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SÃO FRANCISCO E O PENSAMENTO MEDIEVAL *

Frei Reimundo Vier, O.F.M.

À guisa de introdução, cumpre esclarecer que não pretendemos, nem de longe, esgotar o
tema proposto pelos idealizadores da presente coletânea de estudos em homenagem a
S. Francisco de Assis. As nossas considerações se limitam à questão de saber se há
algum sentido em se falar de uma influência de S. Francisco sobre o pensamento
franciscano medieval.

O espírito de S. Francisco na filosofia franciscana

Várias tentativas têm sido feitas para deslindar os traços característicos da filosofia
franciscana. Há quem procure localizá-los em certo conjunto de doutrinas supostamente
peculiares aos pensadores franciscanos medievais. A esse complexo doutrinal
pertenceriam, notadamente, a ausência de distinção formal entre filosofia e teologia, a
teoria da iluminação, a tese do primado do ser individual, a doutrina das razões seminais,
a do hilemorfismo universal, a tese do pluralismo das formas, a do caráter atual da
matéria, o voluntarismo etc.

No entanto, como bem notou o Pe. Philotheus Bohner1, essa tentativa de caracterização
do pensamento franciscano revela-se não só como insuficiente, mas como extremamente
superficial. Não se trata, é claro, de um critério pura e simplesmente falso, pois é
inegável que algumas daquelas doutrinas fazem parte integrante da filosofia franciscana
em todas as fases de sua evolução. Tais são, por exemplo, a valorização da realidade
individual sobre o universal, com suas importantes ressonâncias em teoria do
conhecimento e em metafísica, bem como a tese do primado da vontade, com
repercussões igualmente decisivas no domínio da psicologia e na interpretação do fato
moral.

O mesmo já não se pode dizer de várias outras doutrinas pretensamente características


da tradição franciscana. Desde Pedro de João Olivi se anuncia o abandono da teoria
agostiniana da iluminação. E é fato notório que João Duns Escoto renuncia
definitivamente àquela doutrina, bem como à teoria das razões seminais e, pelo menos
em parte, à tese da pluralidade das formas.

Tem razão, pois, o Pe. Boehner, ao declarar que o referido critério não consegue
abranger a tradição filosófica franciscana em sua totalidade. Assim sendo, Boehner
propõe um caminho diferente, capaz de conduzir a uma caracterização da filosofia
franciscana como um todo. Ao invés de sair à busca de doutrinas comuns, tenta apurar a
influência exercida sobre o pensamento franciscano pelo ideal de vida da própria Ordem
de S. Francisco. «Isto servirá, diz, para descobrir o espírito que preside ao
desenvolvimento das várias doutrinas» no seio da Escola Franciscana.

O espírito que permeia a tradição filosófica franciscana em sua totalidade é o que lhe assegura a
unidade. A filosofia franciscana não dispõe de outro caminho que não seja o de qualquer outra
filosofia verdadeiramente tal, a saber: a perquirição metódica, pela razão natural, de problemas
tidos e havidos como filosóficos. E a filosofia franciscana compartilha também, como toda outra
filosofia, os mesmos problemas, os mesmos fatos, os mesmos princípios e a mesma lógica. Mas

*
Texto extraído de: VVAA. Nosso irmão Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 212-233.
1
The History of Franciscan Philosophy, Part 1, pro mss., St. Bonaventure, 1943, p. 9.
2

ela difere de outras filosofias na medida em que conduz essa investigação num espírito
franciscano2.

Vejamos, pois, em que consiste esse espírito que caracteriza a filosofia da nossa Ordem,
em sua totalidade. Mais adiante, procuraremos ilustrar a influência desse espírito sobre
algumas posições doutrinárias particulares. Antes de tudo, porém, convém obviar a uma
possível objeção contra essa maneira de caracterizar o pensamento franciscano.
Poder-se-ia alegar, com efeito, que o conceito de «espírito» é demasiadamente vago
para determinar o caráter de uma filosofia. Tal seria, realmente, o caso se não fosse
possível definir com suficiente clareza o que se deve entender por «espírito franciscano».
Felizmente não é o que acontece.

É óbvio que o termo «espírito» é tomado, no presente contexto, em sentido figurado, ou


antes, análogo. Não significa algo assim como uma alma individual ou um princípio de
vida, na acepção psicológica da locução. Usamo-lo para designar a idéia central, o
princípio orientador que «vivifica» ou «anima» uma doutrina ou uma instituição, no caso,
a Ordem de S. Francisco de Assis. Assim empregada, a palavra «espírito» tem algo em
comum com o princípio vital de um organismo. Aliás, o próprio Fundador costumava falar
de uma «forma de vida»3.

O Seráfico Pai utiliza aqui, talvez sem dar-se conta disso, um conceito corrente na
filosofia do seu tempo, e oriundo da análise aristotélica do ser material e, em especial, do
ser vivo. Consta esse de «matéria» e de «forma». A função desta última é, precisamente,
a de determinar a matéria em si mesma indeterminada, de dar estrutura ao que em si
mesmo não tem estrutura e, no domínio da vida, a de organizar, de animar e de orientar
para um fim o que em si mesmo, e sem o fator «forma» careceria de organização, de
vida, de ordem e de fim. Em suma, a forma é o elemento que determina a essência de
uma coisa e o seu modo de operar. A forma da vida franciscana é, pois, o elemento
constitutivo de sua própria substância, o que a diferencia de todo outro modo de vida.
Mais concretamente, é a idéia, ou o conjunto de idéias, ou antes, de ideais, que informam
e orientam a Ordem Franciscana, presidem à sua organização, determinam o seu modo
de vida, definem e norteiam a sua atividade no seio do organismo maior de que ela faz
parte, a saber: no corpo místico de Cristo que é a santa Igreja Católica, Apostólica,
Romana.

Qual é, pois, a grande idéia religiosa que conduziu à fundação da Ordem? Qual o
princípio de vida que informa e anima este poderoso movimento desencadeado por S.
Francisco de Assis? Esta questão, que vem apaixonando os estudiosos da vida e da obra
de Francisco, desde os primórdios da Ordem até os nossos dias, tem recebido as mais
diversas respostas. Cada biógrafo tende a resolvê-la a seu modo, ressaltando algum
aspecto novo, por nenhum outro suspeitado. O que não é de estranhar, dada a
personalidade tão rica e multifacetada do Santo. Uma variedade semelhante se nos
depara no movimento por ele encetado. Tanto assim que o estudioso que observa, de
fora, os inícios da Ordem, em suas várias ramificações, não consegue furtar-se à
impressão de que o característico desse movimento é a falta de um caráter determinado.

2
Id. Ibid.
3
Cf. Testamento de S. Francisco: ipse Altissimus revelavit mihi quod deberem vivere secundum formam
sancti Evangelli". E na Regra de Santa Clara: "Forma vivendi quam scripsit sanctus Franciscus sanctae
Clarae".
3

E, no entanto, a resposta é fundamentalmente simples, tão simples como o é a alma do


Santo de Assis. Não falta mesmo quem divise a originalidade de S. Francisco,
paradoxalmente, na ausência de idéias «originais». O ideal de vida que Francisco se
propôs a si mesmo e à sua Ordem é, simplesmente, o de reviver o Santo Evangelho. «A
vida e a regra dos Irmãos Menores é esta: observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo»4. «E, depois que o Senhor me deu o cuidado dos irmãos, ninguém me ensinava o
que devia fazer; mas o mesmo Altíssimo me revelou que devia viver segundo a forma do
santo Evangelho. E eu assim o fiz escrever em poucas e simples palavras, e o senhor
Papa mo confirmou»5. Como se vê, o ideal da «vita Evangelii» não foi uma descoberta
pessoal de S. Francisco. Não lhe foi sugerido, tampouco, por alguma autoridade humana
eclesiástica ou outra. Foi, isto sim, uma revelação de Deus.

