certo que 0 fato unico e inusitado, o da transformagio da colénia em metrdpole, em si ja se revelava como um aspecto definidor da particularidade do processo de autonomizagio da colénia chamada Brasil. Transformada em sede do governo de um Estado monarquico, absolutista e colonizador - uma das partes da América portuguesa, 0 Vice-Reino do Rio de Janeiro - passava do status de colénia ao de cabeca de um império que naquele momento se reformulava, Dai, ao papel de lideranga politica que assumiria a Corte do Rio de Janciro e adjacéncias no processo emancipador e definidor do Estado nascente, o caminho foi largo e curto. Todavia, nao basta constatar o aspecto peculiar desse momento histérico © passar a destacar as mudangas c/ou apontar as permanéncias. Torna-se necessario ir mais além, investigar as razbes da particularidade desse processo, buscar as origens c as caracteristicas da crise que ocasionou uma mudanga tao acentuada nos rumos da monarquia lusa, identificar os interesses em torno da \ransplantagdo da metrépole, verificar em que medida as mudangas ocorridas alteraram os rumos do pensamento e da acio dos agentes envolvidos. Para tanto é preciso ampliar 0 campo de investigacao cnfocando o quadro geral da conjuntura revolucionaria curopéia - segunda metade do séc. XVIII no qual os pressupostos basicos do pensamento e a estrutura da sociedade, até entao vigentes, foram abalados - e atentar para o quadro especifico da crisc do Estado absolutista portugués, analisando particularmente a orientagao politica do reformismo ilustrado, para entao identificar a diretriz ideoldgica ¢ os reais interesses cm torno dos quais mobilizaram-sc com afinco colonizadores e coloniais, ou mais apropriadamente, portugucses de Portugal © portugueses do Brasil Antes da celosio da Revolugao Francesa de 1789 - um dos fatos mais importantes da histéria do mundo ocidental pela profundidade do nivel de discussiio das “novas idéias”, da propagagio da nova forma de pensar o homem easociedade, das transformagoes estruturais provocadas - Portugal se destacou, através da politica pombalina, pela adogio da pratica do reformismo ilustrado - aquela que optou por uma politica de reformas, encetadas com vigor, na estrutura administrativa ¢ no nivel de produgdo econémica, objetivando impedir oagravamento da crise do poderdo Estado. Nos periodosimediatamente anterior e posterior 4 Revolugao, a Ilustragdo portuguesa avangou ¢ se desdobrou na busca de superacao da crise vivenciadac inovou quanto a politica Fev. Inst. Est, Bras., SP, 34:121-138, 1992 129 de resisténcia 4 quebra do poder do Estado absolutista ¢ 4 derrocada do sistema de dominaciio colonial. (18) Nos ultimos anos do século XVIII 0 governo portugués expressava ~ através da a¢do objetiva de ativos agentes como a do ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o futuro conde de Linhares - 0 firme empenho de realizar reformas na administragdo dos dominios ultramarinos. Reconhecendo serem aqueles da América “os que fazem propriamente a base da grandeza do nosso augusto trono” o ministro alertava sobre a necessidade urgente de adogio de um novo “sistema politico que mais convém que a nossa coroa abrace para maior conservagdo dos seus to vastos dominios, particularmente os da Ainérica” que resultasse na superagio da situagao critica pela qual passava e na conseqiiente conservagio da monarquia, do Reino portugués ¢ do seu império colonial.(19) E importante acentuar que o plano apresentado representava o resultado de um longo trabalho de reflexdo conjunta dos homens da Ilustragiio - tanto dos naturais do reino como daqueles nascidos em colénia - ¢.elaborado a partir de informagées variadas ¢ detalhadas fornecidas pelos governadores das capitanias do Brasil, pelos relatérios das expedigdes de reconhecimento da flora e das potencialidades gerais das terras da América, a maioria apresentada, desde 1779, sob a forma de “Memérias” 4 Real Academia de Lisboa, cujos estudos € sugestées traduziam a formulagio de uma politica consciente ¢ objetiva na implantagdio de novas diretrizes governamentais,(20) Entre 0s memoralistas, nascidos em colénia, podemos destinguir: José Bonifacio de Andrada, Eloi Ottoni, Teoddsio C. de Chermont, Manuel Ferreira Camara, Baltazar Siva Lisboa, José da Silva Lisboa e Azeredo Coutinho, todos com destacada atuagiio no processo de consolidagao da unidade entre o reino portugués ¢ a colénia Brasil.