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CINEMA E TEATRO COMO

EXPERIÊNCIAS INOVADORAS E
FORMATIVAS NA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

Reitor
José Jackson Coelho Sampaio

Vice-Reitor
Hidelbrando dos Santos Soares

Editora da UECE
Erasmo Miessa Ruiz

Conselho Editorial
Antônio Luciano Pontes
Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
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Francisco Horácio da Silva Frota
Francisco Josênio Camelo Parente
Gisafran Nazareno Mota Jucá
José Ferreira Nunes
Liduina Farias Almeida da Costa
Lucili Grangeiro Cortez
Luiz Cruz Lima
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Maria do Socorro Silva Aragão (UFC)
Maria Lírida Callou de Araújo e Mendonça (UNIFOR)
Pierre Salama (Universidade de Paris VIII)
Romeu Gomes (FIOCRUZ)
Túlio Batista Franco (UFF)
ORGANIZADORES (AS)
José Alex Soares Santos
Antonio Valricélio Linhares da Silva
Francisca Geny Lustosa

CINEMA E TEATRO COMO


EXPERIÊNCIAS INOVADORAS E
FORMATIVAS NA EDUCAÇÃO
CINEMA E TEATRO COMO EXPERIÊNCIAS INOVADORAS
E FORMATIVAS NA EDUCAÇÃO

© 2012 Copyright by José Alex Soares Santos, Antonio Valricélio Linhares da Silva e Francisca
Geny Lustosa

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECE


Av. Paranjana, 1700 – Campus do Itaperi – Reitoria – Fortaleza – Ceará
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Editora filiada à

Coordenação Editorial
Erasmo Miessa Ruiz
Diagramação
Francisco José (Taliba)
Capa
Antonio Valricélio Linhares da Silva
Revisão de Texto
Prof. Vianney Mesquita Reg. n. CE00489JP

Ficha Catalográfica
Bibliotecária: Joyanne de Souza Medeiros - CRB 15/533
C574
Cinema e teatro como experiências inovadoras e formativas na educação / Organizadores José Alex
Soares Santos, Antonio Valricélio Linhares da Silva, Francisca Geny Lustosa. – Fortaleza:
EdUECE, 2012.
164 p.
ISBN: 978-85-7826-139-9
Inclui bibliografia. Conta com a participação de vários autores.

1. Cinema. 2. Teatro. 3. Práxis. 4. Formação estética. Arte-educação. 5. Inclusão cultural. I. San-


tos, José Alex Soares. II. Silva, Antonio Valricélio Linhares da. III. Lustosa, Francisca Geny. IV. Título.

CDU: 791.5
JOSÉ ALEX SOARES SANTOS
ANTONIO VALRICÉLIO LINHARES DA SILVA
FRANCISCA GENY LUSTOSA
ORGANIZADORES

CINEMA E TEATRO COMO


EXPERIÊNCIAS INOVADORAS E
FORMATIVAS NA EDUCAÇÃO

ANA CRISTINA DE MORAES


ANTONIO VALRICÉLIO LINHARES DA SILVA
CARLOS BONFIM
DAVID SILVA DE OLIVEIRA
EPITÁCIO MACÁRIO
FERNANDO BOMFIM MARIANA
FRANCISCA CARLA MATIAS DE SOUSA
FRANCISCA GENY LUSTOSA
GIOVANNI ALVES
HELENA DABUL THOMAZ DE ALMEIDA
JOSÉ ALEX SOARES SANTOS
JOSÉLIA APARECIDA GUILHERME
KÁTIA MACEDO DUARTE
LOURIVAL ANDRADE JÚNIOR
MARIA DO SOCORRO CAMELO MACIEL
ROGÉRIO DE ARAÚJO LIMA
TACIANE LIMA DA SILVA
SOBRE OS (AS) AUTORES (AS)

Ana Cristina de Moraes


Professora Assistente da FACEDI/UECE. Mestra em Educação Brasileira pela
UFC. Especialista em Metodologia do Ensino de Artes (UECE). Coordena-
dora da atividade: Saltimbancos – arte-educação por meio do teatro, no Pro-
jeto Novos Talentos (FACEDI/DEB/CAPES).
Correio eletrônico: anakrismoraes@hotmail.com
Antonio Valricélio Linhares da Silva
Professor Substituto na FACEDI/UECE. Mestre em Educação Brasileira pela
UFC. Coordenador do subprojeto: Cinema na Escola – formando novos ta-
lentos para a cidadania, no Projeto Novos Talentos (FACEDI/DEB/CAPES).
Correio eletrônico: valricelio2@yahoo.com.br
Carlos Bonfim
Professor Assistente da FACEDI/UECE. Mestre em Educação Brasileira pela
UFC. Coordenador do curso de Licenciatura em Pedagogia, FACEDI/UECE.
Correio eletrônico: bonfim.curralvelho@gmail.com
David Silva de Oliveira
Estudante do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará –
UFC.
Correio eletrônico: david_humus@yahoo.com.br
Epitácio Macário
Professor Adjunto de Economia Política da UECE. Doutor em Educação
Brasileira pela UFC. Coordenador do Centro de Estudos do Trabalho e
Ontologia do Ser Social – CETROS.
Correio eletrônico: e_macarius@yahoo.com.br
Fernando Bonfim Mariana
Professor Adjunto do Departamento de Educação do Centro de Ensino
Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(DEDUC-CERES/UFRN). Doutor em Educação pela USP. Coordenador
do Laboratório Internacional de Movimentos Sociais e Educação Popular
(LAMPEAR).
Correio eletrônico: lampear.ufrn@gmail.com
Francisca Carla Matias de Sousa
Estudante do Curso de Pedagogia da FACEDI/UECE. Colaboradora da ati-
vidade Saltimbancos – arte-educação por meio do teatro, no Projeto Novos
Talentos (FACEDI/DEB/CAPES).
Correio eletrônico: carllamatias21@hotmail.com
Francisca Geny Lustosa
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN/CERES). Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação
da Universidade Federal do Ceará (UFC); coordenadora do Programa de
Extensão UFRN/CERES Pró-Inclusão: Direitos Sociais e Educacionais de
Pessoas com Deficiência; coordenadora do Núcleo Pró-Inclusão: Pesquisas
e Estudos sobre Educação Inclusiva e Formação de Professores/UFRN-CERES
(Iniciativas financiadas com recursos MEC/SESU PROEXT 2011 - Edital n° 04).
Correio eletrônico: franciscageny@yahoo.com.br
Giovanni Alves
Professor Livre-Docente de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências
da UNESP, pesquisador-bolsista do CNPq. Doutor em Ciências Sociais pela
UNICAMP, publicou, entre outras obras, O Novo e Precário Mundo do Traba-
lho (Editora Boitempo, 2000, 304 p), Trabalho e Cinema – Vol. 1/2/3 (Editora
Praxis, 2006/2008/2010) e Trabalho e Subjetividade – O espírito do toyotis-
mo na era do capitalismo manipulatório (Editora Boitempo, 2011). É coor-
denador do Projeto Tela Crítica – Cinema como Experiência Crítica (www.
telacritica.org).
Correio eletrônico: giovanni.alves@uol.com.br
Helena Dabul Thomaz de Almeida
Estudante do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará –
UFC.
Correio eletrônico: lua.lena@hotmail.com
José Alex Soares Santos
Professor Assistente da FACEDI/UECE. Mestre em Educação Brasileira pela
UFC. Coordenador Institucional do Projeto Novos Talentos (FACEDI/DEB/
CAPES). Coordenador do Projeto Cine Itinerante: leitura do mundo por
meio do cinema, vinculado ao Laboratório Universitário de Educação Popu-
lar, Trabalho e Movimentos Sociais – LUTEMOS.
Correio eletrônico: jalexsantos@yahoo.com.br
Josélia Aparecida Guilherme
Estudante do Curso de Pedagogia da FACEDI/UECE. Colaboradora da ati-
vidade Saltimbancos – arte-educação por meio do teatro, no Projeto Novos
Talentos (FACEDI/DEB/CAPES).
Correio eletrônico: joseliasp@ig.com.br
Kátia Macedo Duarte
Professora substituta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN/Ceres).
Correio eletrônico: katia.duarte2012@gmail.com
Lourival Andrade Júnior
Professor Adjunto do Centro de Ensino Superior do Seridó – CERES,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Doutor em História
pela UFPR.
Correio eletrônico: lourivalandradejr@yahoo.com.br
Maria do Socorro Camelo Maciel
Professora substituta no curso de Serviço Social da UECE e membro do
Centro de Estudos e Ontologia do Ser Social – CETROS, laboratório da
UECE. Mestra em Educação Brasileira pela UFC. Coordenou o Centro de
Referência e Atendimento à Mulher em Situação de Violência Doméstica e
Sexual Francisca Clotilde, em Fortaleza no período de 2008 a 2011.
Correio eletrônico: socorrocamel@yahoo.com.br
Rogério de Araújo Lima
Professor Assistente III e Chefe do Departamento do Curso de Direito do
Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre em Ciências Jurídicas pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em Direito Tributário
pala Universidade Anhanguera-UNIDERP. Membro da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC).
Correio eletrônico: rogeriolimaufrn@hotmail.com
Taciane Lima da Silva
Pedagoga pela FACEDI/UECE. Colaboradora do Projeto Novos Talentos
(FACEDI/DEB/CAPES). Participante da atividade A sétima arte como
ferramenta pedagógica.
Correio eletrônico: tassiadelima20@hotmail.com
Sumário

APRESENTAÇÃO
José Alex Soares Santos ............................................................................................13

A FORMAÇÃO HUMANA NA ARTE REALISTA


Giovanni Alves .......................................................................................................19
PARTE I – PRÁXIS, INCLUSÃO CULTURAL E FORMAÇÃO ESTÉTICA:
TESSITURAS TEÓRICAS E RELATOS DE EXPERIÊNCIA .......................... 25
PRÁXIS, CIÊNCIA E ARTE: NOTAS TEÓRICAS
Epitácio Macário ....................................................................................................27
AUDIODESCRIÇÃO: ARTE-IMAGEM TRADUZIDA EM PALAVRAS PARA
GARANTIR A INCLUSÃO CULTURAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
VISUAL
Francisca Geny Lustosa
Kátia Macedo Duarte .............................................................................................41
EDUCAÇÃO ESTÉTICA E FORMAÇÃO TEATRAL NO PROJETO NOVOS
TALENTOS
Ana Cristina de Morais
Francisca Carla Matias de Sousa
Josélia Aparecida Guilherme ....................................................................................53
A SÉTIMA ARTE COMO FORMAÇÃO ESTÉTICO-PEDAGÓGICA:
EXPERIÊNCIA INOVADORA NO ÂMBITO DO PROJETO NOVOS
TALENTOS
Antonio Valricélio Linhares da Silva
José Alex Soares Santos ............................................................................................69

PARTE II – NARRATIVAS FÍLMICAS EM ANÁLISE .................................... 79


AMOR SEM ESCALAS: TRABALHO, DESEMPREGO E VIDA PESSOAL
Giovanni Alves .......................................................................................................81
ASSALTO AO BANCO CENTRAL: GRANA SUJA PARA COMPRAR DESTINOS
Antonio Valricélio Linhares da Silva ........................................................................95
A DIDÁTICA ENTRE A CONFORMAÇÃO E A CONTESTAÇÃO SOCIAL:
ANÁLISE À LUZ DO FILME ESCRITORES DA LIBERDADE
Carlos Bonfim ......................................................................................................105
NARRADORES DE JAVÉ: A LUTA PELA CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E CULTURAL DE UM POVO
Taciane Lima da Silva
José Alex Soares Santos ..........................................................................................121
BESOURO E OS ORIXÁS
Lourival Andrade Júnior .......................................................................................135
RETRATOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO COTIDIANO DE
JOSEY AIMES EM TERRA FRIA
Maria do Socorro Camelo Maciel ..........................................................................147
DIREITO, CINEMA E COTIDIANO: ANÁLISE JURÍDICO-SOCIOLÓGICA
DO FILME REGRAS DA VIDA
Rogério de Araújo Lima ........................................................................................159
TROPA DE ELITE: INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA, NEONAZISMO E A
CADEIA PRODUTIVA DA VIOLÊNCIA NO BRASIL
Fernando Bonfim Mariana ...................................................................................169
DA INCITAÇÃO À REPRESSÃO: O SADISMO EM FOUCAULT E PASOLINI
David Silva de Oliveira
Helena Dabul Thomaz de Almeida ........................................................................179
APRESENTAÇÃO

Prof. José Alex Soares Santos

O cinema e o teatro são formas de arte que por si só possuem um potencial


educativo de dupla face, ou seja, à medida que podem educar as consciências para
uma atitude crítica diante do mundo e o aguçamento da percepção estética no sentido
da humanização do humano, também podem conduzir o ser social para uma atitude
alienada em relação a este mundo, contribuindo, destarte, para sua desumanização –
levando-o ao estranhamento de si e de outrem.
Com base no exposto, adiantamos que as discussões realizadas na coletânea
CINEMA E TEATRO COMO EXPERIÊNCIAS INOVADORAS E FORMATI-
VAS NA EDUCAÇÃO assumem estreita relação com a atitude crítica e o avivamento
da percepção estética. Este é o espírito que constitui a essência da obra, resultante
de um trabalho coletivo que teve a participação de pesquisadores situados na esfera
acadêmica de várias instituições de nível superior, como a Universidade Estadual de
São Paulo – UNESP/Campus de Marília, o Centro de Ensino Superior do Seridó-CE-
RES/Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Universidade Estadual
do Ceará – UECE e Universidade Federal do Ceará – UFC, bem como alunos de
graduação e professores da educação básica.
É importante destacar o fato de que a base material para a gênese da cole-
tânea está vinculada primordialmente à realização do Projeto Institucional Novos Ta-
lentos – Arte-Educação e Ciências Naturais na Educação Básica: a FACEDI formando
novos talentos para a vida cidadã1.