Guiado por esta revelação divina, Francisco «escreveu para si e seus irmãos, presentes
e futuros, com simplicidade e em poucas palavras, uma forma e modo de vida,
servindo-se sobretudo das próprias palavras do santo Evangelho, que era seu desejo
seguir à perfeição...»6.

Este desejo de observar o mais perfeitamente possível o Evangelho, de «seguir a


doutrina e os exemplos de Nosso Senhor Jesus Cristo»7, se não é, nem pretende ser um
programa original, não deixou contudo de impressionar profundamente os homens
daquele tempo. Era visto como uma estupenda novidade este compromisso de tomar
por norma de vida o Evangelho, puro e simples. Na verdade, a idéia de Francisco nada
mais é, nem nada menos, do que a de reviver, o mais fielmente possível, o ideal cristão,
tal como o mesmo Jesus Cristo o traçou e viveu8.

«Com absoluta justeza podemos dizer, pois, que o espírito da Ordem Franciscana é o
espírito do santo Evangelho, vivido pela Igreja dos Apóstolos, revivido por S. Francisco e
expresso na Regra como a tarefa perene da Ordem dos Irmãos Menores»9.

O caráter cristão da filosofia franciscana

Este espírito evangélico ou cristão que, segundo o desejo de S. Francisco, deve informar
a vida dos Irmãos Menores, não deixou de influir, em profundidade, no pensamento teoló-
gico e filosófico da Ordem. Vários historiadores recentes da filosofia medieval
destacaram esse influxo, indireto, sem dúvida, mas nem por isso menos real e eficaz, de
Francisco, enquanto «homem evangélico», sobre a filosofia cristã. já citamos o ilustre
historiador franciscano Pe. Philotheus Boehner. Mais recentemente, essa influência foi

4
Regra Segunda, cap. 1.
5
Testamento de S. Francisco.
6
Tomás de Celano, Vida Primeira, cap. 13.
7
Regra Primeira, cap. 1.
8
Sobre a "novidade" desse ideal, cf., as belas páginas de Mário von Galli, Francisco de Assis, o Santo que
viu o futuro. São Paulo: Loyola, 1973, p. 46ss.
9
Philotheus Boelmer, op. cit., p. 6.
4

vivamente ressaltada por Hans Meyer10. Paul Vignaux fala de uma “visão nova dos seres,
revelada por S. Francisco de Assis", visão que repercutiu sobretudo na cosmovisão de
S. Boaventura11. Tal é também o ponto de vista de diversos autores não-católicos.
Assim, Hermann Glockner12, escrevendo em 1960, atribui aos franciscanos e, no-
tadamente a João Duns Escoto, o mérito de uma «cristianização da filosofia». E o que é
mais, esta cristianização é reduzida, explícita e enfaticamente, ao Evangelho, tal como foi
vivido e ensinado por S. Francisco de Assis e ao «cristianismo prático que Francisco
vivera e ensinara»13. Eberhard Woelfel, em interessante estudo sobre Escoto14, credita o
Doutor Sutil pela «deselenização da teologia cristã»; deselenização esta, possibilitada
pela interação positiva e construtiva entre a filosofia e a fé cristã.

Gostaríamos de ilustrar, à mão de algumas doutrinas fundamentais da Escola


Franciscana, o bem fundado dessa tese de Glockner e de Woelfel.

A fim de atalhar um possível mal-entendido, será conveniente esclarecer, em primeiro


lugar, o sentido que emprestamos à expressão «cristianização da filosofia». Cremos que
a expressão pode assumir um significado negativo e, outro, positivo. Negativamente, a
cristianização consistiria na eliminação do seio da filosofia herdada dos antepassados de
eventuais elementos inconciliáveis com a fé cristã. Positivamente, ela consiste na ela-
boração de uma visão do mundo que, sem deixar de ser obra da razão natural, e sem
desprezar as contribuições válidas dos filósofos não-cristãos, procure fazer justiça às
implicações filosóficas da revelação bíblica.

Parcialmente executada, em relação a uma filosofia predominantemente platônica, pelos


Padres da Igreja, essa tarefa cristianizadora torna a impor-se com nova urgência no
século XIII, desta vez em confronto com a filosofia aristotélica recém-descoberta. Pois
bem: cremos poder afirmar, confiantemente, que os pensadores franciscanos cumpriram,
mais conscientemente do que quaisquer outros, o seu papel histórico nesse processo de
cristianização integral da filosofia. E puderam fazê-lo, precisamente, em virtude daquele
hábito, adquirido na escola do Seráfico Pai, de viver e de pensar biblicamente.

RELAÇAO ENTRE CIÊNCIA E FÉ - Foi este hábito franciscano do «pensar bíblico» que
determinou a tomada de posição dos nossos mestres em face do problema fundamental
das relações entre ciência e fé, entre filosofia e teologia. Por mais rigorosamente que

10
Abendlaendische Weltanschauung, III. Band, Die Weltanschauung des Mittellalters 2. ed., Paderborn,
Schoeningh, 1952, p. 248s, 258.
11
A filosofia na Idade Média. trad. de A. P. de Carvalho, 2. ed., Coimbra, 1959, p. 127. Cf. p. 121: S.
Francisco apresentara-se como “simples e ignorante”, acautelara os discípulos contra os perigos da ciência.
No entanto, os estudos denvolveram-se entre os Frades Menores com rapidez e brilho. S. Boaventura não
o estranha, pelo contrário: admira-se de o movimento franciscano se desenrolar à Imagem da Igreja, que
começou por simples pescadores para progredir com Doutores célebres e experimentados. Ele próprio
seguiu as lições de Frei Alexandre de Hales; entrou na Ordem, no momento em que os sábios já tinham
vindo compartilhar a vida comum dos homens simples. Portanto, não será proibido a um franciscano o
estudo, mas esse estudo deverá tomar para objeto a sabedoria cristã, sapientia.
12
Die europaeische Philosophie von den Anfaengen bis zur Gegenwart. 2.ed. Stuttgart: Reclam, 1960, p
355 e 357.
13
Id. ibid. p. 141 e 353.
14
Seinsstruktur und Trinitaetsproblem. Untersuchungen zur Grundlegung der natuerlichen Theologie bei D.
Scotus, em: Beitraege, Bd. XL, H. 5, Muenster i. Westf., Aschendorff, 1965 p. 69.
5

distinguissem entre a filosofia como ciência racional e a teologia como ciência da fé, não
cogitaram jamais em desenvolver uma filosofia pura, ou completamente separada da fé.
Não só Boaventura, como também Escoto e o próprio Ockham não escondem a sua
desconfiança contra todas as filosofias desse tipo. Freqüentadores assíduos, por gosto e
vocação, das Sagradas Escrituras, «não podiam ignorar a atitude da Igreja primitiva em
face da filosofia, tal como a exprime S. Paulo na primeira carta aos Coríntios... A
sabedoria pagã, representada pela filosofia grega, caiu em muitos erros, ou, antes, caiu
na necedade... Exclui-se, assim, uma confiança demasiadamente otimista nessa
sabedoria grega, porquanto a única via de acesso verdadeira e segura à sabedoria passa
pela humildade da cruz de Cristo»15. E não escrevera S. Francisco, fazendo eco a S.
Paulo, que «a simplicidade pura e santa confunde toda a sabedoria deste mundo e a
sabedoria da carne?»16 Foi a simplicidade da fé na palavra revelada que alertou os
sábios franciscanos para as limitações e os erros, por vezes grosseiros e funestos, da
filosofia pura ou pagã17. Se é verdade que essa atitude é «comum a todos os teólogos
ortodoxos», como fez notar Van Steenberghen18, quer-nos parecer, no entanto, que ela
foi particularmente acentuada no pensamento medieval franciscano. Esta atitude de
desconfiança prudente, nascida da própria Bíblia, conduziu os Doutores franciscanos,
não ao fideísmo nem ao ceticismo (como querem alguns), e sim a um «sadio criticismo
cristão»19.

