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A ILIADA OU O POEMA DA FORÇA

o verdadeiro herói, o verdadeiro assunto, o centro da Ilíada, é


a força. A força que é manejada pelos homens, a força que submete
os homens, a força diante da qual a carne dos homens se contrai. A
alma humana aparece, no poema, continuamente modificada por
suas relações com a força, arrastada, obcecada pela força que ela
julga dominar, curvada sob a pressão da força que ela sofre. Os que
tinham imaginado que a força, graças ao progresso, pertenceria do-
ravante ao passado, puderam ver nesse poema um documento; os
que sabem discernir a força, tanto hoje como outrora, no centro de
toda a história humana, vêem nele o mais belo, o mais puro dos es-
pelhos.
A força é aquilo que transforma quem quer que lhe seja sub-
metido em uma coisa. Quando ela se exerce até o fim, transforma o
homem em coisa, no sentido mais literal da palavra, porque o trans-
forma em cadáver. Era uma vez alguém e, um instante depois, não
há mais ninguém. É um quadro que a I1íada não se cansa de nos
apresentar.
"( ... ) os cavalos
Faziam ressoar os carros vazios pelos caminhos da guerra.
De luto pelos seus cavaleiros sem mácula. Estes. em terra
Jaziam mais caros aos abutres do que a suas esposas." *

* A tradução das passagens é nova. Cada linha traduz um verso grego. reproduzin-
319
o herói é uma coisa arrastada pela poeira, atrás de um carro;
"Em toda a roda os cabelos h . uma coisa que tem uma al-
' ma coisa. Ser estran o. ., uanto lhe custa, a
110 entanto, :s~anho para a alma. Quem d~~~r~se sobre si mesma?
Negros estavam espalhados, a cabeça toda na poeira
I1W; estado conformar-se, torcer-s~, do do é constrangida,
Jazia, Outrora encantadora; agora Zeus a seus inimigos 'lida momento., . r numa coisa; quan
" foi feita para vive
Permitira que o aviltassem em sua terra natal. "
1~lu nao de violência. I dirige uma arma
A amargura de um quadro como esse nos penetra pura, sem ILidot7~ah~~de~e desarmado e .nduc~i~tgr~~ d~~n~t~vamente. Por um
que venha alterá-Ia nenhuma ficção reconfortante, nenhuma imor- dá ntes de ter SI o a
talidade consoladora, nenhuma auréola frouxa de glória ou de pá- t ma-se ca .aver ai se esforça, age, espera:
tria. momento ainda e e

. , I O outro se aproxima,
"Ele pensava, tmovet. . inteiramente
"
"Sua alma fora de seus membros se evolou, foi-se para o
Hades,
arrebatado,
. de tocar . lhos . Ele queria no seu coracao
seus Joe
Chorando
ue.
à " seu destino, deixando a maturidade e a iuveniu. AnsIOSO , o destino negro...
Escapar à morte ma, a. suplicante, seus joelhos,
Mais pungente ainda, tão doloroso é o contraste, é a súbita E
Comcomo um braço
outro ele ele e~t~elta7~nça
mantin a a em riste sem deixá-Ia
evocação, imediatamente apagada, de um outro mundo, o mundo
longínquo, precário e comovente da paz, da família, esse mundo no cair.:"
qual cada homem é o que mais Conta para quem o rodeia. I ue a arma na"o se desviaria, e, res-
. Mas ele
. da , ele é só matena, a inda pensando não pode pensar
d o am compreendeu ~g? q
piran
"Ela gritava com SUasservas de belos cabelos pela demora
De armar junto ao fogo um grande tripé, onde se fizesse mais nada: ." brilhante de Príamo .
Para Heitor um banho quente na volta do combate. "Assim falou esse fllh.o tao Ele ouviu uma palavra tn-
Ingênua! Não sabia que muito longe dos banhos quentes Em palavras que suplicavam.
O braço de Aquiles já o submetera, por causa de Atena de flexível: "
olhos verdes."
(... ) os ioelhos e o coraçao; .
Disse' ao outro desfalecem. J d. as mãos estendidas,

r:
O infeliz, é claro, estava longe dos banhos quentes. Não era o
Ele d~ixa cair a lança e cal sen;a. ~a seu gládio agudo,
único. Quase toda a Ilíada se passa longe dos banhos quentes. Qua-
se toda a vida humana se passou sempre longe dos banhos quentes.
Ambas as mãos. Aquiles asl;oço. e por inteiro
Fere na c IaVlCU
' Ia,. ao longo o pescoço,
Ele o rosto no chao "
Afunda o gládio de dOIS cortes. s~oa umedecendo a ter-
Jaz estendido, e o sangue negro e
A força que mata é uma fornJa sumária, grosseira, de força.
Quanto mais variada em seus processos, quanto mais surpreenden_
te em seus efeitos é a outra força, a que não mata; isto é, a que não
ra. .. . fraco e sem armas
Q b t m estrangeiro .
uando fora de com ~ e, ud do à morte por ISSO; ma~ um
mata ainda. Vai seguramente matar, ou vai matar, talvez, ou então
ad~~,;~:~r~~~~
' . não e con ena . ara tirar-
está apenas suspensa sobre o ser que pode matar a qualquer mo-
mento; seja como for, ela transforma o homem em pedra. Do poder
f~!:~~~e porpa~~ed~u!U:~;~~op;::a~'~;;'pried~
lhe a vida. É o bas~ante para a o de carne viva manifesta a VI
de transformar um homem em coisa fazendo-o morrer procede um
outro poder - prodigioso sob uma outra forma _ o de transformar principal da. c~~~av~:~~ ~o~r~~~al~o; uma pat~ ~~ r:~~obu~~h~~i~~
em coisa um homem que continua vivo. Está vivo, tem uma alma; antes de mais. to róximo ou o con ~ de nervos
elétrico, salta, ,oe~}~;~ob::ssaltar qualquer no d: ~a:i~~'a não tem
horrível ou terrív . t ão estremece, na , d
do-se escrupulosamente os encadeamentos; a ordem das palavras gregas no inte-
rior de cada verso é respeitada tanto quanto possível. (Nota de S. Weil.) e de músculos. Só t::~s~sup~~can :~ o objeto para ele mais carrega o
320 mais licença; seus lábios vao toe
de horror: 321
"1
"Não viram entrar o grande Priamo. Ele parou,
Estreitou os joelhos de A quites, beijou suas mãos, . nsamento de erguê-Ios. Mas. final-
sar pela I!l~nte de algu~m °o!: palavras cordiais, nem pensam em
Terríveis, aniquitadoras de homens, que lhe tinham massa- mente erguidos, honra os.c _ rimir um desejo: uma voz
crado tantos filhos ." tomar a sério essa ressurreiçao, ousar exp. A '.

irritada os reduziria imediatamente ao silêncio:


