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À guisa de introdução, cumpre esclarecer que não pretendemos, nem de longe, esgotar o
tema proposto pelos idealizadores da presente coletânea de estudos em homenagem a
S. Francisco de Assis. As nossas considerações se limitam à questão de saber se há
algum sentido em se falar de uma influência de S. Francisco sobre o pensamento
franciscano medieval.
Várias tentativas têm sido feitas para deslindar os traços característicos da filosofia
franciscana. Há quem procure localizá-los em certo conjunto de doutrinas supostamente
peculiares aos pensadores franciscanos medievais. A esse complexo doutrinal
pertenceriam, notadamente, a ausência de distinção formal entre filosofia e teologia, a
teoria da iluminação, a tese do primado do ser individual, a doutrina das razões seminais,
a do hilemorfismo universal, a tese do pluralismo das formas, a do caráter atual da
matéria, o voluntarismo etc.
No entanto, como bem notou o Pe. Philotheus Bohner1, essa tentativa de caracterização
do pensamento franciscano revela-se não só como insuficiente, mas como extremamente
superficial. Não se trata, é claro, de um critério pura e simplesmente falso, pois é
inegável que algumas daquelas doutrinas fazem parte integrante da filosofia franciscana
em todas as fases de sua evolução. Tais são, por exemplo, a valorização da realidade
individual sobre o universal, com suas importantes ressonâncias em teoria do
conhecimento e em metafísica, bem como a tese do primado da vontade, com
repercussões igualmente decisivas no domínio da psicologia e na interpretação do fato
moral.
Tem razão, pois, o Pe. Boehner, ao declarar que o referido critério não consegue
abranger a tradição filosófica franciscana em sua totalidade. Assim sendo, Boehner
propõe um caminho diferente, capaz de conduzir a uma caracterização da filosofia
franciscana como um todo. Ao invés de sair à busca de doutrinas comuns, tenta apurar a
influência exercida sobre o pensamento franciscano pelo ideal de vida da própria Ordem
de S. Francisco. «Isto servirá, diz, para descobrir o espírito que preside ao
desenvolvimento das várias doutrinas» no seio da Escola Franciscana.
O espírito que permeia a tradição filosófica franciscana em sua totalidade é o que lhe assegura a
unidade. A filosofia franciscana não dispõe de outro caminho que não seja o de qualquer outra
filosofia verdadeiramente tal, a saber: a perquirição metódica, pela razão natural, de problemas
tidos e havidos como filosóficos. E a filosofia franciscana compartilha também, como toda outra
filosofia, os mesmos problemas, os mesmos fatos, os mesmos princípios e a mesma lógica. Mas
*
Texto extraído de: VVAA. Nosso irmão Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 212-233.
1
The History of Franciscan Philosophy, Part 1, pro mss., St. Bonaventure, 1943, p. 9.
2
ela difere de outras filosofias na medida em que conduz essa investigação num espírito
franciscano2.
Vejamos, pois, em que consiste esse espírito que caracteriza a filosofia da nossa Ordem,
em sua totalidade. Mais adiante, procuraremos ilustrar a influência desse espírito sobre
algumas posições doutrinárias particulares. Antes de tudo, porém, convém obviar a uma
possível objeção contra essa maneira de caracterizar o pensamento franciscano.
Poder-se-ia alegar, com efeito, que o conceito de «espírito» é demasiadamente vago
para determinar o caráter de uma filosofia. Tal seria, realmente, o caso se não fosse
possível definir com suficiente clareza o que se deve entender por «espírito franciscano».
Felizmente não é o que acontece.
O Seráfico Pai utiliza aqui, talvez sem dar-se conta disso, um conceito corrente na
filosofia do seu tempo, e oriundo da análise aristotélica do ser material e, em especial, do
ser vivo. Consta esse de «matéria» e de «forma». A função desta última é, precisamente,
a de determinar a matéria em si mesma indeterminada, de dar estrutura ao que em si
mesmo não tem estrutura e, no domínio da vida, a de organizar, de animar e de orientar
para um fim o que em si mesmo, e sem o fator «forma» careceria de organização, de
vida, de ordem e de fim. Em suma, a forma é o elemento que determina a essência de
uma coisa e o seu modo de operar. A forma da vida franciscana é, pois, o elemento
constitutivo de sua própria substância, o que a diferencia de todo outro modo de vida.