Deparamos assim um dos traços característicos do pensamento franciscano. Segundo a


frase lapidar de Boehner, «a filosofia franciscana é crítica porque a teologia franciscana é
bíblica»20. Embora se empenhassem por não misturar a filosofia com a teologia, evitando
cair no vício do teologismo, os nossos pensadores não caem no extremo oposto dos que
pretendem dever esquecer-se de sua condição de cristãos desde o momento em que se
põem a filosofar. O pensador franciscano vê em tal exigência, não apenas uma
impossibilidade psicológica, mas uma traição às suas convicções mais caras. Foi de uma
«abstração» desse jaez que se viu nascer, na Faculdade de Artes de Paris, aquele
perigoso movimento anticristão conhecido como Averroísmo latino. E foi em nome da
visão bíblico-cristã do mundo e do homem que os franciscanos, sob a liderança de S.
Boaventura, reagiram, através de uma crítica clarividente e impiedosa, contra essa
tentativa de ressuscitação do naturalismo racionalista de Aristóteles e de Averróis.

Ao culto da filosofia pura ou separada, os mestres da Ordem de S. Francisco opõem o


ideal da sabedoria cristã, nascida da cooperação harmoniosa entre a ciência da razão e
a ciência sagrada. Como todos os valores profanos, a filosofia deve servir à edificação.
Tal função, porém, ela não pode exercê-la sem a assistência da teologia que outra coisa
não é senão a ciência da Escritura. Di-lo claramente S. Boaventura: «Os levitas
estudiosos da lei divina não desprezam a filosofia, mas amam-na, na medida em que
serve para confirmá-los na fé. Mas sendo ela produto de uma razão obnubilada pelo

15
Philotheus Boehner, op. cit., p. 9a.
16
Salutatio virtutum.
17
Cf. Ferdinand van Steenberghen, La philosophie au XIIIe siècle. Louvain-Paris: 1966, p. 235.
18
Op. cit. p. 235, nota 107.
19
Philotheus Boehner, op. cit. p. 9a.
20
Op. cit, p. 9e.
6

pecado, é necessário que seja acompanhada pelo amor à Sagrada Escritura»21. E


Rogério Bacon, um dos mais enérgicos apologistas do estudo da filosofia, exprime bem a
atitude franciscana perante esta ciência, ao frisar que

nós cristãos, no estudo da teologia, devemos fazer uso da filosofia; por outro lado, no estudo da
filosofia, temos de tomar em conta muitos dados teológicos, a fim de que se evidencie que em
ambas resplandece uma e a mesma sabedoria22.

Foi esse ideal de sabedoria filosófico-teológico-bíblica que alertou os franciscanos para a


falibilidade de toda autoridade meramente humana, capacitando-os para aquele trabalho
de «deselenização» e de «cristianização» da filosofia e da teologia que segundo
Glockner e WoelfeI irá culminar na obra de Escoto. Com efeito, já Rogério Bacon
insurgiu-se contra o culto exagerado da autoridade e, notadamente, da de Aristóteles:

non oportet nos adhaerere omnibus quae audimus et legimus, sed examinare debemus
districtissime sententias maiorum, ut addamus quae eis defuerunt, et corrigamus quae errata sunt,
cum omni tamen modestia et excusatione23.

A CRISTIANIZAÇÃO DO COSMOS - Segundo Boaventura, o erro capital de Aristóteles,


em matéria de filosofia, foi a sua incapacidade de apreciar o valor da doutrina das Idéias
transcendentes. O repúdio dessa genial doutrina de Platão foi responsável pela
orientação naturalista e deísta de toda a sua metafísica. Conquanto não negasse a
existência de um Deus dotado de inteligência e, quiçá, de vontade, o Estagirita nega toda
e qualquer causalidade eficiente ou criadora desse Deus, quer lhe chame de Primeiro
Motor Imóvel ou de Ato Puro, em relação ao mundo. «O mundo, para Aristóteles, nada
tem a ver com Deus, porque, não obstante as declarações em contrário, ele se move,
tanto física como metafisicamente, com movimento imanente; o mundo é simplesmente
justaposto a Deus, como Deus é justaposto ao mundo»24. Com efeito, como poderia esse
Deus operar ad extra, se o seu conhecer e o seu amar se concentram exclusivamente
sobre si mesmo? Um tal Deus, literalmente, não se faz a mais mínima «idéia» de algo
real, ou sequer de possível, fora de si mesmo.

É fácil perceber que um tal conceito de Deus e de sua relação ou, antes, de sua carência
de relação ao mundo e ao homem é radicalmente incompatível com o conceito bíblico do
Deus Criador do céu e da terra. Foi em oposição crítica a este erro basilar do
aristotelismo que Boaventura elaborou a sua magnífica doutrina do exemplarismo cristão.
Em virtude dessa doutrina, mais do que de qualquer outra, o Doutor Seráfico merece ser

21
S. Boaventura, Sermão de 11 de dezembro de 1267, 3. dom. do Advento, Opera Omnia, lX, p. 63: "Qui
diligunt sacram scripturam diligunt etiam Philosophiam ut per eam confirment fidem; sed philosophia est
lignum scientiae boni et mali, quia veritati permixta est falsitas. Sed si es aemulator philosophorum, dicis:
quomodo potuit decipi Aristoteles? Et non diligis sacram scripturam; necessario cadis a fide. Si dicis
mundum aeternum, nihil scis de Christo. Si dicis unum Intellectum in omnibus, et non esse felicitatem post
hanc vitam, nec resurrectionem mortuorum... cadis a fide. Cavere debent sibi discentes quae sunt
philosophiae, fugiendum est omne illud quod est contrarium doctrinae Christi, sicut interfectivum animae".
22
Opus maius, pars 2, cap. 14; t. I, p, 56. - A unidade do saber é também o Ideal colimado por Boaventura:
"Unde quemadmodum de omnibus entibus, in quantum reducuntur ad unum primum ens est una scientia et
unus liber, sic de omnibus rebus et signis, in quantum reducuntur ad unum, quod est alpha et omega, est
una scientia": I Sent., prooem., 1 and 3-4; t. I, p. 8.
23
Opus Maius, I, p. 15s.
24
Ambrogio Manno, Valore e limiti della metafisica aristotelica, Napoli: 1957, p. 195.
7

chamado, na feliz expressão de Gemelli, «como que a consciência filosófica e teológica


do seu Patriarca»25.

