ISBN 85 08 052 23 5
Editoração eletrônica
Antonio U. Domiencio
1995
Este e-book em PDF:
Digitalização:
AdriAnA,
Ocerização, Revisão, formatação:
The flash
A GRANDE DESCOBERTA DE UM PEQUENO MUNDO
Plínio tem fama de não esquentar muito seu "courudo cabelouro",
uma expressão que ele mesmo criou. Mas quando ele nos conta, com muito
bom humor, sua verdadeira história, percebemos que não é bem assim.
Afinal, ele vai fazer 13 anos e tem sérios problemas para resolver.
Para começar, é baixinho e meio tímido com as garotas, o que o
impede de enfrentar o grandalhão André ou se aproximar de Camilla, que
ele acha a menina mais bonita da escola. Já seu irmão mais velho, Dênis,
vive fazendo com que ele se sinta minúsculo como uma caspa...
Divirta-se com as trapalhadas de Plínio e desembarque com ele na
terra dos Nyfs. Quem sabe você consiga ajudá-lo a desvendar um enigma
que pode mudar para sempre sua vida.
Leonilde Galasso nasceu e vive até hoje na cidade de São Paulo,
cenário deste seu primeiro texto para o público jovem. Lô, como é mais
conhecida, recorda-se que passou a infância e a adolescência acompanhada
de livros, os quais não tinha vontade de largar nunca, nem mesmo na hora
das refeições. Formada em Ciências Sociais, trocou o rigor de uma tese
acadêmica pela aventura de descrever a experiência vivida com o
nascimento de suas duas filhas. Surgiu assim um livro muito bem-
humorado: Ser mãe é sorrir em parafuso.
Além de escrever, Lô tem outras formas de registrar sua emoção
diante da vida: fazer esculturas e pintar.
SUMÁRIO
1.O IMPERADOR DO UNIVERSO
2. ANTES DE CASAR SARA
3. AGORA OU NUNCA
4. NO MELHOR CAMAROTE
5. "MANNF!"
6. CHEIRO DE ANIMAL ASSUSTADO
7. MICO-LEÃO-DOURADO
8. O TELEPERSON
9. OITOCENTAS GAROTAS
10. O TIRO SAIU PELA CULATRA
11. PELADO NA RUA
12. BELEZA DE COMPARAÇÃO
13. OLHOS COR DE TERRA CLARINHA
14. UM GELINHO POR DENTRO
15. UM SORRISO ESPECIAL
16. DUAS CESTAS DE TRÊS PONTOS
17. UM PERFUME INESQUECÍVEL
18. UM CONVIDADO PENETRA
19. TUDO POR UM BOLO
20. ROUBARAM MEU SHOW
21. NEM UMA DROGA DE UM ASSUNTOZINHO
22. DESIDRATAÇÃO AFETIVA
23. JAPONÊS TEM CADA UMA
24. IMAGEM INCOMPREENSÍVEL
25. MINIATURA DA MINIATURA
26. EM QUEDA LIVRE
27. A CAVERNA
28. RONCO GIRATÓRIO
29. ÓPERA LÍQUIDA
30. NEVE CAINDO AO CONTRÁRIO
31. OS NYFS
32. O SEGUNDO TESTE
33. NÃO SOU UM INSETO
34. RISO LÍQUIDO
35. TROCA DE PELE
36. AGENTE NYF
37. COISA COM COISA
38. OUTRAS PRIORIDADES
39. A PESSOA MAIS INTERESSANTE DO PLANETA
40. SOB O CÉU DA VARANDA
41. PAPA-MOSCAS NÃO É MAIS AQUELE
42. UMA PIZZA QUENTINHA
43. O PROBLEMA DOS TREZE
44. CONVERSA ENTRE IRMÃOS
45. LIVE AND LET LIVE
“O mundo começa, para o homem, por uma revolução da alma que
muitas vezes remonta a uma infância."
Gaston Bachelard
1 O IMPERADOR DO UNIVERSO
Não tenho a ilusão de que os meus problemas dos doze vão ser
resolvidos do dia para a noite, só porque vou fazer treze anos.
Que problemas?
Bem, você sabe... Conviver com um irmão mais velho chamado Dênis
já é um grande problema. Ele tem dezesseis anos e tudo dele é melhor, a
mesada dele é maior e ele pensa que é o Imperador do Universo e o dono
do telefone.
Para você ter uma ideia, ninguém pode entrar no quarto do Dênis e
eu muito menos, ele acha que eu vou escarafunchar as coisas sa-gra-das
que ele tem lá.
A única pessoa que ousa desrespeitar os decretos do Imperador do
Universo é minha mãe. Ela entra no quarto dele quando bem entende e
ainda por cima manda a faxineira limpar e arrumar tudo. E toda vez é a
mesma coisa: quando o Dênis chega da escola e vê aquela arrumação toda
(o quarto dele fica parecendo consultório de dentista, de tão limpo e
arrumado), começa a gritar feito louco: — Eu não quero mais essa faxineira
bagunçando a minha organização pessoal! Agora eu nunca mais vou achar
as minhas coisas! (O que ele chama de “organização pessoal” é meio
parecido com os destroços da Segunda Guerra.)
No ano passado, logo depois de uma dessas infrações cometidas pela
faxineira (com a cumplicidade, ou melhor, cumprindo ordens da minha
mãe), o Dênis pintou uma faixa, num pedaço de lençol velho, e pendurou-a
no corredor. Nela estava escrito:
Minha mãe deixou a faixa ficar lá por uns dois ou três dias, acho que
por respeito à liberdade de expressão. Depois arrancou-a e guardou-a no
armário, dizendo que se o Dênis quisesse poderia usá-la novamente, mas
teria que ser na Praça da Sé.
Ele não se deu por vencido: no dia seguinte, colou na porta do quarto
um baita cartaz, onde está escrito, com letras vermelhas:
é sinal de que ele está mais bem humorado e vai circular pela casa
sem reclamar de nada e, principalmente, sem me provocar. Fico mais
sossegado nesses dias: é como se ele tivesse assinado um tratado de paz
com o mundo.
Mas o aviso de que eu mais gosto é:
Uma estava pintando a unha do pé, a outra acho que estava passando
uns cremes na perna e a outra ficava andando para lá e para cá e todas
estavam só de calcinha e sutiã... — o Cabrum me falou um dia, com a cara
vermelha e os olhos esbugalhados por causa da descoberta sensacional.
Ele tinha visto umas vizinhas dele trocando de roupa com a janela
aberta. O quarto delas dava para a rua, e por uma dessas coincidências
maravilhosas, o nosso laboratório de experiências também.
