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‘É impressionante que um
país de escravidão tão
longa tenha a
autoconcepção de que não
é violento’
Publicado em: outubro 23, 2017
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https://www.sul21.com.br/entrevistas-2/2017/10/e-impressionante-que-um-pais-de-escravidao-tao-longa-tenha-autoconcepcao-de-que-nao-e-violento/
23/03/2018 'É impressionante que um país de escravidão tão longa tenha a autoconcepção de que não é violento' - Sul 21
Fernanda Canofre
Nos anos 1980, quando a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz começou a pesquisar
questões raciais no Brasil, teve que começar por convencer os colegas de que tinha um problema
de pesquisa. “Na época, essa era quase uma falsa questão. Como eu sou um pouco triste, como
Lima Barreto, eu persisti no tema”, diz ela. O Brasil que sempre se acreditou uma democracia das
raças, há 35 anos tinha ainda mais dificuldade de reconhecer as diferenças que viviam dentro de
si. Quando Lilia propôs um censo etnográfico, dentro da Universidade de São Paulo (USP), por
exemplo, foi acusada de estar criando discriminação. Mas, filha de imigrantes, nascida em uma
família judia, seguiu.
Em 1988, ela foi uma das professores responsáveis por uma pesquisa da USP que perguntou aos
brasileiros se tinham algum preconceito racial. Resultado: 96% disseram que não. À segunda
pergunta – se o entrevistado conhecia alguém que tinha – 99% responderam que sim. “Quando a
gente pedia para descrever o grau de preconceito, nós não pedíamos nomes, mas as pessoas
queriam dar. Era sempre, ‘meu melhor amigo’, ‘minha mãe’, ‘minha avó’, ‘meu tio’. A gente
brincava que todo brasileiro se sente uma ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos
os lados”, lembra ela.
Desde então, Lilia se tornou uma das maiores pesquisadoras do tema no país, dá aulas na USP e
em Princeton, nos Estados Unidos, publicou livros como “O espetáculo das raças” e “Brasil: Uma
biografia” (em co-autoria com Heloísa Starling) e agora lança “Triste visionário: Lima Barreto”, uma
biografia que busca os traços sociais da vida de um dos mais importantes escritores brasileiros.
Lima, escritor negro, que se dizia anarquista, a favor do maximalismo, a ala mais radical da
Revolução Russa, era um autor fora da curva que, segundo sua biógrafa, pagou caro por suas
posições junto à crítica da época.
De passagem por Porto Alegre, Lilia conversou com o Sul21 sobre o que faz o Brasil ser, ao
mesmo tempo, o país da miscigenação e de tantos preconceitos e sobre o que a vida de Lima
Barreto, na virada do século XIX para o XX, diz de nós.
Sul21: O Brasil nunca teve apartheid na lei, mesmo assim, a segregação segue sendo um
traço latente da nossa sociedade. Porto Alegre é apontada como a capital mais segregada
do país, por exemplo. Como esse racismo silencioso nos atinge?
Lilia Moritz Schwarcz: Eu sempre digo que esse é um aspecto importante, que a gente não
tenha nenhum apartheid na lei. Por outro lado, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão,
recebeu uma média de 50% dos africanos que saíram compulsoriamente do seu continente, teve
uma lei curtíssima de inclusão social, que não previu qualquer tipo de aporte ou cuidado com
essas populações. O que nós vimos no período pós-emancipação foi uma continuidade da
escravidão, mas sem o sistema formal. Nada foi feito no sentido de mudar, pensando em
programas de suporte, moradia, educação. Não houve nenhum projeto de inclusão dessas
populações. Eu estudo um autor, o Lima Barreto, que justamente era uma voz isolada, que
acusava a invisibilidade dos negros. Eu dei uma palestra na PUCRS, com quatro textos dele,
brincando que o “negro não existe no Brasil”, porque basta não querer olhá-lo. Ele fala que existe
esse processo de invisibilidade, não só das populações negras, mas também dos indígenas, das
mulheres. O Brasil teve uma Constituição maravilhosa em 1988, uma constituição que previu a
inclusão social. Nesses 30 anos, as pesquisas mostram que o Brasil não ficou um país mais justo.
Para resumir, não temos uma discriminação no corpo da lei, mas a própria sociedade produz as
suas regras e, nessa produção coletiva, a gente vai se revelando, como uma República muito
falha, com instituições muito frouxas. Isso tudo são termômetros para medir a nossa democracia
que vai muito mal, obrigada.
Sul21: Falando do passado, o Brasil tem um problema para lidar com a memória. Isso
também contribui para esses traços?
Lilia: Há uma diferença entre memória e História. Eu acho que não só nossa História carrega
invisibilidades, como nós temos uma memória coletiva e afetiva que vai desconhecendo a
violência que impera no país. É impressionante que um país de escravidão tão longa, de um
sistema que supõe a posse de um homem pelo outro, tenha uma autoconcepção de que não é um
país violento. Esse é um país extremamente violento. Os dados mostram números de estupros, o
que fazemos com as crianças, casos de pedofilia, como somos uma sociedade muito homofóbica.