(21) Papel importante nesse sentido foi também desenvolvido pela “Casa Literdria Arco do Cego””. Fundada cm 1798 pelo ministro D. Rodrigo e dirigida pelo botinico mineiro, Fr. José Maria da Conceicao Veloso, coordenador do trabalho de sclecao de textos, tradugdo de obras pertinentes a agricultura, maquindrias e ciéncias, que era exercido por estudantcs do Brasil, entre os quais sce destacaram: Martim Francisco ¢ Anténio Carlos Ribeiro de Andrada, Manuel Jacinto Nogucira da Gama, José Feliciano Fernandes Pinheiro, Manuel de 18 Sobre a Revolugio Francesa consultar sobretudo SOBOUL, Albert. Histiria da Revolugdo Fraucesa. Rio de Janeiro, Zahar, 1974; GODECHOT, Jacques. La Grande Nation. Paris, ‘Ambier, 1956; VOVELLE, Michel. La Mentalité Revolutionaire, (mimeo); FURET, Francois. Penser la Revolution Frangaise. Paris, Gallimard, 1978. Sobre a Ilustrado portuguesa consultar: FALCON, Francisco. A Epoca Pombalina: politica econdmica c monarquia ilustradn. Ed. NOVAIS, Fernando, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial(1777-1808). Si0 Paulo, Hucitec, 1983; MAXWELL, Kenneth. A Politica. In: O Império Lusa-Brasileiro. Vol. Vill. Coord. M, 8. Nizza da Silva. Lisboa, Estampa, 1986, p. 333. 19 Cf. Projeto de reformulagio ... Colegdo Linhares, cit. 20 Cf MAXWELL, Kenneth. op. cit. 21 Cf, Varios siio os estudos que’analisam e demonstram com pertinéncia a importincia das “Afemérias” apresentadas na Real Academia de Lisboa. Cf. DIAS, Maria Odila, Aspectos da lustragdo no Brasil. in: RIHGB, Vol, 278. p. 100; NOVAIS, Fernando. Portugal ¢ Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). Ed. cit. ¢ O Reformismo [lustrado Luso- Brasilciro: alguns aspectos. ‘evista Brasileira de Histéria, 7, Sio Paulo, 1984; MAXWELL, Kenneth. op. cit, 130 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:121-138, 1992 Arruda Camara e Hipélito José da Costa cujos resultados, publicados sob o titulo de “Fazendeiros do Brasil", eram cnviados aos grandes proprietirios do Brasil(22) A “Casa Literéria do Arco do Cego” desenvolveu um trabalho efetivo de discussio e divulgacio dos novos conhecimentos técnicos de exploragao mineral ¢ agricola, vistos como extremamente necessarios a0 progresso geral da nacdo portuguesa.(23) O plano de reformas apresentado ao Conselito de Estado pelo ministro D. Rodrigo, centrava-se em dois pontos basicos quese justapunhame apontavam numa s6 direeao: a crise que se apresentava revelava-se cruel por fazer perigar 0 dominio das possessdes coloniais, do qual dependia a sobrevivéncia nio apenas da metropole, mas, particularmente, da propria monarquia portuguesa. “Portugal reduzido a si so seria dentro de um breve periodo uma provincia da Espanha”, enquanto a conservagao de sua posigao de “ponto de unido e de assento da monarguia” the garantitia “todos os meios de figurar conspicua ¢ brithante entre as primeiras da Europa”. Urgia portanto, encontrar formas de aperfeigoamento do sistema vigente, com ténica no reforco dos vinculos existentes entre Portugal eos “ais essenciais dos nossos dominios ultramarinos, que sdo sem contradigdo as provincias da América que se denominam com o genérico nome de Brasil’, enfatizando a unidade como o principio maior do 1a politico” a ser implantado. Propunha uma reorganizagao do impétio em “provincias da monarquia condecoradas com as mesmas honras e privilégios(...) todas reunidas ao mesmo sistema administrativo, todas estabelecidas para