Mais concretamente, é a idéia, ou o conjunto de idéias, ou antes, de ideais, que informam
e orientam a Ordem Franciscana, presidem à sua organização, determinam o seu modo
de vida, definem e norteiam a sua atividade no seio do organismo maior de que ela faz
parte, a saber: no corpo místico de Cristo que é a santa Igreja Católica, Apostólica,
Romana.
Qual é, pois, a grande idéia religiosa que conduziu à fundação da Ordem? Qual o
princípio de vida que informa e anima este poderoso movimento desencadeado por S.
Francisco de Assis? Esta questão, que vem apaixonando os estudiosos da vida e da obra
de Francisco, desde os primórdios da Ordem até os nossos dias, tem recebido as mais
diversas respostas. Cada biógrafo tende a resolvê-la a seu modo, ressaltando algum
aspecto novo, por nenhum outro suspeitado. O que não é de estranhar, dada a
personalidade tão rica e multifacetada do Santo. Uma variedade semelhante se nos
depara no movimento por ele encetado. Tanto assim que o estudioso que observa, de
fora, os inícios da Ordem, em suas várias ramificações, não consegue furtar-se à
impressão de que o característico desse movimento é a falta de um caráter determinado.
2
Id. Ibid.
3
Cf. Testamento de S. Francisco: ipse Altissimus revelavit mihi quod deberem vivere secundum formam
sancti Evangelli". E na Regra de Santa Clara: "Forma vivendi quam scripsit sanctus Franciscus sanctae
Clarae".
3
Guiado por esta revelação divina, Francisco «escreveu para si e seus irmãos, presentes
e futuros, com simplicidade e em poucas palavras, uma forma e modo de vida,
servindo-se sobretudo das próprias palavras do santo Evangelho, que era seu desejo
seguir à perfeição...»6.
«Com absoluta justeza podemos dizer, pois, que o espírito da Ordem Franciscana é o
espírito do santo Evangelho, vivido pela Igreja dos Apóstolos, revivido por S. Francisco e
expresso na Regra como a tarefa perene da Ordem dos Irmãos Menores»9.
Este espírito evangélico ou cristão que, segundo o desejo de S. Francisco, deve informar
a vida dos Irmãos Menores, não deixou de influir, em profundidade, no pensamento teoló-
gico e filosófico da Ordem. Vários historiadores recentes da filosofia medieval
destacaram esse influxo, indireto, sem dúvida, mas nem por isso menos real e eficaz, de
Francisco, enquanto «homem evangélico», sobre a filosofia cristã. já citamos o ilustre
historiador franciscano Pe. Philotheus Boehner. Mais recentemente, essa influência foi
4
Regra Segunda, cap. 1.
5
Testamento de S. Francisco.
6
Tomás de Celano, Vida Primeira, cap. 13.
7
Regra Primeira, cap. 1.
8
Sobre a "novidade" desse ideal, cf., as belas páginas de Mário von Galli, Francisco de Assis, o Santo que
viu o futuro. São Paulo: Loyola, 1973, p. 46ss.
9
Philotheus Boelmer, op. cit., p. 6.
4
vivamente ressaltada por Hans Meyer10. Paul Vignaux fala de uma “visão nova dos seres,
revelada por S. Francisco de Assis", visão que repercutiu sobretudo na cosmovisão de
S. Boaventura11. Tal é também o ponto de vista de diversos autores não-católicos.
Assim, Hermann Glockner12, escrevendo em 1960, atribui aos franciscanos e, no-
tadamente a João Duns Escoto, o mérito de uma «cristianização da filosofia». E o que é
mais, esta cristianização é reduzida, explícita e enfaticamente, ao Evangelho, tal como foi
vivido e ensinado por S. Francisco de Assis e ao «cristianismo prático que Francisco
vivera e ensinara»13. Eberhard Woelfel, em interessante estudo sobre Escoto14, credita o
Doutor Sutil pela «deselenização da teologia cristã»; deselenização esta, possibilitada
pela interação positiva e construtiva entre a filosofia e a fé cristã.
RELAÇAO ENTRE CIÊNCIA E FÉ - Foi este hábito franciscano do «pensar bíblico» que
determinou a tomada de posição dos nossos mestres em face do problema fundamental
das relações entre ciência e fé, entre filosofia e teologia. Por mais rigorosamente que
10
Abendlaendische Weltanschauung, III. Band, Die Weltanschauung des Mittellalters 2. ed., Paderborn,
Schoeningh, 1952, p. 248s, 258.