E, mesmo assim, a gente guarda a memória de que somos um país pacífico. Quando eu escrevi
“Brasil: Uma biografia”, as pessoas diziam: “nós tivemos só uma guerra”. Como assim “só uma
guerra”? Nós tivemos uma guerra reconhecida, que foi a Guerra do Paraguai (1864-1870). Mas,
se você pensar a quantidade de quilombos, de revoltas, de insurreições, não há como ser um país
pacífico diante dessa nossa realidade estrutural, dentro de uma desigualdade imensa. As
pesquisas mais recentes mostram uma concentração dos benefícios públicos, que gera problemas
na educação, na cultura, nas áreas que são centrais para qualquer sociedade cidadã, que gera
violência. Ou a gente enfrenta essa questão, essa nossa memória que é tão recôndita, ou a gente
vai continuar partilhando dessa desigualdade.
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23/03/2018 'É impressionante que um país de escravidão tão longa tenha a autoconcepção de que não é violento' - Sul 21
Lilia: A primeira coisa que a gente tem que deixar claro é que nenhum racismo é bom. Estou
lendo agora, porque vou comentar a exposição do Jonathas Andrade, que é pautada numa
pesquisa [sobre raça e classe], do Charles Wagley, encomendada pela Unesco, [nos anos 1950].
Ele fala exatamente que o racismo no Brasil é mild. É leve. Em geral, o suposto é: 1) que não
temos apartheid, porque não temos na lei; 2) que temos um preconceito de marca, ou seja, em
vez de ter preconceito na origem, vemos no fenótipo, se a pessoa é branca e manipulamos a cor
social. Essa manipulação de cor social, depende da circunstância, do contexto, do local. O Lima
Barreto descreve seu principal vilão, o Cassi, casado com a Clara dos Anjos (livro homônimo):
“Cassi é branco para a linguagem do subúrbio, mas quando ele toma o trem da Central, ele é
negro como são os brasileiros”. No Brasil, a gente manipula a cor. Há quem diga que isso é um
racismo mais fluído. Eu discordo. Acho que são outras maneiras de falar de hierarquia. São
maneiras de tentar driblar a ideia e dizer que nosso preconceito é menor, que, na verdade, nós
não temos, que não há problema de raça no Brasil. Basta ver os dados do Censo, pra entender
que raça é um plus. Os negros são mais discriminados no transporte, na saúde, no lazer, nas
taxas de nascimento e morte. Não me parece que é um racismo leve.
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Lilia: Muita gente acha que não devemos ter cotas, porque só existe uma raça, a humana. Eu
concordo. Biologicamente, o conceito de raça não se sustenta. O que me interessa como
antropóloga e historiadora é entender não o conceito da biologia, mas como nós, brasileiros,
manipulamos o conceito de raça. Mesmo que não exista o conceito biológico, nós, no nosso dia-a-
dia, produzimos essas diferenças e chamamos de raça. As professoras colocam alunos negros no
fundo da classe, porque dizem que eles são menos inteligentes e não precisam ficar na frente,
porque não vão aprender. Eu já ouvi crianças dizendo que queriam ser anjos, mas que as
professoras não deixam porque anjos precisam ser brancos. As batidas policiais param muito
mais negros do que brancos. As grandes autoridades do dia-a-dia, porteiros de shopping, hotéis,
bancos, só brecam pessoas negras. Então, ok, temos que concluir que raça é uma só, raça
humana, mas tem que concluir também que a sociedade produz uma segunda natureza. E essa
segunda natureza se enraiza em nós, como se fosse realidade. Vamos discutir pra sempre que a
biologia não existe ou vamos enfrentar essa realidade? Por isso que eu chamo de raça social.
Sul21: Tu estudaste essa questão do racismo científico no Brasil no livro “O espetáculo das
raças”. Pode falar um pouco sobre esse período?
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Lilia: Estudei as instituições científicas e culturais do século XIX: institutos históricos, museus
etnológicos, faculdades de Medicina e de Direito. Estarrecida, notei que o Brasil da democracia
racial estava a um passo do apartheid social. E que essas teorias do darwinismo racial eram de
grande penetração na nossa sociedade. Elas ganham força no momento de desmontagem da
escravidão e criam uma outra forma de desigualdade, na minha opinião, mais severa, que é uma
desigualdade pautada na biologia. A suposição dessas teorias é que, não só as raças
corresponderiam a realidades diferentes, mas a mestiçagem corresponderia à degeneração do
indivíduo e da nação. Existiam alguns estigmas para comprovar essa degeneração: tuberculose,
alienação, tatuagem, anarquismo e uma culpabilização dos traços das populações afro-brasileiras.
O que vai acontecer é que essas teorias propõem modelos de apartheid social. As teorias ficam
fortes entre 1880 até 1930 e, em 1950, elas ainda eram parte do currículo da Academia de Polícia
e das faculdades de Direito. Então, o passado é bem próximo.
Sul21: Qual a importância de discutir a biografia dele hoje? Com novas perguntas em cima
dela, como tu tens falado?
Lilia: Lima Barreto tinha uma biografia fundamental, escrita por Francisco Assis Barbosa, em
1952, e também tem críticos sensacionais. Uma questão que eu sempre digo para meus alunos,
quando a gente vai fazer um projeto, é que uma parte dele é definir um objeto. Vamos dizer que
meu objeto é Lima Barreto. A outra parte, tão fundamental quanto, é definir que questões você
fará para seu objeto. A gente tem que fazer a mesma coisa para as sociedades contemporâneas.
Eu perguntei ao Lima, com os textos dele, sobre questões como o racismo, feminismo, gênero,
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