O espetáculo de um homem reduzido a esse grau de desgraça
gela quase como gela o aspecto de um cadáver:
"Ele disse, e o velho tremeu e obedeceu."
"Assim como quando a dura infelicidade acomete alguém, . uma vez atendidos, se tornam ou-
no tempo em que em sua terra Os suplicantes, .pelo menos, M há seres mais infelizes que,
Ela matou, e em que ele chega à morada alheia, tra vez homens como os outros. ~s para o resto de suas vidas.
De algum rico; um arrepio apodera-se dos que o vêem; sem estarem mort<;,s, se tornar~m ~o~~a;hum vazio, nenhum campo
Assim Aquiles fremiu vendo o divino Priamo. Não há em seus dias nenhum Jog: . Não são homens que VI-
Os outros também fremiram, olhando-se uns aos outros." livre para algo que venha deles p:opn~~'locados socialmente mais
vam mais duramente do que ou ros, "e humana um compro-
Mas é apenas um momento, logo a própria presença do infeliz . d tros: é uma outra especi _' d
é esquecida: abaixo o que ou , dá Há uma contradição do ponto e
misso entre o homem e o ca aver. humano seja uma coisa; mas
"Ele disse. O outro, pensando em seu pai, desejou chorá- vista lógico no fato de que um ser lidade a contradição se tor-
10; quando o impossível se tornou uma ~ea I ira' a cada momento ser
Tomando-o pelo braço, ele empurrou um pouco o velho, na na alma dilaceramento. E_ssa coisa aSP nenhum momento. É
em
Ambos se lembravam, um de Heitor matador de homens, um homem, uma mulher, e nfo con~~~~~a uma vida: uma vida que
uma morte que se estende ao ongo d .. Ia
E ele fundia-se em lágrimas aos pés de Aquiles, junto ao . t po antes e supnml- .
chão; a morte congelou mUdlto em rdote sofrerá esse destino:
A virgem, filha e um sace, ,
Mas Aquiles chorava seu pai, e por instantes também
a Pátroclo; seus soluços enchiam a morada." "Eu não a entregarei. Doravante a velhice a tera tomado.
d Ar g os longe de sua terra,
Não foi por insensibilidade que Aquiles com um gesto jogou Em nossa mora a, em Ih 'chegando até meu leito."
Correndo em seus tra ba os, .
por terra o velho colado a seus joelhos; as palavras de Príamo evo-
cando seu velho pai o comoveram até as lágrimas. Simplesmente ele A moça jovem mãe, esposa do príncipe, o sofrera:
se sente tão livre nas suas atitudes, em seus movimentos, como se, .. ,I dia em Argos tu tecerás a te Ia para ou Ira
ao invés de um suplicante, fosse um objeto inerte que tocasse em E ta vez um, 'da ou do Hipereu,
seus joelhos. Os seres humanos' em nosso redor têm, apenas por sua E levarás a agua da Messbel -o de uma dura necessi-
Bem contra a vontade, so a pressa
presença, um poder que é só deles, de deter, de reprimir, de modifi- dáde."
car cada um dos movimentos que nosso corpo esboça; um tran-
seunte não desvia nosso andar numa estrada da mesma maneira O menino herdeiro do cetro real o sofrerá:
que um anúncio; ninguém se levanta, anda, senta em seu quarto so- .. Elas de certo irão em b ora no fundo. de naves. cavas,
zinho da mesma maneira que quando tem uma visita. Mas essa in- Eu entre elas; tu, meu filho, ou ~omlgo
fluência indefinível da presença humana não é exerci da pelos ho-
Me seguiras, e fi'aras I ra balhos aviltantes,docura.:"
mens que um movimento de impaciência pode privar da vida antes Penando aos olhos de um senhor sem oçura ...
mesmo que um pensamento tenha tido tempo de condená-Ios à mor-
- . é tão horrível para seu filho
te. Diante deles os outros se movem como se eles não estivessem ali; Aos olhos da mae esse destInâ seja ter morrido antes de ver
e eles por sua vez, no perigo em que se encontram de ficarem redu- quanto a própria. morte; .0 es~o:~amea todas as pragas do céu s<;,bre
zidos a nada num instante, imitam o nada. Empurrados, caem; caí- sua mulher reduzida a tal, o tlh' M s naqueles sobre os quais se
dos, ficam por terra durante o tempo em que o acaso não faça pas- o exército que .deso.,nra sua I} adesa~~recerem as maldições, as re-
322 abate, um destino tao bruta az 323
também, quando entram em jogo as necessidade vitais, apaga toda
voltas, as comparações
quase que a lembrança' as
Nãomedita
c -
çoes sobre o futuro e o passado, e vida interior e até a dor de uma mãe:
de nem a seus mortos.' ompete ao escravo ser fiel à sua cida- "Pois até mesmo Niobe de belos cabelos pensou em comer,
Ela de quem doze filhos em sua casa pereceram,
. Quando um dos que o fizeram erd d Seis filhas e seis filhos na flor da idade.
cidade, massacraram os se Plh er tu o, que arrasaram sua
_ us a seus o os quando d I Eles, Apoio os matou com seu arco de prata
morre, entao o escravo chora P ,:. . um e es sofre ou Na sua cólera contra Niobe; elas, Artêmis que ama as fle-
as lágrimas. Até lhas im _ . M: que nao? S.o:ntão lhe permitem
grimas prontas para corr~~;:::'assi'::t - na servldao: não estão as lá- chas.
"El di . que o podem irnpunenemente? Porque ela se comparou a Leto das belas faces,
a IZ chorando e as mulh Dizendo" ela tem só dois filhos; a muitos mais eu dei a luz." ,
Como se fora por 'Pátrodo eres puseram-se a gemer, E esses dois, embora só fossem dois, os fizeram morrer a
angústias." ' cada uma sobre suas próprias
todos.
Eles por nove dias jazeram na morte; ninguém veio
Em tempo algum o escravo t . - Enterrá-Ios. As pessoas tinham-se tornado pedras pela
que for, a não ser o que oss em perrrnssao de exprimir seja o
numa vida tão triste, puder da agradar ao senh?r. Eis por que se, vontade de Zeus.
E eles no décimo dia foram sepultados pelos deuses do céu.
u'!l pouco, ele só pode ser o a~s~ontar um sentimento e animá-Ia
minho está barrado para o dom Jepelo senho.r; qualquer outro ca-
Mas ela pensou em comer, quando se afadigou das lágri-
valo atrelado, as liteiras as réd d
an;,a~ aSSImcomo para um ca- mas. "
nhos com exceção de u~ E eas, a. n a barram todos os carni- Nunca se exprimiu com tanta amargura a miséria do homem,
de tornar a ser um dia po' [se pormIt!~gre aparecesse a esperança que o torna incapaz até de sentir a sua própria miséria.
, r avor a guem a que - ..
erguer o reconhecimento e o a' , h' grau nao se mam A força manejada por outrem é imperiosa sobre a alma como a