11
A filosofia na Idade Média. trad. de A. P. de Carvalho, 2. ed., Coimbra, 1959, p. 127. Cf. p. 121: S.
Francisco apresentara-se como “simples e ignorante”, acautelara os discípulos contra os perigos da ciência.
No entanto, os estudos denvolveram-se entre os Frades Menores com rapidez e brilho. S. Boaventura não
o estranha, pelo contrário: admira-se de o movimento franciscano se desenrolar à Imagem da Igreja, que
começou por simples pescadores para progredir com Doutores célebres e experimentados. Ele próprio
seguiu as lições de Frei Alexandre de Hales; entrou na Ordem, no momento em que os sábios já tinham
vindo compartilhar a vida comum dos homens simples. Portanto, não será proibido a um franciscano o
estudo, mas esse estudo deverá tomar para objeto a sabedoria cristã, sapientia.
12
Die europaeische Philosophie von den Anfaengen bis zur Gegenwart. 2.ed. Stuttgart: Reclam, 1960, p
355 e 357.
13
Id. ibid. p. 141 e 353.
14
Seinsstruktur und Trinitaetsproblem. Untersuchungen zur Grundlegung der natuerlichen Theologie bei D.
Scotus, em: Beitraege, Bd. XL, H. 5, Muenster i. Westf., Aschendorff, 1965 p. 69.
5
distinguissem entre a filosofia como ciência racional e a teologia como ciência da fé, não
cogitaram jamais em desenvolver uma filosofia pura, ou completamente separada da fé.
Não só Boaventura, como também Escoto e o próprio Ockham não escondem a sua
desconfiança contra todas as filosofias desse tipo. Freqüentadores assíduos, por gosto e
vocação, das Sagradas Escrituras, «não podiam ignorar a atitude da Igreja primitiva em
face da filosofia, tal como a exprime S. Paulo na primeira carta aos Coríntios... A
sabedoria pagã, representada pela filosofia grega, caiu em muitos erros, ou, antes, caiu
na necedade... Exclui-se, assim, uma confiança demasiadamente otimista nessa
sabedoria grega, porquanto a única via de acesso verdadeira e segura à sabedoria passa
pela humildade da cruz de Cristo»15. E não escrevera S. Francisco, fazendo eco a S.
Paulo, que «a simplicidade pura e santa confunde toda a sabedoria deste mundo e a
sabedoria da carne?»16 Foi a simplicidade da fé na palavra revelada que alertou os
sábios franciscanos para as limitações e os erros, por vezes grosseiros e funestos, da
filosofia pura ou pagã17. Se é verdade que essa atitude é «comum a todos os teólogos
ortodoxos», como fez notar Van Steenberghen18, quer-nos parecer, no entanto, que ela
foi particularmente acentuada no pensamento medieval franciscano. Esta atitude de
desconfiança prudente, nascida da própria Bíblia, conduziu os Doutores franciscanos,
não ao fideísmo nem ao ceticismo (como querem alguns), e sim a um «sadio criticismo
cristão»19.
15
Philotheus Boehner, op. cit., p. 9a.
16
Salutatio virtutum.
17
Cf. Ferdinand van Steenberghen, La philosophie au XIIIe siècle. Louvain-Paris: 1966, p. 235.
18
Op. cit. p. 235, nota 107.
19
Philotheus Boehner, op. cit. p. 9a.
20
Op. cit, p. 9e.
6
nós cristãos, no estudo da teologia, devemos fazer uso da filosofia; por outro lado, no estudo da
filosofia, temos de tomar em conta muitos dados teológicos, a fim de que se evidencie que em
ambas resplandece uma e a mesma sabedoria22.
non oportet nos adhaerere omnibus quae audimus et legimus, sed examinare debemus
districtissime sententias maiorum, ut addamus quae eis defuerunt, et corrigamus quae errata sunt,
cum omni tamen modestia et excusatione23.
É fácil perceber que um tal conceito de Deus e de sua relação ou, antes, de sua carência
de relação ao mundo e ao homem é radicalmente incompatível com o conceito bíblico do
Deus Criador do céu e da terra. Foi em oposição crítica a este erro basilar do
aristotelismo que Boaventura elaborou a sua magnífica doutrina do exemplarismo cristão.
