A REVOLUGAO LEGAL MUNDIAL:
SUPERLEGALIDADE E POLITICA*
CARL SCHMITT
Hé progresso, e também na consciéncia dos revoluciondrios pro-
fissionais. Prova disso ¢ a emergéncia da nogdo de revolugao legal. Segun-
do Rudolf Smend, especialista em Direito constitucional - que morreu em
idade avangada em 1975 - 0 povo alemao sofre de uma “Ansia de legali-
dade comovente”. Suponho que Smend tenha feito essa observagiio niio sé
como historiador da Camara Imperial de Wetzlar mas também como ob-
servador do normativismo positivista de sua propria época. Agora, em
1977-78, o velho e experimentado revoluciondrio espanhol Santiago Car-
rillo toca nesse tema em seu livro Eurocomunismo y Estado! Embora de
outra indole politica, sua ansia de legalidade € igualmente comovente.
Confessa sua convicgdo de que os métodos violentos da revolucio ilegal
de Lenin e Trotski em outubro de 1917 hoje em dia estao antiquados. So-
mente se justificavam em seu momento e em seu lugar, quando se tratava
do transito brusco de um pafs agrério a uma sociedade moderna, vale di-
zer, industrial. Como revolugao comunista, esses métodos eram legitimos,
mas nao legais. Em nossos dias, contudo, esto defasados, porque agora a
questo é 0 poder estatal em sociedades industrialmente desenvolvidas. J4
ndo sio um modelo adequado para uma revolugéo comunista. Cumpre
substitui-los por métodos pacfficos, isto é, estatalmente legais.
* “La revoluci6n legal mundial: plusvalfa politica como prima sobre legalidade juridica y su-
slegalidad”. Buenos Aires, Agora, 6, 1997, pp. 123-142. (Originalmente publicado como
ie legale Weltrevolution: politischer Mehrwert als Primie auf juridische Legalitt”, Der
‘Staat, 3, 1918, pp. 321-339). Tradugdo de Gabriel Cohn.
1 Santiago Canillo, Eurocomunismo y Estado. El ‘eurocomunismo'como modelo revolucio-
nario idéneo en los patses capiralistas desarrollados. Madrid, Critica, 1977.100 LUA NOVA N°42—97
Carrillo sabe, pois, aproveitar as experiéncias do fascismo de
Mussolini e do nacional-socialismo de Hitler. Repete varias vezes a pala-
vra “Estado”, sempre com énfase positiva ¢ maitiscula. O Estado nao s6
nao est4 morto. Est4 mais vivo e mais necessério do que nunca. Pois o Es-
tado é 0 portador especffico da legalidade, que realiza esse milagre de uma
revolugdo pacifica. A revolucdo, por sua vez, legitima o Estado em recom-
pensa por levar a cabo uma revolugdo estatalmente legal. A revolugdo le-
gal torna-se permanente, e a revolugao estatal permanente torna-se legal.
Nossa andlise das possibilidades de uma revolugao legal mun.
dial refere-se a legalidade, nao a legitimidade, de uma revolugdo mundial.
Para empreender essa andlise convém precisar brevemente essas nogdes.
LEGALIDADE, LEGITIMIDADE E SUPERLEGALIDADE
Legalidade quer dizer férmula de obediéncia e disciplina. Seu
fim e objeto & a “possibilidade de obrigar & obediéncia’?. E 0 modo de
funcionamento de qualquer burocracia desenvolvida, seja de um Estado
moderno ou de uma moderna indistria privada. “Formula de obediéncia” €
uma expresso de Goethe num comentario a0 drama “Wallenstein” de
Schiller. Goethe utiliza essa formulagao para explicar a atitude dos gene-
rais de Walenstein, que se encontram num conflito de fidelidade entre
imperador e 0 “generalissimo do Exército imperial”. Por fim, decidem-se
em favor do imperador e contra Wallenstein. O motivo decisivo € 0 jura-
mento ao imperador, como “férmula de obediéncia”. O que atualmente se
chama “racionalismo” ndo passa de uma redugao da implementagdo dos
planos & sua calculabilidade. Uma cang4o popular 0 expressa_ de modo
preciso: “desde que me obedegas nao necessito de tua fidelidade”.