Reassumindo a teoria platônica das Idéias - vistas, agora agostinianamente, como


pensamentos de Deus - Boaventura restabelece o contacto vivo entre Deus e o mundo,
rompidos pela metafísica naturalista do Estagirita. E, o que é mais, tenta demonstrar,
filosoficamente, não só a criação do mundo, como também o caráter temporal dessa
criação, tal como a Bíblia a descreve no Gênesis. Não só isso: contra Platão e Aristóteles
e, ao que parece, para além do próprio Agostinho, apregoa a existência em Deus, não
apenas de idéias gerais, mas de idéias exemplares individuais, correspondentes a cada
um dos seres singulares por Ele criados26. E, contrariamente ao que pensaram os
filósofos exemplaristas pagãos e muçulmanos, estes seres, em sua multiplicidade quase
infinita, foram produzidos imediatamente, ou seja, sem quaisquer intermediários, pelo
Deus único e simples, a partir do nada ou, por outros termos, segundo a totalidade do
seu ser.

Assim concebido, o universo criado vem a ser uma «expressão» do poder, da sabedoria,
do amor benevolente e da beleza do Deus trino e uno. E, conseqüentemente, todas as
criaturas, sem excetuar as irracionais e corporais, se transformam em outros tantos
«estágios» e «semelhanças» do Criador e, como tais, capacitam o homem - centro e
ápice da criação - a elevar-se ao conhecimento, ao amor e ao louvor do seu Deus27.

Quem não vê, nessa doutrina, as ressonâncias do Cântico das criaturas de S. Francisco
e, em última instância, dos hinos bíblicos ao Criador de todas as coisas?28

A REABILITAÇÃO DA MATÉRIA - São Francisco de Assis, todos o sabem, amava as


criaturas. Apelidava-as de irmãs e irmãos. Seus primeiros biógrafos, Tomás de Celano e
S. Boaventura, frisam, ambos, a universalidade deste amor. Francisco queria bem a
todas as obras de Deus, sem excetuar as mais humildes. Tão grande era sua caridade,
nos conta o primeiro29, que chegava a comover-se profundamente, não só à vista dos
sofrimentos dos homens, como ainda dos animais brutos, dos vermes, das aves e demais
criaturas sensíveis, e até mesmo, das insensíveis! Amava-as, protegia-as, falava-lhes,
exortava-as ao louvor de Deus; mandava às aves e às cigarras que cantassem, e elas
cantavam, ordenava que se calassem, e elas se calavam.

25
Frei Agostinho Gemelli, O.F.M., O Franciscanismo. trad. de Mesquita Pimentel, Petrópolis: Vozes, 1944,
p. 80.
26
S. Boaventura, I Sent., d. 38, a. u., q. 4; t. I, p. 610: "Haec autem similitudo est ratio expressiva
cognoscendi non tantum universale, sed etiam singulare, quamvis ipsa non sit universalis nec singularis,
sicut nec Deus; et idea non tantum est similitudo universalis, ut universalis est, sed etiam singularis ut
singulare, et ideo quis similitudo est utrorumque, non solum multiplicatur secundum multitudinem uni-
versallum, sed etiam singularum".
27
S. Boaventura, Breviloquium II, n. 4; t. V, p. 222: "Et propterea indubitanter verum est quod sumus finis
omnium eorum, quae sunt; et omnia corporalia facta sunt ad humanum obsequium, ut ex illis omnibus
ascendatur homo ad amandum et laudandum Factorem universorum, cuius providentia cuncta
disponuntur».
28
Cf. Salmos 8, 18, 103.
29
Vida Primeira, 1. I, cap., 28, n. 77.
8

Quem poderia explicar a doçura que inundava o seu espírito, pergunta Celano30, ao contemplar nas
criaturas a sabedoria, o poder e a bondade do Criador? Enchia-se de gozo inefável todas as vezes
que olhava para o Sol, ou contemplava a Lua, ou dirigia sua vista às estrelas e ao firmamento.

Mais adiante, o biógrafo nos revela a fonte desse amor encendrado à criação: a Sagrada
Escritura. «À semelhança dos três jovens que, ao passear por entre as chamas,
convidavam a todos os elementos a louvar e engrandecer ao Criador admirável, assim
Francisco, cheio do espírito de Deus, não se cansava de glorificar, louvar e bendizer em
todas as coisas o Soberano Criador e Conservador das mesmas». E, circunstância
poucas vezes lembrada, não era apenas com «alma de poeta» que o Santo encarava o
mundo criado. Observava-o com olho de naturalista. Quem o diz é o mesmo Tomás de
Celano: «Considerava as aptidões que demonstravam as abelhas», às quais durante o
inverno mandava servir mel e vinho generoso para que não perecessem; e o fez com
tanta perspicácia «que mais de uma vez chegou a empregar um dia inteiro a elogiar os
labores delas e os das demais criaturas»31.

Como vimos, S. Boaventura, com seu exemplarismo, proporcionou a fundamentação


filosólico-teológica desse amor espontâneo de Francisco à natureza, tanto em sua
totalidade como em cada uma de suas manifestações em particular. Desta forma, sob a
inspiração de Francisco, e orientada pela Escritura, a filosofia franciscana logrou superar,
em relação ao mundo sensível e material, aquela visão negativa e depreciativa que, por
mais de um milênio de cristianismo, continuava a sobreviver em ampla escala, como
resíduo tétrico de uma mundividência essencialmente pagã e pessimista.

Em grande parte, esta concepção negativa - que encontrou sua expressão mais
conhecida na idéia do «contemptus mundi»32- é uma decorrência lógica do conceito
aristotélico e neoplatônico da matéria, esta realidade enigmática e irracional, cuja única
função e razão de ser é a de servir de substrato à forma ou idéia racional que nela se
encarna, por assim dizer, mas sem jamais chegar a gozar de uma existência ou valor
autônomos. Não é de estranhar-se, pois, que fosse responsabilizada por tudo o que há
de imperfeito e mau neste mundo, inclusivamente pela ininteligibilidade do ser individual;
pois este, na opinião dos gregos, só existe por obra e graça da matéria; e sendo esta, por
natureza, irracional e ininteligível, segue-se que da coisa individual e contingente não se
dá ciência. Di-lo expressamente Aristóteles:

Não é possível nem definição nem demonstração das substâncias sensíveis individuais, já que
estas envolvem uma matéria cuja natureza é tal que elas são capazes tanto de existir como de não
existir; e, por conseguinte, todos os seus exemplares individuais são destrutíveis... As coisas
corruptíveis tornam-se obscuras para o homem de ciência, quando estão fora do alcance dos
sentidos; e, embora os conceitos permaneçam inalterados na alma, já não haverá definição nem
demonstração deles33.

Objeto de ciência é exclusivamente a idéia ou forma universal encarnada no ser material


individual. Eis a base metafísica da gnoseologia abstracionista, conducente àquela forma
ou conceito universal: o conteúdo inteligível tem de ser desvestido daquele invólucro

30
Ibid., cap. 29, n. 80.
31
Ibid.
32
Ainda o Papa Inocêncio III, o grande contemporâneo e protetor de S. Francisco, julgara oportuno compor
uma obra sobre o "Desprezo do mundo”!
33
Metafísica, VIl, cap. 15.
9

material obscuro e ininteligível, mediante a eliminação das notas individuantes. Como é


sabido, essa abstrusa doutrina, baseada na imagem aristotélica e pagã do mundo
material, conseguiu sobreviver, e justamente nos manuais «neo-escolásticos» ou, mais
exatamente, neotomistas, até os nossos dias.