contribuirem coma mijtuaereciproca defesa da monarquia, todas sujeitas aos mesmios wsos ¢ costumes” justificando ser esse 0 mais acertado meio de ago para assegurar “o sacrossanto principio da unidade, primeira base da monarquia que se deve conservar com o maior citime a fim de que o portugués nascido nas quatro partes do mundo se julgue somente Portugués ¢ ndose lembre sendo da gloria e grandeza da monarquia, aque tem 4 fortuna de pertencer, reconkecendo e sentindo os felizes efeitos da reuniao de um s6 todo, composto de partes ido diferentes que jamais poderiam ser igualmente felizes” (24) Essa passou a sera diretriz da nova politica e 0 projeto tragado realgava os dois principios basicos norteadores da aciio do governo nos novos tempos: © da interdependéncia ¢ o da reciprocidade nas relagées entre dominadores ¢ dominados, ¢ 0 da unidade politica entre as partcs “indistinias do mundo Portugués, procurando reformular, segundo os principios “uminosos” da Austragao, o sentido da relagao de dominagio. Todavia, ciemte de que o principio da unidade elegido envolvia também ainterrelagiio entreas partes do Brasil, oque lhe parecia sumamente “‘perigoso”, © governo apressou-se em reafirmar o principio centralizador do poder de decisao politico-administrativo na metrépole centripeta, 4 qual deveriam se ligar “mais ativas e mais animadas (...) do que entre si" as capitanias do Brasil. 22 Cf, O Fazendeiro da Brasil, methorado na economia dos géneros ja cultivados, ¢ outras que se adem introducir; e nas fibricas que the sdo préprias, segundo 0 methor que se tem escrito esse assunto, coligido de memérias estrangeiras, Biblioteca Nacional. Seg30 de Manuscritos. 13.4, 23 Cf. DIAS, Maria Ouila. Aspectos da Hustragao no Brasil. Bd. cit. 24 CL. “Projeto de refornulagio..." Colegdo Linhares op. cit, Rev. inst. Est. Bras., SP, 34:121-138, 1992 134 Chamando de luminosos os “principios gerais que deveriam formar o sistem politico para reunido e consolidacdo das vastase distantes partes da monarquia’ © plano reformulador propunha apenas uma redistribuigdo mais efetiva das capitanias do Brasil quanto ao atrelamento da jurisdic aos dois “centros de forgat...) que sao sem contradigéo 0 Paré e 0 Rio de Janeiro” e também o incremento de vias de comunicagdo interna para ligar os territérios afins, procurando realear a imagem positiva, a ser passada, de que ocorria uma real alteragéo das formas de relagdo de dominagao. Ora, a proposta de criagdo de dois centros de for¢a explicitava apenas as priticas a screm adotadas quanto & defesa das fronteiras, consideradas naturais - do Amazonas ao Prata -, os dois grandes rios, cuja importncia estratégica e comercial constituia, desde 0 inicio da colonizagao, ferrenha disputa entre as poténcias coloniais ¢ naquela conjuntura de guerra urgia assegurar. A énfase ao incremento dos dois centros de forga - cujo sentido ligava-se diretamente a idéia de defesa ¢ nao de poder, este por sua vez, mais ligado a idéia de decisio politica - traduzia o interesse fundamental do governo portugués na acdo de defesa e de dominio das regides limitrofes ¢ em nenhum momento sugeria mecanismos de interrelagio reciproca qucapontasse mudangas substanciais quanto 4 nova posigao de parccira das capitanias do Brasil no inpério Luso-brasileiro a ser instituido. O que se observa é que, temendo um possivel movimento em prol da libertagdo de suas colénias, o que the seria particularmente catastr6fico - por nelas centrar-se a base da riqueza do Reino - o governo ilustrado portugués procurou reinterpretar a rcalidade colonial sobre outros fundamentos que camuflassema dominagiio. Demonstrando aimportincia “natural "dametropole portuguesa, devido a sua “feliz posig&o” de contro que servia de “melhor entreposto para o comércio da Europa com as outras partes do mundo, faz com que este enlace dos dominios ultramarinos portugueses com a sua metropole Seja to natural qudo pouco o era o de outras colénias” convidou as colénias a participarem “do grau de prosperidade que a nossa situagéo as convida" como parceiras naturais na tarefa de edificag’io de um novo e grande império. Unidas 4 metropole, as colénias seriam présperas ¢, participando da tarefa de unificagio, os coloniais teriam “a fortuna” de pertencerem a civilizada nacio portuguesa, Esse cra, portanto, um chamado “a maiores destinos ” feito a todos aqueles que, por identidade de interesses deveriam ter propdsitas comuns ¢ cultivarem sentimentos comuns.