Nós vivíamos fazendo experiências no laboratório, que ficava no
terraço do quarto dos pais de Cabrum, no andar de cima da casa. A gente
analisava água, suco de grama, xixi de gato, espuma de sabão, esquentava
pedregulhos para ver se derretiam, olhava insetos e pedaços de melancia
no microscópio, construía miniaturas de carrocinhas puxadas por moscas,
fazia esculturas com sucata, desmontava objetos, inventava e gravava
letras de música, todo esse tipo de coisa.
As nossas experiências quase sempre deram certo.
— Quero ver — eu disse.
— Não vai dar, eu só vi uma vez, acho que só acontece à noite. E a
mãe delas é amiga da minha, se ela descobrir estou frito o Cabrum estava
se fazendo de difícil.
É lógico que fiquei super curioso com a coisa, quem não ficaria super
curioso para ver três garotas sem roupa? Então continuei insistindo pra
caramba que também queria ver e ele ficou ensebando um tempão, até que
uma noite ele me ligou e disse: “É agora ou nunca”. Era a senha. Os pais
dele tinham saído e as três irmãs estavam em cena. Era agora ou nunca.
4 NO MELHOR CAMAROTE
Larguei o gibi que estava lendo, avisei meu pai que voltaria logo e saí
voando para a casa do Cabrum. Finalmente eu ia poder ver as famosas três
irmãs, já tinha até sonhado com elas de tão curioso que estava.
Enquanto corria, parecia que eu tinha três corações, o do peito e um
de cada lado do pescoço, todos batendo como um tambor. Eu nunca tinha
Ficado tão nervoso como naquele dia. Meus neurônios se encarregavam de
projetar as cenas com antecedência, enquanto corria imaginava as três
irmãs completamente nuas, fazendo poses em frente à janela do quarto.
Até que enfim vou ver as três irmãs! — era só o que eu conseguia pensar,
até chegar ao local do crime.
Brinquei com o Cabrum que pela primeira vez o nosso laboratório ia
se transformar num observatório, mas ele não estava a fim de brincadeira.
Estava pior do que eu, toda hora dava umas tossidinhas falsas, de puro
nervoso.
— Vamos ter que entrar no escuro. E ajoelhados. — Ele mandava, a
casa era dele. Se déssemos bandeira era ele quem ia entrar bem. Topei.
Quem não toparia qualquer coisa para poder ver as três irmãs sem roupa?
Meus joelhos doíam pra caramba, as frestinhas dos ladrilhos
cavavam sulcos na minha pele e ainda por cima tinha um monte de
pedrinhas minúsculas naquele piso. Me senti uma velhinha pagando
promessa.
— Como deve ser duro ser uma velhinha e andar quilômetros de
joelhos só para chegar perto de um santo e beijar os pés dele... — brinquei,
fazendo as maiores caretas de dor. Mas ele não queria nem saber de
brincadeira.
Fiquei uma fera quando cheguei perto da mureta do terraço, todo
aquele sofrimento só para dar de cara com aquela parede toda cinza de
chuva.
Reclamei com o Cabrum que não estava enxergando nada e comecei a
levantar um pouco para ver melhor.
— Você está louco?! Está querendo que elas te vejam? Ajoelha aí que
eu vou te contando! — ordenou o sacana, que é mais alto que eu e estava
enxergando tudo.
Pedi para ele pegar uns travesseiros ou umas listas telefônicas para
eu ajoelhar em cima.
— Não dá, os travesseiros vão sujar, as listas telefônicas estão na
cozinha, a empregada vai desconfiar, blá, blá, blá.
Fingi que tinha desistido e fiquei pensando em algum jeito de
resolver aquele problema de visibilidade. Ele foi me contando:
— Por enquanto só está dando para ver duas, a mais alta está
secando o cabelo, a outra está dançando na frente do espelho, ela é a mais
bonita de todas. Puxa, como ela dança, cara!... Mas hoje não está um bom
dia para ver. — Ele me olhou com ar de superioridade. Fiquei furioso e
disse que ia ao banheiro.
— Fazer o que no banheiro? — ele me gozou.
— Mijar.
— Ah.
— Você vai registrando tudo na memória para depois me contar.
— Tá — ele disse, compenetrado.
Fui para o quarto do Cabrum, tomando o maior cuidado para não
trombrar com os móveis naquela escuridão. Parecia que eu tinha ajoelhado
no milho, de tanto que os meus joelhos doíam.
Abri a janela lateral sem fazer barulho e, como eu imaginava, vi que
dali dava para alcançar o telhadinho que cobria o carro. É por aqui que eu
vou — e fui.
Pulei da janela para o telhadinho e fui pisando com cuidado. Quando
acabou o telhado, subi no muro lateral e me equilibrei até chegar perto da
árvore que tinha na frente da casa. Alcancei um galho forte, me agarrei ao
tronco e fui subindo devagar, procurando o melhor ângulo de visão.
Pronto. Lá estava eu no melhor camarote, bem de frente para o palco
envidraçado... onde deveriam estar as três irmãs.
Não acreditei nos meus olhos: não tinha mais irmã nenhuma naquele
quarto. Elas vão voltar, senão não teriam deixado a luz acesa... — apostei, e
ouvi um barulho estranho lá embaixo.
5 "MANNF!"
Já que “todo mundo” subia ali para ver as garotas, resolvi assumir
que fazia parte de “todo mundo” e olhei para a janela mágica, onde
finalmente pude ver as três irmãs... cheias de roupa.
A única coisa que o sacana do Cabrum não tinha me dito enquanto eu
ainda estava ajoelhado no terraço era que as três irmãs estavam
completamente vestidas!
Fiquei meio decepcionado, comparando as cenas que tinham girado
na minha imaginação um pouco antes, com a que eu via agora, trepado no
camarote ao lado do grandalhão. Mas de qualquer jeito era uma cena digna
de ser vista.
A mais nova devia ter uns catorze e a mais velha uns dezessete anos.
Todas eram lindas — pelo menos de onde eu estava —, e andavam para lá e
para cá dentro do quarto, escovando os cabelos, levantando os cabelos,
mudando de lado os cabelos, chacoalhando os cabelos. Era cabelo que não
acabava mais.
Espionar aquelas garotas lindas com seus cabelos flutuantes fazia
um calorzinho gostoso entrar por todas as veias do meu corpo.
Agora cai fora! — o grandalhão me cutucou.
— Juro que é a primeira vez...
— E a última. Desaparece! — mas qualquer coisa mudou na cara dele
de repente, ficou com um ar de cachorro perdigueiro perseguindo caça. —
Shhhh! Cala a boca que eu ouvi barulho aí embaixo — ele me tapou a boca
de novo. — Tem mais alguém com você?