Se o crédito pela cristianização do cosmos, em geral, cabe a S. Boaventura, o crédito


pela cristianização da matéria, ele o condivide com os pensadores franciscanos ingleses
e, notadamente, com Rogério Bacon, João Duns Escoto e Guilherme de Ockham34. Os
historiadores mais recentes são unânimes em reconhecer a contribuição decisiva da
Escola de Oxford no tocante a este grande tema da metafísica ocidental. Desde Roberto
Grosseteste, os representantes desta escola franciscana se insurgiram contra a
concepção aristotélica da matéria entendida como «pura potência>, ou seja, «como um
misterioso não-ser do qual emerge o novo ser; declaram ser ela não-ser apenas no
sentido de não ser tal ou tal»35. Essa tese, como observa Sharp, tornou-se uma das
doutrinas principais dos filósofos franciscanos. Com a elevação da matéria ao nível de
um verdadeiro ser, remove-se a dificuldade ontológica fundamental, vinda da antiga
filosofia pagã, que impedia não só a valorização do ser material individual, como a sua
inteligibilidade pelo entendimento humano.

Esta elevação da matéria ao plano do ser atual recebe a sua fundamentação definitiva na
obra de Duns Escoto36. Diz Gilson, no admirável capítulo VI («La matière») de sua
monografia sobre Escoto37, o Doutor Sutil se insere, aqui, conscientemente, na tradição
agostiniana; mas, não menos caracteristicamente, a sua argumentação se baseia em
Aristóteles. Ou, mais exatamente, ele refuta a concepção aristotélica da matéria com
base nos princípios do próprio Aristóteles. De fato, são tantas e tão importantes as
funções atribuídas à matéria pelo Filósofo, que é impossível considerá-la como um mero
não-ser: ela é per se um princípio da natureza; é per se uma das quatro causas; é per se
substrato das mudanças substanciais; e, acrescentemos com S. Agostinho, ela é o termo
de um ato criador38. Forçoso é, a todos esses títulos, atribuir-lhe, não um mero
ser-em-potência (que, na realidade, se reduziria a uma abstração), e sim um ser próprio e
positivo, e realmente distinto da forma. Segundo Gilson, «duas conseqüências dignas de
nota se depreendem dessa conclusão: na doutrina de Duns Escoto, a matéria é

34
É conhecida a função central que Boaventura atribui à matéria em sua metafísica. De fato,
“contrariamente a S. Tomás de Aquino, Boaventura prefere a composição hilemórfica à composição
essência-existência. Através dela, torna-se-lhe mais fácil unificar todo o mundo criado, não excluindo
mesmo as criaturas espirituais, também estas informadas pelos princípios metafísicos de todo ser criado,
material ou não": Joaquim Cerqueira de Carvalho, Homem e mundo em São Boaventura. Braga: 1970, p.
145, nota 75.
35
D. E. Sharp. Franciscan Philosophy at Oxford in the Thirteenth Century. Londres: Oxford University
Press, 1930, p. 15.
36
Contudo, é de justiça lembrar, com Cerqueira de Carvalho, op. cit., p. 149, 207, que já em Boaventura se
encontra, pelo menos implicitamente, “um sentido positivo de matéria": “Nam materia non est privatio pura,
immo ratione suae essentiae habet: aliquid de pulchritudine et aliquid de luce. Unde Augustinus dicit,
quod habet modum, speciem et ordinem, quamvis imperfecte”. II Sent., d. 1, p. 1, q.1; t. II p. 17. -
«Boaventura compara a matéria à Primeira pessoa da Trintade, a qual representa o aspecto mais dinâmico
da realidade divina, essencialmente fecunda. Assim, a matéria, em Boaventura, significa mais fecundidade
do que intermediação": J. C. de Carvalho, op. cit., p. 345.
37
Etienne Gilson, Jean Duns Scot. Introduction à ses positions fondamentales. Paris: Vrin, 1952, p. 432ss.
38
Confessiones XII, cap. 7: “Duo fecisti, Domine: unum prope te et aliud prope nihil”.
10

cognoscível à parte e pode existir à parte»39. É cognoscível precisamente por gozar de


uma realidade, de um ser próprio e irredutível à forma, e para Escoto, todo ser é, em
princípio, inteligível; ademais, é por isso mesmo que a matéria pode ter, e tem de fato,
uma idéia em Deus. O Doutor escocês insiste neste ponto: a matéria, ideada por Deus, é
um dos termos do ato criador. Nada impede, pois, na natureza da matéria, que ela possa
existir à parte.

Assistimos, aqui, à cristianização do conceito de matéria, pois esta, como tal e enquanto
tal, é reduzida enfaticamente à sua única origem possível dentro de uma visão cristã e
bíblica do mundo: ao Deus Criador. Desta forma, vemo-la arrancada, afinal, àquela
posição de inferioridade a que estivera associada, de um modo ou de outro, através de
toda a filosofia grega. Filosofando, como filosofou, à luz do Gênesis, Escoto confere-lhe a
dignidade de uma criatura de Deus, conhecida e querida (na dupla acepção do termo) do
Criador.

A REDENÇÂO DO SER INDIVIDUAL – A importância dessa reabilitação da realidade


material entra pelos olhos, em vista do que acima se disse: ela atinge os próprios
alicerces da imagem platônica e aristotélica do cosmos e do homem; inverte a escala
helênica dos valores; abre perspectivas novas na teoria do conhecimento e da ciência,
pois, como lembrávamos, para os gregos, a realidade singular material ou física não pode
constituir objeto de verdadeira ciência, cifrando-se esta à universalidade, exclusivamente;
exclui-se, assim, a priori, toda a idéia de uma autêntica ciência do mundo físico, tal como
hoje a concebemos.

Tem-se intentado apresentar a chamada «revolução» aristotélico-tomista como sendo um


marco decisivo para a reorientação da ciência, devido à ênfase que empresta à
experiência sensível como ponto de partida do conhecimento. Todavia, o processo
aristotélico-tomista da abstração é totalmente dominado pela idéia da coincidência da
inteligibilidade com a universalidade. A individualidade, determinada pela matéria, é um
fator que se interpõe entre o entendimento e a realidade, um empecilho a ser removido
pelo processo abstrativo. Destarte, a teoria aristotélico-tomista do conhecimento
encontra-se intimamente ligada a uma ontologia que, segundo mostrou Heimsoeth40, está
«totalmente sob o primado metafísico dos gêneros», ou seja, dos universais; tanto assim
que os seres criados mais perfeitos (aqui transparece o aspecto axiológico de tal
filosofia), os anjos, chegam a ser considerados como outras tantas entidades específicas.
E assim, paradoxalmente, no sistema do grande aristotélico cristão, «as idéias platônicas
recebem uma existência própria, fora do espírito divino, e funções particulares no mundo
das criaturas»41. Em suma, «no, conjunto, o universal persiste, em primeiro plano, mesmo
depois de S. Tomás»42.