ainda bem próximo deveria I'nmspo~ a homens
Irar orror: dos quais. um passado fome extrema, a partir do momento em que é um poder incessante
de vida e de morte. E é um domínio tão frio, tão duro como se fosse
"M
res:e~t~da~so, a quem me confiaram meu pai e minha mãe exercido pela matéria inerte. O homem, que em toda a parte é o
mais fraco, está no coração das cidades tão só, mais só do que pode
;;u~o~i diante de minha cidade transpassado pelo bronze estar o homem perdido no meio de um deserto. .
'Dois tonéis se acham postos na soleira de Zeus,
M:us três irmãos, que uma única mãe . Onde estão os dons que ele dá, maus num, bons no outro ...
Tao queri~os! eles encontraram o dia fig:rfu para mim,
A quem ele destina dons funestos ele expõe aos ultrajes;
Mas tu nao me dei xas t e, quan d o meu marido
Aquiles a a . pelo rápido
A horrenda miséria o persegue através da terra divina;
Ele erra e não recebe olhares nem dos homens nem dos
Foi morto, e destruido a cidade do divino M
Verter lágrimas' t ynes, deuses."
At!e tomaria po; m~/:e~ r;;í~:::s~em~u~oondduiV~n?Aquiles Com a mesma dureza com que a força esmaga os vencidos,
V/OS ztna a seus na-
embriaga aquele que a possui, ou julga possuí-Ia. Ninguém a possui
Em Phtia, celebrar as bodas entre os M' 'dõ verdadeiramente. Os homens não estão divididos, na Ilíada, em
Assim trmt oes
sem cessar eu te imploro, tu que sempre fo;te doce. " vencidos, em escravos, em suplicantes de um lado e, do outro, em
vencedores, em chefes; não há um só homem que não seja obrigado
Não é possível perder mais do em algum momento a curvar-se sob a força. Os soldados, embora
perde toda sua vida interior Só re que o que o escravo perde; ele livres e armados, nem por isso escapam de ordens e de injúrias:
aparece a possibilidade de ~ud e~c~ntr~ um pou~o dela quando
força: domínio que vai tão longeq e estmo. Tal e o domínio da "Todo homem do povo que ele via e que se punha a gritar.
324 quanto o da nature~a. A natureza, 325
Com seu cetro ele o fi .
"M' , ena e Ore di.
Iseravel tem-te tran "'l 'preen Ia assim:
Teus superiores TU ._ qui o, escuta falarem os outros
Mas ele não tinha mais licença de tremer, nem de se refu-
li - ' L nao tens nem
j ' giar ..':
U nao Contas nada no comb coragem nem força,
rersi es paga caro
it
I
ate, nada na assembléia
'"
.. Dois dias depois Ajax sente o terror por sua vez:
zoáveis, e que s'e parec~~rc~':n a::as, nOAent~nto, perfeitamente ra- "Zeus o pai, de lá de cima, em Ajax fez subir o medo.
que qudes pronuncia. Ele detém-se, arrebatado, atrás de si põe o escudo de sete pe-
"Ele bateu-lhe; o outro se ' les,
apertadas, curvou, as lagrimas corrreram Treme, olha perdido a multidão, como uma fera ... "
Um tumor sangrento formo Ao próprio Aquiles acontece-lhe uma vez tremer e gemer de
Sob o cetro de Ouro' i u-se em suas Costas medo, diante de um rio, é verdade, não diante de um homem, Fora
Na dor e no estu o; ~ e sentou-se e teve medo. ele, em geral todos nos são mostrados vencidos em alguns momen-
Os outros, apesa: da s:aenxugava a~ lágrimas, tos. O valor concorre menos para a determinação da vitória do que
M " pena, sentiram prazer e riram .. o destino cego, representado pela balança de ouro de Zeus:
as o propno Aquiles e h" '
mos~rado desde o início do' sse erot orgulhoso, invicto, nos é "Nesse momento Zeus o pai mostrou sua balança de ouro.
dlor Imp?ten~e, depois que ra~~:~~ Chorando de humilhação e de Nela pôs duas sortes da morte que tudo ceifa,
e e queria tornar sua esposa. sem an e seus olhos a mulher que Uma para os Troianos domadores de cavalos, outra para os
'que e el ousasse se opor- Gregos forrados de bronze.
M as Aquiles .
Ele a tomou pelo meio, foi o dia fatal dos Gregos que bai-
Çhorando sentou-se lon d .-
A margem das v ge o~ seus, a parte, xou."
vinho. .. agas branquejantes, o olhar sobre o mar de Em sendo cego, o destino estabelece uma espécie de justiça,
também cega, que pune os homens armados com a pena de talião; a
Agamêmnon humilhou A 'I
trar que o senhor era ele: qUI es deliberadamente, para mos- lIíada a formulou muito antes do Evangelho, e quase nos mesmos
termos:
" ... Assim, tu saberás
"Ares é equitativo, mata os que matam."
Que eu posso mais do que tu e
Em me tratar como igu I ' qualquer um hesitará Se todos, ao nascerem, estão destinados a sofrer a pressão da
a e me enfrentar."
violência, isso é uma verdade para a qual o domínio das circunstân-
Mas, poucos dias de . cias embota os espíritos dos homens. O forte nunca é totalmente
forçaAdoa rebaixar-se, a ~~~i~a~hefe s~premo ~hora por sua vez, é forte, nem o fraco totalmente fraco, mas ambos o ignoram. Eles
vergonha do medo n - , ' e so re por te-Io feito em v- não se julgam da mesma espécie; nem o fraco se considera seme-
~o~b~tentes. Os heróis tre;~; ~~~pada tampouco a nenhum ~o~s lhante ao forte, nem é olhado como tal. Quem possui a força, anda
e. :!tor para que todos os r o os outros. Basta um desafi num meio não resistente, sem que nada, na matéria humana em seu
exceçao, menos Aquiles e o; ;:~ss fi~uem :onsternados, todos se~ redor, seja de natureza a suscitar, entre o impulso inicial e o ato,
"EI di q e estao ausentes' esse breve intervalo onde se abriga o pensamento. Onde o pensa-
,e tsse, e todos se calaram '
Tinham vergonha de e guardaram silêncio' mento não tiver lugar, nem a justiça nem a prudência o terão. Eis
M' recusar, medo de aceitar" ' por que esses homens armados agem dura e loucamente. A arma
as assim que Ajax se adiant ' deles se enterra num inimigo desarmado que está a seus joelhos;
"Aos T. . a, o medo troca de lugar- triunfam de um moribundo descrevendo-lhe as injúrias por que seu
rmanos um ürr, . d. .
membros' ' epLO e terrorfez desfalecerem corpo vai passar; Aquiles degola doze adolescentes troianos sobre a
A r:: seus
fogueira de Pátroclo tão naturalmente quanto nós cortamos flores
o propno Heitor, seu coração saltou no peito; para um' túmulo. Usando de seu poder, eles nunca desconfiam de
326
que as conseqüências de seus atos os levarão a prostrar-se por sua
327
r