(25) Observemos que, ja antes da transplantagdo da sede do Império para o Rio de Janciro, quando na realidade poucas mudancas ocorriam nas capitanias do Brasil ao serem igadas da condi¢fio de colénias 4 de parcciras na nova sociedade proposta, ja cra grande o entusiasmo dos ilustrados do Brasil pela unidade luso-brasilcira a ponto daquele projeto ser aplaudido pelas “grandes, novas e¢ liberais idéias” que encerrava. Esse cntusiasmo aumentou consideravelmente apds a mudanga de 1808, quando as vantagens de centro do império se tornavam evidentes ¢ a adesio de todos os ilustrados ao projeto de Império Luso- brasileiro, que implicavanaunidade efetiva de todasas capitanias do Brasil c dessas ao reino da Europa, foi total c irrestrita. 25 Cf. VILAR, Pierre. Reftexions sur les fundaments des structures nationales. da: Histoire 16. Avril 1978, 132 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 94:121-198, 1992 A Unidade Brasileira. Anotemos que, com a transformagio do Rio de Janeiro em sede de governo do Império Luso-Brasileiro, ocorria uma mudanga significativa em relacio & interligagao dos varios nticleos de ocupagao do territério chamado Brasil. Pela primeira vez 0 governo estabelecia uma politica objetiva de abertura de linhas de comunicagao entre a nova Cortee as principais capitanias, criando assim condigées basicas ao exercicio da pratiea centralizadora, marca efetiva da administragdo portuguesa.(26) E as primeiras medidas tomadas pelo govemno portugués, ao instalar-se em 1808 no Rio de Janeiro, no deixam dividas quanto as intencds de permanéncia definitiva no Novo Mundo, nem tio pouco, da continuidade de execugiio do plano de reformulagiio das diretrizes politicas para a edificagao do almejado Império Luso-Brasileiro entdo sediado no Brasil. Aaberturados portosao comércio das nagSes estrangeiras, quesignificava 0 fim do exclusivismo comercial - principio basico da velha ordem econémica ~eraa conseqiiéneia direta da nova realidade. A criagio da “/mpressao Régia”, que se fazia necessaria aos novos tempos, foi imediatamente instituida paraa divulgagao de “toda legislagdo e papéis diplomdticos(...) e quaisquer outras obras” desde que submetidas a censura da Junta Diretora, da qual fazia parte um dos mais ilustrados brasileiros, José da Silva Lisboa, que endossara ¢ participava ativamente do projeto da unidade,(27) A criacio, no Rio de Janeiro, do curso de Economia Politica para “se porem em pratica muitos dos seus principios para que os brasileiros mais instruidos, com maior vantagem pudessem servir ao Rei”, das Aulas de Comércio, da Academia de Guardas Marinha ¢ da Real Academia Militar, cujos professores foram equiparados aos da Universidade de Coimbra, ¢ o das Escolas Médico-Cirirgicas, no Rio de Janciro ¢ na Bahia, ¢ o Curso de Estudos Matematicos em Pernambuco, entre Outras iniciativas, marcavam o ritmo de um novo tempo no processo histérico de formagao do Estado do Brasil. E oportuno registrar 0 i utilizagao do termo brasileiros narcferénciaaosnascidosna América portuguesa, numa clara demonstragdo do empenho em criar uma identidade comum entre os coloniais. Bastante ilustrativo é 0 depoimento do conde de Linhares, ao amigo José Bonifacio de Andrada, o eminente cientista ilustrado, nascido em colénia, que Permanecera no reino encarregado, ao lado da Junta Regencial, de expulsar os invasores, desenvolver as pesquisas minerais ¢, sobretudo, conseientizar os Portugueses mais resistentes sobre as vantagens da instalagio da sede do novo Império no Rio de Janciro. Em carta de 26 de abril de 1810, oministro mostrava- s¢ cuf6rico antc a expectativa de plena realizago do novo Estado-Nagio imperial luso-brasileiro. “Sobre o seu Brasil pode estar descansado; s@o grandes os seus destinos ¢ o melhor dos Principes tem feito a seu respeito tudo 0 26 Cf. Cartas Régias de 16.08.1810, ¢ de 04.12.1816. Ordena a providéncia de abertura de vias de comunicagao por agua ¢ terra. Colegdo de Leis do Brasil. Vol. 1810-181! © 1816-1819. Rio de Janciro, Imprensa Nacional, 1891. 27 CE. ROLLO, Tereza M. Cardoso. 4 Gazeta do Rio de Janeiro: subsidios para a histéria do Rio de Janeiro (Dissent, de Mestrado. Dep. de Histéria. UFRJ) Rev. Inst, Est. Bras., SP, 34:121-198, 1992 133 que era possivel fazer em tdo pouco tempo. Liberdade de comércio, a mais ampla e debaixo dos principios os mais liberais(...). Nenhum privilégio exclusivo. Declaragéo que nio haverd Inquisi¢ao no Brasil (...). Permissao ao estabelecimento de todas as manufaturas. Introdugdo de todas as culturas preciosas e que o Brasil ainda nao possuia. Abertura de todas as comunicagées do interior, tanto por dgua qual o de Goids pelo Tocantins(...) rio Doce e muitas outras como para o Maranhao, para o Mato Grosso, etc, sem esquecer os estabelecimentos de Guarapuava, na sua capitania, onde se tem entrado com forga para segurar 0 Parand e as cabeceiras do Uruguai" E a este relato otimista sobre os novos rumos trilhados para solugiio da erise vivida, 0 ministro extemava as suas certezas quanto ao entendimento do Reino de Portugal frente 4 nova realidade. “O que S.A.R. tem também ordenado a favor de Portugal nao ha de deixar deo elevar awn maior grau de felicidade do que antes posstit e @ emancipagao do Brasil ha de ser-the muito ttil ndo obsiante ndo o que inquieta os visiondrios que seguem os principios do sistema mercantil”(28) Contudo, a grande insatisfagdo da aristocracia ¢ da burgucsia lusa, que reagiam com veeméncia as diretrizes tragadas que transformavam 0 antigo Reino em “colénia” da nova Corte instalada no Rio de Janeiro, complicava a tealizacao do plano da unidade, Em 1820, ja livre o Reino do invasor ¢ finda a guerra na Europa, acirrou-se o movimento em prol da restauragdo da antiga ordem ¢, revolucionariamente, as Cortes Gerais foram convocadas para institucionalizar a adogao do sistema monarquico constitucional. Observemos que a reagdo contraria dos portugueses de Portugal - movida pelas dificuldades enfrentadas pelos grandes comerciantes que haviam perdido a exclusividade do comércio com o Brasil, a dificutdade em aceitar-se 05 privilégios do Novo Mundo em detrimento dos direitos adquiridos do Reino europeu que se via entio reduzido a condigdo de “colénia” e, ainda, a submissio cada vez maior do governo aos designios da Corte londrina - levou Aruptura do pacto de uniao entre o Reino de Portugal ¢ o Reino-Unido do Brasil. que evidenciava a fragilidade da base de apoio do plano reformulador cujos agentes-lideres no perceberam a impossibilidadc pritica da unio dc interesses antag6nieos. Mas, se por um lado falhava o plano de unio luso-brasileira, por outro lado, a pregagao politico-ideolégica sobre as vantagens da unio de todas as partes que compunham o Reino-Unido do Brasil, para a manutengio das estruturas sécio-econémicas, jé havia frutificado ¢ no processo emancipador, entiio desencadeado, a unidade brasileira consagrou-se como a causa maior a ser defendida.(29) 28 Carta do conde de Linhares a Jost Bonifiicio de Andrada, de 26 de abril de 1810. Colegio Linhares. Biblioteca Nacional. Segao de Manuscritos. 11-30,12,6. . 29 Sobre a reagio portuguesa ante a questio brasileira, consultar sobretudo, ALEXANDRE, Valentim, © nacionalismo vintista ¢ a questio brasileira: esboco de andlise politica. In: O Liberalismo na Peninsula Ibérica na primeira metade do século XIX. Lisboa, Si da Costa 1982, p. 287-307. 