1 O princípio básico do Projeto Novos Talentos, desenvolvido na FACEDI, foi a contribuição efetiva para o
desempenho da qualidade da educação básica nos municípios de Itapipoca e Amontada – situados no Ceará
e com baixos índices no IDEB. O projeto geral compunha-se de 12 atividades, distribuídas em quatro
subprojetos que contemplavam a formação de professores e alunos da educação básica das redes de ensino
estadual e municipal. As atividades do projeto que inspiraram a coletânea são intituladas de “A sétima arte
como ferramenta pedagógica”, ofertada para professores da educação básica, “Formação estética por meio
da linguagem cinematográfica”, oferecida para alunos da educação básica e estudantes de Licenciatura em
Pedagogia e “Saltimbancos: arte-educação por meio do teatro”, sendo, as duas primeiras atividades ligadas
ao subprojeto “Cinema na escola: formando novos talentos para a vida cidadã” e a última como atividade
do subprojeto “Arte-educação”.

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Este projeto foi realizado na Faculdade de Educação de Itapipoca – FACE-
DI, durante o ano de 2011, tendo como agência de fomento a Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, para a qual deixamos registrados
nossos agradecimentos, pois sem o seu apoio a viabilização dessa produção trilharia
caminhos bem mais íngremes e pedregosos.
A arquitetura textual da obra CINEMA E TEATRO COMO EXPERI-
ÊNCIAS INOVADORAS E FORMATIVAS NA EDUCAÇÃO compõe-se de duas
partes. A primeira é intitulada PRÁXIS, INCLUSÃO CULTURAL E FORMAÇÃO
ESTÉTICA: TESSITURAS TEÓRICAS E RELATOS DE EXPERIÊNCIA, que
absorve análises abordando temas como ciência, arte, práxis humana, estética, audio-
descrição como prática inclusiva, bem como as experiências vivenciadas no Projeto
Novos Talentos com teatro e cinema. O texto de abertura – “Práxis, ciência e arte:
notas teóricas” – faz parte da reflexão filosófica, ancorada na sensibilidade e criticidade
de um pensamento perspicaz da lucidez habitual de Epitácio Macário. Referido autor
destaca a ciência, a arte e práxis humana em três movimentos. No primeiro, define-se
práxis na perspectiva da dialética materialista. No segundo, adentra-se o campo da
ciência com o fim de qualificar esse tipo de conhecimento e fundá-lo na própria práxis
humana em geral. No terceiro, busca qualificar a práxis artística, apresentando-a como
potente vetor de formação da personalidade autêntica.
Em “Audiodescrição: arte imagem traduzida em palavras para inclusão cul-
tural das pessoas com deficiência visual”, fruto do trabalho engajado de Geny Lustosa
e Kátia Duarte com as práticas de inclusão, temos sinalizações significativas para a im-
portância da audiodescrição na garantia da acessibilidade de pessoas com deficiência
visual ao mundo das artes visuais e em movimento, tais como, cinema, teatro, ópera,
programação audiovisual em geral.
Ao sairmos da audiodescrição, adentramos a análise interpretativo-descri-
tiva da experiência proporcionada pelo teatro no âmbito do Projeto Novos Talentos
na FACEDI. Nessa abordagem, faz-se presente um elemento substancial para a for-
mação humana, qual seja, a educação estética. O texto “Educação estética e formação
teatral no projeto novos talentos”, escrito a seis mãos por Ana Cristina, Carla Sousa e
Josélia Guilherme, incorpora em sua narrativa os resultados da atividade “Saltimban-
cos: arte-educação por meio do teatro”. Destacam-se, ainda, nesse escrito, a atividade
artística como práxis e a visão dos próprios participantes da atividade formativa, em

14
cuja análise feita pelas autoras sobre seus depoimentos, a experiência aparece como
de significado ímpar na formação do ser genérico-humano, bem como para a atuação
pessoal e profissional qualitativa destas pessoas.
No encerramento da primeira parte, temos a abordagem de Alex Santos e
Valricélio Silva, que analisam a objetivação da experiência com o cinema no Projeto
Novos Talentos. Tal experiência envolveu as atividades: “A sétima arte como ferra-
menta pedagógica” e “Formação estética por meio da linguagem cinematográfica”.
Os autores, na reflexão intitulada “A sétima arte como formação estético-pedagógi-
ca: experiência inovadora no âmbito do Projeto Novos Talentos”, discorrem sobre o
significado do cinema para a formação estética e sua relevância significativa para a
prática pedagógica e desenvolvimento da aprendizagem, bem como o avivamento da
percepção estético-crítica do ser social.
A segunda parte da coletânea recebe o título de NARRATIVAS FÍLMI-
CAS EM ANÁLISE, na qual os autores fazem uso da Hermenêutica para análise
crítica de produções cinematográficas nacionais e internacionais. Nestas, estão pre-
sentes abordagens analítico-interpretativas sobre o mundo do trabalho e a dimen-
são sociometabólica do capital, discussões encontradas nos textos de Giovani Alves:
“‘Amor sem escalas’: trabalho, desemprego e vida pessoal”, e Valricélio Silva: “‘Assalto
ao Banco Central’: grana suja para comprar destinos”.
Na sequência, deparamos a análise contundente de Carlos Bomfim, inti-
tulada: “A didática entre a conformação e a contestação social: análise à luz do filme
‘Escritores da liberdade’”. Com elaboração teórica consistente, revelam-se as contra-
dições da ordem sociometabólica do capital, a função reprodutiva e pacificadora da
escola e os efeitos da didática no âmbito da sala de aula e sua repercussão para o con-
formismo ou ações de resistência aos ditames do capital.
Em “‘Narradores de Javé’: a luta pela conservação do patrimônio histórico
e cultural de um povo”, Taciane Silva e Alex Santos atentam para a relação entre o
conteúdo da narrativa fílmica e a realidade experimentada pela população de duas
comunidades no Ceará. Trata-se da luta do povo de Nova Jaguaribara, removido da
cidade de Jaguaribara, atualmente submersa pelas águas da barragem do Castanhão,
bem como da organização política e resistência dos comunitários do Assentamento
de Maceió em Itapipoca que lutam contra a instalação do “Projeto Pirata” na faixa de
praia que pertence àquela população.

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Na discussão feita por Lourival Andrade Júnior, em “‘Besouro’ e os orixás”
é exibido o papel dos orixás, no contexto da obra fílmica, especialmente, Exu, figura
central na dramaturgia da película, mas ainda periférica nos estudos acadêmicos e
escolares. O autor se debruça em seu escrito nas características que movem as ações
humanas, representadas no filme por suas personagens, e sua relação com algumas
deidades que aparecem no desenrolar da trama. Exu é o que move todos, concorrendo
para a concretização de seu mito. Por fim, destaca que a temática da africanidade é
absolutamente necessária no tocante ao debate que se faz indispensável em nossos
meios escolares na atualidade.
Na esteira da temática de gênero, temos a pertinente discussão realizada
por Socorro Maciel, com o foco na mulher que sofre violência doméstica e tenta su-
perá-la. No escrito intitulado “Retratos da violência contra a mulher no cotidiano de
Josey Aimes em ‘Terra Fria’”, a autora elucida, com base em argumentos sociológicos,
a trajetória das mulheres que, ao recusarem a violência doméstica e familiar entram
na chamada rota crítica da violência e vivenciam inúmeros desafios na reconquista da
identidade, até romperem com o ciclo da violência.
A experiência docente de Rogério de Araújo Lima, no curso de Direito da
UFRN/CERES, com a abordagem fílmica como metodologia idônea a desvendar as
relações entre a norma e o fato, o escrito e o dito, o “dever ser” e o vivido e, por que
não dizer, entre a ficção e a realidade, está descrita no texto: “Direito, cinema e coti-
diano: análise jurídico-sociológica do filme ‘Regras da Vida’”.
O historiador Fernando Mariana Bomfim fortalece a segunda parte da
coletânea, com sua crítica ao conteúdo da narrativa fílmica “Tropa de Elite”. Em
artigo intitulado “‘Tropa de elite’: indústria cinematográfica, neonazismo e a cadeia
produtiva da violência no Brasil”, o autor aborda os impactos educacionais e culturais
da cadeia produtiva da violência no Brasil, enfatizando aspectos totalitários da política
e da economia na indústria cinematográfica.
Fechando a seleta, aparece a análise de David Oliveira e Helena de Almei-
da, com o interessante e provocativo título “Da incitação à repressão: o sadismo em
Foucault e Pasolini”. Nesta, os autores fazem apreciação da obra cinematográfica diri-
gida por um dos mestres do cinema italiano Pier Pasolini, denominada de “Salò – ou
os 120 dias de Sodoma”, articulando seu conteúdo com a perspectiva foucaultiana da
sexualidade e do poder.

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O conjunto dessas expressões analíticas reforça o significado da educação
estética por meio do teatro e do cinema como atividades substanciais da práxis huma-
na, as quais devem ser adotadas com maior efetividade na contextura escolar, dotando
a prática pedagógica de conteúdo criativo, dinâmico e crítico. Com isto, podemos ter
experiências educativas em que o aguçamento da percepção e da sensibilidade huma-
nas sejam valorizadas e vivenciadas na formação escolarizada.