— Mannf!
— Quem está aí? — o grandalhão perguntou com voz ameaçadora.
— Eu não sabia que você tinha que subir em árvore para mijar! —
disse o Cabrum parado no meio do tronco, resfolegando como uma anta na
linha de chegada dos duzentos metros rasos.
— Cfvum! — consegui dizer entre os dedos do grandalhão.
— Se subir apanha! — ameaçou o meu companheiro de galho falando
para o Cabrum.
Com a voz mais apavorada do mundo, o Cabrum soprou: — Plínio,
sujou! Tem mais gente aí embaixo.
— Que saco! — esbravejou o grandalhão. — Que que tá acontecendo
aqui? Todos os fedelhos do bairro resolveram trepar nessa árvore hoje!
— Ei, vocês aí em cima! — uma voz grossa, de adulto, fez a gente
tremer na base.
— Tô avisando, Plininho, sujou! O pai delas está aí embaixo! — disse
o Cabrum com um fiapo de voz esganiçada.
Assim que eu ouvi a palavra “pai”, não sei por que lembrei do cheiro
do meu pai quando ele sai do banheiro de manhã. Adoro o cheiro do meu
pai logo de manhã, quando ele sai do banheiro. É um cheiro de floresta, de
mato verde, de coragem, sei lá, e quando pensei isso lá em cima da árvore
percebi que o meu cheiro naquela hora era um cheiro amarelo, de animal
assustado. Eu fedia a rios de suor ácido e mal cheiroso. Ou então era o
grandalhão que fedia. Ou mais provavelmente nós dois.
Se não descerem daí já, vou chamar a polícia! — berrou de novo o
vozeirão lá embaixo.
— Mannftf!!... — eu disse. Aparentemente aquele grandalhão nunca
mais ia tirar a mão da minha boca, podia até imaginar a gente envelhecendo
juntos em cima daquela árvore, ele cada vez mais nervoso e eu dizendo
“mannf” já sem dentes na boca.
7 MICO-LEÃO-D0URAD0
Quando o Cabrum quer saber alguma coisa, não desiste nem que o
mundo acabe. Uns dias depois da inauguração do Teleperson, ele voltou à
carga:
— Você já se interessou por alguma garota?
Naquela hora, tive a certeza de que o meu melhor amigo não tinha
mesmo percebido que eu era tão inseguro com garotas quanto ele. Meio
contrariado, resolvi abrir o jogo:
— Detesto ter de confessar, mas o único que entende disso aqui em
casa é o Imperador.
— Você já beijou alguma garota?
Dei risada da pergunta e não respondi logo. Eu realmente não estava
a fim de falar sobre essas coisas. Mas o Cabrum é jogo duro.
Responde! Você já beijou alguma garota?
— Beijei uma. Quando eu tinha uns cinco anos e estava no jardim da
infância.
Nós dois caímos na risada. Mas era verdade, a única menina que eu
tinha beijado era a Carol, que estudou comigo no Jardim. Ela dizia que eu
era o namorado dela e isso significava que de vez em quando a gente tinha
que ficar de mãos dadas na hora do recreio. E uma vez ela me deu um beijo
na boca e eu fiquei rindo que nem bobo, me lembro até hoje.
— Estou preocupado com esse negócio — o Cabrum confessou,
pensativo. — Tem caras da nossa idade que já têm a maior experiência no
assunto. E eu nem sei se algum dia vou ter coragem de chegar numa garota
e dizer que estou a fim dela.
A droga do telefone tocou outra vez.
— Associação Protetora de Garotas Carentes — atendi irritado.
— De onde? — era uma garota. Que começou a rir.
— Não temos nenhum funcionário chamado Dênis — adiantei, para
encurtar o assunto. Durante um tempinho, só ouvi risadas do outro lado da
linha. Depois ela disse:
— Ahh... acho que foi engano.
— Essa nem encompridou o assunto — comentei com o Cabrum.
Acho que estou ficando mais convincente...
Continuamos um tempão falando de garotas, até que o telefone tocou
outra vez.
— Academia Cão Raivoso, às suas ordens.
— Oi! — outra garota...
— Oi! — fiquei esperando ela perguntar pelo Dênis. Como ela não
disse mais nada, continuei: — Você mora em apartamento e não tem
paciência para levar seu cachorro passear? Nós vamos até a sua casa e
fazemos isso por você. — Ouvi um monte de risadas do outro lado da linha.
Depois um silêncio. Então a garota começou a falar:
— Eu não tenho cachorro. Estou ligando da Associação de Proteção
aos Baixinhos. Gostaria de saber se você quer ficar sócio.
Fiquei desconcertado, não conseguia pensar em nada inteligente para
responder. A única coisa que girava na minha cabeça era que o Teleperson
tinha furado em algum lugar e logo descobri em que lugar: nos meus
planos, eu não tinha imaginado a possibilidade de levar um troco.
Depois de um tempo que me pareceu dois anos e meio, gaguejei uma
resposta:
— Não sou baixinho.
— Respeitamos a sua opinião, mas somos muito bem informadas.
— A resposta me atravessou o peito feito um punhal.
— Tenho um metro e sessenta e quatro. — Era quase verdade, eu só
tinha acrescentado uns doze centímetros à minha estatura verdadeira.
Enquanto respondia, ouvia uns cochichos do outro lado da linha e uma
porção de risadinhas, do tipo hi-hi-hi.
— Tem umas garotas me dando o troco — cochichei para o Cabrum,
tapando o fone com a mão. — O que eu faço?
— Te vira, malandro... A ideia foi tua.
— Elas estão morrendo de rir da minha cara, me dá alguma ideia! —
implorei.
— Fala que o teu telefone está grampeado, que é proibido passar
trote — sugeriu o Cabrum.
— Escuta aqui, meu telefone está grampeado, a tua voz está sendo
gravada, você pode ser presa por ficar fazendo hi-hi-hi no telefone.
Achei que me saí bem: a garota não conseguia mais parar de rir e
acabou desligando.
Mas o Teleperson tinha perdido a graça. O tiro tinha saído pela
culatra. Em vez de acabar com a tietagem daquele monte de garotas em
cima do Imperador, eu tinha arrumado era uma baita dor-de-cabeça: de
cada dez telefonemas que eu atendia uns seis eram para mim... E do outro
lado da linha, aquelas garotas fazendo hi-hi-hi em cima do meu complexo
de baixismo.
— Está duro encarar esse troco desabafei um dia com o Cabrum. —
Essas garotas estão sempre ligando. E devem chegar e contar tudo para o
Dênis depois...
— Quem mandou não patentear o Teleperson? — ele me deixou com
o pepino todo para descascar.