Em virtude dessa doutrina, mais do que de qualquer outra, o Doutor Seráfico merece ser
21
S. Boaventura, Sermão de 11 de dezembro de 1267, 3. dom. do Advento, Opera Omnia, lX, p. 63: "Qui
diligunt sacram scripturam diligunt etiam Philosophiam ut per eam confirment fidem; sed philosophia est
lignum scientiae boni et mali, quia veritati permixta est falsitas. Sed si es aemulator philosophorum, dicis:
quomodo potuit decipi Aristoteles? Et non diligis sacram scripturam; necessario cadis a fide. Si dicis
mundum aeternum, nihil scis de Christo. Si dicis unum Intellectum in omnibus, et non esse felicitatem post
hanc vitam, nec resurrectionem mortuorum... cadis a fide. Cavere debent sibi discentes quae sunt
philosophiae, fugiendum est omne illud quod est contrarium doctrinae Christi, sicut interfectivum animae".
22
Opus maius, pars 2, cap. 14; t. I, p, 56. - A unidade do saber é também o Ideal colimado por Boaventura:
"Unde quemadmodum de omnibus entibus, in quantum reducuntur ad unum primum ens est una scientia et
unus liber, sic de omnibus rebus et signis, in quantum reducuntur ad unum, quod est alpha et omega, est
una scientia": I Sent., prooem., 1 and 3-4; t. I, p. 8.
23
Opus Maius, I, p. 15s.
24
Ambrogio Manno, Valore e limiti della metafisica aristotelica, Napoli: 1957, p. 195.
7
Assim concebido, o universo criado vem a ser uma «expressão» do poder, da sabedoria,
do amor benevolente e da beleza do Deus trino e uno. E, conseqüentemente, todas as
criaturas, sem excetuar as irracionais e corporais, se transformam em outros tantos
«estágios» e «semelhanças» do Criador e, como tais, capacitam o homem - centro e
ápice da criação - a elevar-se ao conhecimento, ao amor e ao louvor do seu Deus27.
Quem não vê, nessa doutrina, as ressonâncias do Cântico das criaturas de S. Francisco
e, em última instância, dos hinos bíblicos ao Criador de todas as coisas?28
25
Frei Agostinho Gemelli, O.F.M., O Franciscanismo. trad. de Mesquita Pimentel, Petrópolis: Vozes, 1944,
p. 80.
26
S. Boaventura, I Sent., d. 38, a. u., q. 4; t. I, p. 610: "Haec autem similitudo est ratio expressiva
cognoscendi non tantum universale, sed etiam singulare, quamvis ipsa non sit universalis nec singularis,
sicut nec Deus; et idea non tantum est similitudo universalis, ut universalis est, sed etiam singularis ut
singulare, et ideo quis similitudo est utrorumque, non solum multiplicatur secundum multitudinem uni-
versallum, sed etiam singularum".
27
S. Boaventura, Breviloquium II, n. 4; t. V, p. 222: "Et propterea indubitanter verum est quod sumus finis
omnium eorum, quae sunt; et omnia corporalia facta sunt ad humanum obsequium, ut ex illis omnibus
ascendatur homo ad amandum et laudandum Factorem universorum, cuius providentia cuncta
disponuntur».
28
Cf. Salmos 8, 18, 103.
29
Vida Primeira, 1. I, cap., 28, n. 77.
8
Quem poderia explicar a doçura que inundava o seu espírito, pergunta Celano30, ao contemplar nas
criaturas a sabedoria, o poder e a bondade do Criador? Enchia-se de gozo inefável todas as vezes
que olhava para o Sol, ou contemplava a Lua, ou dirigia sua vista às estrelas e ao firmamento.
Mais adiante, o biógrafo nos revela a fonte desse amor encendrado à criação: a Sagrada
Escritura. «À semelhança dos três jovens que, ao passear por entre as chamas,
convidavam a todos os elementos a louvar e engrandecer ao Criador admirável, assim
Francisco, cheio do espírito de Deus, não se cansava de glorificar, louvar e bendizer em
todas as coisas o Soberano Criador e Conservador das mesmas». E, circunstância
poucas vezes lembrada, não era apenas com «alma de poeta» que o Santo encarava o
mundo criado. Observava-o com olho de naturalista. Quem o diz é o mesmo Tomás de
Celano: «Considerava as aptidões que demonstravam as abelhas», às quais durante o
inverno mandava servir mel e vinho generoso para que não perecessem; e o fez com
tanta perspicácia «que mais de uma vez chegou a empregar um dia inteiro a elogiar os
labores delas e os das demais criaturas»31.