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A FORMAÇÃO HUMANA NA ARTE REALISTA
Giovanni Alves

“A verdade é concreta”, salientou o filósofo alemão G. W. F. Hegel. Esta


frase singela expressa o sentido da utilização do objeto estético como meio para a
formação humana. Não se trata da Arte tout court, isto é, da mera criação artística pro-
priamente dita, mas de um tipo particular de objeto estético: a arte realista. Apenas a
arte realista é capaz de propiciar, com intensidade ampliada, o campo crítico-reflexivo
para a formação humana.
Outra coisa: não se trata de “educação” propriamente dita (educação esco-
lar ou educação nãoescolar), mas sim “formação humana” no sentido de formação dos
sentidos. Nas condições históricas da barbárie social, o que se expressa como tarefa
crucial de coletivos de reflexão crítica é a formação dos sentidos humanos desefetiva-
dos pelo movimento insaciável do capital. Na verdade, trata-se de uma tarefa intelec-
tual-moral no sentido pleno do conceito. É uma luta ideológica árdua e ingrata, pois
ocorre nas condições do capitalismo manipulatório com seus aparatos midiáticos em
3D e Som Dolby Stereo Surround.
Trata-se, pois, de uma luta de guerrilha: a guerrilha pela formação humana
no sentido da formação de sentidos humano-genéricos, isto é, homens conscientes e
também racionais, capazes do discernimento e perspicácia no mundo da intransparên-
cia social, que é o mundo do fetichismo da mercadoria. A Escola – como a sociedade
em geral – é um campo minado que exige de nós capacidade de distinguir o necessário
e o acessório na prática formativa utilizando a arte realista.
Este livro-coletânea é uma munição importante na luta ideológica, utili-
zando a arte realista como campo de reflexão crítica voltado para a formação humano-
genérica. Contém experiências singelas e preciosas de ação política no sentido pleno
da palavra, utilizando a criação artística comprometida com o reflexo estético-realista.
Como salientamos, não se trata de atribuir valor a qualquer criação artísti-
ca, mas sim cultivar a apreensão crítica do objeto estético sob a forma da arte realista,
objetivação estética plena de múltiplas determinações sociais que expressam o mundo
do capital. É importante reaver, no plano do pensamento, a categoria de “realismo
estético”, buscando redimensioná-la transpondo a da concepção marxista clássica que

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desprezava a arte vanguardista por não considerá-la arte realista (como é o caso do
velho Lukács).
Com efeito, o capitalismo tardio situa-nos perante de objetos estéticos re-
alistas de novo tipo que exigem uma nova atitude da razão dialética na apreensão de
sua densidade histórica. Por isso, um Kafka ou Joyce, na literatura, ou mesmo um Sal-
vador Dalí, na pintura, ou Ionesco, no teatro, por exemplo, podem ser considerados
como artistas realistas, mas o realismo do capitalismo do século XX, hiper-realismo
que dissolve formas estéticas clássicas e as recria no sentido da ordem fetichista do
capital.
A operação estética de dissolução da forma narrativa ou expositiva do ob-
jeto estético clássico expressa, ela mesma, o movimento do capital, que tem que ser
desvelado e exposto para o público-receptor no sentido de sua resignificação crítica.
Exige-se, deste modo, uma operação de reflexão crítica de maior intensidade compatí-
vel com o grau de fetichização do ser social. Trata-se do concreto desfigurado pela sua
condição de estranhamento em sua forma hipertardia.
O hiper-realismo possui uma “ganga mística” que pode ser apreendida, no
processo pedagógico, tanto numa ótica irracionalista, quanto numa visão crítica que
seja capaz de ressignificá-lo na perspectiva da crítica do capital. O que ele oculta atenta
contra si próprio: a sua miséria humana na ordem burguesa tardia. Nesse caso, mais
do que nunca, é preciso ação crítica do sujeito reflexivo que conduz a operação de
pensamento. A verdade é concreta. O processo de concreção, porém, exige a mediação
do sujeito crítico-reflexivo. Ela não nasce por geração espontânea. O que se expressa
numa operação formativa é quem educará os educadores.
Finalmente, quero salientar o tema necessário do trabalho da prática refle-
xiva por meio da arte realista. É importante resgatar por meio da prática reflexiva em
sala de aula e nos espaços públicos, utilizando a arte realista, o tema Trabalho. Enfim,
expor o que é invisível. Eis a tarefa da razão dialética nas condições da barbárie social
que tem como uma de suas características a intransparência manipulatória produzida
pelo fetichismo da mercadoria em sua forma exacerbada. O mundo do trabalho é in-
visível. É preciso dar visibilidade ao mundo do trabalho. Nesse caso, saliento cinema
como arte capaz de expor com candência o mundo do trabalho.
Para nós, marxistas, como salientou Walter Benjamin, a arte deve ser poli-
tizada no sentido de que o cinema – que é a Sétima Arte – deve-se tornar experiência

20
crítica. A utilização do cinema como experiência crítica visa a formar sujeitos huma-
nizados capazes de recuperar o sentido da experiência humano-genérica desefetivada
pela relação-capital. Sob o capitalismo manipulatório, só a arte realista é capaz de nos
redimir da barbárie social.
Na medida em que o filme realista é um reflexo antropomorfizado da vida
social, ele é um meio propício para a experiência crítico-hermenêutica como autocons-
ciência da humanidade. Nesse caso, realiza-se o sentido da obra de arte, que segundo
Georg Lukács, é ser memória, “autoconsciência do desenvolvimento da humanidade”.
A experiência crítico-hermenêutica mediante a obra de arte como o cinema, arte total
do século XX, permite uma forma de apropriação do mundo capaz de formar (ou
enriquecer) a práxis singular das individualidades pessoais de classe.
Um dos veios temáticos mais prolíficos para discussão crítica por meio
do cinema é o nexo temático “Trabalho e Cinema”. Primeiro, trabalho é categoria
fundante (e fundamental) do ser social. Como observou mais uma vez Georg Lukács,
o homem é um animal tornado homem pelo trabalho. Eis o sentido ontológico da
categoria trabalho. No mundo do capital, entretanto, ocorre uma inversão categorial
fundante (e fundamental) no processo civilizatório. No modo de produção capitalista,
o homem tornado homem, por meio do trabalho, se desumaniza na medida em que
o trabalho alienado o animaliza. Como salientou Karl Marx, o homem, nas condições
do trabalho assalariado, não se sente mais livremente ativo senão em suas funções
animais.
No mundo do capital subsumido à lógica do trabalho assalariado, torna-se
impossível uma vida plena de sentido, haja vista o fato de que o homem passa a fazer
do trabalho assalariado tão-somente meio de subsistência voltado para a fruição do
consumo alienado, invertendo, deste modo, a relação que teria com o trabalho como
atividade produtiva.
Ora, o trabalho estranhado aliena o homem de seu ser genérico, isto é,
mortifica seu corpo e arruína seu espírito. Este é o estado de proletariedade que se
dissemina no mundo do trabalho como universo do capital.
O drama humano da proletariezação é o teatro candente de inúmeras
narrativas fílmicas de teor clássico. O cinema aflora expondo o mundo do trabalho.
Como arte suprema da modernidade do capital em sua etapa tardia, o cinema nasce
como registro documental do cotidiano da proletarização moderna. Um dos primei-

21
ros registros do cinema intitulou-se La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (“A Saída
da Fábrica Lumière em Lyon”). Produzido em 1895 por Auguste Lumière e Louis
Lumière, “A Saída da Fábrica Lumière” e outros nove pequenos filmes foram exibidos
para divulgar em Paris, o cinematógrafo, invento dos Irmãos Lumière.
O drama humano da proletariedade seria exposto pelo cinema no decorrer
do século XX em inúmeros filmes clássicos. Na França, onde surgiu o cinematógrafo
dos Lumières e o cinema-espetáculo de Mélie, saliento, por exemplo, “À Nós a Liber-
dade”, de René Clair (de 1933), crítica genial do americanismo e fordismo. Este filme
de René Clair foi precursor de “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin (de 1936).
Antes, na Alemanha, há o clássico “Metropólis”, de Fritz Lang (de 1927), alegoria
trágica da República de Weimar que expressa nos seus detalhes o mundo do capital em
sua fase de crise orgânica. Na URSS pré-stalinista, há o experimentalismo clássico e
genial de Serguei Eisenstein: “A greve” (de 1925). O neorealismo italiano seria pródi-
go em expor a condição de proletariedade moderna. Saliento, dentre outros, “Ladrões
de Bicicleta” (de Vittorio De Sica) e “A Terra Treme” (de Luchino Visconti), ambos
lançados em 1948. Dos EUA, da grande depressão, vem o genial “Vinhas da Ira”, de
John Ford (de 1941), baseado no romance de John Steinback.
Muitos cineastas no século XX trataram, direta ou indiretamente, do dra-
ma trágico da proletariedade, expondo com suas obras fílmicas visões da modernidade
do capital com suas contradições sociais que dilaceram o ser genérico do homem.
Seria temerário expor uma lista exaustiva de nomes de diretores do cinema mundial
que contribuíram com filmes realistas capazes de permitir a apropriação do cinema
como experiência crítica com suporte no eixo temático Trabalho e Cinema. Ressalto,
dentre outros, René Clair, Charles Chaplin, Serguei Eisenstein, Vittorio de Sica, Lu-
chino Visconti, Bernardo Bertolucci, Jacques Tati, Georges Henri-Clouzot, Stanley
Kubrick, Elio Petri.
Poucos jovens conhecem hoje estas obras-primas do cinema mundial.
Antes, o acesso a elas estava restrito às cinematecas das metrópoles. Hoje, porém, a
disseminação do DVD e blu-ray permite que possamos nos reapropriar delas para
promover exercícios de reflexão crítica sobre o drama humano da proletariedade ex-
postos no cinema.
Enfim, uma apresentação minuciosa do vínculo Trabalho e Cinema no
século XX seria impossível nos marcos deste pequeno artigo. Posso dizer que o eixo te-

22
mático Trabalho e Cinema não é apenas um tema de reflexão critica entre outros, mas
é o assunto fundante (e fundamental) do cinema como experiência crítica habilitada
a nos redimir da barbárie social que aflige, hoje, a civilização do capital nos marcos da
crise do capitalismo global.
Marília, 28 de janeiro de 2012.

23
PARTE I – PRÁXIS, INCLUSÃO
CULTURAL E FORMAÇÃO
ESTÉTICA: TESSITURAS TEÓRICAS
E RELATOS DE EXPERIÊNCIA
PRÁXIS, CIÊNCIA E ARTE: NOTAS TEÓRICAS
Epitácio Macário

Trazemos aqui algumas notas teóricas sobre ciência e arte como práxis hu-
mana. No primeiro movimento, definimos práxis na perspectiva da dialética materia-
lista. No segundo, adentramos o campo da ciência com o fim de qualificar esse tipo
de conhecimento e fundá-lo na própria práxis humana em geral. No terceiro tópico,
dedicamos notas à qualificação da práxis artística, mostrando sua diferença em com-
paração com a ciência e exibindo-a como potente vetor de formação da personalidade
autêntica.

Estado do problema: a categoria práxis


O homem é um ser que responde às necessidades dadas pela natureza e
postas pelo desenvolvimento da sociedade. Responder, aqui, significa, pelo menos,
quatro situações: a) que o homem intervém no real de forma ativa porque sua ativi-
dade é consciente; b) que no escopo de sua atividade, transforma em pergunta seus
objetos e seus carecimentos, mediado pela consciência; c) que, na sua prática, ele
participa da criação do mundo humano como integrante da atividade social; d) que as
respostas produzidas na prática individual e social – o mundo humano, é duplicado
em objetividade (coisas, relações sociais, cultura simbólica) e subjetividade (o reflexo
na consciência individual).
A distância entre o homem e os demais seres vivos tem, portanto, o caráter
de um salto ontológico, de uma ruptura radical. Isto porque a atividade humana cria e
impulsiona uma forma de ser que ultrapassa as determinações dimanadas da natureza
biofísica – base inarredável da existência dos homens. Referimo-nos ao ser social do
homem, isto é, a experiência que se vai objetivando e acumulando no curso do tempo,
nomeadamente a produção da cultura material e espiritual. A evolução histórica se
processa, pois, sobre a base da atividade dos homens, consoante leis e determinações
sociais.
Esta atividade que responde, nos termos há pouco delineados, denomina-
se práxis. Supostamente, este conceito expressa a ação das forças sociais, que põem e
repõem dinamicamente a produção material e espiritual em escala social, e as ações

27
do homem particular, porque este sempre reage ativamente às condições dadas. Em
toda a sua vida, o homem reage como ser de práxis, toma a necessidade posta pelo
meio como questão à qual responde sempre ativamente, com maior ou menor grau
de consciência.
A concepção materialista da práxis, como aqui delineada apenas em termos
bastante gerais, tem profícuas implicações para a análise de todo e qualquer aspecto
da vida humana, desde os elementos ditos sociais – referidos às leis da dinâmica so-
cial, externos, portanto – aos que se processam na interioridade – no plano subjeti-
vo. Destacaremos duas implicações para nos dirigir ao problema de nosso interesse.
Primeira: toda e qualquer ação do homem é enraizada socialmente, porquanto, se o
motivo é interno, a necessidade e as possibilidades de respondê-la são expressas pela
sociedade ou segmento social (a classe, a família) no qual o indivíduo vive e se repro-
duz. Segunda: a dualidade (já aludida) instaurada pela práxis significa que o homem
articula respostas práticas mediadas pelo reflexo do real2. Ciência e arte constituem,
pois, formas específicas de práxis com as quais o homem reage ao mundo circundante,
tematiza-o e reflete-o.
Este ensaio somente pretende propor uma reflexão sobre a práxis científica
e a práxis artística, aludindo aos seus traços mais gerais. Na medida em que ciência
e arte integram-se ao fazer educativo, desejamos que as questões discutidas ajudem a
compreender este mister – o de formar sujeitos.