11 PELADO NA RUA
Comecei a me sentir acuado. Quando estava sozinho em casa,
deixava o telefone tocar umas vinte vezes e no fim só atendia porque ficava
preocupado, achando que era algum recado importante para os meus pais e
coisa e tal.
Cheguei a pensar em pedir para a companhia telefônica mudar o
nosso número, mas eles não vão mudando o número do telefone da gente
assim só porque um garoto telefona e pede para mudar o número, meu pai
precisaria ir lá ou escrever uma carta ou coisa parecida, e para isso eu teria
que contar para ele o que estava acontecendo e como tinha começado,
etcétera, e eu não ia ser louco de contar pro meu pai que tinha me metido
em mais uma encrenca.
Num daqueles dias, o Cabrum passou na minha casa e perguntou se
eu queria ir com ele até o supermercado.
Enquanto ele comprava as coisas dele, fui até a seção de papelaria,
estava com saudade de fazer umas pipas. Então umas garotas chegaram
perto de mim e perguntaram se eu estudava no Dante. No começo, achei
que elas estavam mesmo me confundindo com algum garoto que estudava
no Dante, mas o jeito delas era estranho, não paravam de cochichar e de
olhar umas para as outras e para mim, dando um monte de risadinhas.
Respondi com um “não” telegráfico e enfiei a cara na prateleira das
colas, torcendo para elas irem embora logo. Mas elas ficaram por ali,
olhando papéis de carta ou sei lá o que e cochichando o tempo todo.
As colas eram todas do mesmo tamanho e da mesma marca mas eu
fingi que não eram, só para ficar ali tentando ouvir o que elas diziam.
Cheguei a ensaiar um jeito de puxar papo, a mais baixinha era uma gatinha.
bem que eu poderia pedir o telefone dela e combinar um encontro e coisa e
tal. Fui ficando tão nervoso enquanto pensava em tudo isso que acabei
derrubando um monte de tubos de cola no chão.
Cheguei a abaixar para catar as colas, mas não aguentei as garotas
rindo da minha cara, me mandei dali o mais rápido que pude.
Por sorte o Cabrum já estava na fila do caixa.
— Umas garotas chegaram e me perguntaram se eu estudava no
Dante.
— E daí?
— Ficaram cochichando e rindo umas para as outras.
— Sei.
— Me senti ridículo, derrubei um monte de colas no chão.
— Sei.
— Me senti super ridículo.
— Sei.
— Para de falar “sei”! — estourei.
— Tá.
— Toda a vez está acontecendo isso...
— Ahn.
— Outro dia eu estava voltando para casa, tinha ido na quitanda do
seu Berto comprar umas coisas que a minha mãe pediu.
— Ahn.
— Então passaram duas meninas de bici e uma delas me olhou
comprido e tal. Continuei andando, e de vez em quando me virava, para ver
se ela olhava para mim de novo.
— Ahn.
— Eu estava com um saco de compras cheio até a boca — a minha
boca. E numa das vezes em que me virei para olhar a garota, meu pé ficou
numa droga de cerquinha de árvore, e eu e a sacola fomos. Me estatelei no
chão. Foi o maior vexame, voou hortifrutigranjovo para todo lado... Me
senti ridículo quando vi que elas tinham parado a bici e estavam rindo da
minha cara. E eu lá, agachado feito um idiota, catando as coisas que
rolaram pelo chão.
— Ahn.
— Pára de falar “ahn”! — estourei de novo.
— Para de me mandar parar de falar “ahn”! — ele estourou desta vez.
E depois tentou me animar.
— Seria igual se fossem dois caras, eles teriam rido do mesmo jeito...
— Sei, sei, já pensei nisso! Se fossem dois caras teriam rido do
mesmo jeito... E eu ficaria furioso do mesmo jeito. Eu detesto passar
ridículo. E quando faço alguma coisa ridícula perto de garotas, me sinto...
Me sinto como num sonho que tenho de vez em quando, que estou
voltando da escola a pé e todo mundo fica olhando estranho para mim e aí
descubro que estou completamente pelado...
— Já aconteceu comigo — disse o Cabrum.
— No sonho?
— Na realidade.
— Você saiu pelado na rua? — duvidei.
— Não, sua besta! Me senti pelado.
— Por causa de uma coisa assim?
— É, por causa de uma coisa assim, você fazer uma besteira qualquer
quando tem garotas por perto. Só que eu nunca tinha parado para pensar
nisso... — disse o Cabrum, com ar pensativo.
Inchei o peito e empinei o nariz: — Ainda bem que o mundo começa
a entender que eu sou um gênio. Cabrum, você vai ficar famoso como o
melhor amigo do Gênio do Século XXI... Até rimou.
Meu nariz caiu de lá de cima e meu peito desinchou num segundo: as
garotas estavam logo atrás de nós na fila do caixa.
— São elas!... — cochichei para o Cabrum. — Devem ter ouvido todo o
nosso papo! — eu estava roxo de vergonha.
— Eu já tinha visto, elas estão aí atrás faz um tempão, chegaram logo
depois de você.
— Por que você não me avisou, sua anta?
— Ora, como é que eu ia saber que eram elas?
— Vamos sumir daqui, esperteza ambulante, ainda bem que chegou a
nossa vez — despejei, louco da vida com o Cabrum.
Enquanto ele empacotava as compras, uma das garotas perguntou de
novo:
— Ei, tem certeza que não estuda no Dante? — fingi que não escutei e
ajudei o Cabrum a empacotar a coisarada que ele tinha comprado, queria
sumir logo dali.
12 BELEZA DE COMPARAÇÃO
Fiquei eufórico, no dia seguinte, quando minha mãe disse que não ia
poder me buscar. Ela tinha dentista ou coisa parecida. Aliás, eu vivia
falando para ela que eu podia ir e voltar de metrô, mas todo ano ela dizia:
“Só mais este ano, esta cidade está um perigo”.
Meu plano era perguntar para a Camilla se ela também ia pegar o
metrô, seria a minha chance de fazer amizade com ela, pedir o telefone
dela, essas coisas.
Mas o filho-da-mãe do André atrapalhou tudo. Ficou me alugando na
hora do intervalo, dizendo que aquilo não ia ficar assim, que queria a
carteira dele de volta e coisa e tal. E logo que terminou a última aula, ele
voltou à carga: o professor ainda nem tinha saído da classe e o André já
estava ao meu lado com o fura-bolos esticado no meu nariz.
— Se amanhã eu chegar aqui e encontrar você indevidamente
depositado na minha carteira, vou ter o maior prazer de te triturar na
saída... — quando acabou de cuspir o resto de seu estoque matinal de
perdigotos em cima de mim, o sacana se mandou com os outros
grandalhões amigos dele.