A legalidade estatal implica os inevitaveis prémios politicos
para a posse do poder estatal e legal: “obediéncia prévia” (obéissance
préalable) para todas as leis ¢ atos estatais; controle dos militares da
policia, das finangas, da administragdo e da justiga; distribuigao do produ-
to nacional, de cargos, encargos e subvengées; interpretacao das miltiplas
situagées novas suscitadas continuamente pelo rapido progresso cientifico,
técnico e econdmico-industrial. Por esse motivo, o poder estatal — se tiver
consciéncia politica de si mesmo — tem assombrosas _possibilidades de
2 A definigtio de Max Weber significa, em sua pretensio cientifica, uma redugio valorativa-
mente isenta (no sentido da teoria do conhecimento neokantiana de entio). Trés redugdes
igualmente isentas de valoragao.- obediéncia, obrigagao e possibilidade - juntam-se numa
aglomeragio verbal e conceitual.‘A REVOLUGAO LEGAL MUNDIAL: SUPERLEGALIDADE E POLITICA 101
criar continuamente novas situagdes e novos fatos consumados plenos de
conseqiléncias. A legalidade estatal Ihe proporciona uma mais-valia
politica; como diz Marx do capital, é “um valor que gera mais-valor”.
Legitimidade quet dizer férmula da identidade e auto-
representacdo moral, ideolégica e filos6fica de uma ordem estatal. Desde
que existem constituiges escritas 0 autor da Constituicéio busca sancionar
sua identidade com declaragées solenes, com a invocagao de Deus, com
formulas morais, ideolégicas ou filoséficas que fixa em preambulos. Jon
Contiades, jurista grego, nos oferece em sua tese de 1964 (sob a orien-
tagdio de Ernst Forsthoff)* uma idéia precisa dessa ansia de prestigio dos
estados atuais, que desta forma buscam legitimar-se a si proprios. A Cons-
tituigao da Reptiblica Turca, de 27 de maio de 1961, merece ser citada
como exemplo, pela acumulagdo de semelhantes legitimagées. “O Estado
turco é uma Reptiblica. A Republica turca é um Estado de direito nacional,
laico social, baseado nos Direitos Humanos e nos princfpios fundamen-
tais fixados no preambulo”4.
Esse exemplo de uma declaragéo preliminar constitucional
representa o tipo do constitucionalismo atualmente estendido pelo mun-
do inteiro, Um Estado que se ufana de encarnar esses atributos se re-
comenda a si préprio como legitimo. Com o presidente Woodrow Wil-
son, fundador da Liga das Nagdes, a legitimidade deixou de ser atributo
especffico da monarquia hereditdria. A legitimidade dindstica converteu-
se em legitimidade democratica. Ao mesmo tempo, os antagonismos cor-
respondentes converteram-se em atributos democraticos. A democracia
liberal ou capitalista € agora inimiga da democracia socialista ou comu-
nista, e vice-versa.
Mas, que é a superlegalidade? A palavra significa validade re-
forgada de certas normas frente a normas simples ou normais. O caso
tipico é dado pelas normas de procedimento que devem dificultar a trans-
formagao ou aboligdo de normas (por maioria qualificada ou pela distri-
buigéo do procedimento entre varias instincias distintas). Nas modernas
democracias pluralistas essa complicagao do procedimento legislative tem
sobretudo a finalidade de evitar a mudanga freqiiente de governos com
maiorias escassas e coaliz6es frageis e, deste modo, assegurar maiorias
estdveis e capazes de governar, que superem os 50 por cento.
3 Jon Contiades, “Verfassungsgesetstiche Staatsstrukturbeziehungen™. Res Publica. Beitrdge
zum éffentlichen Recht. Stuttgart, 1967, vol. 16.
** Discipulo de Schmitt. (Nota do tradutor)
4 Como exemplo da aplicagao prética da Constituigto, veja-se Emst E. Hirsch, Menschenrech-
te und Grundjreheiten im Ausnahmezustand. Eine Failstudie tiber die Tétigkeit und die Agita-
tion ‘strikt unpolitischer’ internationaler Organisationen. Berlim, Dunker & Humblot, 1974,