Foram os escolásticos franciscanos que se encarregaram da tarefa de tirá-lo desse


primeiro plano, tanto do ponto de vista ontológico como gnoseológico. Mais uma vez, esta
espécie de revolução copernicana foi levada a termo por Duns Escoto. Neste ponto,

39
Op. cit. p, 440.
40
Heinz Heimsoeth, Die sechs grossen Themen des abendlaendischen Metaphysik und der Ausgang des
Mittelalters, Darmstadt: Wissenschaftiche Buchgesellschaft, 1965, p. 179.
41
Id., ibid., p. 180.
42
Id. Ibid. p. 178.
11

Escoto é um inovador e um renovador. Sem dúvida, também aqui a sua doutrina foi
preparada, até certo ponto, pelas Escolas mais antigas da Ordem. Com efeito, já Rogério
Bacon e Ricardo de Mediavila haviam proclamado a superioridade do ser individual sobre
o universal. O indivíduo, na opinião de Bacon, é nada menos que «o termo último de todo
o dinamismo da natureza»43; por isso “um só indivíduo vale mais do que todos os
universais do mundo”44, pois «na operação da natureza vem, em primeiro lugar, este
indivíduo mais especificado e particularizado»45. Ricardo, por sua vez, sustenta «não só
que Deus criou todas as coisas como seres individuais e segundo as idéias individuais do
seu espírito, como também, e sobretudo, que os indivíduos são o fim da criação»46.

Todavia a Escola mais antiga não chegara a oferecer uma solução satisfatória ao
problema da individuação. Sob o influxo de Avicena e, mais remotamente, de Aristóteles,
continuavam a ver na matéria, pelo menos, um co-princípio (ainda que subordinado à
forma, como em Boaventura) da individuação. E, a fim de resolver a dificuldade de
explicar a individualidade dos seres espirituais, viram-se obrigados a recorrer à tese
neoplatônica (transmitida à Idade Média pela dupla via de S. Agostinho e de Avicebron)
das duas matérias: a corpórea e a espiritual ou inteligível. Trata-se de um conceito algo
estranho para nós modernos. E no entanto esta «matéria espiritual» desempenha, pelo
menos, duas funções de grande alcance metafísico: por um lado, serve como co-princípio
de individuação dos seres espirituais e, por outro, assegura a não-simplicidade absoluta
de tais seres; ou, por outras palavras, é graças a ela que os espíritos puros se distinguem
de Deus, o único ser absolutamente simples. É, pois, em virtude desta matéria espiritual
que os espíritos criados se tornam contingentes.

Se com isso se lograva salvar a individualidade e a contingência dos anjos (considerados


como outras tantas espécies e como seres criados absolutamente necessários por Tomás
de Aquino47, precisamente por serem imateriais e incorruptíveis), a tese da matéria
espiritual implicava um conceito dual e ambíguo de matéria, o qual, a longo prazo, teria
de ser superado.

Duns Escoto, percebendo esse ponto fraco, propõe-se a encontrar uma solução unitária,
de um princípio de individuação único e aplicável a todo ser criado, quer fosse material
ou espiritual.

Na sua crítica à teoria aristotélica da individuação pela matéria, Escoto chama a atenção,
justamente, para o inconveniente que iria conduzir àquela concepção dual há pouco re-
ferida, a saber: à inaplicabilidade da explicação aristotélica às «formas puras» ou

43
A expressão é de E. Bettoni, Grande Enciclopedia Filosofica. Milano: C. Marzorati Editore, 1954, t. IV, p.
1278.
44
"Unum individuum excellit omnia universalia de mundo", cit. ibid.
45
Liber Primus Communium naturalium. ed. Steele, fasc. II, p. 94.
46
H. Heimsoeth, op. cit, p. 254.
47
Cf. I Sent. 8, 5, 2, Summa c. Gentiles, II, caps. 54, 55 e 93; Summa theologica, I, 50, 2-4 e 5; De
spiritualibus creaturis, 1.
12

«substâncias separadas» (da matéria), tais como são, segundo Aristóteles, os «motores
dos céus»48. já por este motivo (como por vários outros que não cabe discutir aqui),

o Doutor Sutil recusa-se a atribuir à matéria uma função individuante, distanciando-se


assim da maioria dos discípulos de S. Boaventura. Quanto à outra função da «matéria
espiritual»: a de garantir a não-simplicidade dos seres espirituais criados (inclusive a da
alma humana) e, em última análise, a sua contingência, Escoto pode perfeitamente
dispensá-la, porquanto, para ele - e aqui poderíamos falar de uma nova cristianização da
filosofia - a contingência dos seres não-divinos, corporais ou espirituais, se fundamenta,
não já na matéria, como ocorre no aristotelismo de todos os matizes, mas sim na sua
condição de criaturas49. Pois, como se sabe, para Duns Escoto, a raiz ou o fundamento
da contingência outra coisa não é senão a livre vontade criadora de Deus. Enquanto
efeito do querer libérrimo de Deus, toda a criação assume um caráter de
não-necessidade ou de contingência50. Estamos nos antípodas do necessitarismo
helênico.

Mas qual é, segundo Escoto, aquele fator individuante, ou aquela «entidade individual,
da qual deriva a diferença individual»51? A pesquisa mais recente pôde constatar uma
certa evolução no pensamento de Escoto no respeitante a esta questão. Todavia, como
notou Barth52, em todas as suas obras o Doutor Sutil apresenta o ser individual como um
ser positivo. Se nas primeiras obras (Comentário à Metafísica e Prima Lectura) a
individuação é explicada em termos de forma («forma individualis», «perfectio formalis»,
«entitas formalis»)53, esta explicação cede lugar, nas obras posteriores (Reportação de
Paris e Ordinatio), a uma distinção entre um princípio geral de individuação do ser finito e
um princípio particular de individuação (da matéria, da forma e do composto de ambas);
se, naquele, a forma continua a desempenhar uma função (o fundamento ontológico da
individuação, em geral, é a «ultima realitas formae»), nesta última, a individuação se
situa para além da forma. A individuação tem aqui o seu fundamento ontológico na
«ultima realitas entis»54, quer se trate da matéria, ou da forma, ou do composto.

Contudo, preocupado em reter um fundamento real para os conceitos universais, Escoto


julga necessário distinguir, na estrutura do ser, entre a «natureza comum» e a «entidade
individual» ou «haecceitas». Apesar de sua identidade real, a natureza comum e a
«haecceitas» distinguem-se formalmente. A natureza comum já vem dotada de uma
unidade própria, mas esta é, ainda, «menor que a unidade numérica» ou propriamente in-
dividual. Para tornar-se plenamente tal, é mister que lhe advenha aquela última entidade

48
Cf. Timotheus Barth, O.F.M., Individualitaet und Allgemeinheit bei J. D. Scotus. Em: Wissenschaft und
Weisheit, XVII, 1954, p. 128s.
49
Cf. T. Barth, loc. cit., p. 131: "Die Engel als reine Geister haben zwar keine Materie, sind aber deswegen
nicht notwendig, sondern kontingent, weil sie Geschoepfe sind”.
50
Cf. Ordinatio I, dist. 2, pars. 1, q. 1-2, n. 79, 81; ed, Vat., t. II, p. 176s,
51
Ordinatio II, d. 3, p. 1, q. 5-6, n. 189; t. VII, p. 485.
52
Loc. cit., Wiss. u. Weish. XIX, 1956, p. 133.
53
Loc. cit., p. 130, nota 61.
54
Essa tal qual ambigüidade que ainda se manifesta em Escoto servirá como ponto de partida para a
crítica de Ockham, como veremos mais adiante.
13

que determina a natureza comum ou específica, de modo a fazer dela esta («haec»)
realidade individual.