2 A categoria do reflexo é vista com muita desconfiança, acusada de anular a subjetividade. Na perspectiva
materialista dialética, todavia, a teoria do reflexo vitaliza o princípio ativo da subjetividade ao instaurá-la
como um momento do real, parte que se funda e desenvolve por meio da atividade prática. A ilusão de uma
subjetividade isolada do mundo é superada juntamente com as doutrinas que atribuem ao meio toda a força
determinadora, esmaecendo o caráter ativo do homem particular. No estudo dos escritos estéticos de Marx
e Engels, Györg Lukács reconhece a centralidade do reflexo, de cuja compreensão depende, inclusive, uma
teoria da arte, pois esta encerra uma forma particular de reflexo da realidade. Referindo-se à especificidade
do lírico na literatura, o Filósofo húngaro assim se pronuncia sobre o reflexo: “A tentativa de apreender de
modo preciso, no plano conceitual, a doutrina dialética da contradição produz aqui importantes dificuldades
linguísticas. Não são poucos os que, mesmo admitindo esta atividade do sujeito criador [...], levantam
contra a imagem do espelho uma objeção de fundo, ou seja, a de que a função da subjetividade parece
ser puramente passiva, mecânica. [...]. Quem pensa assim está errado. A imagem do espelho é inevitável,
já que só com seu auxílio podemos compreender o dado fundamental da arte no plano da concepção do
mundo, ou seja, o de que ela é um reflexo sui generis da realidade que existe independentemente de nossa
consciência.” (LUKÁCS, 2009, p. 246). Nesse sui generis, como veremos, reside todo o segredo.

28
A práxis científica
Na produção dos meios de vida, o homem apropria-se mentalmente da
matéria trabalhada na medida em que as propriedades desta vão-se revelando e sendo
abstraídas na forma de conceitos. Isto quer dizer que a ação humana – o ato – põe em
marcha dois processos que culminam no conhecimento: colocada sob prova prática,
a matéria (por exemplo, a madeira) revela suas propriedades, inclusive as que não se
mostram externa e imediatamente, ao mesmo tempo em que a consciência transforma
estas descobertas em conceitos abstratos que podem ser armazenados e generalizados
pela linguagem. Assim, o conhecimento nasce da própria práxis dos homens, isto
é, ele brota como momento interno da ação que os homens exercem sobre o meio
(natural e social) para garantir sua vida. Somente num estágio avançado do desenvol-
vimento do trabalho e das relações sociais, o conhecimento acumulado aparece sob a
forma de teorias puras, aparentemente autônomas em relação à prática imediata dos
homens. O ato de conhecer apresenta-se, nessas circunstâncias, como fruto da con-
templação e não já como um momento da intervenção ativa e produtiva do homem
sobre o meio (natural ou social).
O fato é que o conhecimento continua sendo produzido e reproduzido no
escopo da práxis social de homens engalfinhados em suas atividades econômicas e de
outra natureza. A vinculação entre dimensão teórica e prática, entre o conhecimento
científico e o trabalho, entre as ciências humanas e a práxis social tornou-se apenas
mais mediada e, sobretudo, mais rica e nuançada. Resta, todavia, a verdade histórica
de que a evolução das ciências da natureza é um índice do desenvolvimento das forças
produtivas, isto é, os conhecimentos que se acumularam sobre as leis e forças naturais
foram elaborados no curso mesmo da intervenção do homem sobre a natureza. Por
seu turno, o campo da Filosofia e das demais Ciências Humanas evoluiu enorme-
mente pari passu com a complexidade das sociedades e, por suposto, da práxis social
dos homens. Fundada, assim, sobre as atividades econômicas e sociais dos homens, a
ciência constitui hoje esfera de atividade específica, cujos traços gerais são aqui apre-
sentados.
A ciência esmera-se por apanhar os nexos causais das coisas, suas leis, seu
movimento e o lugar que cada uma ocupa na tessitura das relações que mantém com
uma totalidade de outros fenômenos. A ciência tende, pois, à objetividade porque pro-
cura apreender e expressar as propriedades ou forma de ser da própria coisa, lançando

29
mão de métodos e técnicas que buscam esta objetividade. Por isto, a linguagem da
ciência persegue um padrão ou certa univocidade, do contrário não poderia expressar
as leis que governam a natureza e a sociedade de forma válida e generalizável para
todas as realidades.
Não é demasiado afirmar que na atividade científica, como em toda forma
de práxis humana, a consciência é o medium fundamental, pois é por meio dela e nela
que se operam as abstrações, chegando-se aos conceitos generalizáveis. E isto, quer
dizer que, o reflexo científico tem de dirigir-se à captura das propriedades e leis, do
movimento e dinâmica próprios do objeto em estudo. A tarefa do reflexo científico é,
pois, dar voz ao objeto, fazendo-o expor-se. Noutras palavras: a linguagem da ciência
procura expressar as leis gerais que governam o mundo das objetividades que exis-
tem independentes da vontade do sujeito que conhece. O papel do sujeito cientista
é mais de apreender o conteúdo do objeto investigado e expressá-lo com clareza e
objetividade. “O sujeito (no caso, o cientista) não ‘inventa’ o mundo real. Este existe
efetivamente antes que o cientista resolva estudá-lo, e esta existência é regida por leis
que independem de sua consciência”, diz Celso Frederico (1997, p. 60).
A total exterioridade do objeto é mais evidente no campo das ciências da
natureza, porém, mesmo no terreno das ciências humanas, o pesquisador tem de se
esmerar para apanhar as regularidades e leis de movimento da realidade estudada,
esforço que o conduz ao devido distanciamento crítico em relação ao objeto. Em todo
caso, o reflexo científico mantém um claro caráter desantropoformizador, pois dirige-
se à captura e explicação do ser em-si das coisas ou fenômenos, sejam eles de ordem
natural ou social.
No estudo da Economia Política, como uma realidade social, Karl Marx
(2011) sustenta que é preciso esforço metódico para apreender a matéria eu seu por-
menor, apanhar os nexos entre os elementos simples que compõem o objeto em estu-
do e a teia de relações que o próprio objeto mantém com outros objetos constitutivos
da realidade humana. No campo da vida social, a realidade é sempre uma totalidade
formada por fenômenos singulares que se imbricam em relações ativas, implicando
um no outro, fazendo um ao outro, de modo que o ser de cada um é fortemente
determinado por tais relações. Assim, os fenômenos ou objetos singulares existem e
evoluem como momentos ativos, movidos e moventes, de totalidades cada vez mais
abrangentes.

30
Apanhar, pois, a concretude de um objeto, mormente na seara das ciências
humanas, é o mesmo que refletir, por meio da abstração, seus nexos internos e as
relações que mantém com as totalidades mais próximas e mais abrangentes; é, ainda,
apreender o lugar e a função do fenômeno no conjunto das relações que mantém com
os outros, porque o concreto é sempre “síntese de múltiplas determinações, unidade
do diverso”. Somente por esta via é possível incorporar no mesmo escopo teórico a
manifestação imediata dos fenômenos humanos e as leis que os regem, o sentido que
assumem na tessitura do mundo humano, as mediações que o informam e consti-
tuem. Assim, o reflexo científico pode expressar a aparência e a essência3 dos fatos
ou objetos reais, pois estes não se revelam na imediatidade com que se apresentam.
Se assim o fosse, isto é, se a forma imediatamente sensível dos fenômenos exibisse
todo seu ser, bastaria o saber da própria experiência ou o conhecimento formado na
espontaneidade do cotidiano4 para operar e explicar a realidade – e toda a ciência seria
supérflua.

3 Num instigante artigo intitulado “A dialética do avesso”, Jorge Grespan demonstra, com rigor, que Marx é
adepto da Dialética não apenas como um método a priori, mas porque seu objeto – a Economia Política – é,
em si mesmo, dialético porque contraditório. Sendo assim, as manifestações imediatas desse objeto – por
exemplo, a troca generalizada entre possuidores de mercadorias que são iguais e livres – não coincidem com
as leis internas que regem tais fenômenos. Estas, uma vez reveladas, intervertem a igualdade e liberdade
em não igualdade e não liberdade. Diz o autor: “Por isso, ele afirma, numa famosa proposição: ‘[...] toda
a ciência seria supérflua, se a forma de aparecimento e a essência das coisas coincidissem imediatamente’.
Ou seja, em coisas que aparecem de forma distinta do que são, essencialmente distinguem-se dois níveis
de realidade – o da essência e o de suas manifestações. Melhor ainda, ambos os níveis coincidem, mas não
‘imediatamente’, e sim por mediações, através das quais a essência aparece como uma aparência diferente.”
(GRESPAN, 2003, p. 27).
4 Para Agnes Heller, a vida cotidiana caracteriza-se pela heterogeneidade das atividades ligadas ao trabalho,
ao lazer, ao descanso, à organização da vida privada etc. Em seu cotidiano, o homem é interpelado por
grande número de atividades e necessidades respeitante a sua reprodução como indivíduo, às quais ele
responde com atos mais ou menos imediatos, irrefletidos, automáticos. Fazem-se, pois, representações ou
reflexos superficiais, tendentes a naturalizar a dinâmica social e a orientar a conduta conformista. A ciência,
como a arte, são formas de reflexo que se constroem pela suspensão da vida cotidiana, pois exigem a
superação da experiência fragmentada e a concentração de todas as energias do sujeito num só propósito.
Trata-se de uma forma de homogeneização que se desenvolva e sem eliminar a condição do cientista ou
artista como um ser imerso na heterogeneidade cotidiana. A vida cotidiana não pode ser eliminada. Heller
precisa a homogeneização a que o cientista e o artista são obrigados nas seguintes passagens: “O que
significa homogeneização? Significa, por um lado, que concentramos toda nossa atenção sobre uma única
questão e ‘suspenderemos’ qualquer outra atividade durante a execução da anterior tarefa; e, por outro
lado, que empregamos nossa inteira individualidade humana na resolução dessa tarefa. [...] E significa,
finalmente, que esse processo não se pode realizar arbitrariamente, mas tão-somente de modo tal que
nossa particularidade individual se dissipe na atividade humanogenérica que escolhemos consciente e
autonomamente, isto é, enquanto indivíduos.” (HELLER, 1992, p. 27). Importante registro encontra-se
no livro de José Paulo Netto; Maria do Carmo Falcão, Cotidiano: conhecimento e crítica.

31
Na produção do reflexo científico, o sujeito dirige-se ao objeto, colocando
sua consciência a serviço do objeto, para dar-lhe voz – eis o esforço desantropomor-
fizador a que nos referimos. O conhecimento assim produzido fornece potentes fer-
ramentas para uma intervenção instrumentalista no sentido de controle das forças e
propriedades dos fenômenos naturais e sociais. A evolução das ciências da natureza no
último século e sua instrumentação tecnológica na indústria é prova histórica do que
aqui afirmamos. No campo das ciências humanas, basta pensar no quanto a Psicologia
e a Sociologia organizacional são hoje requeridas nos processos de gerência científica
por fornecerem possibilidades de intervenção e controle dos grupos e pessoas huma-
nas no interior das corporações. Em todos os casos, trata-se de um conhecimento que
pretende expressar o ser mesmo das coisas, dos objetos, dos fenômenos (naturais e
sociais), em linguagem unívoca facilmente generalizável.