• . am mais tarde a Heródoto q~e ela es-


vez. Quando se pode, com uma palavra, fazer um velho calar, tre- que deveriam sabe-Ia, af~mar aquela noite os gregos nao a que-
mer, obedecer, será que se pensa que as maldições de um sacerdote lava no Egito. De toda orma, n
têm importância aos olhos dos adivinhos? Deixa-se de roubar a mu- rem mais: d P .
os bens e ans.
lher amada de Aquiles quando se sabe que tanto ela como ele só po- "Não se aceitem ago:a nem mais ignaro,
derão obedecer? Aquiles, quando se regozija em ver fugirem os mi-
seráveis gregos, poderá pensar que essa fuga, que vai durar e acabar
conforme sua vontade, fará seu amigo e a ele próprio perderem a vi-
':2: Helena' todos veem, mesmo o _ ..
Tróia Já está à beira da perdiçao.
dentre os Aqueus-
..
"Ele disse: todos o aclamaram
da? Assim, aqueles a quem a força é emprestada pelo destino pere-
. " smente tudo. Todas as riquezas de
cem por terem confiado demais nela. O que eles querem e, slmpl~. od s os templos e as casas
Impossível que eles não pereçam. Eles não consideram sua os palaclOs, to o d
Tróia por saque, to d os . ças como escravos. to os os
própria força uma quantidade limitada, nem suas relações com os
outros como um equilíbrio entre forças desiguais. Como os outros como cinzas, todas ' as mulheres
s Esquecem
e cnaun pormenor: que nem tudo
m .
homens como ca d aver~ . _ _ Tróia. Talvez estejam ama-
homens não impõem a seus movimentos esse tempo de parada, do r' pOIS nao estao em
está sob seu po d e , .
qual, e só dele, procedem nossas atenções para com os nossos seme- - estejam nunca. .
lhantes, daí inferem que o destino Ihes deu toda permissão a eles e nhã; talvez nao . ixa levar pelo mesmo esqueCI-
Heitor, nesse mesmo dia, se de
nenhuma a seus inferiores. A partir de então, vão além da força de
que dispõem. Vão inevitavelmente além, ignoram que ela é limita- mento: .' has entranhas e em meu cora-
da. Ficam, então, entregues ao acaso sem nenhum recurso, e as coi- " Pois eu sei bem disto em mtn
sas não Ihes obedecem mais. Às vezes o acaso os ajuda; em outras,
ção;. erecerá a santa llion,
prejudica-os; ei-Ios expostos nus à desgraça, sem a armadura de po- Virá um dia em qu: p Príamo da boa lança.
der que protegia sua alma, sem mais nada, a partir de então, que os E Príamo, e a nacao de prepara para os Troianos,
separe das lágrimas. d
M as eu penso menos na ,or que se .
Este castigo de um rigor geométrico, que pune automatica- , b em Prlamo o rei,
E em Hécu ~, e_ - numerosos e tão bravos,
mente o abuso da força, foi o objeto primeiro da meditação entre os E em meus zr~aos que, ta~l es dos inimigos,
gregos. Constitui a alma da epopéia; sob o nome de Nêmesis, é a Cairão na p~ezra sob os gdts Gregos de couraça de bronze
mola das tragédias de Ésquilo; os pitagóricos, Sócrates, Platão, par- Do que em, ti, dquandol~m 'mas tirando-te a liberdade.
tiram daí para pensar o homem e o universo. A noção da força se Te arrastar to a em agrl ,
tornou familiar por toda a parte em que o helenismo penetrou. Foi
(... ) . rto e que a terra me tenha co-
talvez, essa noção grega, que subsistiu, sob o nome de kharma, em
Quanto a mim, que eu esteja mo
países do Oriente impregnados de budismo; mas o Ocidente a per- d r:
deu e nem tem mais, em nenhuma de suas línguas, uma palavra berto t grl'tar que eu te veja arrasta a.
e eu te escu e '
para significá-Ia; as idéias de limite, de medida, de equilíbrio, que Antes qu . omento para afastar os horrores
deveriam determinar a conduta da vida, só têm um emprego servil O que não dana ele ne~se m _ ode oferecer seja o que for.
na técnica. Só diante da matéria somos geômetras; os gregos foram que acha inevitáveis? Mas so em v~o e~avelmente e o próprio Ag~-
primeiramente geômetras no aprendizado da virtude. No dia seguinte os gregos foge~ n:t:~r que conseguiria entao fácil-
O desenrolar da guerra na Ilíada é apenas este jogo da balança. mêmnon que~ia fugir. ~or. m:r ~ed:~dd em muito pouco, não quer
O vencedor do momento se sente invencível, mesmo que tivesse, ho- me~te a partida d~;i~~~ partir de mãos vazias:
ras atrás, passado pela derrota; esquece-se de fazer uso da vitória mais nem mesmo fi s e que o seu brilho suba
como algo que vai passar. Ao final do primeiro dia de combate que "Queimemos, em toda a parte, ogo .
a Ilíada conta, os gregos vitoriosos poderiam, sem dúvida, conse-
guir o objeto de seus esforços, isto é, Helena e suas riquezas; pelo ao céu, oite os Gregos de longos cabelos
Receando que durante a n I rgo dorso dos mares ...
menos se supusermos, como Homero, que o exército grego tinha ra- Para fugirem se lancem ao a 329
zão, julgando que Helena estava em Tróia. Os sacerdotes egípcios,
328
-

............ a fim de que todos temam


Levar aos Troianos domad d. Heitor não foge a nenhuma das dores e das vergonhas que são
que faz chorar." ores e cavalos a guerra \) quinhão dos infelizes. Sozinho, despojado de todo prestígio e de
Seu desejo se realizou· os re fi força, a coragem que o sustentara fora dos muros não o preserva da
meio-dia, fazem dele e dos g gos Ic~ram; e dois dias depois ao fuga:
" seus um objeto lastimável: '
Eles, através da planície fugiam "Heitor, vendo-o, foi tomado de tremor. Não pode resolver-
Que um leão persegue à sZ:OfI', c?mo vacas se
Assim os persecruia o pod. enAtf!,~mdo no meio da noite ... A permanecer ...
o aeroso trida Ag Não é por uma rês ou por uma pele de boi
Matando sem cessar até o n« . I
A

amemnon,
u Imo, e es, eles fugiam. " Que eles se esforçam, recompensàs ordinárias da corrida;
_ No decorrer da tarde Heitor r . É por uma vida que eles correm, a de Heitor domador de ca-
poe os gregos em debandada d e~o~a a dianteira, recua ainda valos."
s~,as tropas postas para descadsa;P~~~ e ~ec~açado por Pátroclo ~ Ferido de morte, aumenta o triunfo do vencedor com súplicas
a em de suas forças acaba fi' a roc o, evando sua vantagem vãs:
do, graças à espada 'de Heit~~r e ~ar e~posto,. sem armadura e feri-
o conselho prudente de P I·d' e norte, Heitor vitorioso enfrenta .,Eu te imploro por tua vida, por teus joelhos, por teus pais ... "
.. . o I amas com d uras reprImendas.
.
Agora que eu recebi d filh . Mas os ouvintes da Ilíada sabiam que a morte de Heitor devia
A glória junto às naves o I ~ de Cronos astuto dar uma alegria breve a Aquiles, e a morte de Aquiles uma alegria
Imbecil! não proponhas' t~~:an o ~%ntrao mar os Gregos, breve aos troianos, e o aniquilamento de Tróia uma alegria breve
Nenhum Troiano te escutar:' ~onse os ~nte o povo. aos aqueus.
Assim falou Heitor e os Ta,. eu, eu nao o permitiria.' Assim a violência esmaga aqueles que toca. Acaba por apare-
.. ' ~rotanos o aclamaram ... "
No dl~ ~eguInte Heitor está erdid . cer como exterior tanto ao que a maneja quanto ao que sofre com
toda a plamcle e vai matá-Io Se p o. Aquiles o fez recuar por ela; nasce, então, a idéia de um destino sob o qual algozes e vítimas
luta; quanto mais depojj, de· ernpre ele fOI o mais forte dos dois na sejam igualmente inocentes, os vencedores e os vencidos irmãos na
I . Varias semana d mesma miséria. O vencido é uma causa de infelicidade para o ven-
pe a vmgança e pela vitória contra .. s . e repouso, arrastado
tor SOZInho diante dos mur~s de T ,~m InImigo esgotado! Eis Hei- cedor, como o vencedor para o vencido.
do a morte e tentando decido rOIai' completamente só, esperan- "Um só filho lhe nasceu, para uma vida curta; e assim mes-
.. . Ir sua a ma a enfrentá-Ia.
AI de mim! se eu passasse por detrâ d. mo,
Polidamas logo me bumtthan. as a porta e da muralha, Ele envelhece sem meus cuidados,já que bem longe da pátria,
Ag arta... Eu fico diante de Trôia entristecendo a ti e a teus filhos."
Te:::a: ~~e{er~i os meus por minha loucura
rotanos e as Troiana de vé ' Um uso moderado da força, o único que permitiria escapar da
E temos que ouvir dizer d s e veus arrastados engrenagem, exigiria uma virtude mais do que humana, tão rara
.. . e menos bravos do que eu.
Heitor, confiante demais em su .. quanto uma dignidade contínua na fraqueza. Aliás, a moderação
Se, entretanto, eu pousas a força, perdeu a pátria." tampouco existe sempre sem perigo; pois o prestígio, que constitui
Meu bom capacete e a s~ ~eu escudo encurvado, mais de três quartos da força, é feito, antes de mais nada, pela so-
Se eu fosse até o ilu;tr:~an
Mas por que meu coração
tminha lança no muro,
;::1 ::",ao. seu encontro? ..
berba indiferança do forte em relação aos fracos, indiferança tão
contagiosa que se comunica aos que lhe estão sujeitos. Mas, nor-
Eu não . e a tais conselhos? malmente, não é um pensamento político que aconselha o excesso.
Ne me. aprox!marei; ele não teria piedade . É a tentação do excesso que é quase irresistível. Palavras razoáveis
m respeito; ele me mataria .'
Como a uma mulher ... " ' se eu estivesse assim nu, são proferidas às vezes na I1íada: as de Térsites o são ao máximo.
330 As de Aquiles irritado também o são:
331
-