Em grande parte, esta concepção negativa - que encontrou sua expressão mais
conhecida na idéia do «contemptus mundi»32- é uma decorrência lógica do conceito
aristotélico e neoplatônico da matéria, esta realidade enigmática e irracional, cuja única
função e razão de ser é a de servir de substrato à forma ou idéia racional que nela se
encarna, por assim dizer, mas sem jamais chegar a gozar de uma existência ou valor
autônomos. Não é de estranhar-se, pois, que fosse responsabilizada por tudo o que há
de imperfeito e mau neste mundo, inclusivamente pela ininteligibilidade do ser individual;
pois este, na opinião dos gregos, só existe por obra e graça da matéria; e sendo esta, por
natureza, irracional e ininteligível, segue-se que da coisa individual e contingente não se
dá ciência. Di-lo expressamente Aristóteles:
Não é possível nem definição nem demonstração das substâncias sensíveis individuais, já que
estas envolvem uma matéria cuja natureza é tal que elas são capazes tanto de existir como de não
existir; e, por conseguinte, todos os seus exemplares individuais são destrutíveis... As coisas
corruptíveis tornam-se obscuras para o homem de ciência, quando estão fora do alcance dos
sentidos; e, embora os conceitos permaneçam inalterados na alma, já não haverá definição nem
demonstração deles33.
30
Ibid., cap. 29, n. 80.
31
Ibid.
32
Ainda o Papa Inocêncio III, o grande contemporâneo e protetor de S. Francisco, julgara oportuno compor
uma obra sobre o "Desprezo do mundo”!
33
Metafísica, VIl, cap. 15.
9
Esta elevação da matéria ao plano do ser atual recebe a sua fundamentação definitiva na
obra de Duns Escoto36. Diz Gilson, no admirável capítulo VI («La matière») de sua
monografia sobre Escoto37, o Doutor Sutil se insere, aqui, conscientemente, na tradição
agostiniana; mas, não menos caracteristicamente, a sua argumentação se baseia em
Aristóteles. Ou, mais exatamente, ele refuta a concepção aristotélica da matéria com
base nos princípios do próprio Aristóteles. De fato, são tantas e tão importantes as
funções atribuídas à matéria pelo Filósofo, que é impossível considerá-la como um mero
não-ser: ela é per se um princípio da natureza; é per se uma das quatro causas; é per se
substrato das mudanças substanciais; e, acrescentemos com S. Agostinho, ela é o termo
de um ato criador38. Forçoso é, a todos esses títulos, atribuir-lhe, não um mero
ser-em-potência (que, na realidade, se reduziria a uma abstração), e sim um ser próprio e
positivo, e realmente distinto da forma. Segundo Gilson, «duas conseqüências dignas de
nota se depreendem dessa conclusão: na doutrina de Duns Escoto, a matéria é
34
É conhecida a função central que Boaventura atribui à matéria em sua metafísica. De fato,
“contrariamente a S. Tomás de Aquino, Boaventura prefere a composição hilemórfica à composição
essência-existência. Através dela, torna-se-lhe mais fácil unificar todo o mundo criado, não excluindo
mesmo as criaturas espirituais, também estas informadas pelos princípios metafísicos de todo ser criado,
material ou não": Joaquim Cerqueira de Carvalho, Homem e mundo em São Boaventura. Braga: 1970, p.
145, nota 75.
35
D. E. Sharp. Franciscan Philosophy at Oxford in the Thirteenth Century. Londres: Oxford University
Press, 1930, p. 15.
36
Contudo, é de justiça lembrar, com Cerqueira de Carvalho, op. cit., p. 149, 207, que já em Boaventura se
encontra, pelo menos implicitamente, “um sentido positivo de matéria": “Nam materia non est privatio pura,
immo ratione suae essentiae habet: aliquid de pulchritudine et aliquid de luce. Unde Augustinus dicit,
quod habet modum, speciem et ordinem, quamvis imperfecte”. II Sent., d. 1, p. 1, q.1; t. II p. 17. -
«Boaventura compara a matéria à Primeira pessoa da Trintade, a qual representa o aspecto mais dinâmico
da realidade divina, essencialmente fecunda. Assim, a matéria, em Boaventura, significa mais fecundidade
do que intermediação": J. C. de Carvalho, op. cit., p. 345.