A práxis artística
A arte, por seu turno, enraíza-se na realidade e a tematiza, mas necessaria-
mente como criação5 do próprio sujeito. Como o trabalho, é práxis que intervém so-
bre elementos objetivos dados pela natureza ou postos pela sociedade e, com base ne-
les, constituem-se novas formas de objetividade, de conteúdo material e/ou simbólico.
A práxis artística recria a realidade mediada pela sensibilidade do sujeito; produz obras
que referem sempre ao sujeito, a sua maneira de perceber e reagir ao mundo humano.
O êxito da atividade artística está ligado às capacidades técnicas do sujeito,
mas no sentido de que ele tem de manipular materiais, dominar elementos formais,
demonstrar maestria nos movimentos e na composição da obra. Se, no trabalho, o
repertório técnico do trabalhador se refere à reta compreensão das propriedades da

5 O filósofo Adolfo Sánchez Vázquez contrapõe às ideias de Lukács para quem a arte verdadeira é sempre
realista, independentemente da filiação ideológica do artista. Para Vásquez, o que define a arte é o fato de
ela prolongar a dimensão positiva do trabalho, isto é, a criação livre do homem, não sendo, pois, lícito fazer
julgamentos do tipo “grande arte”, “verdadeira arte” – o que supõe a existência da pequena e falsa arte – por
critérios sociológicos, ideológicos ou gnosiológicos. Na seguinte passagem, Vásquez é claro quanto ao seu
posicionamento: “Ainda que o objeto artístico possa cumprir – e tem cumprido ao longo da história da arte
– as mais diversas funções (ideológica, educativa, social, expressiva, cognoscitiva, decorativa etc.), somente
pode cumprir essas funções como objeto criado pelo homem. Qualquer que seja sua referência a uma
realidade exterior ou interior já existente, a obra artística é, antes de mais nada, uma criação do homem,
uma nova realidade. A função essencial da arte é ampliar e enriquecer, com suas criações, a realidade
já humanizada pelo trabalho humano” (2010, p. 42). Do nosso ponto de vista, a criação é uma marca
substantiva da arte, mas não desfruta desta posição sozinha. A inflação desse elemento na definição de arte
torna-a muito abrangente, capaz de englobar a infinidade das criações humanas.

32
matéria e do modus operandi, tendo em vista alcançar maior eficácia e eficiência na
produção de utilidades – e nesse ponto, a esfera do trabalho põe a necessidade do
conhecimento racional da natureza, impulsionando as ciências naturais – na práxis
artística, trata-se, fundamentalmente, de mobilizar todos os sentidos para capturar e
expressar os elementos do real que impactam fortemente os sentimentos das pessoas.
E os impactam porque os elementos escolhidos traduzem a relação do indivíduo sin-
gular com a humanidade. A técnica, neste caso, é requerida muito mais como meio
de buscar a perfeição, tendo como parâmetro o belo – e não uma forma de produzir
mais em menos tempo.
A arte é uma forma peculiar de práxis que captura e expressa as dores e
alegrias, os dilemas morais e éticos, os vícios e virtudes, os sonhos e utopias experi-
mentados pelo sujeito artista no enfrentamento de situações vivenciadas socialmente6.
Com efeito, podemos afirmar que a vida social põe as situações a que o sujeito reage
artisticamente: recriando-as para confirmá-las ou refutá-las total ou parcialmente. O
eminente filósofo mexicano Adolfo Sánchez Vázquez alude a três elementos que fazem
da arte um fenômeno social:

Arte e sociedade não podem se ignorar, já que a própria arte


é um fenômeno social. Em primeiro lugar, porque o artista –
por mais originária que seja sua experiência vital – é um ser
social; em segundo, porque sua obra – por mais profunda que
seja a marca nela deixada pela experiência originária de seu
criador, por singular e irrepetível que seja sua plasmação, sua
objetivação nela – é sempre uma ponte, um traço de união,
entre o criador e outros membros da sociedade; terceiro, dado
que a obra afeta aos demais, contribui para elevar ou desvalo-
rizar neles certas finalidades, ideias ou valores; ou seja, é uma
força que, com sua carga emocional ou ideológica, sacode
ou comove aos demais. Ninguém continua a ser exatamente
como era depois de ter sido abalado por uma verdadeira obra
de arte. (VÁZQUEZ, 2011, p. 107).

6 Na entrevista concedida a Hans Heinz Holz em setembro de 1966, que compõe o livro Conversando
com Lukács, o Filósofo húngaro afirmou: “[...] a arte, no sentido ontológico, é uma reprodução do processo
mediante o qual o homem compreende a própria vida, na sociedade e na natureza, como vida que se refere
a ele mesmo, com todos os problemas e com todos os princípios vantajosos e todos os obstáculos, etc., que
a determinam”.

33
Assim, a feitura de uma obra de arte é a “construção” de uma “realidade”
mediada pela subjetividade, pela sensibilidade e convicções do artista. Na medida,
porém, em que a subjetividade criadora é um sujeito real, cuja experiência vital acon-
tece como membro de uma dada sociedade, a obra de arte funda-se na trama social
real, objetiva, no mundo humano. Sua natureza criativa não quer dizer, nem de longe,
que seja algo indiferente à objetividade do mundo social, que seja uma criação de um
“eu” insulado, cujas pulsões e potências criativas são como uma essência já contida no
homem desde o nascimento. Se assim pensarmos, não temos alternativa senão resvalar
para a esfera da pura determinação natural ou, ainda, para o misticismo que vê na
criatividade humana apenas a operação de uma força espiritual incrustada nos homens
pela divindade. A filosofia da práxis é a única que é capaz de oferecer uma resposta
adequada para esta questão.
Apenas para iluminar o debate, invocamos o filósofo húngaro György
Lukács (2009, p. 34-35) que, no prefácio à coletânea de ensaios intitulada “Arte e
sociedade”, afirma a certa altura: “todo o nosso fazer, todo o nosso saber, todo o nosso
ser revelam-se, substancialmente, o produto de nossa reação em face da realidade”– a
arte não está subtraída a esta lei geral. “A práxis humana, portanto, não pode ser nem
pura subjetividade nem pura objetividade”; razão por que uma reta compreensão do
fenômeno artístico, que é uma forma de práxis, concebe-o como síntese dialética
dessas duas dimensões (subjetividade e objetividade). Mais adiante, o autor arremata:

A verdadeira grande arte repele tanto a concepção sectário-


dogmática, segundo a qual a essência humana só pode expri-
mir-se realmente na atividade social imediata (como se a cha-
mada vida privada fosse no máximo um “apêndice” eventual
e sem importância), quanto o preconceito burguês, resultante
da alienação, segundo o qual o eu seria a única base vital da
autorealização ou do próprio fracasso. [...] a atividade humana
forma a sociedade e o movimento objetivo da sociedade só se
efetiva mediante os indivíduos. Somente quando experimenta
um processo de socialização é que o homem se transforma
de indivíduo natural em personalidade humana. (LUKÁCS,
2009, p. 35-36).

Noutro escrito, onde enceta criativa e profunda crítica estética ao natura-


lismo e ao formalismo no campo da literatura, o Filósofo volta à tese da síntese opera-
da pela práxis entre objetividade e subjetividade nos seguintes termos:

34
As palavras dos homens, seus pensamentos e sentimentos pu-
ramente subjetivos, revelam-se verdadeiros ou não verdadei-
ros, sinceros ou insinceros, grandes ou limitados, quando se
traduzem na prática, ou seja, quando as ações dos homens os
confirmam ou os desmentem no contato com a realidade. Só a
práxis humana pode expressar concretamente a essência do ho-
mem. Quem é forte? Quem é bom? Perguntas como estas são
respondidas somente pela práxis. (LUKÁCS, 2010, p. 161).

No desenvolvimento de sua práxis, o artista posiciona-se no centro dos


conflitos humanos e os expressa na sua obra. A práxis artística é uma forma de reação
– sempre ativa e criadora – à realidade, aos conflitos produzidos na profícua relação
entre o indivíduo e a sociedade, entre as pulsões e as leis civilizatórias, entre as paixões
e a dinâmica objetiva da sociedade. Por isto, a obra de arte expressa e condensa a sín-
tese já referida. E, na medida em que é uma forma de práxis, a arte reflete a realidade
e por meio de seus produtos garante a continuidade da memória do gênero humano.
Tanto do ponto de vista do processo como do produto, a práxis artística produz um
conhecimento do real de uma forma particular.
O reflexo estético é de natureza diferente do científico. Seu objetivo não
é expor racional e coerentemente os nexos causais ou as leis gerais que governam
determinados objetos. Na arte, trata-se de captar e expressar pontos nodais onde se
entrecruzam e condensam a generalidade da vida humana (a lei social, os valores so-
cialmente validados) e os atos singulares dos homens. Ao agir assim, o artista não faz
mais do que reconstituir a síntese dos elementos subjetivos e objetivos que se realizam
um por meio do outro: o fato imediato e suas relações com uma totalidade de outros
fatos, o fenômeno e a lei, a aparência e a essência. A respeito da ciência, acentuamos
que sua função se cumpre quando estas duas dimensões são explicadas: o fenômeno
assume sentido pleno quando se descobrem suas leis gerais – a generalização é marca
do conhecimento científico. A arte cumpre sua função ao recompor a trama humana
baseada em elementos particulares, isto é, as situações (conflitos?) que operam a trans-
formação do singular em universal e vice-versa. Na ciência, prevalece a lei geral; na
arte, as multifacetadas e vívidas situações particulares.
O reflexo estético é, pois, de natureza diversa do científico, mas ambos
expressam a realidade como síntese de fenômeno e essência. Lukács (2009, p. 105)
ensina:

35
A verdadeira arte visa ao maior aprofundamento e à máxima
abrangência na captação da vida em sua totalidade omnidire-
cional. A verdadeira arte, portanto, sempre se aprofunda na
busca daqueles momentos mais essenciais que se acham ocul-
tos sob a superfície dos fenômenos, mas não representa esses
momentos essenciais de maneira abstrata, ou seja, suprimindo
os fenômenos ou contrapondo-os à essência; ao contrário, ela
apreende exatamente aquele processo dialético vital pelo qual
a essência se transforma em fenômeno, se revela no fenôme-
no, mas figurando ao mesmo tempo o momento no qual o
fenômeno manifesta, na sua mobilidade, a sua própria essên-
cia. Por outro lado, esses momentos singulares não só con-
têm neles mesmos um movimento dialético, que os leva a se
superarem continuamente, mas se acham em relação uns aos
outros numa permanente ação e reação mútuas, constituindo
momentos de um processo que reproduz sem interrupção. A
verdadeira arte, portanto, fornece sempre um quadro de con-
junto da vida humana, representando-a no seu movimento, a
sua evolução e desenvolvimento.

A escolha de “personagens típicos”, tão comuns na literatura, no teatro e no


cinema, não é mero artifício protocolar, abstrato, senão a forma mesma de expressar
os dilemas, os conflitos, os impasses – e, sobretudo, as saídas forjadas pela personagem
– que se apresentam na vida cotidiana. O conteúdo mais edificante destes choques só
pode ser representado na conduta de uma personagem capaz de vivê-los profundamente,
mostrando plasticidade para desafiar a si mesmo (subjetividade) e ao seu meio (objetivida-
de). E isto se impõe na obra de arte, porque na própria vida, assim ocorre. Supõe-se que,
uma narrativa ou descrição que se atenha a uma série de conflitos aos quais os personagens
reagem mediocremente, sem ir ao fundo de suas convicções, sem desafiar-se a suplantar
os obstáculos, não passaria de algo insólito e, de resto, não teria nenhum poder formativo
da personalidade. Não parece ser de tal modo que caminha a humanidade. Atendo-se ao
plano dos atos cotidianos vividos como turbilhão de situações cujas determinações se ocul-
tam, os personagens não fazem mais do que fornecer um atestado de impotência em face
das leis históricas – o que cumpre função ideológica muito precisa numa sociedade que se
pretende imutável e eterna.
Em outros campos da práxis artística, na pintura, na dança etc., a tipici-
dade certamente se realiza de outras formas. Aqui pretendíamos apenas assinalar que,

36
na literatura, no teatro e no cinema, a recolha de situações típicas encarnadas por
personagens típicas é uma das formas prediletas pelas quais o singular, o particular e o
universal – o fenômeno e a essência – podem ser reproduzidos, sem perder o elemento
vivificante da práxis, nem cair prisioneiro da superficialidade cotidiana, tampouco
vagar errante no vendaval de jargões abstratos.
As personagens típicas, os protagonistas, vivenciam como seus os conflitos
que caracterizam sua época, sua condição social ou mesmo aqueles mais universais
que marcam os confrontos entre a individualidade e o gênero humano7. A evolução
de sua conduta na obra demonstra o quanto suas lutas interiores se religam com de-
terminações muito mais abrangentes presentes em seu tempo histórico. Como na vida
mesma, a práxis dos protagonistas é uma ininterrupta relação sintética de elementos
interiores e exteriores, de ações imediatas e de leis que presidem a dinâmica social, de
fenômeno e de essência. Para Lukács (2010, p. 192),

O personagem artístico só pode ser típico e significativo


quando o autor consegue revelar as múltiplas conexões que
relacionam os traços individuais de seus heróis aos problemas
gerais da época, quando o personagem vive diante de nós os
problemas de seu tempo, mesmo os mais abstratos, como in-
dividualmente seus, como algo que têm para ele uma impor-
tância vital.