"N d.
Co;te~ 'n~o~~/~~id:;~ ~~; ;~~;;~.~~os os bens que dizem ferentes; o heroísmo é uma pose de teatro manchado de gabolice.
e Se, além disso, por um momento, um fluxo de vida vier multiplicar
PUOIS Po.dde-sh
conquistar os bois, os gordos carneiros
ma VI a umana uma ~ 'd. ~ ... o poder de agir, junto com a reação vem a crença de ser irresistível
mais. .. ,ez parti a, nao se reconquista em virtude de uma ajuda divina que dê garantias contra a derrota e
contra a morte. Nesse momento a guerra é fácil e amada indigna-
Mas as palavras razoáveis caem . S . . mente.
pronuncia, é castigado e se cala' se for ~~ ~~~}~. : um I~fenor as Mas na maioria esse estado não perdura. Chega um dia em que
com elas. E sempre se acha u ' d ' nao age e acordo
aconselhar o desatino No fim m e~s n.a ?o,~a da necessidade para o medo, a derrota, a morte dos companheiros queridos dobra a
alma do combatente sob a necessidade. A guerra deixa, então, de
rer fugir à ocupação r~cebida ~aa::r~fJ~l: á~e~~~~n~u: s~ ==;qu;- ser um jogo ou um sonho; o guerreiro compreende, afinal, que ela
matar e de morrer, desaparece do espírito: ,cupaçao e realmente existe. É uma realidade dura, infinitamente dura para po-
"... nós a quem Zeus der ser suportada, pois encerra a morte. O pensamento da morte
~esde a juventude assinalou, até a velhive para sofrer não pode ser sustentado senão por relances, assim que se sente que
. as dolorosas guerras, até que pereçamos ~ompletamente." a morte é realmente possível. É verdade que todo homem está desti-
nado a morrer, e que um soldado pode envelhecer dentro de com-
Ja esses combatentes, como os de.
se sentiam "todos condenados". e raonne tanto tempo depois, bates; mas para aqueles cuja alma está submetida ao jugo da guer-
ra, a relação entre a morte e o futuro não é a mesma que para os ou-
tros homens. Para os outros a morte é um limite imposto previa-
mente ao futuro; para eles, ela é o próprio futuro, o futuro que sua
Ca~ram nessa situação pela mais simples das ciladas Ao partir
o coraçao es~ava leve, como sempre que se tem a favor urna for a ~ profissão Ihes assinala. Terem os homens por futuro a morte é con-
contra o vazio. As armas estão nas mãos; o inimigo ausente A não tra a natureza. Desde que a prática da guerra torna sensível a possi-
ser .quan~o a reputação do inimigo abate a coragem sempre se é bilidade de morte que cada minuto contém, o pensamento se torna
muito ma.ls forte do que um ausente. Um ausente não impõe o ·0 o incapaz de passar de um dia ao que se segue sem atravessar a ima-
J gem da morte. O espírito fica então tenso, de uma forma que ele
da nece~sldad~. Nenhu~a necessidade surge ainda no espírito d~s
não agüenta senão por pouco tempo; mas cada nova alvorada traz
que se rn f a~slm, e por ISSO,eles vão como que para um jogo como
para um eriado, para fora da coação quotidiana. . , a mesma necessidade; os dias acrescentados aos dias formam anos.
A alma sofre violência todos os dias. Cada manhã a alma se mutila
"Aonc:e se foram nossas vanglórias, quando nós nos dizía- de toda aspiração, porque o pensamento não pode viajar no tempo
mos tao bravos, sem passar pela morte. Assim a guerra apaga toda e qualquer idéia
As que em Lemnos vaidosamente vós decantáveis de finalidade, até mesmo as finalidades da guerra. Apaga até o pen-
Em vos forrando das carnes dos bois de cornos r~tos samento de acabar com a guerra. A possibilidade de uma situação
Bebendo nas copas que transbordavam de vinho? ' tão violenta é inconcebível enquanto não se passou por ela; o fim é
Que cem ?U duzentos desses Troianos cada um inconcebível quando se está nela. Então, não se faz nada para che-
Enfrentaria no combate· e eis que um só é d.
nós!" '
.
etnats para gar a esse fim. Os braços não podem parar de segurar e de manejar
armas em presença de um inimigo armado; o espírito deveria traba-
I
logo ~e~~~c~~~s~i~~~ experimentada um~ vez, a guerra não deixa
lhar para encontrar uma saída; perdeu toda capacidade de traba- I
lhar seja o que for para isso. Está inteiramente ocupado em forçar-
terrível, diferentíssima ~m Jog~. !"- necessidade própria da guerra é se a si próprio. Sempre, entre os homens, as desgraças intoleráveis-
alma só se lhe b a que e !manente a?s trabalhos da paz; a
. su .mete quando nao pode mais fugir; e enquanto f _ servidão ou guerra - duram por seu próprio peso, e vistas de fora
parecem fáceis de agüentar; duram porque esgotam os recursos ne-
~i~t:~~:e~::~ ~a~~~~g~e~ec~~sidade, dbias de Logo, de. sonho, arbitr~- cessários para que se saia deles.
troem ~ . en ao uma a stração, as Vidas que se des-
332 sao como bnnquedos quebrados por uma criança e tão indi- No entanto, a alma submetida à guerra brada pela libertação;
mas a própria libertação lhe aparece sob uma forma trágica, extre-
333
ma, sob a forma da destruição. Um fim moderado, razoável, deixu
ria a nu para o pensamento uma desgraça tão violenta que é inSII 11\ a posse das armas, por um lado, a privaçã~ de ar~as,.p~lo ou~~,
portável mesmo à lembrança. O terror, a dor, o esgotamento, , riram a uma vida ameaçada quase toda a lmportancl~, e ,câoce'
massacres, os companheiros mortos, impossível acreditar que todas quem destruiu em si mest?0 o pe~sament?? de que ver a uz e ,
estas coisas possam deixar de morder a alma se a embriaguez dn Iria respeitá-Io nesta queixa humilde e va.
força não as tiver vindo afogar. Dói a idéia de que um esforço ilimi- "Estou a teus pés, Aquiles; tem respeito, tem piedade de
tado só teria obtido um êxito nulo ou limitado.
mim; estou como um suplicante, o, fil ho d e Zeus, ditgno de
Aqui
"O quê? Deixaremos Priamo, os Troianos, vangloriar-se
Da Argiva Helena, ela pela qual tantos Gregos consideração. . . _ d D mé-
Pois em tua casa fui o pnmeiro que comeu o pao e e
Diante de Tróia pereceram longe da terra natal?...
O quê? Tu desejas que a cidade de Tróia de largas ruas, ~~quele dia em que tu me apanhaste no meu pomar bem
Nós a abandonemos, a ela pela qual sofremos tantas misé-
rias? cultivado. d ie
E tu me vendeste, mandando-me para longe e meu pa
Que importa Helena para Ulisses? Que importa, .mesmo, dos meus, b .
Tróia, cheia de riquezas que não compensarão a ruína de Ítaca? À Lemnos santa; deram-te por mim cem OIS., .
Tróia e Helena só importam como causas que são do sangue e das Fui resgatado por três vezes mais; ~sta ~urora e para mim
