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A geografia esta em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas” Denis Cosgrove” Significados ¢ paisagens ‘Aos sébados pela manha, nfo sou, conscientemente, um gedgrafo. Como tantas outras pessoas de minha idade e estilo de vida, devo ser encontrado fazendo compras com minha familia no meu centro habitual de compras. Nao é um lugar muito espe cial, iluminado artificialmente sob um edificio-garagem, com um conjunto inteira- mente previsivel de cadcias de lojas - W. H. Smith, Top Shop, Baxters, Boots, Safeway ¢ outras — razoavelmente cheias de familias de consumidores bem-vestidos. A mesma cena pode ser vista em quase toda parte na Inglaterra. Se trocarmos os nomes das lojas, a.cena poderia ser tipica de qualquer parte da Europa Ocidental ou da América do Nor- te. Os gedgrafos podiam interessar-se pelo lugar porque ele ocupa 0 espago imobilidrio mais valorizado na cidade; podiam estudar a largura das fachadas ou as mercadorias em oferta como parte de um estudo de geografia do varejo ou podiam avaliar seu impacto sobre a morfologia urbana preexistente. Mas eu estou fazendo compras. * Publicado originalmente como “Geography is everywhere: culture and simbolism in the human Land- scapes", em Horizons in human geography, otganizado por D. Gregory ¢ R. Walford. Londres: Macmillan, 1989. Reproduzido em portugues em Paisagem, tempo e cultura, organizado por Roberto Lobato Corréa ¢ Zeny Rosendahl. Rio de Janeiro: EAUERJ, 1998. Tradugio de Olivia Barros Lima e Silva. ~ Professor do Departamento de Geografia da Universidade de Loughbothood, Inglaterra. 220 Geografia cultural — uma antologia Entdo, compreendo que outras coisas também esto ocorrendo: pedem-me para contribuir para uma causa que eu nao aprovo; viro a esquina e vejo um cristo evangélico idoso distribuindo folhetos. O principal espaco aberto esté ocupado por uma vitrine de painéis para melhorar a insolagao das casas ou, em minha opinizo, descruir a harmonia visual de minha rua. Ao redor da base de concreto da arvore decorativa, um grupo de adolescentes com cortes de cabelo moicano vividamente coloridos e faixas de tachas no brago olha com desdém os consumidores de meia- -idade. Compreendo que devem estar desempregados ¢ que a idade deles torna o lar um ambiente menos confortdvi fechado. ea 0 local é, entao, altamente co: cles ficarao por aqui até que, 4 noite, 0 espaco seja mplexo, com miiltiplos patamares de significado: Certamente planejado para o consumidor e, assim, facilmente acessivel para meu es- tudo gcogréfico sobre o varejo; nao obstante, sua geografia se estende bem além dessa perspectiva cstreita ¢ restritiva.{O local é unr lugar simbélico, onde muitas culturas & encontram e, talvez, entrem em conflito. Mesmo na manha de sébado, ainda sow um godgrafo. A geografia esté em toda parte. aay Caltarae €simbolisma sao palavras que hoje nao escapam ficil ou frequentemente das bocas da-maioria dos gedgrafos humanos da Gra-Bretanha. De modo geral, nos orgulhamos de nossa praticabilidade e relevancia realista. Preferimos lidar com ob- jetos tangiveis, empiricos, interpretar o mundo em termos precisos e mensurdveis de necessidades praticas. Desde os anos 1960, os gedgrafos humanos britanicos tenderam a trabalhar com certas suposig6es no explicitas sobre como deveriam agir acerca da explicagio de padroes de ocupacio e atividades humanas, suposigdes que tendem a excluir da consideracao a cultura ¢ o simbolo. Estas suposigées sa: * O mundo fisico, o meio ambiente natural, € 0 dominio da geografia fisica cientifica. Pode estabelecer limites 4 conduta humana, mas tais limites sao tao amplos que podem tornar perigoso qualquer apelo a eles na explicagao geogrdfica humana, Os ecologistas, em vez dos gedgrafos, apropriaram-se de questoes sobre as relagdes ambientais. Contudo, espaco e populacio servem como pontos de partida legitimos para a explicacio em geografia humana, * Osseres humanos se comportam de maneira racional, razoavelmente previ- sivel, quando vistos em conjunto, para alcangar metas pessoais e sociais que so esmagadoramente priticas. Concorda-se tacitamente que racionalidade significa maximizagio ou satisfagdo econémica. Outras motivagGes sao trata- ‘25 como “irracionais” e geograficamente interessantes apenas como desvios do modelo. Paisagem cultural 221 * Os gedgrafos deveriam buscar um resultado pritico ou utilitétio de seus es- tudos. A geografia humana deveria ser “relevante”, seus resultados aplica- dos a uma “situagio do mundo real”. Os gedgrafos humanos mostram forte compromisso moral para melhorar seu mundo, razo pela qual a geografia humana continua a ser popular em escolas e faculdades. Aparentemente, essa relevancia deve ser imediata ¢ direta. Portanto, os geégrafos humanos, cer- tamente na tiltima década, adotaram entusiasticamente como questées de estudo causas socialmente louvéveis. Como o redesenvolvimento de Areas centrais urbanas, a conservagao de paisagens do passado, a igualdade regional € 0 desenvolvimento do Terceiro Mundo. * A geografia humana, apesar de seu propésito moral elevado (ou talvez por causa dele), deveria, tanto quanto possivel, evitar questées politicas ¢ ideolé- gicas e até filoséficas abertas ¢ litigiosas. Deveria lutar pela objetividade, ana- lisando fatos e assegurando que suas afirmacées sejam baseadas firmemente em garantias empfricas. Essas suposi¢Ges nfo so, de modo algum, desonrosas. Mas elas realmente aca- bam excluindo de nossa agenda muito do que a geografia humana poderia estudar potencialmente nos dominios da atividade humana em termos espaciais e suas expres- soes ambientais. Além do mais, elas produzem uma profunda contradigao. Se nossas inteng6es s4o moralmente fundadas ¢ 0 resultado de nosso trabalho é supostamente de valor para a humanidade, enquanto nossos objetos de pesquisa continuarem ex- clusivamente empiticos e nossas interpretagées da motivagao humana, resolutamente utilitdrias, negaremos a nds mesmos uma linguagem para moldar as prdprias metas que procuramos: a formacao de um mundo humano melhor. Algumas das variadas conseqiiéncias deste dilema s4o tratadas em outros ensaios do presente livro! Minha intengdo aqui ¢ realgar duas delas. Em primeiro lugar, perdida na maré de intensa praticabilidade e entre os seixos de fatos demonstraveis estd a magica real da geografia — o sentido de maravilhar-se com © mundo humano, a alegria de ver e refletit sobre 0 mosaico ricamente variado da vida humana e de compreender a clegancia de suas expresses na paisagem humana. Essa é a experiéncia que ainda faz do National Geographic uma das mais populates revistas do mundo. A geografia, afinal de contas, estd em toda parte. John Eyles mostra como ela * Trata-se da coletdinea Horizons in human geography, da qual o presente artigo foi retirado (nota dos organi- zadores).

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