136 Rov. Inst. Est, Bras., SP, 34:121-138, 1992 Desde 0 inicio do proceso, a ruptura do pacto de unio luso-brasileira alarmou os ilustrados que temiam a desagregacio geral do novo Estado independente do Brasil. A unidade entre as provincias do Brasil ainda era ténue € grande era o temor da eclosio de possiveis conturbagées revolucionarias, encaradas como extremamente “perigosas” 4 ordem estrutural que se queria preservar. Haja vistoa “Revolucdo de 1817” em Pernambuco, fato ainda muito vivo na mente dos que a temiam e terminantemente a rejeitavam, ou daqueles que, tendo direta ou indiretamente dela participado, procuravam trilhar um caminho menos alarmante ¢ de realizagdes possiveis, no momento cm que se colocava em pauta a adogiio do sistema constitucional. Mas se 0 pacto politico de unido entre Portugal ¢ 0 Brasil se rompia, permanccia um forte elo entre os dois reinos, na pessoa de D. Pedro, herdeiro do trono de Portugal e ao mesmo tempo aclamado Imperador do Brasil. Essa particularidade do processo histérico da Independéncia resultaria em sérias implicagSes no jogo politico, entio desenvolvido, em relac3o 4 luta pela afirmagao dos novos projetos de Estado-Nagio apresentados ¢ no qual a unidade das provincias assumiria uma dimensio especial. O Rio de Janeiro, transformado em cabega do império, estabelecera, a partir de 1808, uma relagao de poder regida por uma politica marcadamente centralizadora ¢, portanto, tensa com as provincias mais importantes. Atento a cssa questiio, o governo do Rio de Janeiro, expressando 0 pensamento dos grupos sécio-politicos a cle diretamente ligados, conclamava: “Acordemos pois, generosos habitantes deste vasto ¢ ‘poderoso Império, esta dado o grande passo da vossa independéncia ¢ Felicidade, ha tanto tempo preconizado pelos grandes politicos da Europa. Que nos resta pois brasileiros? Resta-nos unir- nos todos em interesse, em amor, em esperangas; fazer entrar a augiista Assembléia do Brasil no exercicio das suas fungées para que, meneando o lemeda razio e da prudéncia, haja de evitar os escolhos que nos mares das revolugées apresentam desgragadamente Franca, Espanha e 0 mesmo Portugal, para que marque com mao segura e sdbia a partitha dos poderes.(...) Nao se ouga pois entre nds outro grito que ndo seja - unido. Do Amazonas ao Prata néo retumbe outro eco, que nao seja - independéncia (...) Hustres haianos(...). Valentes mineiros, intrépidos pernambucanos(...). Habitantes do Ceara e do riquissimo Paré(...). Brasileiros em geral, amigos, reunamo- nos”. (30) Atentemos para 0 cuidado do Manifesto em explicitar a nova estratégia imperial, ou seja, em estabelecer os limites do novo império - do Amazonas a0 Prata - e, maior ainda, o de fazer criar nos “habitantes do vasto e poderoso império” a identidade de “brasileiros", indicando, com muita clareza, que somente alcangando a unidade brasileira, efetivar-se-ia a Independéncia ¢ Constituir-se-ia a nagdo brasileira. Esta, por sua vez, deveria reger-se por um sistema constitucional “sdbio” que institucionalizasse uma “segura” divisio de poderes, mensagem que traduzia uma reserva flagrante a recentissima op¢io 30 Manifesto aos Brasileiros escrito por Gongalves Lédo, Ju: C. CARREIRA, Liberato de Castro. Historia Financeira e Orcamentévia do Império do Brasil. Tomo |, p. 50-a $7. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:121-198, 1992 135, constitucional por parte daqueles que até entdo haviam se mobilizado em torno do projeto reformista para manutengio da monarquia absolutista. Convém anotar, ainda, que a unidade continuava a ser o principio basico norteador da ago politica, sé que, a partir de entio, 0 objetivo primordial era a unidade politica entre as provincias do Brasil ¢ ndo mais a unidade Brasil/Portugal. E na defesa da “causa do Brasil” langaram-se todos, fosse para evitar profundas alteragées na estruturagao de poder ¢ de producio, fosse para garantir a consolidagiio da constitucionalidade do Império em construgaoe, principalmente, a adogio plena dos principios basicos da doutrina liberal. Em 1823, quando ja entrara em exercicio a Assembléia Constituintc, José Bonifacio complementaria a mensagem daquele Manifesto, sintelizando com muita clareza o sentido real da nova orientacdoa ser seguida na organizaciio do Estado imperial brasileiro, ao declarar que sempre lutou pela: “Independéncia e liberdade do Brasil, mas uma liberdade justa e sensata debaixo das formas tutelares da monarquia constitucional, 0 tinico sistema que poderia conservar unida e sdlida esta pega majestosa ¢ inteiriga de arquitetura social desde 0 Prataatéo Amazonas, quala formara a Mao Onipotenteesabia da Divindade” (31) Sob tais pressupostos, os homens politicos ligados aos interesses da Corte do Rio de Janciro uniram-se ao principe portugués para juntos tragarem 08 novos rumos para 0 Brasil, com a preocupagao central de demonstrar que a monarquia constitucional tornava-se uma prudente opgdo para assegurar 0 estabelecimento de uma liberdade justa, sensata e ttelada e conservar estavel a sociedade. Noentanto, a proposta de adogio do sistema de monarquia constitucional, entéo colocada pela “Revolugao do Porto”, motivou diferentemente outros grupos engajados na defesa da “causa do Brasil”. Bastante significativa foi a postura assumida, por exemplo, pelo médico ¢ jornalista Cipriano Barata, um dos revolucionario de 1798 na Bahia e um dos deputados constituintes as Cortes de Lisboa. Em 1823, publicou em seu jornal “Sentincla da Liberdade da Guarita de Pernambuco. Alerta!” um “Credo Politico” que deveria ser recitado todos os dias por aqueles que acreditavam nos principios liberai: “Creio na Santa Independéncia do Império do Brasil(...). Creio na comunicagao e reunido das provincias que para terem forca hao de formar um sé corpo macigo, a fim de fazer oposigdo e dissolver qualquer trama que possa ser inventada para dissolver (..) Creio na remisséo ou alivio das nossas desgracas por meio da Constimicao liberal(...). Creio na resswreigoda liberdade de Imprensa, na destruigdo das devassas terrores ¢ espias(...). Creio na vida eterna da Constituigdo e no patriotismo dos brasileiros, vigilancia e bom governo do Imperador; constancia e valor das Provincias, Amém, Jesus "(32) Anotemos a divergéneia existente entre as concepcdes de constitucionalidade expressas pelos representantes de dois grupos distintos que, no entanto, se uniam na defesa da unidade brasileira. Para 0 governo 31 O Tamoio, de 2 de setembro de 1823. 32 Sentineta da Liberdade da Guarita de Pernambuco. Alertat, de 9 de abril de 1823, 136 Rev. inst. Est. Bras. SP, 34:121-198, 1992 recém-instituido, a uniao das provincias tutelada pclo sistema constitucional era fundamental na adogao de uma “liberdade justa” e garantia de manutengio da “arquitetura social ” existente. Para Cipriano Barata, da unio das provincias viria a forga tnica ¢ necessdria 4 garantia de adogio plena do sistema liberal e por isso ela cra fundamental. E também para o carmelita Frei Caneca, revolucioniriode 1817, nas vésperas da eclosioda “Confederagdodo Equador” em 1824 em Pernambuco, aconselhava a todos seguir “o rwmo da unido” ¢ colocarem-se “debaixo deste império constitucional, que abate o despotismo, ruina das ciéncias, das artes, dos costumes, da razéo, da liberdade” por considerar que sé a unidade do Brasil levaria ao “génio brasileiro apresentar prodigios em todo género (...) ¢ apresentar ao mundo o que nunca péde a Asia ¢ Europa, uma nagao de quem o mundo se ouse honrar”.