lágrimas dos gregos; apoderando-se delas é que se podem dominar Hoje a duodécima, desde que voltei a llion, _
as horríveis lembranças. Essa alma, com o que a natureza nela ha- Após tantas dores. Eis-me ainda entre tuas maos .
via posto, e que a existência de um inimigo obrigou a destruir den- Por um destino funesto. Devo ser odioso a ~eus ? pat _
tro de si, essa alma acha que só se poderá curar destruindo o inimi- Que de novo me entrega a ti; para pouca VI~?minha mae
go. Ao mesmo tempo, a morte dos companheiros bem-amados sus- Me engedrou, Laothoé, filha do velho Altos.
cita uma sombria emulação para morrer:
Que resposta acolhe essa fraca esperança! .
"Ah! morrer logo, se meu amigo acabou
Sucumbindo sem minha ajuda! Bem longe da pátria "Vamos, amigo, morre também, tu! Por que te queixas
Ele pereceu, e não me teve para afastar a morte ... tanto? . .
Agora eu parto para encontrar o assassino de uma cabeça Ele também morreu, Pátroc/o, e valia bem mais do que tu
tão cara, E eu não vês como eu sou belo e grande? _
Heitor; a morte, eu a receberei no momento Eu s~u de nobre raça, uma deusa é minha mae; .
Em que Zeus quiser cumpri-Ia, e todos os outros deuses." Mas também sobre mim pairam a mor~e e o 1uro destino.
Será na aurora, ou de noite, ou no meto do dia, . "
Então é o mesmo desespero que leva a morrer e a matar: Quando a mim também pelas armas se arrancara a Vida...
"Eu sei bem que meu destino é perecer aqui,
Para respeitar a vida em outrem, quando foi preciso uma auto-
Longe de meu pai e de minha mãe amados; mas entretanto
mutilação de toda aspiração à vida, é preciso um esforço de gene~o-
Eu não me deterei enquanto os Troianos não se embriaga-
rem de guerra." sidade de arrebentar o coração. Não se pode supor qu~ nenhu~ os
guerreiros de Homero seja capaz de tal esforço, a nao ser, ~,~ez,
O homem habitado por esta dupla necessidade de morte, per- aquele que, de uma certa maneira, está no centro d? poe~a, a ro-
tence, enquanto não se tiver tornado outro, a uma raça diferente da cio que "soube ser doce com todos", e que na filada nao c?mete
raça dos vivos.
nada de brutal e cruel. Mas, quantos homens conhecemos nos, em
Que eco pode encontrar em tais corações a tímida aspiração à vários milhares de anos de história, que tenham dado prova ~e .uma
vida, quando o vencido suplica que lhe permitam ver ainda o dia? generosidade tão divina? É duvidoso que se possam nom,ear OIS ou
334 três. Por falta dessa generosidade o soldado vencedor e como ~~
imaginação dos homens. Seja como for, esta dupla propriedade de
flagelo da natureza; dominado pela guerra, tanto quanto o escravo,
petrificação é essencial à força e uma alma colocada em contato
e,!l1bora de outra maneira, ele se tornou uma coisa e as palavras não
com a força só lhe escapa por uma espécie de milagre. Esses mila-
tem poder sobre ele, bem como sobre a matéria. Um e outro, em
contato com a força, sofrem a conseqüência infalível, que é a de gres são raros e curtos.
converter os que s-ão tocados por ela em mudos ou surdos. A leviandade dos que manejam sem respeito os homens e as
coisas que têm ou julgam ter à sua mercê, o desespero que força o
Tal a natureza da força. O poder que ela possui de transfor-
é
soldado a destruir, o esmagamento do escravo e do vencido, os
mar os ho~ens e'!l coisas é duplo, e se exerce no sentido de ambos os massacres, tudo contribui para constituir um quadro uniforme de
lados; petrifica dlferente~ente, mas igualmente, as almas dos que a horror. A força é o único herói. Tudo terminaria numa tíbia mono-
sofrem e d~s que a manejam. Esta propriedade atinge o mais alto tonia se não houvesse, espalhados por aqui e ali, momentos lumino-
grau no ~elO das armas, a partir do momento em que uma batalha sos; breves momentos divinos durante os quais os homens têm uma
se encaminha para uma decisão. As batalhas não são decididas en- alma. A alma que acorda assim, por um instante, para se perder
tre os homens que calculam, trabalham, tomam uma resolução e a logo depois pelo domínio da força, acorda pura e intacta; nenhum
executam, mas entre homens despojados dessas faculdades trans- sentimento ambíguo, complicado ou turvo surge; só há lugar para a
formados, caídos nas alas, ou da matéria inerte que é só passivida- coragem e o amor. Às vezes um homem encontra assim a sua alma,
de, ou das forças cegas que são apenas impulso. Este é o último se- falando-se a si mesmo, quando tenta, como Heitor diante de Tróia,
gredo da guerr~ e a llíada o exprime em suas comparações, nas enfrentar sozinho o destino, sem o auxílio dos deuses ou dos ho-
9uals os}uerrelros aparecem como os símiles seja do incêndio, da mens. Os outros momentos durante os quais os homens encontram
inundação, do .vento, d~s a~imais ferozes, de qualquer causa cega sua alma são os do amor; quase nenhuma forma pura do amor en-
de ?esastre, seja dos animais medrosos, das árvores, da água, da tre os homens está ausente na I1íada.
areia, de tud.o o que é movido pela violência das forças exteriores. A tradição da hospitalidade, mesmo depois de várias gerações,
Gregos e troianos, d~ um dia para outro, às vezes de uma hora para supera a cegueira da luta:
outra, sofrem sucessivamente uma e outra transmutação.. "Assim eu sou para ti um hóspede amado no seio de Ar-
"Como por um leão que quer matar vacas são assaltadas gOL.
Quando num prado alagadiço e vasto pastam Evitemos as lanças um do outro. mesmo na confusão da lu-
Aos "!i~hares ... ; todas tremem; assim então os Aqueus ta.
De. pantco foram postos em fuga por Heitor e por Zeus o O amor do filho pelos pais; dos pais, da mãe pelo filho está in-
pai, cessantemente indicado de uma forma tão breve como comovedo-
Todos (... ) ra:
Como quando o fogo destruidor cai sobre a espessura de
um bosque; "Ela respondeu, Tétis, vertendo lágrimas:
"Tu me nasceste para uma curta vida, meu filho. como tu
Por toda a parte remoinhando o vento o leva; então os fus-
tes dizes .;"
Caem, arrancados, sob a pressão do fogo violento Igualmente o amor fraterno:
Assim o A trida Agamêmnon fazia cair as cabeças "Meus três irmãos, que me concebera uma só mãe,
Dos Troianos que fugiam .....
Tão queridos ..':
O amor conjugal, condenado à infelicidade, é de uma sur-
_ A arte da .guerra é apenas a arte de provocar tais transforma- preendente pureza. O esposo, evocando as hu~ilhações da esc~avi-