Fiquei engasgado. Minhas pernas tremiam, meus neurônios
borbulhavam de raiva. Nem vi quando a Camilla saiu da classe.
Coloquei a mochila nas costas e saí voando pelo corredor, disposto a
alcançar aquele grandalhão metido. Minhas mãos eram dois socos raivosos,
eu ia arrebentar todos os dentes dele.
Enquanto eu corria, aquele caroço de raiva que eu tinha na garganta
foi ficando cada vez maior. E acabou explodindo num choro incontrolável.
Parei, sentei na mureta do corredor e deixei o caroço se dissolver. Não
podia enfrentar uma briga chorando daquele jeito...
Naquela noite quase não dormi. Mesmo assim, levantei mais cedo
que de costume, minha mãe até estranhou quando entrou no quarto e viu
que eu já estava me vestindo. Minha cabeça estava cheia de planos
malucos, com algum deles eu ia acertar contas com o André antes, durante
ou depois das aulas.
— Mãe, não vem me buscar hoje de novo, tá bom? — pedi, quando ela
parou o carro em frente à escola.
— Por quê?
— Tenho um trabalho para fazer depois da aula.
— A que horas você vai voltar? — minha mãe está sempre
preocupada com “a que horas”.
— Depois volto de metrô, não vou demorar. — Eu não queria mentir
para ela, mas não tinha outro jeito, ela ficaria apavorada se eu chegasse e
dissesse que ia brigar com um grandalhão na saída e coisa e tal.
Quando cheguei ao corredor do segundo andar, decidi que ia resolver
tudo naquela hora mesmo, antes de começar a primeira aula. Parei na porta
da classe, com a respiração ofegante e um soco armado em cada mão. O
André ainda não tinha chegado.
Fiquei parado por uns segundos, pensando se devia entrar ou esperar
por ele ali mesmo, no corredor. E vi que a Camilla me olhava séria. Talvez
ela tivesse visto o André me ameaçar no dia anterior, talvez só estivesse
achando estranho eu parado lá na porta, nervoso pra burro.
Então ela sorriu de um jeito que eu achei diferente, carinhoso, sei
lá... E começou a apontar para a carteira atrás dela, me convidando para
sentar lá outra vez.
Um sangue prateado percorreu o meu corpo. Aquele sorriso era o
presente mais especial que eu já tinha recebido na vida. Era como se dentro
dele estivessem todas as coisas bonitas que existiam no mundo inteiro.
Fui entrando na classe, meus olhos bicando a quina de uma carteira,
a ponta de um sapato, um toco de giz jogado no chão. Os músculos do meu
rosto se relaxavam, os dois blocos de gelo que eu tinha nas mãos derretiam
sob os olhos dela, que eu sentia mesmo sem ver. Segurei minhas mãos,
para não irem direto acariciar o rosto dela. E disse um “oi" que saiu
engasgado.
A professora já tinha entrado quando consegui cochichar um
travessão, três palavras e três pontinhos perto do ouvido dela: — 'brigado
pelo sorriso...
16 DUAS CESTAS DE TRES PONTOS
Dei um giro pela sala, injuriado com a chantagem que tinha engolido.
Fui até a cozinha ligar para a casa do Cabrum. Que tremendo cano,
hein, amigão? — voltei para a sala, tentando imaginar o que teria
acontecido com o meu amigo. Ele era o único que ainda não tinha chegado.
Apesar do tremendo som que o Imperador tinha montado, a festa
estava meio besta, só algumas meninas estavam dançando. Bem que eu
achava que esse negócio de danceteria no meu aniversário não ia dar certo:
eu e os meus amigos íamos ficar o tempo todo com as mãos no bolso, um
pé criando raiz no chão e o outro encostado na parede.
Naquele dia, o Dênis tinha prometido que não iria me incomodar na
frente dos meus convidados, só que eu esqueci de negociar com ele o que
significava “não me incomodar na frente dos meus convidados”, e por
causa dessa falha que havia no contrato, ele estava me incomodando:
estava dando uma de gostosão para cima das minhas amigas.
Não aguentei aquilo e fui chiar para a minha mãe:
— O Dênis está se exibindo todo lá na sala... Na minha festa.
Recebi uma resposta gelada como o ar que saía da geladeira, na qual
minha mãe colocava refrigerantes: — Larga de ser chorão, Plininho! Ele só
está ajudando a receber os seus convidados. Você deveria agradecer, em
vez de ficar com esses ciúmes bobos.
Já disse que adoro minha mãe e tal, mas detesto quando ela nem
considera a hipótese de eu estar certo. Detesto quando vou me queixar de
alguma coisa com ela e ela acaba me deixando sair do mesmo jeito que
entrei, com o pepino inteiro para descascar. E fiquei mais chateado ainda
porque ela não estava com cara de aniversário. Nem meu pai. Eles pareciam
preocupados.
— Aconteceu alguma coisa?
— Vá curtir a sua festa, está tudo bem. — O sorriso da minha mãe
não me convenceu.
Voltei para a sala. De um lado, um bando de garotas jogava o maior
charme para cima do Imperador; do outro lado, o André chovia suas
babaquices sobre a cabeça de uns cinco garotos mais baixos do que ele. A
Camilla e a Pat tinham parado de dançar e estavam sentando, ia sobrar uma
cadeira vazia perto delas.
É a minha chance! — respirei fundo duas vezes e fui até onde elas
estavam.
21 NEM UMA DROGA DE UM ASSUNTOZINHO
Era muito para a minha cabeça. Fiquei ali sentado feito um idiota,
pensando em lançar um movimento de protesto contra os grandalhões. Se
chamaria “Baixinhos Unidos contra Grandalhões Metidos”. Eu poria um
anúncio no mural da escola anunciando o movimento, e tinha certeza de
que em pouco tempo uma legião de baixinhos estaria ao meu lado, disposta
a lutar contra as humilhações que alguns grandalhões nos faziam passar. E
se dependesse do meu voto, o André seria eleito o nosso inimigo número
um.
A Pat interrompeu meu raciocínio, metralhando perguntas sobre o
casamento do Dênis. Percebi que não ia aguentar aquele papo e disparei: —
É tudo mentira. Quem tem vinte e dois anos sou eu, ele tem só doze, nós
dois temos um problema grave de hormônios... Ele vai continuar crescendo
até ficar velho e eu vou diminuir até virar um... homúnculo e saí, deixando
a Pat de boca aberta.