37
Etienne Gilson, Jean Duns Scot. Introduction à ses positions fondamentales. Paris: Vrin, 1952, p. 432ss.
38
Confessiones XII, cap. 7: “Duo fecisti, Domine: unum prope te et aliud prope nihil”.
10
Assistimos, aqui, à cristianização do conceito de matéria, pois esta, como tal e enquanto
tal, é reduzida enfaticamente à sua única origem possível dentro de uma visão cristã e
bíblica do mundo: ao Deus Criador. Desta forma, vemo-la arrancada, afinal, àquela
posição de inferioridade a que estivera associada, de um modo ou de outro, através de
toda a filosofia grega. Filosofando, como filosofou, à luz do Gênesis, Escoto confere-lhe a
dignidade de uma criatura de Deus, conhecida e querida (na dupla acepção do termo) do
Criador.
39
Op. cit. p, 440.
40
Heinz Heimsoeth, Die sechs grossen Themen des abendlaendischen Metaphysik und der Ausgang des
Mittelalters, Darmstadt: Wissenschaftiche Buchgesellschaft, 1965, p. 179.
41
Id., ibid., p. 180.
42
Id. Ibid. p. 178.
11
Escoto é um inovador e um renovador. Sem dúvida, também aqui a sua doutrina foi
preparada, até certo ponto, pelas Escolas mais antigas da Ordem. Com efeito, já Rogério
Bacon e Ricardo de Mediavila haviam proclamado a superioridade do ser individual sobre
o universal. O indivíduo, na opinião de Bacon, é nada menos que «o termo último de todo
o dinamismo da natureza»43; por isso “um só indivíduo vale mais do que todos os
universais do mundo”44, pois «na operação da natureza vem, em primeiro lugar, este
indivíduo mais especificado e particularizado»45. Ricardo, por sua vez, sustenta «não só
que Deus criou todas as coisas como seres individuais e segundo as idéias individuais do
seu espírito, como também, e sobretudo, que os indivíduos são o fim da criação»46.
Todavia a Escola mais antiga não chegara a oferecer uma solução satisfatória ao
problema da individuação. Sob o influxo de Avicena e, mais remotamente, de Aristóteles,
continuavam a ver na matéria, pelo menos, um co-princípio (ainda que subordinado à
forma, como em Boaventura) da individuação. E, a fim de resolver a dificuldade de
explicar a individualidade dos seres espirituais, viram-se obrigados a recorrer à tese
neoplatônica (transmitida à Idade Média pela dupla via de S. Agostinho e de Avicebron)
das duas matérias: a corpórea e a espiritual ou inteligível. Trata-se de um conceito algo
estranho para nós modernos. E no entanto esta «matéria espiritual» desempenha, pelo
menos, duas funções de grande alcance metafísico: por um lado, serve como co-princípio
de individuação dos seres espirituais e, por outro, assegura a não-simplicidade absoluta
de tais seres; ou, por outras palavras, é graças a ela que os espíritos puros se distinguem
de Deus, o único ser absolutamente simples. É, pois, em virtude desta matéria espiritual
que os espíritos criados se tornam contingentes.
Duns Escoto, percebendo esse ponto fraco, propõe-se a encontrar uma solução unitária,
de um princípio de individuação único e aplicável a todo ser criado, quer fosse material
ou espiritual.
Na sua crítica à teoria aristotélica da individuação pela matéria, Escoto chama a atenção,
justamente, para o inconveniente que iria conduzir àquela concepção dual há pouco re-
ferida, a saber: à inaplicabilidade da explicação aristotélica às «formas puras» ou
43
A expressão é de E. Bettoni, Grande Enciclopedia Filosofica. Milano: C. Marzorati Editore, 1954, t. IV, p.
1278.
44
"Unum individuum excellit omnia universalia de mundo", cit. ibid.
45
Liber Primus Communium naturalium. ed. Steele, fasc. II, p. 94.
46
H. Heimsoeth, op. cit, p. 254.
47
Cf. I Sent. 8, 5, 2, Summa c. Gentiles, II, caps. 54, 55 e 93; Summa theologica, I, 50, 2-4 e 5; De
spiritualibus creaturis, 1.