Este fator determinante último é concebido, não como algo de acidental, nem de
meramente negativo, nem de material (visto como a própria matéria poderia, de potentia
Dei absoluta, existir singularizadamente; e, ademais, também as criaturas espirituais são,
todas elas, individuais), nem como algo advindo de fora. Não: a individuação é o último
grau de realidade positiva, atual e intrínseca, de que é suscetível um ser criado.

Desta forma, o ser individual, longe de se apresentar como uma «diminuição» ou amostra
degradada do universal, como acontecia na filosofia grega, vem a ser uma realidade
positiva, um novo grau positivo do ser; em suma, o indivíduo é o remate, a culminância, o
coroamento do ser. E assim o indivíduo suplanta o universal como o ser por excelência,
como o grau supremo e último da realidade.

Assim como afirma, em nome do exemplarismo criacionista, a inteligibilidade da matéria,


Escoto advoga igualmente o caráter inteligível ou racional da realidade individual. Se, de
fato (pelo menos na vida presente), somos incapazes de captar, com clareza, a
«haecceitas», isto se deve, não a uma suposta irracionalidade do ser individual em si
55
mesmo, e sim às limitações do nosso modo humano de conhecer . «Em si, o singular,
para Duns Escoto, é inteligível; não só isso: Addit ad intelligibilitatem!»56 É pois o mais
inteligível de tudo, visto que cada indivíduo possui uma «idéia» em Deus57. Como diz
Woelfel 58, «o reconhecimento, de tanta importância para a metafísica e a filosofia em
geral, de que a individualidade constitui um «novo grau de ser», só foi possível no
momento em que o indivíduo se viu libertado da anonirilidade do «vir-a-ser> e ancorado
verdadeiramente no seu valor eterno: na imagem do mundo da fé bíblica, onde Deus fala
a cada ser individual: «Eu te chamei pelo teu nome, tu és meu». Aqui, mais do que em
qualquer outra parte, percebe-se um nexo puro entre a metafísica e a fé cristã. A
metafísica deve à fé cristã, não só a descoberta de um novo grau do ser, de importância
capital, e inacessível à consciência clara do pensamento antigo; deve-lhe também a reta
compreensão da dignidade peculiar e do apelo (Anspruch) do ser individual.

E assim, na filosofia franciscana, elaborada à luz da revelação bíblica, a imagem pagã


do mundo é substituída por uma visão autenticamente cristã deste mundo: de um mundo
onde Deus não só conhece, mas ama e cuida de cada lírio do campo, de cada pardal e,
com maior razão, de cada ser humano; de um mundo onde os amigos de Deus - sem
deixar de viver como «hóspedes e peregrinos> - sentem-se em casa, entre irmãos e

55
Cf. E. Woelfel. Op. cit., p. 67. Escreve Escoto, Ordinatio II, d. 3, p. 1, q. 5-6, n 191; t. VII, p. 486: “...
concedo quod ‘singularet’ est per se intelligibile, quantum ist ex parte sui (si autem alicui intellectui non sit
per se intelligibile, puta nostro, de hoc alias); saltem non est ex parte eius impossibilitas quin possit intelligi,
sicut nec ex parte solis est impossibilitas videndi et visionis in noctua, sed ex parte oculi noctuae".
56
Cf. Quaestiones In Metaphysicam VII, q. 15, n. 4; ed. Vivès, VII, p. 436a: “Intelligibilitas absolute sequitur
entitatem, ut dictum est 6. q. ultima; singulare totam entitatem quiditativam superiorum includit, et ultra hoc
gradum ultimae actualitatis et unitatis, ex quaestione de individuatione; quae unitas non diminuit, sed addit
ad entitatem et unitatem, ea ita ad intelligibilitatem".
57
Cf. Report. Paris. I, d. 36, q. 4, n. 6; ed. Vivès, t. XXII, p. 453s: “Sed contra hoc quod dicit de individuis,
arguo quod habeant distinctas ideas: Nam illud requirit propriam rationem cognoscendi, quod per nullam
rationem alterius distincte potest cognosci; sed tale est individuum”. Escoto argumenta, aqui, contra
Henrique de Gant, em cuja opinião somente as "espécies especialíssimas" têm idéias próprias em Deus.
58
Op. cit., p. 68.
14

irmãs, à maneira de um S. Francisco e um S. Boaventura59. Para os seguidores de S.


Francisco, não só o mundo espiritual, mas também o mundo sensível ou material se
transforma no lugar da manifestação de Deus. Nada há pois que os impeça de fazer dele
um objeto de observação e estudo carinhoso, não apenas «como um espelho através do
qual podemos chegar até Deus, o artista soberano»60, mas também em si mesmo.

Este interesse pelo mundo material era típico do espírito franciscano. Permeava simultaneamente
a espiritualidade e a pesquisa intelectual. Por causa de sua preocupação pela observação e
experimentação, os pensadores franciscanos da Idade Média foram os precursores da ciência
empírica moderna61.

CONSEQÜÊNCIAS FILOSÓFICAS DA NOVA COSMOVISÃO - As conseqüências


filosóficas da reavaliação da individualidade foram muito bem destacadas por Hans
Meyer: «Eine neue Ontologie, Erkenntnis- und Wertlehre ist grundgelegt. Der Entwertung
des Individuellen hat Rotus ein Ende gemacht und die Liebe und das Verstaendnis fuer
die individuelle Eigenart angebahnt»62.

Ao último dos grandes pensadores franciscanos medievais coube o papel de extrair, pelo
menos em parte, essas conseqüências. Se Escoto pôs fim à degradação do ser
individual, Guilherme de Ockham empreendeu a tarefa de libertá-lo dos últimos
resquícios platônico-aristotélicos que ainda lhe aderiam no sistema escotista. Com efeito,
no intuito de salvaguardar a objetividade do conceito universal, ou seja, do «unum
(praedicabile) de multis», Escoto julgara necessário reter, como base de tal conceito, a
existência nas coisas de uma natureza comum, isto é, de um «unum in multis». É só pelo
acréscimo da haecceitas que esta natureza comum se torna individual; e só pelo ingresso
no entendimento humano se origina a universalidade.

Guilherme de Ockham não vê a necessidade de supor um "unum in multis». Parece-lhe


inconcebível o conceito de uma unidade menor que a numérica, tal como Escoto a atribui
à sua natureza comum. Toda realidade, sustenta Ockham, é por si mesma e em si
mesma numericamente una ou individual. Não há sentido em se atribuir ao universal
qualquer espécie de realidade objetiva ou extramental. O universal, em sua qualidade de
conceito, existe única e exclusivamente no entendimento humano. O fundamento objetivo
do conceito universal, Ockham assegura-o a partir de sua interessante doutrina da
«notitia intuitiva», ou apreensão direta da coisa singular, acompanhada, sempre, de uma
«notitia abstractiva» (abstrativa, isto é, da existência ou não-existência) do referido objeto
apreendido intuitivamente. E, embora ambos esses conhecimentos tenham por objeto a
coisa singular, o entendimento humano tem o poder de formar, a partir deles, um conceito
autenticamente universal, com base na semelhança objetiva entre dois ou mais
indivíduos.