Fui até o quintal refrescar a cabeça. Definitivamente, eu não estava
nos meus melhores dias. O Imperador estava roubando o meu show; o
Cabrum não chegava para me dar uma força; meus planos para
impressionar a Camilla tinham furado logo no começo e, ainda por cima, o
André estava interessado nela.
Imaginei uma forma de me vingar. Podia pegar a cadeira da cozinha e
quebrá-la na cabeça dele e depois arrastá-lo até o formigueiro que havia na
calçada. Provavelmente seria aplaudido por todos os meus amigos. Mas
também podia ser vaiado. Afinal, tinha gente ali que parecia gostar daquele
imbecil. A Camilla... por exemplo.
Fiquei olhando meus primos pequenos jogando bola e nem respondi
quando eles insistiram para eu entrar no “time”. Minha língua estava seca
dentro da boca, minha saliva tinha acabado. O gosto daquela noite estava
insuportável.
Passei a mão num copo que estava no parapeito da janela da cozinha
e despejei o líquido todo goela abaixo. Aquilo tinha um gosto de poeira ou
coisa parecida. O dono deste copo que me desculpe, estou com
desidratação afetiva.
Ia voltando para a sala, disposto a tomar alguma atitude (ainda não
sabia qual), quando vi o André e a Camilla indo para a varanda, de mãos
dadas. Uma espécie de sangue amargo começou a me tingir por dentro.
Aquele chantagista safado! E aquela... fingida... iam ficar juntos até o fim da
festa, iam namorar na escola, trocar beijinhos na saída. Eu tinha dançado.
23 JAPONÊS TEM CADA UMA...
Pena que eu não sou grande desse jeito... — murchei, quando meus
pensamentos voltaram da lua cheia. Então a lente se fechou e se abriu
novamente, dissolvendo a imagem do meu poderoso nariz.
— Devo ter apertado um dos botões sem perceber — murmurei,
observando um pontinho claro que se movimentava por trás da lente.
Apertei bem os olhos para ver o que era aquilo. (Sei que você está
pensando o que adianta ter uma superlupa se a gente precisa apertar bem
os olhos para poder enxergar o que está do outro lado da lente. Também
pensei isso na hora, e fiquei tão irritado que tive vontade de estraçalhar
aquela droga de lupa contra a parede. Mas não fiz nada disso, aquele
pontinho móvel estava me matando de curiosidade.)
— Parece uma miniatura de miniatura de carrinho... — e os olhos da
memória me levaram de volta para o carrinho que ganhei de Natal quando
era pequeno. Eu podia entrar dentro dele, me sentia o máximo pilotando
um carro “de verdade”. Eu pedalava feito um doido por todo o quintal, o
motor era na minha garganta.
Por muito tempo não deixei minha mãe dar aquele carrinho para
ninguém. E uma das maiores tristezas da minha vida foi quando minhas
pernas não couberam mais dentro dele. Mesmo assim, eu tinha o maior
gosto de lavá-lo com a mangueira e depois enxugá-lo com um pano até ele
ficar brilhando, como meu pai fazia com o carro dele. Só deixei minha mãe
dar o carrinho quando já tinha uns dez anos, e mesmo assim senti pra
caramba.
Os olhos da minha memória se apagaram quando vi que o carrinho
que eu olhava através da lente disparou pelos trilhos do tecido da minha
jaqueta. Comecei a apertar os botões da lupa, como se estivesse com um
controle remoto de autorama na mão.
Foi me dando um desespero... Por mais que eu tentasse, não
conseguia brecar ou desviar o carrinho, não tinha uma droga de um desvio
no meio daquele monte de trilhos. Abri a mão em concha, pensando em
ampará-lo quando ele despencasse do ombro da minha jaqueta.
Mas uma espécie de voz esganiçada desviou a minha atenção:
“Fungo... inseto... asas... pelos...” — vindas não sei de onde, aquelas
palavras estranhas entravam pelos meus ouvidos, quando de repente tudo
escureceu.
26 EM QUEDA LIVRE
Comecei a gritar quando senti que estava em queda livre, meu corpo
se batendo contra as paredes de um lugar pequeno demais para o meu
tamanho.
Como um relâmpago, revi as cenas de um sonho que eu tinha com
frequência, eu caindo de um lugar altíssimo, gelado de medo, antecipando
o momento em que me arrebentaria sem defesa contra o chão. Naqueles
sonhos eu sempre tinha uma sorte danada, ou acordava durante a queda,
ou alguma força salvadora me fazia reaparecer de pé num lugar estável.
Como naqueles sonhos, desta vez também tive sorte: depois de um
baque surdo contra uma superfície macia, tudo ficou parado e quieto,
principalmente eu.
Olhei à minha volta. Pelo pouco que podia enxergar naquele lugar
escuro, vi que eu tinha capotado com um carrinho de corrida que nem
sabia de quem era, e agora estava sentado sobre o que restara dele.
Senti o maior alívio quando apalpei meu corpo. Apesar daquele
acidente maluco, nada me doía, eu podia me mexer livremente. Mas meu
entusiasmo só durou até eu notar que estava pelado.
27 A CAVERNA
Olhei desanimado para aquela casa de botão, que era umas vinte
vezes maior do que eu. O que eu faço agora? — me aninhei numa dobra do
pano, exausto.
Foi só eu fechar os olhos e um ronco giratório começou a cavar
aquele silêncio de pedra. Eu conhecia bem aquele som e sabia que só uma
coisa acabaria com ele: comida. Mas como iria achar alguma coisa
comestível em cima de uma jaqueta?
Levantei, cruzei as mãos atrás da cintura e comecei a andar em
círculos, como lembrava que o Tio Patinhas fazia quando precisava tomar
uma decisão importante.
Em vez de produzirem uma solução para a minha fome, meus
neurônios ficaram fabricando imagens coloridas e super-reais de tortas de
frango fumegantes, bolos de chocolate com cobertura reluzente, fatias de
carne assada cheias de molhinho por cima... iguais àquela que comi no
escuro, na casa da tia Maria.
Era aniversário de alguém. No meio do jantar, a luz acabou e eu
tentei espetar com meu garfo a última fatia de carne assada que tinha
sobrado no prato, e que ninguém tinha tido coragem de pegar. Acabei
espetando a mão do meu primo, que tinha tido a mesma ideia que eu. Ele
gritou “ai” e recolheu a mão e não respondeu nada quando todo mundo
quis saber por que ele tinha gritado “ai”.
Quando meus tios acenderam as velas, aquela fatia de carne cheia de
molhinho já estava bem guardada na minha barriga. Meu primo me fuzilou
com os olhos e me deu um chute por baixo da mesa, quando viu que a
carne tinha sumido.
Lembrar daquelas cenas me fez pensar na minha família.