12
«substâncias separadas» (da matéria), tais como são, segundo Aristóteles, os «motores
dos céus»48. já por este motivo (como por vários outros que não cabe discutir aqui),
Mas qual é, segundo Escoto, aquele fator individuante, ou aquela «entidade individual,
da qual deriva a diferença individual»51? A pesquisa mais recente pôde constatar uma
certa evolução no pensamento de Escoto no respeitante a esta questão. Todavia, como
notou Barth52, em todas as suas obras o Doutor Sutil apresenta o ser individual como um
ser positivo. Se nas primeiras obras (Comentário à Metafísica e Prima Lectura) a
individuação é explicada em termos de forma («forma individualis», «perfectio formalis»,
«entitas formalis»)53, esta explicação cede lugar, nas obras posteriores (Reportação de
Paris e Ordinatio), a uma distinção entre um princípio geral de individuação do ser finito e
um princípio particular de individuação (da matéria, da forma e do composto de ambas);
se, naquele, a forma continua a desempenhar uma função (o fundamento ontológico da
individuação, em geral, é a «ultima realitas formae»), nesta última, a individuação se
situa para além da forma. A individuação tem aqui o seu fundamento ontológico na
«ultima realitas entis»54, quer se trate da matéria, ou da forma, ou do composto.
48
Cf. Timotheus Barth, O.F.M., Individualitaet und Allgemeinheit bei J. D. Scotus. Em: Wissenschaft und
Weisheit, XVII, 1954, p. 128s.
49
Cf. T. Barth, loc. cit., p. 131: "Die Engel als reine Geister haben zwar keine Materie, sind aber deswegen
nicht notwendig, sondern kontingent, weil sie Geschoepfe sind”.
50
Cf. Ordinatio I, dist. 2, pars. 1, q. 1-2, n. 79, 81; ed, Vat., t. II, p. 176s,
51
Ordinatio II, d. 3, p. 1, q. 5-6, n. 189; t. VII, p. 485.
52
Loc. cit., Wiss. u. Weish. XIX, 1956, p. 133.
53
Loc. cit., p. 130, nota 61.
54
Essa tal qual ambigüidade que ainda se manifesta em Escoto servirá como ponto de partida para a
crítica de Ockham, como veremos mais adiante.
13
que determina a natureza comum ou específica, de modo a fazer dela esta («haec»)
realidade individual.
Este fator determinante último é concebido, não como algo de acidental, nem de
meramente negativo, nem de material (visto como a própria matéria poderia, de potentia
Dei absoluta, existir singularizadamente; e, ademais, também as criaturas espirituais são,
todas elas, individuais), nem como algo advindo de fora. Não: a individuação é o último
grau de realidade positiva, atual e intrínseca, de que é suscetível um ser criado.
Desta forma, o ser individual, longe de se apresentar como uma «diminuição» ou amostra
degradada do universal, como acontecia na filosofia grega, vem a ser uma realidade
positiva, um novo grau positivo do ser; em suma, o indivíduo é o remate, a culminância, o
coroamento do ser. E assim o indivíduo suplanta o universal como o ser por excelência,
como o grau supremo e último da realidade.
55
Cf. E. Woelfel. Op. cit., p. 67. Escreve Escoto, Ordinatio II, d. 3, p. 1, q. 5-6, n 191; t. VII, p. 486: “...
concedo quod ‘singularet’ est per se intelligibile, quantum ist ex parte sui (si autem alicui intellectui non sit
per se intelligibile, puta nostro, de hoc alias); saltem non est ex parte eius impossibilitas quin possit intelligi,
sicut nec ex parte solis est impossibilitas videndi et visionis in noctua, sed ex parte oculi noctuae".
56
Cf. Quaestiones In Metaphysicam VII, q. 15, n. 4; ed. Vivès, VII, p. 436a: “Intelligibilitas absolute sequitur
entitatem, ut dictum est 6. q. ultima; singulare totam entitatem quiditativam superiorum includit, et ultra hoc
gradum ultimae actualitatis et unitatis, ex quaestione de individuatione; quae unitas non diminuit, sed addit
ad entitatem et unitatem, ea ita ad intelligibilitatem".
57
Cf. Report. Paris. I, d. 36, q. 4, n. 6; ed. Vivès, t. XXII, p. 453s: “Sed contra hoc quod dicit de individuis,
arguo quod habeant distinctas ideas: Nam illud requirit propriam rationem cognoscendi, quod per nullam
rationem alterius distincte potest cognosci; sed tale est individuum”. Escoto argumenta, aqui, contra
Henrique de Gant, em cuja opinião somente as "espécies especialíssimas" têm idéias próprias em Deus.