Desaparece assim do cenário filosófico o velho problema princípio de individuação, bem


como o seu corolário: o processo de abstração entendido como «denudação das notas
individuantes» ou materiais, ambos intimamente conexos com a concepção helênica do

59
S. Boaventura, Sermão para o 8o dom. dep. de Pentecostes, t. IX, p. 385.
60
S. Boaventura, Itinerarium mentis in Deum, I, n. 9.
61
Ewert Collins. "Teilhard de Chardin e São Boaventura”, em: Itinerário do Cosmo ao ômega. Petrópolis:
Vozes, 1968, introdução, p. 25.
62
Op. cit., p. 284.
15

primado do universal sobre o individual. Como escreve um dos estudiosos mais recentes
da filosofia ockhamista63:

Ockham está convencido de que só o indivíduo existe e que a realidade é por si mesma singular e,
como tal, inteligível, ou seja, é inteligível em sua singularidade. Donde se segue que, de um lado,
para ele, o problema da individuação perde, todo seu significado, configurando-se como um
pseudoproblema, e, de outro, o problema dos universais perde toda sua valência metafísica: no
tocante aos universais, resta estabelecer somente como se formam em nossa mente e qual a
realidade ou, natureza que possuem. Uma semelhante impostação do problema, é revolucionária
em relação à tradicional, porque já não se pergunta como se chega do universal ao singular, e sim
como do, singular se chega ao universal.

«Não existem universais, nem nas coisas, nem acima delas. Individualidade e essência coincidem.
A coisa é integralmente racional; também a matéria é cognoscível, valiosa e inteligível... O
conhecer não é um extrair de um invólucro irracional (a matéria), nem uma ‘purificação’»64.

A não-existência de universais «acima da mente» já fora afirmada por outro grande


pensador franciscano, Pedro de Oriol (Petrus Aureoli). O Deus Criador dos cristãos não
tem necessidade de conceitos universais; todas as idéias que Ele tem das coisas são
idéias individuais. E o próprio Escoto frisara a superioridade do saber intuitivo - que
sempre visa ao singular - sobre o abstrativo-universal. Por outras palavras: o
conhecimento intuitivo-singular é mais perfeito que o conhecimento universal. Logo, deve
ser atribuído a Deus.

Revela-se aqui, outra vez, a preocupação dos pensadores franciscanos no sentido de


repensar os problemas filosóficos à luz da Bíblia, do criacionismo e do conceito cristão de
Deus Aliás, um dos argumentos do Ockham em favor da cognoscibilidade direta do
singular é o de que Deus assim os conhece.

Foi esta orientação do pensamento pela Sagrada Escritura que capacitou os mestres
franciscanos a tudo reduzir a Deus, como a seu principio único, que tudo ideou
singularmente (inclusive a matéria) e a tudo conferiu a existência livremente.

Nada resta de necessário, em si mesmo, ao lado de Deus. Ele é o único ser


absolutamente necessário. Tudo quanto existe fora dele é radicalmente contingente e
totalmente dependente de Deus, tanto para passar do não-existir ao existir, como para
permanecer em existência. Trata-se de uma verdade implícita no «Credo, in Deum...
factorem coeli et terrae». Desaparecem os seres criados «absolutamente necessários»,
tais como a matéria-prima, os espíritos criados, os corpos celestes65. já Escoto, ao
reduzir a contingência à livre vontade criadora de Deus, e não à corruptibilidade
condicionada pela matéria, deselenizara o universo em sua totalidade, estabelecendo a
equação entre «criado,» e «contingente». E Guilherme de Ockham, mais uma vez, tirou
as últimas conseqüências desta cristianização do universo, estabelecendo o caráter
homogêneo da matéria celeste e da terrestre: «Pluralitas numquam est ponenda sine
necessitate, sicut saepe dictum est. Nunc autem non apparet necessitas ponendi
materiam alterius rationis hic et ibi: quia omnia quae possunt salvari per diversitatem
materiae secundum rationem possunt aeque bene vel melius salvari secundum unitatem

63
Alessandro Ghisalberti, Guglielmo di Ockham, Milano, Vita e Pensiero, 1972, p. 70s.
64
Hans Meyer, op. cit., p. 305.
65
Cf. S. Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles, 1, II caps. 30 e 55.
16

rationis»66. Comenta Ghisalberti: «L'attegiamento di Ockham é innovatore, e si puó


giustamente dire che esso apre la via alla concezione propria della física moderna»67.
Entre outras coisas, a posição de Ockham possibilitou a elaboração de uma nova
mecânica celeste, com base nos mesmos princípios que determinam a mecânica
terrestre.

De um ponto de vista mais amplo, ou mundividencial, a afirmação da unidade do universo


- em oposição ao universo aristotélico de «dois andares» -, pela eliminação da quinta es-
sência ou matéria etérea, significa a desmitização do mundo astral. Os corpos celestes
perdem aquela condição divina ou semidivina que desfrutavam no aristotelismo antigo e
medieval, em virtude da sua suposta incorruptibilidade. Ockham, como criacionista
coerente, mantém que os corpos celestes não são absolutamente incorruptíveis, visto
que Deus, assim como lhes deu a existência total, poderia, se o quisesse, destruí-los ou
corrompê-los68. Como se vê, a par do princípio de economia, o Venerabilis Inceptor
apela, pelo menos implicitamente, à autoridade da Bíblia.

Em vista do exposto, não hesitamos em subscrever à opinião de Baudry, que vê em


Ockham, sob vários pontos de vista, um filósofo de inspiração autenticamente
franciscana. Um desses aspectos é, precisamente, a sua visão contingentista do
universo:

Se colocarmos a contingência em Deus (no sentido de um querer livre ou contingente em relação


aos efeitos ad extra), toda necessidade no mundo se desvanece»69.

Sob esse aspecto a filosofia de Guilherme de Ockham é uma filosofia muito franciscana. Com os
olhos fixos em S. Francisco de Assis que, por seus milagres, lhes parecia ser uma espécie de
encantador ou um Merlin da natureza, os franciscanos não se acomodavam com um mundo regido
por leis necessárias. Tal era, por exemplo, o caso de Wibert de Tournai, que observava que, num
mundo assim concebido, os astros deixariam de obedecer às ordens do Criador e que as orações
dos santos já não modificariam o curso dos acontecimentos70.

Resumindo: a filosofia de Guilherme de Ockham apresenta-se como um esforço do pensamento


cristão para libertar-se das peias do aristotelismo. Com seu cuidado de afirmar o poder e a
liberdade divinos, de sublinhar a ação de Deus em tudo quanto se produz, ela se aparenta, em sua
preocupação fundamental, com a de S. Boaventura e de Duns Escoto71.

Não pudemos furtar-nos a citar esta longa passagem do grande estudioso da obra de
Ockham, a fim de salientar a continuidade do pensamento franciscano, bem como o de
seu objetivo comum, que outro não é senão o de viver e pensar à luz da Escritura,
segundo o desejo do Seráfico Pai.

66
II Sent., 22, D; cit. ap. Ghisalberti, op. cit., p. 181, nota 59.
67
Op. cit. p. 181s.
68
Cf. L. Baudry, Lexique philosophique de Guillaume d'Ockham. Paris: Lethielleux, 1957, p. 145.
69
L. Baudry, Le Tractatus de principiis theotogiae attribuè à G. d’Occam. Paris: Vrin, 1936, introduction, p.
37ss.
70
ld. ibid, p. 38s.
71
ld. ibid. p., 42s.

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