Mais adiante, acrescenta:

7 A determinação social da arte não quer dizer que sua validade esteja circunscrito ao imediato contexto
histórico, pois as expressões artísticas de uma época podem exercer fascínio e importante função em
formações sociais ulteriores. Karl Marx assinala esta nuança nos Grundrisse, referindo-se à arte grega, cujas
bases repousam nas condições sociais dadas. “Mas a dificuldade não está em compreender que a arte e o epos
gregos estão ligados a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que ainda nos proporcionam
prazer artístico e, em certo sentido, valem como norma e modelo inalcançável.”; “Um homem não pode
voltar a ser criança sem tornar-se infantil. Mas não o deleita a ingenuidade da criança, e não tem ele próprio
novamente que aspirar a reproduzir a sua verdade em um nível superior? Não revive cada época, na natureza
infantil, o seu próprio caráter em sua verdade natural? Por que a infância histórica da humanidade, ali
onde revela-se de modo mais belo, não deveria exercer um eterno encanto como um estágio que não volta
jamais? A crianças mal educadas e crianças precoces. Muitos dos povos antigos pertencem a esta categoria.
Os gregos foram crianças normais. O encanto de sua arte, para nós, não está em contradição com o estágio
social não desenvolvido em que cresceu. Ao contrário, é seu resultado e está indissoluvelmente ligado ao
fato de que as condições sociais imaturas sob as quais nasceu, e somente das quais poderia nascer, não
podem retornar jamais.” (MARX, 2011, p. 63-64).

37
Este “posto” do protagonista depende, essencialmente, do seu
grau de consciência em face de seu próprio destino, da ca-
pacidade de elevar – inclusive no plano da consciência – os
elementos pessoais e acidentais do próprio destino a um certo
nível de universalidade. (LUKÁCS, 2010, p. 193).

A composição da obra exige do artista um aprofundamento nos dilemas


que medeiam a reprodução do indivíduo e a dinâmica da sociedade como um todo,
mesmo que tal conhecimento não tenha, no artista, um caráter filosófico ou científico.
Com efeito, nos parece lícito afirmar que o artista se especifica no confronto com os
outros homens (não artistas) pela capacidade elevada de apreender e viver, por via
sensível, as dores e alegrias, os êxitos e fracassos de que todos os homens gozam e
sofrem no curso da vida. Esta é a forma pela qual se produz o reflexo estético – pela
sensibilidade.
Ao recompor o fenômeno humano, e mesmo na figuração da natureza,
a práxis artística interpela profundamente o indivíduo criador, exigindo dele a con-
centração de esforços e sentidos para alcançar a perfeição. Ocorre aqui, como na pro-
dução científica, a suspensão do cotidiano, na medida em que o artista abstrai da
cotidianidade que o toma por inteiro e dedica-se inteiramente a um propósito. Todo
seu ser é posto em movimento e incrusta-se na obra. Ao criar, o artista esmera-se para
alcançar a perfeição em todos os seus movimentos, em todas as suas ações, tendo
como princípio orientador a finalidade projetada mentalmente. Na projeção e no
curso da feitura da obra, o artista avalia suas finalidades e ações em profícuo contato,
às vezes confronto, com os valores estéticos, éticos, morais, políticos que se fixaram na
experiência genérica da humanidade. Ele eleva-se, desta forma, do imediatismo que
marca a conduta cotidiana ao plano do humano-genérico, razão por que a criação
artística encerra um conhecimento e um processo formativo. Esta experiência não
ocorre apenas com o sujeito artista.
O pesquisador Alexis Leontiev, em importante estudo sobre o desenvolvi-
mento do psiquismo humano, faz lembrar que a reprodução das sociedades humanas
no curso do tempo é garantida na medida em que, pela sua atividade, cada geração se
apropria do que fora criado e acumulado no passado, incorporando esse patrimônio
em sua práxis para fazer frente aos novos desafios do presente. Para inserir-se ativa e

38
produtivamente na vida social, cada indivíduo reproduz subjetivamente as faculdades,
habilidades, conhecimentos e valores inscritos nas criações humanas, tenham elas uma
forma tangível (os instrumentos) ou intangível (a linguagem, a ética, a moral etc.)8.
Karl Marx, no Grundrisse, mostra com sutileza e profundidade como a produção cria
o consumo e este institui aquela; como o produto engendra o gosto e este põe a disposição
subjetiva para o objeto produzido. Estas lições de dois grandes mestres do pensamento
humano oferecem chaves teóricas para o reto entendimento da função social da arte. Com
efeito, a práxis artística põe o objeto do sentido estético e implica que o consumidor de-
senvolva as faculdades inscritas na obra para se apropriar dela, transformá-la em aptidão
subjetiva. Por conseguinte, a arte incide sobre os outros homens (não artistas) e sobre a
dinâmica social como um todo.
A obra de arte, como já referimos, afeta a práxis de outros homens, po-
tencializando ou esmaecendo determinados traços, valores e ideias deles. A fruição
estética é um caminho privilegiado que conduz o indivíduo a reavaliar sua visão e, por
consequência, sua atitude em face dos dilemas pessoais e dos problemas sociais. Na
fruição estética, a subjetividade é interpelada de modo tal que o indivíduo vislumbra
a si próprio — seus defeitos e fraquezas, suas virtudes e potências, seus valores éticos,
estéticos, morais, suas convicções ideológicas — podendo reposicionar-se perante o
mundo, assumindo nova conduta. É este o sentido da catarse estética consoante pensa
Celso Frederico:

Na fruição da obra de arte, o espectador suspende a sua vivên-


cia cotidiana alienada e se reencontra com o gênero humano,
confrontado-se com os eternos problemas da espécie que o
artista conformou num contexto particular. Revivendo essas
situações, o indivíduo experiencia um momento da trajetória
da espécie humana. A arte, portanto, é a memória da humani-
dade e o indivíduo que revive esses momentos passa por um
processo de educação, de reencontro com o gênero. (FREDE-
RICO, 1997, p. 65. Grifos do autor).

8 Leontiev preocupa-se em caracterizar a apropriação como atividade, oferencendo importantes elementos


para se compreender a dialética subjetividade/objetividade que marca a práxis huamana. Em passagem
exemplar ele assegura: “Devemos sublinhar que este processo [de apropriação] é sempre ativo do ponto de
vista do homem. Para se apropriar dos objetos ou dos fenômenos que são o produto do desenvolvimento
histórico, é necessário desenvolver em relação a eles uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traços
essenciais da atividade encarnada, acumulada no objeto”. (LEONTIEV, 1978, 268).

39
Os desdobramentos feitos até aqui se nos deixa com uma pulga atrás da
orelha quanto aos enunciados explícitos e, talvez mais ainda, implícitos, é porque
cumpriu sua tarefa: a de provocar o debate numa seara complexa, senão árida. Nossa
intenção era, ademais, sistematizar o conceito de práxis e de reflexo científico e artísti-
co sob a óptica do materialismo dialético. Esperamos não inflar o valor dos argumen-
tos levantados ao concluirmos que arte e ciência constituem formas particulares de
práxis e, como tais, produzem formas particulares de reflexo da realidade.

Referências
FREDERICO, C. Lukács – um clássico do Século XX. São Paulo: Moderna, 1997.

GRESPAN, J. A dialética do avesso. In: Vários autores. Marxismo e ciências huma-


nas. São Paulo: Xamã, 2003 (p. 26-44).

HELLER, A. O cotidiano e a história. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.


HOLZ, H. H.; KOFLER, L.; ABENDROTH, W. Conversando com Lukács. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Portugal: Livros Horizonte,
1978.
LUKÁCS, G. Arte e sociedade – escritos estéticos (1932-1967). Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ, 2009.
______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
MARX, K. Grundrisse – manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica
da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2011.
PAULO NETTO, J.; CARVALHO, M. C. F. Cotidiano: conhecimento e crítica. São
Paulo: Cortez, 1987.
VÁSQUEZ, A. S. As ideias estéticas de Marx. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular,
2011.

40
AUDIODESCRIÇÃO: ARTE-IMAGEM TRADUZIDA
EM PALAVRAS PARA GARANTIR A INCLUSÃO
CULTURAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
VISUAL

Francisca Geny Lustosa


Kátia Macedo Duarte

“Vejo o tempo obrar a sua arte;


[...] O tempo arrebata-lhe a garganta;
[...] Apenas abre a voz, e o tempo canta
[...] O ator recita um drama que ainda está por ser escrito
No anfiteatro, sob o céu de estrelas; Um concerto eu imagino
onde, num relance, o tempo alcance a glória; E o artista, o infinito.”
(Música Tempo e Artista, Chico Buarque de Holanda).

O objetivo da análise é apresentar o recurso de audiodescrição como tecno-


logia assistiva que permite as pessoas com deficiência visual acessibilidade a materiais
audiovisuais e eventos culturais em geral como: peças de teatro, programas de TV,
exposições, mostras, musicais, óperas, desfiles e espetáculos de dança; eventos turís-
ticos, esportivos, pedagógicos e científicos, tais como aulas, seminários, congressos,
palestras, feiras e outros, por meio de informação sonora, gravada ou ao vivo. No caso
de obras de artes visuais (desenho, ilustração, grafite, pintura, escultura, entre outras),
consiste na descrição da composição dessas obras e das técnicas utilizadas, em suas
cores, dimensões e formas.
Convém antecipar a ideia de que nossa aproximação com a audiodescrição
é recente, porém, se insere em nossa trajetória de professora e pesquisadora da área
da educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Nessa imersão acadêmica
conhecemos o recurso da audiodescrição9 e nos interessamos, mormente, por sua fi-
nalidade educacional, sob o qual intencionamos explorar, em pesquisas e trabalhos
futuros, sua utilização didático-pedagógica.

9 As autoras têm formação em audiodescrição por meio de curso ministrado pela Dra. Lívia Maria
Villela de Mello Motta, profissional de eminente atuação no trabalho com audiodescrição e formação de
audiodescritores para teatro, cinema, TV e outros espetáculos, além de eventos sociais e pedagógicos. O curso
foi promovido para profissionais da UFRN interessados na temática.

41
Assim, imbuídas de nossa atuação no campo da defesa e da ampliação
das possibilidades de inclusão social e educacional de pessoas com deficiência – nova
realidade que se projeta na sociedade, justificada pelo preceito democrático de justiça
e igualdade de direitos e de oportunidades a todos os indivíduos – recorremos aos es-
tudos de outros pesquisadores (ARAÚJO, 2010; MOTTA, 2010; ROMEU FILHO,
2010; dentre outros), já consolidados na área específica da audiodescrição para encetar
esse debate.
Esse texto intenciona constituir divulgação/conscientização sobre o serviço
da audiodescrição, ainda carente de luta por efetivação e legitimidade, além de rever-
berar nosso posicionamento de crítica e oposição à carência de oferta desse serviço de
acessibilidade das imagens e outras expressões visuais às pessoas com deficiência visual,
já regulamentado em lei.
Consideramos, com efeito, a referida coletânea “Cinema e teatro como
experiências inovadoras e formativas na educação” um espaço profícuo para discutir
acerca da audiodescrição, pelo “feliz encontro” entre as temáticas nele abordadas, bem
como seus leitores em potencial (tradutores, editores, jornalistas, produtores culturais,
cineastas, atores, museólogos, professores etc.), profissionais esses que comprometidos
com a ética, o respeito e a valorização dos indivíduos, podem ser instigados a incor-
porar e/ou redimensionar suas práticas na busca pela instauração de uma sociedade
inclusiva.