çoes~ e o material, ?S processos, a própria morte inflingida ao inimi- dão que esperam por sua mulher amada, omite aquela que,. so. no
go, sa? apenas meios para esse fim; o verdadeiro objetivo dela é a pensar, mancharia por antecipação a sua ternura. Nada ~als sim-
propna al.m~ ~os combatentes. Mas essas transformações são sem- ples do que as palavras dirigidas pela esposa ao que vai morrer:
pre um rmsteno, e os deuses são os seus autores, eles, que tangem a
337
336
Mais me valeria,
Se eu te perder, estar embaixo da terra; nada terei, zes até por um corte de verso, por um encadeamento. Nisso é que a
Quando tu tiveres chegado a teu destino lIíada é uma obra única, por essa amargura que procede da ternura,.
Nada se não males.:" ' e que se estende sobre todos os humanos, do mesmo modo que a luz
do sol. Nunca o tom deixa de estar impregnado de amargura, nun-
Não menos comoventes são as palavras dirigidas ao esposo
morto: ca, tampouco se rebaixa até a queixa. A justiça e o amor, que não
podem entrar nesse quadro de extremos e de violências injustas, ba-
"Me~ esposo, morreste antes do tempo, tão jovem; a mim nham-no com sua luz, e só pela intlexão, pelo tom, se fazem sentir.
tua vtuva, ' Nunca de outra forma. Nada de precioso, destinado ou não a mor-
Tu me deixas só em minha casa; nosso filho ainda pequeni- rer, é desprezado, a miséria de todos é exposta sem dissimulação
no nem desdém, nenhum homem é colocado acima ou abaixo da con-
Que tivemos, tu e eu, infelizes. E eu não imagino dição comum a todos os homens, tudo o que é destruido é chorado.
Que ele um dia fique grande ... Vencedores e vencidos estão igualmente próximos, são igualmente
Pois ~u, morr~ndo, de teu leito não me estendeste as mãos, os semelhantes do poeta e do ouvinte. Se alguma diferença existe, é
Tu nao me disseste uma palavra sábia, para que sempre que a desgraça dos inimigos será, talvez, sentida mais dolorosamen-
Nela eu pensasse dia e noite derramando lágrimas." te:
A mais bela das amizades, entre companheiros de combates é
o tema dos últimos cantos: ' "Assim ele caiu lá, adormecido por um sono de bronze
O infeliz, longe de sua esposa, defendendo os seus ... "
..... Mas Aquiles
Que tom, para evocar o destino do adolescente vendido por
C~orava, pensando no companheiro bem-amado; o sono
Não o veneta, que tudo doma; ele se revirava cá e lá ..;" Aquiles a Lemnos!
"Onze dias ele alegrou seu coração entre os que amava,.,
. ~as o triunfo mais puro do amor, a graça suprema das guerras
Voltando de Lemnos, no duodécimo de novo
e a amizade que sobe ao coração dos inimigos mortais. Ela faz desa-
às mãos de Aquiles Deus o entregou, a ele que devia
parecer a fome c;le vingança pelo filho morto, pelo amigo morto
Enviâ-lo até o Hades, embora não quisesse partir."
apaga por um milagre ainda maior a distância entre benfeitor e su-
pltcante, entre vencedor e vencido:
E o destino de Eufórbio, o que só viu um dia de guerra:
"M~s quando .? ~esej~ de bebe~ e comer foi aplacado,
..O sangue banha seus cabelos aos das Graças semelhan-
Entao o Dardânio Priamo se pos a admirar A quiles,
tes"
O quanto ele era grande e belo; tinha a face de um deus.
E, por sua vesz, o Dardânio Príamo foi admirado de Aqui- Quando Heitor é chorado:
les
..... guardião das esposas castas e dos pequeninos."
Que olhava sua bela face e escutava sua palavra.
E quan~o eles ficaram saciados de se contemplar um ao estas palavras bastam para fazer surgirem a castidade manchada à
outro ... força e as crianças entregues às armas. A fonte, às portas de Tróia,
se torna um objeto de lamentação pungente, quando Heitor passa
Essesmomentos de graça são raros na Iliada, mas bastam para
por ela correndo para salvar a sua vida condenada:
fazer sentir com um desgosto extremo o que a violência faz e fará
perecer. .. Lá se encontravam largos lavadouros, bem próximos,
_ No entanto, ~al acúmulo de violências seria frio sem uma intle- Belos, todos de pedra, onde as vestes resplandecentes
xa~ de amargu:a .Inc~rável que se faz sentir continuamente, embora Eram lavadas pelas mulheres de Trôta e pelas jovens tão
muitas vezes seja indicada apenas por uma única palavra, outras ve- belas
338 Outrora, durante a paz, antes que viessem os Aqueus.
339
Foi I?,orlá que eles correram, fugindo, e o outro perseguin-
do... Talvez a extraordinária eqüidade que inspira a Ilíada tenha
exemplos desconhecidos por nós, mas não teve imitadores. Mal se
Toda a Iliada está à sombra da maior desgraça que pode existir sente que o poeta é grego e não troiano. O tom do poema parece
e~tre os ho~.ens: a destruição de uma cidade. Se o poeta tivesse nas- testemunhar diretamente a origem das partes mais antigas; a histó-
cido em Tróia essa desgraça não pareceria mais dilacerante. Mas o ria talvez nunca nos esclareça a esse respeito. Se dermos crédito a
tom ~ã<:>muda quando se trata dos aqueus que perecem bem longe Tucídides de que, oitenta anos depois da destruição de Tróia, os
da patria. aqueus sofreram por sua vez uma conquista, é o caso de se pergun-
tar se esses cantos, nos quais raramente se fala de ferro, não serão
AS.breves evo~ações do mundo da paz doem, de tanto que essa cantos desses vencidos dentre os quais alguns, talvez, se tenham exi-
outra vida, essa vida dos vivos, aparece calma e plena: lado. Obrigado a viver e a morrer "bem longe da pátria", como os
.,Logo que veio a aurora e o dia subiu gregos que caíram diante de Tróia; tendo perdido, como os troia-
Dos dois lados vieram os dardos, os h~mens caíram. nos, suas cidades, reencontravam-se a si mesmos tanto nos vence-
Mas na hora em que o lenhador vai preparar sua refeição dores, que eram seus pais, quanto nos vencidos, cuja miséria era pa-
Nos vales das montanhas, quando seus braços estão cansa- recida com a deles; a verdade dessa guerra ainda próxima podia
dos aparecer-lhes através dos anos, não estando encoberta nem pela
De :ortar as grandes árvores, e um desgosto lhe sobe ao co- embriaguez do orgulho nem pela humilhação. Podiam imaginá-Ia
racao, ao mesmo tempo como vencidos e como vencedores, e conhecer as-
E o desejo do doce alimento o toma nas entranhas sim o que nunca vencedor nem vencido conheceram, por serem am-
a
Nessa hora, por seu valor, os Danaus irromperam fren-
te.::
bos cegos.
pode sonhar.
É apenas um sonho, com tempos tão longínquos só se