Com certeza nenhum deles poderia imaginar que eu tinha virado um
homúnculo e estava sozinho no deserto da minha jaqueta... Naquela altura,
talvez já tivessem entrado no meu quarto e estavam pensando que pulei a
janela, que fugi de casa...
Eu via o rosto dos três bem na minha frente: a cara do Dênis era meio
indecifrável, eu não sabia se ele estava triste por causa do meu
desaparecimento ou contente por saber que agora seria filho único; minha
mãe parecia ter envelhecido uns dez anos e dava entrevista para uma
repórter que falava em sequestro e resgate e tal e coisa, e não conseguia
falar quase nada, só chorava feito uma criancinha; meu pai também
chorava e não conseguia falar nada, só balançava a cabeça para os lados.
Devia estar inconformado por eu ter me metido em mais uma encrenca.
As imagens eram tão nítidas que me apertaram o peito. Será que vou
conseguir sair dessa encrenca? — uma dor quente foi se afundando para
dentro de mim, até virar um choro quieto e doído: eu não queria meu choro
ecoando naquele silêncio, ia me sentir mais infeliz ainda.
Pensei na minha mãe desmanchando meus cabelos no travesseiro
todas as noites, eu sempre sabendo o que ela ia dizer em seguida: “Chega
por hoje, corujão...” Pensei nas histórias que meu pai contava, quando ele
era criança. Da raiva que ele tinha de ser obrigado a comer sopa de verdura
toda noite: meu avô plantava a verdura e o dinheiro não dava para outros
tipos de comida. Vai ver que ele se mata de trabalhar para não ter que
obrigar a gente a comer sopa de verdura toda noite...
Lembrei dos papos com o Dênis nos dias de “Tá limpo”. E a imagem
dele dentro da pele das minhas lágrimas fez brotar, de algum lugar no
fundo de mim mesmo, uma certeza inesperada de que ele também gostava
de mim como eu gostava dele. Se não fosse assim, não teriam existido
aqueles papos de igual para igual, não teriam existido as partidas de truco
nos dias de “Tá limpo”.
Então fiquei pensando que eu nunca tinha tentado furar a bolha
transparente onde ele se guardava, nunca tinha chegado direto nele e
falado “mano, eu adoro você, acho você o máximo... Era só você me
respeitar e parar de me chamar de Caspa...”.
Se eu conseguisse voltar ao meu tamanho normal, ia me sentir
dinossáurico. E ia consertar umas coisas na minha vida.
E daí que eu sou baixinho?! — gritei, dando um chute no ar, querendo
que o meu velho complexo se estilhaçasse contra as paredes daquele
silêncio.
Se a Camilla não gostasse um pouco de mim, não teria insistido para
eu sentar atrás dela. Não teria sorrido daquele jeito, não teria me olhado
macio como pó de terra clarinha... Ou teria?
Isso veremos — enxuguei as lágrimas no dorso da mão e parei com
aquela coisa idiota de andar em círculos.
— EU QUERO COMEEERU... — gritei, com todo o meu estoque de voz.
29 ÓPERA LÍQUIDA
Não tinha andado dez passos, quando meus cabelos pararam de voar
e tudo ficou quieto novamente. Aquele vento misterioso e gelado
desaparecera.
Então uma música imponente, de orquestra, inundou aquele silêncio,
me deixando todo arrepiado.
Atravessei correndo a pequena distância que me separava da casa de
botão: era de lá que vinha... Assim falou Zaratustra, do Strauss! — lembrei.
Era a primeira faixa do Time Warp, um CD que eu adorava.
Quando apoiei o corpo na borda lateral da fenda, minha mão tocou
em algo que parecia a ponta de uma corda. Dei uns puxões fortes nela, era
firme o suficiente para aguentar o peso do meu corpo.
Fui subindo pela corda com a maior facilidade. A vida inteira tinha
subido em lugares altos, às vezes só pelo prazer de subir e olhar as coisas
de um jeito diferente, outras vezes para pegar balão, desenroscar pipa.
resgatar bolas em cima do telhado, essas coisas. E aquela vez, para ver as
três irmãs.
Queria ver um grandalhão subir aqui com a mesma rapidez que
subi... — cheguei no alto da corda me sentindo o má-xi-mo.
Quase caí duro quando enfiei a cabeça para dentro da fenda: uma
formiga enorme agitava as patas no ar. Estava deitada de costas, o corpo
preso contra o tecido da minha jaqueta por uma corda clara e brilhante.
Em volta dela estavam umas cinquenta bolotas pardas, todas com a
mesma cara. Pareciam muito concentradas, falando pelos cotovelos e
cuspindo uns farelusquinhos pardos que iam subindo no ar uns ao lado dos
outros, como se fossem neve caindo ao contrário.
Não é à toa que minha jaqueta vive forrada de farelos... — pensei. E
estremeci: tinha acabado de descobrir de onde conhecia aquelas caras
todas iguais, aqueles olhos redondinhos: — São as caspas que eu vi com a
minha lupa!
31 OS NYFS
— Por que você foi atrás de mim? — perguntei para o Dênis, quando
estávamos voltando.
— Porque achei estranho você ter passado mal daquele jeito e depois
sair correndo feito um doido atrás do grandão...
— Eu precisava acertar umas contas com ele.
— E por que você não me chamou?
Achei gozada a pergunta. Do jeito que ele falou, parecia que nós
éramos dois irmãos inseparáveis, que ele estava sempre me ajudando e me
salvando de confusões e coisa e tal.
— Era assunto meu — resumi.
— Você foi um louco, aquele grandão podia ter acabado com você! —
ele parecia preocupado de verdade.
— O Perdigoto já estava acabando comigo — expliquei. — Vivia me
humilhando, me chantageando...
— Por que você não disse antes?
— Ora, Dênis! Você nunca me deu a mínima!... Fora aqueles dias de
“Tá limpo”, você sempre me ignorou!
— Eu fui lá te ajudar com o grandão... não fui? — ele engoliu grosso.
— É, você foi lá... Foi muito legal você ter ido lá e coisa e tal. Mas
você passou a vida inteira me espezinhando, me proibindo de entrar no teu
quarto, atirando tocos de giz na minha orelha...
— Era tudo brincadeira — ele tentou se safar —, pensei que você
achasse engraçado...
— Ninguém acha engraçado ser espezinhado o tempo todo pelo
próprio irmão... — o caroço na minha garganta estava querendo crescer.
— Eu não sabia que você levava a sério...
— Você não sabe nada de mim, porque nunca se interessou em saber.
Só se interessou em ficar o tempo todo me diminuindo. Como se fosse um
Agente Nyf! — o caroço explodiu.
— Plininho, você não está legal...