(33) Entretanto, sabemos que ambos foram acusados de conturbadores da ordem ¢ de pregadores da desagregagio da unidade nacional, tendo sido, inclusive, barbaramente condenados por tais crimes. A historiografia ainda os aponta, is vezes com certo ufanismo, como republicanos “radicais” ¢ lideres de movimentos “separatistas " contradizendo o proprio Caneca que, em defesa das suas idéias, afirmava em 1823: “Nao proclamamos uma Reptiblica porque ndo queremos; ¢ no queremos ndo por temor de nada, sim porque esperamos ser felizes em um Império constitucional (...) este 6 0 cordial e verdadeiro sentimento de toda a provincia, desde 0 mais iluminado eidaddo praciano, até o mais simples mulaio"(34) Todavia, sc, como vimos, os “radicais” Cipriano Barata ¢ Frei Caneca também endossaram o projcto de unidade brasileira, quais teriam sido as reais questdes colocadas - por eles e pelos setores sociais por eles representados no processo de institucionalizagdo do Estado liberal - que tanto alarmaram os setores dirigentes, em sua grande maioria egressos de pensamento ilustrado? Pelo que vimos, a énfase dada pelos “raclicais" a0 estabelecimento pleno do sistema constitucional - no qual o principio da liberdade ¢ o da representagio, isto ¢, 0 da separagio e distribuictio equitativa dos poderes fosscem plenamente atendidos - significou um dos pontos centrais da real divergéncia entre as propostas de Estado nacional.(35) E, intimamente ligada a essa proposta que, se realizada, daria outra fei¢do ao Estado-Nagiio que se formava, constava a reivindicagiéo de autonomia administrativa e financeira para as provincias, em contraposi¢ao 4 oricntagao centralizadora sempre adotada e entao invocada com empenho pelo governo imperial.(36) Frei Caneca esclareceu, na III* “Carta de Pitia a Damdo" a questio pontual do projeto alternativo ora apresentado: 33 Sermiio de Aclamagao a D. Pedro 1, de 8 de dezembro de 1822; O Typhis Pernambucano, de 25 de dezembro de 1823. In: Obrus Politicas e Literdrias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Recife, Typ. Mercantil, 1875. p.235 ¢ 417 34 Polémicas Panidirias. In: Obras Politicas... Ed. cit. p. 267. 35 CI. LYRA, Maria de Lourdes Viana. La Révolution Frangaise et ta Constitutionnalisation da ‘image de La Révolution Francaise. Dir. Miche! Vovelle, Paris. Pergamon Press. 36 Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana, Centralization, Systéme Fiscal et Attonomie Provinciale dans I'Impire Brésilien: la province de Pernambuco. 1808-1835. Paris X. Nanterre, 1985. (Tese-mimeo) Rev, Inst. Est, Bras., SP, 34:121-198, 1992 137 “E desta forma que a nagdo se faz rica, poderosa ¢ temida, Quando cada uma das provincias do império tiver 0 seu tesouro cheio, todo o império estd rico e respeitavel (...) mas nao é 0 mesmo quando as provincias se acham dasfalcadas de riquezas, 0 tesouro da capital riquissimo, porque entdo é empregadoem superfluidades, com que nada utiliza a nagao".(37) Percebemos, portanto, o quanto ¢ pertinente uma anilise mais aprofundada sobre o desenrolar desse processo, principalmente ncssc momento em que se comemora os 170 anos de efetivagdo dessa unidade ¢ no qual surgem, ou ressurgcm, manifestagdes de “‘separatismos” como formas de contestagdo a ineficiéncia da ago governamental em promover o desenvolvimento equilativo c garantir os direitos de todos os cidadaos, cuja gravidade é proporcional, porque imbricada, a crise geral do Estado que ora se atravessa. _ ABSTRACT An analysis of the historic process of formation of the brazilian unit, questioning historiographic approaches on the theme, and trying ta idemife the reasons of the initial adoption of an administrative pratice characterized by dispertian, Then, an ‘analysis is established on the conjuncture where the unit was proposed, installed and consecrated, ring to understand each socio-enononic and politic-ideotogi- cal implication which acted in the process of formation of the national State. Key-words; Luso-brazilian national State, : Brazilian unit: Independence; Formation of the 37 CE. Frei Caneca. Obras Politicas... Ed. cit. p. 319. 138 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:121-138, 1992

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