Seja como for, esse poema é uma coisa milagrosa. A amargura


Tudo o que está ausente da guerra, tudo o que a guerra destrói cai sobre a única causa justa de amargura, a subordinação da alma
ou a~eaça, está envolto de poesia na Ilíada; os fatos da guerra não humana à força, isto é, afinal de contas: à matéria. Essa subordin~-
o estao nunca. A passagem da vida à morte não está velada por ne- cão é a mesma em todos os mortais, embora a alma a suporte de di-
nhuma reticência:
versas maneiras, conforme o grau de virtude. Ninguém, na Ilíada,
"Então saltaram seus dentes; veio dos dois lados lhe escapa, assim como ninguém neste mundo pode escapar-Ih~.
Sangue aos olhos; o sangue que pelos lábios e pelas narinas Nenhum dos que sucumbem a ela é olhado por isso como desprezí-
Ele lançava, boca aberta; a morte com sua negra nuvem o vel. Tudo o que, no interior da alma e nas relações humanas, foge
envolveu. " ao império da força, é amado, mas amado dolorosamente, por c~~-
sa do perigo de destruição continuamente .pendente. E~se é o e~pl;~-
A fria brutalidade dos fatos de guerra não é disfarçada com na- to da única epopéia verdadeira que o OCIdente pOSSuI. A Odisséia
da, porqu~ nem venced?res nem vencidos são admirados, despreza- parece ser apenas uma excelente imitação, ora da Iliada, ora de poe-
dos ou odiados, O destino e os deuses decidem quase sempre o aca- mas orientais; a Eneida é uma imitação que, por mais brilhante que
so mutável dos combates. Dentro dos limites assinalados pelo desti- seja, está ornamentada com frieza, declamação e mau gosto. ~s
no, os deuses dispõem soberanamente da vitória e da derrota' são canções de gesta não souberam atingir a grandeza por falta de e<;lUl-
sem~:e ~les que provocam as loucuras e as traições que em cada dade; a morte de um inimigo não é sentida pelo autor e pelo leitor
ocasiao Impedem a paz; a guerra é ocupação própria deles e seus na Canção de Rolando da mesma forma que a morte de Rolando.
móveis não são outros além do capricho e da malícia. Quanto aos
A tragédia ática, pelo menos a de Ésquilo e a de Sófocles, é a
guerreiros, as comparações que os fazem aparecer, vencedores ou
vencidos, como animais ou coisas, não provocam nem admiração verdadeira continuação da epopéia. O pensamento da justiça a ilu-
mina sem intervir nunca; a força aparece em sua fria dureza, sempre
nem desprezo, mas tão somente a lástima de que os homens se pos-
sam transformar assim. acompanhada pelos funestos efeitos aos quais não foge nem o que a
usa nem o que a sofre; a humilhação da alma sob a coação não está
340
341
. ., d d M espírito que se transmitiu
dez, de pureza e de sirnplici a e. as o ensadores e poetas trági-
nela nem disfarçada, nem envolta por piedade fácil, nem exposta ao da Ilíada ao Evangel~o,. pasdsan<;lo}el~::grega e desde que se des-
desprezo; mais de um ser ferido pela degradação da desgraça, é, na cos, não passou dos hml~es a CIVIizaç , , .'
tragédia, oferecido à admiração. O Evangelho é a última e maravi- truiu a Grécia, só restaram reflexos. . 'do ,
. I m ambos subtrai os a co-
lhosa expressão do gênio grego, assim como a Ilíada é a primeira; o .' Os romanos e os hebre~s s.e JU gara na ão escolhida pelo des-
espírito da Grécia transparece nele não só no que aí se manda pro- o
mum miséria humana, os pnmeiros com dos or favor de seu Deus
curar - excluindo qualquer outro bem - "o reino da justiça de nosso tino para. ser a dona do m~~d~b~Je~~:~ Os Yomanos desprezavam
Pai celeste", mas também quando nele se expõe a miséria humana, e na medida exata e~ .q~e e vencidos seus súditos, seus escra-
sofrida por um ser divino ao mesmo tempo que humano. As narra- os estran~elros,_ os ~nImlgos, os éias 'nem tragédias. Substituí-
tivas da Paixão mostram que um espírito divino, unido à carne, é vos; por ISS? .nao tlv7ram nem ep?p es Os hebreus viam na des-
alterado pelo infortúnio, treme ante o sofrimento e a morte, se sen- ram as tragedlas por Jogos de glad!.ad~r m~nte um motivo legítimo
te, no fundo da desgraça, separado dos homens e de Deus. O senti- graça o sinal do pecado e, consequem e vencidos caídos em des-
mento da miséria humana Ihes dá esse tom de simplicidade, que é a s
de desprezo; consideravam seus InImlg;x iar crimes o que tornava
marca do gênio grego, e que constitui todo o valor da tragédia ática
e da lliçda. Algumas palavras produzem um som estranhamente vi- ~r~~ef;a~~ó:::~~~~seea~~~~~fs~~~::veI.Ppor isso nem'nhou:ra
t;px~op~~
zinho ao da epopéia; e o adolescente troiano enviado ao Hades, tom que se compare co
Antigo Testamento tem um d de Jó Romanos e
contra a sua vontade, vem à memória quando Cristo diz a Pedro: - I certas partes o poema .
grega, a nao ser'dta .ve~ lidos imitados nos atos e nas palavras,
"Um outro te cingirá e te levará para onde não queres ir". Esse tom hebreus foram a mira os, .'. tificar um crime, durante vinte
é inseparável do pensamento que inspira o Evangelho; pois o senti- citados sempre que fosse preciso JUs
mento da miséria humana é uma condição da justiça e do amor.
Quem ignora até que ponto a fortuna variável e a necessidade man- séculAos é: ~r;:~a~i:~~~ito do Evangelho não foi tr~nsI?itido puro
l , . - A' que os pnmeuos tempos
têm toda alma humana sob sua dependência, não pode olhar como às sucessivas geraç.ões de cnstaos. SSI~ tires no fato de agüenta-
semelhantes nem amar como a si mesmos aqueles que o acaso sepa- julgaram ver um sinal da graça, no~ mar I, feitos da graça
rou de si por um abismo. A diversidade das coações que pesam rem sofrimentos e morte com alegria; como~~s~~ eOs que pensam
sobre os homens faz nascer a ilusão de que há entre eles espécies di- pudessem ir mais longe nos hOhmens que a-noopo'de te~ ante seus olhos
versas que não se podem comunicar. Só é possível amar e ser justo , . Deus uma vez ornem, n
quando se conhece o poder da força e quando se sabe não respeitá- ~Ur~g~~~o:~I;stino s~m tre~er de ~~~s~i:~~re:~~:~ J~r ~?:x~e~~~
10.
As relações entre a alma humana e o destino; em que medida ~~~a q~: ~~~r;~ste:u~nJ~s;~r;;~~ ri.gor do destin~ a st~u~~r~r~~~
cada alma modela seu próprio destino; em que é que uma necessi- olhos apega~do-s~ à iluSã?d à e~br~~~uae;u~~ ~~ u~: ~entira não
dade impiedosa transforma uma alma, esteja ela entregue como es- mem que nao esta protegi o pe a , a ode impe-
tiver ao destino variável; aquilo que por efeito da virtude e da graça pode sofrer a força sem ser atingido a:e a ~:ai:p~~~; a ~erida. Por
pode permanecer intacto; tudo isto é matéria em que a mentira é fá- dir que esse golpe o corrompa, mas atradi ão cristã não soube en-
cil e sedutora. O orgulho, a humilhação, o ódio, o desprezo, a indi- ter esquecido isso ?emasladamente,.a liciJade que torna pungente
ferença, o desejo, de esquecer ou de ignorar, tudo contribui para fa- contrar, senão muito raramente~ a_simp I do o costume de
zer a tentação da força. Em particular, nada é mais raro do que cada frase das narrativas da ~alxao'fPor outr~ a d~s que a mane-
uma justa expressão da desgraça; pintando-a, quase sempre se finge converter à força velou os efeitos da orça na a ma
acreditar ora que a queda é uma vocação inata do infeliz, ora que
uma alma pode suportar a infelicidade sem ser marcada por ela, jam. Apesar de breve embriaguez pr~:~~a:: ~~é~i~n~:~i~~~~~J~~~
sem que ela mude todos os pensamentos de uma forma que só ela descobrimento das letras gregas, o g I Villon Shakes-
pode fazer. Os gregos, na maioria das vezes, tiveram a força de no decorrer de vinte séculos. Transparece: g? em ~isé;ia numa-
A
alma que permite que uma pessoa não minta a si mesma; foram re- peare, Cervantes, Moliêre e, uma vez, em acine. 343
compensados e souberam atingir em tudo o mais alto grau de luci-
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na é posta a nu, a propósito do amor, na Escola de Mulheres, em
Fedra; século estranho, aliás, no qual, ao contrário da idade épica,
só no amor era permitido perceber a miséria do homem, ao passo
que os efeitos da força na guerra e na política precisavam sempre
ser envoltos de glória. Talvez ainda se pudessem citar outros no-
mes. Mas nada do que os povos da Europa produziram vale o pri-
meiro poema que surgiu em um deles. Talvez reencontrem o espíri-
to épico quando souberem crer que nada está ao abrigo do acaso,
deixarem de admirar a força, odiar os inimigos e desprezar os infeli-
zes. Duvido que seja para já.

(Texto originalmente divulgado


em Cahiers du Sud, Marselha,
dez. 1940 - jan. 1941. IncIuido em
La source grecque)
o DESENRAIZAMENTO

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