— Não foi nada fácil ficar lá, minúsculo, pelado, correndo o risco de
virar um Nyf...
— Lá, onde?
— No ombro da minha jaqueta, ora!
— Plininho, você bebeu?!
Quando ele falou aquilo, lembrei do copo que estava no parapeito da
janela da cozinha, do líquido com gosto de água de chuva que virei goela
abaixo, antes de tudo acontecer.
— Só bebi um troço que estava num copo, na janela da cozinha. Não
sei o que era aquilo...
Precisamos descobrir, urgente. Você não está falando coisa com
coisa.
— Estou falando coisa com coisa, sim! — garanti, olhando firme nos
olhos dele. — Só que é tudo muito complicado para eu te explicar agora. Já
disse que depois te conto tudo com calma.
— Acho bom. Eu fiquei apavorado com aquela coisa de você se
trancar no quarto, no meio da tua festa de aniversário. Achei que tinha te
acontecido alguma coisa grave. Eu ia arrombar a porta, quando você
respondeu.
Lembrei daquilo que eu tinha pensado durante a minha viagem
maluca. Daquela certeza que me deu de repente, de que o Dênis gostava de
mim como eu gostava dele. Daquele jeitão dele, mas gostava.
— Mano, eu... — dei um abraço forte nele. — Eu adoro você, sempre
te achei o máximo... Obrigado por ter ido me dar uma força.
— Foi de irmão para irmão... — ele também estava emocionado.
Quando começamos a andar novamente, me passou pela cabeça que
aquela noite, que tinha começado pelo avesso, estava ficando perfeita. Eu
tinha conseguido me livrar dos Nyfs. Meu amor-próprio estava novinho em
folha depois da briga com o Agente Andryf. O gesto de solidariedade do
Dênis, o papo que acabávamos de ter. pareciam abrir caminho para muitos
dias de “Tá limpo”, ou talvez, para um “Tá limpo” definitivo. E aquela
viagem maluca até que tinha sido divertida...
— Hoje é meu aniversário e a vida é maravilhosa! — gritei, e só não
saí correndo e saltando os sacos de lixo que estavam na calçada porque a
perna me doía.
38 OUTRAS PRIORIDADES
— Por que você brigou com o André? — a Camilla quis saber, quando
a convidei para dançar. Eu já estava me sentindo melhor, tinha tomado um
banho quente e trocado de roupa.
— Eu precisava acertar umas contas com ele.
Por minha causa? — ela disfarçou uma ponta de vaidade por trás do
olhar de preocupação.
Por minha causa. Por auto-respeito — afirmei.
Como assim? — ela me olhou surpresa.
— Porque ele se achava o bonzão, estava sempre me humilhando e
me chantageando. E cuspindo Nyfs em cima de mim... Hoje mesmo, ele me
chantageou para poder participar da festa. Ameaçou contar para todo
mundo uma coisa chata que me aconteceu e que só ele sabia. Engoli a
chantagem, com medo que você... que o pessoal da escola fosse rir de mim.
Agora não tenho mais medo disso. Já sei rir das minhas próprias
trapalhadas.
— E por que você sumiu no começo da festa?
— Eu me senti mal e acabei adormecendo — resumi. Em outra
situação, até contaria para ela tudo o que me aconteceu. Mas naquela hora
eu tinha outras prioridades: me concentrar para não pisar nos pés dela,
descobrir o que ela sentia por mim de verdade. E sentir minhas mãos
tocando o corpo dela pela primeira vez.
— Plínio, aquela pergunta que você me fez antes de eu ir dançar com
o André... Você descobriu sobre os telefonemas, não descobriu?
— Sobre os telefonemas? — repeti, tentando pensar rápido.
— Sobre a Associação de Proteção aos Baixinhos... — ela começou a
rir.
— Era você?!...
— Era... quer dizer, não... Deixa eu te explicar... Eu liguei uma vez,
sem saber de nada, liguei só para bater papo. A Pat estava comigo,
estávamos estudando juntas. Então falamos sobre você, eu falei sobre
você... — ela ficou vermelha. — Ela disse que tinha o seu telefone, que
vocês já tinham feito grupo juntos... Então ela me convenceu a ligar para
você, falou que você era supertímido. Eu também sou supertímida, por
telefone seria mais fácil ... Então você atendeu daquele jeito engraçado e eu
comecei a rir e passei o telefone para ela.
Eu estava adorando ouvir tudo aquilo. Foi aquela vez em que
estranhei por que não perguntaram pelo Dênis... — Estou lembrando.
Depois vocês ligaram de novo, falando que era da Associação de Proteção
aos Baixinhos.
— É. Foi ideia da Pat, ela é mais corajosa. Foi ela quem ligou nas
outras vezes. Eu ficava ouvindo pela extensão, morrendo de rir das coisas
que vocês falavam.
Eu vibrava por dentro. Estava começando a ter algumas respostas
para as minhas dúvidas.
39 A PESSOA MAIS INTERESSANTE DO PLANETA
Já faz seis meses que minha agenda tem estado lotada. Todos os dias
eu chego da escola, almoço e vou levar meus clientes para passear. Não
cobro caro, eu adoro cachorros.
Tive essa ideia logo depois que o meu pai ficou desempregado. Fiz
uns folhetos de propaganda e distribuí no bairro, me oferecendo para levar
cachorros para passear.
Uma velhinha ligou, me contratando. Ela mora sozinha e tem três
cachorros. Logo outras pessoas do bairro ficaram sabendo da coisa e me
contrataram também.
A procura foi tão grande, que o Cabrum e os garotos que vendiam
mentex no farol também entraram no negócio.
Meu pai e minha mãe agora estão bem. Eles ficaram deprimidos por
um tempo, os dois mandando currículos para tudo quanto era lado sem
conseguir resposta. Eu e o Dênis estávamos superpreocupados.
Uma tarde, entramos na sala e flagramos nossos pais virando uma
cambalhota no tapete da sala. Primeiro ficamos assustados, achando que
eles tinham pirado. Depois vimos que estavam animados, rindo e fazendo
planos. Tinham decidido vender o carro e um terreno, juntar com o
dinheiro do fundo de garantia e abrir uma lavanderia. Mas não de fraldas
descartáveis.
Quanto ao meu relacionamento com o Dênis, não vou dizer que ficou
perfeito. Nos últimos meses a placa que mais tem aparecido no cartaz é
“Live and Let Live”. Intercalada de muitos “Tá limpo”. Acho que está bom
demais. O importante é que a gente agora se respeita. Depois que contei
para ele sobre a viagem que fiz pelo ombro da minha jaqueta, ele só me
chama de mentiroso de vez em quando.
FIM