Acesso à experiências socioculturais: um direito também das pessoas


com deficiência visual
A sociedade democrática de direito, do século XXI, ainda convive com um
significativo número de indivíduos alijados da participação em experiências sociocul-
turais, como: assistir a um filme no cinema, a uma peça de teatro, ópera, um espetácu-
lo de dança, ou até mesmo um cotidiano programa de TV, em função da presença de
uma deficiência ou de dificuldades específicas de natureza sensorial ou de mobilidade.
Apoiadas na máxima de que “ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade
inclusiva” (WERNECK, 1997), advertimos para a noção de que não por caridade,
benevolência ou misericórdia a sociedade deve prever formas, estratégias e adequações
para garantir a participação social plena dos indivíduos na vida cidadã. É de com-
petência da sociedade (re)organizar seus espaços e as relações sociais, de forma que

42
todos usufruam de suas instâncias e equipamentos: o princípio regente da sociedade
democrática que se encerra no direito do sujeito social.
As discussões contemporâneas sobre acessibilidade devem envolver tam-
bém a utilização dos sistemas e meios de comunicação cultural e de massa, a serem
favorecidos às pessoas com deficiências, incluindo o acesso ao cinema, a uma peça de
teatro, filmes e novelas, assim como a obras de artes em geral.
Ante a necessidade de se fazer valer os direitos sociais das pessoas com
deficiência visual, notadamente pelas dificuldades da ordem sensorial que esses apre-
sentam no usufruto de experiências socioculturais dessa natureza, a audiodescrição se
constitui como instrumento de mediação e poderoso recurso que amplia as possibili-
dades de interação e participação plena dos sujeitos no âmbito social.
A audiodescrição é uma atividade de mediação linguística, uma modalida-
de de tradução intersemiótica, que transforma o visual em verbal, abrindo oportuni-
dades maiores de acesso à cultura e à informação. É, portanto, recurso de acessibilida-
de que amplia o entendimento das pessoas com deficiência visual, contribuindo para
a inclusão cultural, social e escolar.
Podemos afirmar que este recurso é via de acessibilidade cultural à lingua-
gem artística, constituindo-se em um dos espaços de ampliação das capacidades de
comunicação, expressão e igualdade de acesso a experiências socioculturais, minimi-
zando ou eliminando barreiras comunicacionais.
É importante destacar o fato de que a atitude de descrever o mundo visual
e/ou ler para pessoas cegas, por exemplo, é uma prática antiga. A defesa contemporâ-
nea da audiodescrição, entretanto, se afirma na perspectiva da promoção da autono-
mia e cidadania dos sujeitos com deficiência visual, o que dispõem o assunto para a
dimensão das políticas públicas da garantia do direito à acessibilidade dos indivíduos.
A audiodescrição em produtos audiovisuais e eventos socioculturais se in-
sere na ordem dos recursos que permitem maior liberdade a uma pessoa cega, promo-
vendo uma experiência ativa de inclusão e protagonismo social. Ademais, sua presença
amplia a compreensão de programas e enredos, contextualizando-os, além de outros
benefícios como a aquisição de conhecimentos sobre o mundo visual e a ampliação
das percepções e do repertório artístico-cultural das pessoas cegas, assim como aos
videntes. Em se tratando da TV, vem tornar a experiência de assisti-la possível, mais

43
agradável e rica do ponto de vista educativo. Com isso, o recurso proporciona a pos-
sibilidade de debate com pessoas videntes sobre os programas a que, em comum,
venham a assistir.
Referido recurso em produtos audiovisuais consiste, em linhas gerais, de
uma descrição em áudio, que aparece em momentos-chave do contexto do filme ou
documentário, explicando, informando, descrevendo, enfim, contextualizando o que
se passa nas cenas e, assim, permitindo que pessoas com deficiência visual10 compre-
endam o que não conseguiriam captar pela ausência da visão. A audiodescrição explica
o que para alguém que não enxerga não seria possível de compreender nas cenas: os
risos, algazarras, correria, portas batendo, tiros etc., com vistas a proporcionar o me-
lhor entendimento do enredo: “[...] trata-se de uma narração adicional que descreve a
ação, a linguagem corporal, as expressões faciais, os cenários e os figurinos” (ARAÚ-
JO, 2010, p. 94), além de informações como entrada e saída de personagens em cena e
outros detalhes que serão importantes para o entendimento e a interpretação daquilo
que assistem sem ver.
Em tempo, assinalamos aqui que a audiodescrição vai muito além da
simples descrição de informações percebidas pela visão, pois questões técnicas, lin-
guísticas, de conhecimentos cinematográficos (no caso do cinema/documentários)
e literário/estéticos (no caso do teatro/óperas/performances/dança etc.) precisam ser
observados para que se possa desenvolver de forma profissional e competente a tarefa.
Aspectos como os distintos gêneros de filmes e/ou demais produções, além de roteiros,
tomadas e planos, elementos cênicos (cenografia, texto, iluminação, sonoplastia, figu-
rinos) não podem ser unificados indiscriminadamente ou, por sua vez, generalizados.
Um audiodescritor lida com desafios, a princípio, como a exigência de
decidir que informação priorizar objetivamente na atuação de audiodescrever um pro-
duto: em que momento a informação sonora deve estar colocada no áudio original/
primário do filme; como realizar essa narração (se com detalhes); em que timbre de
narração ela deve ser realizada (monocórdia ou com inflexões de voz); como se ca-
racteriza o texto da audiodescrição etc., além de outras questões como linguagem e
gênero discursivo (ARAÚJO, 2010).

10 Além das pessoas com deficiência visual, a audiodescrição amplia também o entendimento de pessoas
com deficiência intelectual, idosos e disléxicos.

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Existem aparatos legais que regulamentam a audiodescrição como recurso
importante de acessibilidade11, que garante às pessoas com deficiência visual o direito
de acesso à cultura e à informação, sem barreiras comunicacionais. Em uma sociedade
inclusiva, esse direito deve ser garantido como uma diferenciação positiva, na modali-
dade de recursos e apoios diversificados, que visam a incluir.
Com efeito, temos a Lei nº 10.098/00, conhecida como Lei da Acessibi-
lidade, por estabelecer normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibi-
lidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, além de estabelecer
outras providências. Especialmente os artigos 2º (inciso II, alínea D), e o artigo 17º
desta lei merecem aqui destaque, por serem aqueles mais diretamente relacionados a
audiodescrição.
O Art. 2º define para os fins dessa Lei que barreiras nas comunicações
se constituem em “qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a
expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos meios ou sistemas de
comunicação, sejam ou não de massa”. Já o Art. 17 estabelece sobre acessibilidade nos
sistemas de comunicação e sinalização, que

Art. 17. O Poder Público promoverá a eliminação de barrei-


ras na comunicação e estabelecerá mecanismos e alternativas
técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e
sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e com
dificuldade de comunicação, para garantir-lhes o direito de
acesso à informação, à comunicação, ao trabalho, à educação,
ao transporte, à cultura, ao esporte e ao lazer.

Garantir acessibilidade cultural para pessoas com deficiências e qualquer


outra dificuldade significativa é favorecer a participação destas em todas as instân-
cias da vida societária, eliminando barreiras nos sistemas de comunicação, con-
tribuindo para a efetivação da inclusão social e cultural dos sujeitos na sociedade

11 Desde julho de 2010 as emissoras de TV brasileiras passaram a transmitir duas horas de sua programação
semanal com audiodescrição. A atual norma prevê que, até 2020, as geradoras e retransmissoras tenham de
exibir 20 horas semanais de programas adaptados. A ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria
do Rosário, no entanto, já sinalizou que o Governo Federal pode reduzir o prazo para que a meta seja
atingida em menos tempo. Ela comenta que “isso é muito possível, porque confia na capacidade do Brasil
de responder bem às causas da inclusão”. Notícia disponível em:
<http://blogdaaudiodescricao.blogspot.com.br/2012/01/formacao-de-profissionais-para-atuar.html>

45
democrática – igual em oportunidades e de respeito às diferenças e a diversidade hu-
mana, independentemente de suas condições sociais, econômicas, de raça e religião
ou de qualquer outra circunstância ou condição de existência.
No caso das pessoas com deficiência visual, mesmo na diferença marcada
pela ausência ou redução da experiência sensorial da visão, estas desejam (e têm o di-
reito) de terem garantidas as possibilidades de frequentar, assistir e entender diversos
tipos de produções artísticas, deleitando-se com as mensagens contidas nas obras de
arte, nas sutilezas e riquezas de detalhes dos construtos visuais; experiência tal que
dota o ser humano de uma nova consciência cinestésica (já anunciada em tempos
remotos, por Abel Gance, proclamando em L’art Cinématografique, 1927, que era
chegado o tempo da imagem!) que permite a ascese, a catarse, a fruição e o engrande-
cimento humano por meio da emoção e das reflexões provocadas pelas imagens e pela
obra artística em si.
Audiodescrição vem, hoje, oportunamente redimensionar concepções pri-
meiras que remontam e historicizam a teoria do cinema, designado dantes como “arte
da visão ou arte do olho” (SITNEY, 1978 apud STAM, 2006), noção sediada em
uma ideia visual perceptiva puramente: “os espectadores verão com os olhos” (STAM,
2006), não necessariamente mais verdade, pois, com a audiodescrição, “veremos, sim,
com os ouvidos”!

Audiodescrição: recurso de acessibilidade à narrativa visual


A audiodescrição traduz “imagens em palavras” (MOTTA; ROMEU FI-
LHO, 2010), ou seja, faz uma espécie de “retrato verbal” de pessoas, paisagens, ob-
jetos, cenas e ambientes. Esta é caracterizada pela descrição objetiva de imagens que,
paralelamente e em conjunto com as falas originais, permite a compreensão integral
da narrativa audiovisual, por meio de informação sonora, todavia, sem expressar jul-
gamento ou opiniões de quem as descreve.
Jakobson (1995 apud ARAÚJO, 2010) reconhece as seguintes tipologias
de tradução: a interlinguística, intralinguística e a intersemiótica, sendo essa última
definição a que insere a audiodescrição, por sua ação de transmutar as imagens, estáti-
cas e/ou em movimento, em palavras, traduzindo-as em pauta sonora.
O reconhecimento da audiodescrição como “tradução”, e portanto, co-
nhecimento científico, não apenas a simples “narração oral”, bem como a clareza da

46
distinção entre esses dois conceitos, é de fundamental importância para sua legitimi-
dade no campo acadêmico.
Eis o desafio da audiodescrição: o recurso (re)constitui os conteúdos de
nossa visão, em um processo de (re)leitura imagética ou de imagens-cênicas, por meio
do discurso verbal. Podemos asseverar, de forma contundente, que transpor a imagem
em movimento (em suas cores e sons, sensibilidade e estética) representa, a um só
tempo, a conquista e a complexidade da audiodescrição, semelhante, por certo, ao
avanço que foi para o campo da fotografia, fixar a imagem ao papel, em uma veros-
similhança.
Para Bell Machado (2010, p. 127), “a audiodescrição não é uma transcri-
ção fonética, não é uma verdade absoluta, mas é uma leitura, sim, de um indivíduo
diante de uma cena; portanto, não pode ser uma descrição universal”.
Esse processo criador de significados é um ato de conhecimento humano
que depende e é interligado pelas estruturas presentes na “vivência” de cada pessoa e
no universo simbólico de cada ser humano, portanto, sempre singular a cada sujeito.
A importante tarefa metacognitiva de “(re)ler uma imagem” mobiliza, implicitamen-
te, interpretações, inquirições, perscrutações, na constante necessidade humana de
interpretar e (re)significar o mundo e a si por meio das emoções.
A (re)leitura de uma imagem não apresenta apenas uma significação, mas
sim modos de significação distintos, diversos, indicando que existe um trabalho inte-
lectual humano singular/plural de interpretação.

A primeira coisa importante a se reconhecer é o fato de que,


assim como nós, videntes, temos um modo próprio de per-
ceber e conceituar as coisas, as pessoas com deficiência visual
também o têm e, por isso, não se pode generalizar a respeito
de suas possíveis respostas de modo uniforme. (MACHADO,
2010, p. 132).

Efetivamente, a linguagem artística expressa o discurso e, como tal, adqui-


re caráter ainda mais significativo na leitura da imagem porque a sua produção envol-
ve tanto os aspectos cognitivos quanto os afetivos, intuitivos, sensíveis e estéticos. O
cinema e o teatro, em particular, entre as diversas expressões da arte, têm uma forma
própria de se expressar, se constitui em um texto, por também conter um discurso

47
verbo-imagético, de linguagem particular e expressão estético-cultural, próprios da
arte cinematográfica e teatrológica, respectivamente.
No caso, para transformar a imagem do cinema e do teatro12 em palavras,
tem-se que adquirir os conhecimentos específicos dos saberes dessas produções. A
imagem do cinema é produzida e organiza-se sob argumentos estéticos como: mobi-
lidade e imobilidade, extensão e distância, profundidade, verticalidade, estabilidade,
cor, sombra e textura dentre outros conteúdos, o que requer conhecimentos em nível
mais profundo deste gênero, que na audiodescrição se efetiva pela exploração, em
potencial, destes recursos e estratégias citadas.
No caso do cinema, em específico, é necessário ainda compreender os ele-
mentos básicos do texto cinematográfico, como a seleção e organização das imagens,
da tomada ou a imagem captada pela câmera entre duas interrupções à forma de
organização das imagens numa sequência temporal na montagem, o plano, que é uma
imagem entre dois cortes.