58
Op. cit., p. 68.
14
Este interesse pelo mundo material era típico do espírito franciscano. Permeava simultaneamente
a espiritualidade e a pesquisa intelectual. Por causa de sua preocupação pela observação e
experimentação, os pensadores franciscanos da Idade Média foram os precursores da ciência
empírica moderna61.
Ao último dos grandes pensadores franciscanos medievais coube o papel de extrair, pelo
menos em parte, essas conseqüências. Se Escoto pôs fim à degradação do ser
individual, Guilherme de Ockham empreendeu a tarefa de libertá-lo dos últimos
resquícios platônico-aristotélicos que ainda lhe aderiam no sistema escotista. Com efeito,
no intuito de salvaguardar a objetividade do conceito universal, ou seja, do «unum
(praedicabile) de multis», Escoto julgara necessário reter, como base de tal conceito, a
existência nas coisas de uma natureza comum, isto é, de um «unum in multis». É só pelo
acréscimo da haecceitas que esta natureza comum se torna individual; e só pelo ingresso
no entendimento humano se origina a universalidade.
59
S. Boaventura, Sermão para o 8o dom. dep. de Pentecostes, t. IX, p. 385.
60
S. Boaventura, Itinerarium mentis in Deum, I, n. 9.
61
Ewert Collins. "Teilhard de Chardin e São Boaventura”, em: Itinerário do Cosmo ao ômega. Petrópolis:
Vozes, 1968, introdução, p. 25.
62
Op. cit., p. 284.
15
primado do universal sobre o individual. Como escreve um dos estudiosos mais recentes
da filosofia ockhamista63:
Ockham está convencido de que só o indivíduo existe e que a realidade é por si mesma singular e,
como tal, inteligível, ou seja, é inteligível em sua singularidade. Donde se segue que, de um lado,
para ele, o problema da individuação perde, todo seu significado, configurando-se como um
pseudoproblema, e, de outro, o problema dos universais perde toda sua valência metafísica: no
tocante aos universais, resta estabelecer somente como se formam em nossa mente e qual a
realidade ou, natureza que possuem. Uma semelhante impostação do problema, é revolucionária
em relação à tradicional, porque já não se pergunta como se chega do universal ao singular, e sim
como do, singular se chega ao universal.
«Não existem universais, nem nas coisas, nem acima delas. Individualidade e essência coincidem.
A coisa é integralmente racional; também a matéria é cognoscível, valiosa e inteligível... O
conhecer não é um extrair de um invólucro irracional (a matéria), nem uma ‘purificação’»64.
Foi esta orientação do pensamento pela Sagrada Escritura que capacitou os mestres
franciscanos a tudo reduzir a Deus, como a seu principio único, que tudo ideou
singularmente (inclusive a matéria) e a tudo conferiu a existência livremente.
63
Alessandro Ghisalberti, Guglielmo di Ockham, Milano, Vita e Pensiero, 1972, p. 70s.
64
Hans Meyer, op. cit., p. 305.
65
Cf. S. Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles, 1, II caps. 30 e 55.
16
Sob esse aspecto a filosofia de Guilherme de Ockham é uma filosofia muito franciscana. Com os
olhos fixos em S. Francisco de Assis que, por seus milagres, lhes parecia ser uma espécie de
encantador ou um Merlin da natureza, os franciscanos não se acomodavam com um mundo regido
por leis necessárias. Tal era, por exemplo, o caso de Wibert de Tournai, que observava que, num
mundo assim concebido, os astros deixariam de obedecer às ordens do Criador e que as orações
dos santos já não modificariam o curso dos acontecimentos70.
Não pudemos furtar-nos a citar esta longa passagem do grande estudioso da obra de
Ockham, a fim de salientar a continuidade do pensamento franciscano, bem como o de
seu objetivo comum, que outro não é senão o de viver e pensar à luz da Escritura,
segundo o desejo do Seráfico Pai.
66
II Sent., 22, D; cit. ap. Ghisalberti, op. cit., p. 181, nota 59.
67
Op. cit. p. 181s.
68
Cf. L. Baudry, Lexique philosophique de Guillaume d'Ockham. Paris: Lethielleux, 1957, p. 145.
69
L. Baudry, Le Tractatus de principiis theotogiae attribuè à G. d’Occam. Paris: Vrin, 1936, introduction, p.
37ss.
70
ld. ibid, p. 38s.
71
ld. ibid. p., 42s.