[...] Essas indicações deixam claro que a linguagem cinemato-


gráfica é uma sucessão de seleções, de escolhas: escolhe-se fil-
mar o ator de perto ou de longe, em movimento ou não, deste
ou daquele ângulo; na montagem descarta-se determinados
planos, outros são escolhidos e colocados numa determinada
ordem. (BERNADET, 1985, p. 21).

Assim, tomamos consciência de que o texto cinematográfico se vale de vá-


rios recursos, tais como: o jogo de cores, de luzes, seus recortes, montagens, avanços,

12 As primeiras peças teatrais com recurso da audiodescrição surgiram na Inglaterra, por meio de um
pequeno teatro chamado Robin Hood, em Averham, Nottinghamshire, onde as primeiras peças foram
narradas. Hoje, existem muitos teatros no Reino Unido que oferecem, regularmente, apresentações com
audiodescrição. É o país líder nesse setor, seguido pela França, Espanha e Alemanha. No Brasil, em 2007,
foi apresentada a primeira peça comercial com o recurso de audiodescrição: “O Andaime”, no Teatro Vivo,
que foi o primeiro e continua sendo o único teatro brasileiro com recursos de acessibilidade para pessoas
com deficiência visual. Referido teatro oferece, além da audiodescrição, programas em Braille e programas
ampliados (para pessoas com deficiência visual e cegos), acessibilidade para pessoas com deficiência física,
pessoas obesas e, mais recentemente, para pessoas com deficiência auditiva e surdos, espetáculos com
legendas e interpretação em LIBRAS. Em São Paulo, o recurso de audiodescrição é disponibilizado no
Museu do Ipiranga, no Museu do Futebol, na Galeria Tátil de Esculturas da Pinacoteca do Estado e em
algumas exposições do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). Nesses espaços, são oferecidos
também audioguias com descrição de todas as obras e a presença de educadores capacitados para guiar
visitas educativas descritivas. A maioria das instalações também proporciona a percepção das obras de arte
por outros sentidos como tato e olfato (FRANCO; SILVA, 2010).

48
recuos, distanciamento, profundidade... recursos construtores de uma representação
imagética, na qual concorrem cenário, figurino, fotografia etc., uma vez que a ima-
gem, no cinema, é o elemento referente da textualidade que o compõe como texto.
Assim, podemos entender que essa imagem é verbo-imagética, é texto, fei-
to também de luz, som e sensação, que produz e transmite uma mensagem, e não
meramente um conjunto de movimentos sincronizados que os atores encenam.
A produção de imagens criadas mentalmente, por exemplo, pode ser exem-
plificada quando ouvimos um rádio, assistimos a um filme, a uma novela ou a uma
peça teatral ou participamos de eventos culturais, ocasiões em que somos invadidos
por sensações que provocam em nós a formação de uma imagem mental, evocada por
uma ligação imediata com elementos do presente (da realidade vivenciada pelo con-
texto atual) e do passado (de memórias experienciadas) etc. A audiodescrição produz
as imagens mentais no sujeito, constituindo-se nos efeitos de sentidos produzidos
entre os interlocutores da enunciação (BAKHTIN, 2000), mediadas pela mensagem
auditiva em transformação da imagem visual.
Nesta perspectiva, a audiodescrição ajuda a conhecer, a desvelar o que na
arte está contido, experimentando o ato de ler, de decodificar a “gramática visual,
corporal e sonora” presente nos signos do universo imagético, transpondo-a para o
mundo real dos sujeitos com deficiência visual, em particular.
Infelizmente, de forma muito restrita, o Governo não reconhece esse sta-
tus quando define a audiodescrição como meramente uma “narração”, em Língua
Portuguesa, integrada ao som original da obra audiovisual, contendo descrições de
sons e elementos visuais e quaisquer informações adicionais que sejam relevantes para
possibilitar a melhor compreensão desta por pessoas com deficiência visual (PORTA-
RIA MC nº 188/2010). A definição presente no texto governamental, assim disposta,
restringe conceitualmente a audiodescrição, tornando deveras simplória uma tarefa de
tamanha complexidade e importância social.
Mediante os desafios contidos no cenário da audiodescrição, desde aqueles
de caráter mais técnicos até outros localizados nas dimensões política, econômica e
social, reconhecemos que a execução da tarefa deve ser realizada por profissionais
competentemente preparados para refletir sobre as concepções, condições e princípios
para sua realização e além de seu papel ético e sociopolítico, o que implica a defesa de

49
uma formação que privilegie a perspectiva da reflexão na e sobre a ação que realizam
(SCHOON, 1999).
No aporte de tais argumentos, defendemos a ideia de que a audiodescrição,
bem como a formação desses profissionais, devem ser legitimadas e problematizadas
pelo campo acadêmico, o que requer, em muito, a ampliação de pesquisas e estudos.
Ante esse escopo, torna-se essencial o desenvolvimento de pesquisas que analisem
formas de audiodescrição que possam ser adotadas no cotidiano das artes visuais e
em movimento no País, dado que ainda são poucas as iniciativas de abordagem nesse
campo. A intensificação desses estudos possibilita a busca de conceitos adequados a este
ato tradutório, bem como no desenvolvimento de padrões estéticos que partam do enten-
dimento da audiodescrição como agente de interação sociocultural. (ARAÚJO, 2010).
O “Cinema em Palavras”, definição em poesis da audiodescrição na cine-
matologia, é a materialização da sétima arte para espectadores cegos13 e se justifica em
sua ordem de importância na sociedade inclusiva, como sendo

[...] a oportunidade de construirmos, videntes e cegos, um


novo conhecimento. É importante ressaltar o quanto a socie-
dade também ganha nesse relacionamento, que nos fornece
novos parâmetros para que possamos redimensionar os valo-
res de vida. Todos só têm a ganhar. (MACHADO, 2010, p.
149-150).

13 A Universidade Estadual do Ceará (UECE) desenvolve o “Projeto DVD Acessível”, patrocinado pelo
BNB, coordenado pela profa. PhD. Vera Araújo, cujo objetivo é proporcionar a pessoas com deficiência
auditiva ou visual a oportunidade de assistirem à produção cinematográfica de produtores cearenses, com
acessibilidade, por meio da legendagem e janela de LIBRAS para surdos e audiodescrição para pessoas com
deficiência visual. O projeto incorpora seis filmes (dois longas e quatro curtas) que estão sendo traduzidos.
Os de curta metragem são: Águas de Romanza (2002) de Patrícia Baía e Gláucia Soares; Reisado Miudim
(2008), de Petrus Cariry; Capistrano no Quilo (2007), de Firmino Holanda e Adorável Rosa (2008), de
Aurora Miranda Leão. Os de longa metragem são: O Grão, de Petrus Cariry (2007), e Corisco e Dadá,
de Rosemberg Cariry (1996). Além disso, o projeto objetiva discutir, com os produtores de DVD do país,
possibilidade de seus filmes se tornarem acessíveis. Os filmes de curtametragem são legendados e áudio-
descritos por participantes dos cursos oferecidos pelo grupo de pesquisa da instituição. Como parte desse
projeto, foram legendados e audiodescritos alguns filmes participantes do CINE CEARÁ, festival de cinema
que se realiza anualmente na capital cearense. Como destaque, pela primeira vez, em 19 anos de realização
do evento, aconteceu uma mostra de filmes audiodescritos e legendados, tendo ampla participação dos
alunos desses cursos. Os filmes traduzidos para esse evento foram: O Homem que Engarrafava Nuvens
(2008), longa de Lírio Ferreira; A Montanha Mágica (2009), curta de Petrus Cariri; Se Nada Mais Der
Certo (2008), longa de José Eduardo Belmonte; Capistrano no Quilo (2007), curta de Firmino Holanda, e
O Pequeno Burguês, Filosofia de Vida (2008) de Edu Mansur. (ARAÚJO, 2010, p. 102-103).

50
Em suma, estamos convencidas de que a audiodescrição encerra dois con-
ceitos basilares – inclusão e dignidade – agregando novas percepções na vivência dessa
expressão plena do humano, que é a arte.
Considerando que “para nova música, novos ouvidos” (BOFF, 1998), te-
mos na audiodescrição a mobilização eminentemente de “outros sentidos”, esse “algo
novo”, ainda desafiador para todos nós, que nos coloca diante da exigência de desen-
volvermos outros saberes e novas linguagens no grande palco da vida.

Referências

ARAÚJO, Vera Lúcia Santiago. A formação de audiodescritores no Ceará e em Minas


Gerais: uma proposta baseada em pesquisa acadêmica. In. MOTTA, Lívia Maria
Villela de Mello; ROMEU FILHO, Paulo. (Orgs.). Audiodescrição: transformando
imagens em palavras. São Paulo: Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do
Estado de São Paulo, 2010. p. 93-105

BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BERNARDET, Jean Claude. O que é cinema? 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BOFF, Leonardo. Nova Era: a civilização planetária. 3. ed. São Paulo, 1998.

BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. Lei n. 10.098/00. Disponível em: <http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L10098.htm>. Acesso: Mar. 2012.

FRANCO, Eliana P. C. Cardoso. SILVA, Manoela C. C. C. da. Audiodescrição: breve


passeio histórico. In. MOTTA, Lívia Maria Villela de Mello; ROMEU FILHO, Paulo.
(Orgs.). Audiodescrição: transformando imagens em palavras. São Paulo: Secretaria
dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010. p.23-42.

LIMA, Francisco José de. O traço de união da audiodescrição. Revista Brasileira


de Tradução Visual. v. 1. Ano 1. 2009. p. 1-24. Disponível em: <http://www.rbtv.
associadosdainclusao.com.br/index.php/principal> Acesso: Dez. 2011.

MACHADO, Bell. Ponto de cultura Cinema em Palavras – a filosofia do projeto


de inclusão social e digital. In. MOTTA, Lívia Maria Villela de Mello; ROMEU
FILHO, Paulo. (Orgs.). Audiodescrição: transformando imagens em palavras. São
Paulo: Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo,
2010. p. 138-150.

51
MOTTA, Lívia Maria Villela de Mello; ROMEU FILHO, Paulo. (Orgs.).
Audiodescrição: transformando imagens em palavras. São Paulo: Secretaria dos
Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010.

SCHÖN, Donald. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino


e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1999.

STAM, Robert. Introdução à Teoria do Cinema. 2. ed. Campinas, SP: Papirus: 2006.

WERNECK, Claudia. Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. Rio
de Janeiro: WVA, 1997.

52
EDUCAÇÃO ESTÉTICA E FORMAÇÃO TEATRAL NO
PROJETO NOVOS TALENTOS
Ana Cristina de Morais
Francisca Carla Matias Correia
Josélia Aparecida Guilherme

“A arte deve ser a base da educação”.


Platão.

Introdução
Este ensaio acadêmico tem o objetivo de analisar e apresentar a maneira
como a Educação Estética está sendo exercida na Faculdade de Educação de Itapipo-
ca – FACEDI, unidade acadêmica da Universidade Estadual do Ceará – UECE – e
quais os lugares e os sentidos que a arte assume nas atividades extensionistas da refe-
rida Faculdade como elemento constitutivo desse processo. Enfoca particularmente
as ações da atividade “Saltimbancos: arte-educação por meio do teatro”, como parte
do subprojeto “Arte-Educação”, que compõe o Projeto Novos Talentos (FACEDI/
CAPES).
Dadas as atuais demandas legais e existenciais para o estímulo das sensibili-
dades e potencialidades humanas, a realização do Projeto Novos Talentos possibilitou
o fortalecimento de um trabalho formativo com base na arte que criou um importante
diferencial no trabalho educativo da FACEDI: o despertar da sensibilidade artístico-
criativa dos envolvidos, a articulação e a troca de saberes tanto entre estudantes e
professores como entre pessoas diversas da comunidade local – da microrregião de
Itapipoca. Com efeito, essa instituição se mostra como um espaço muito fértil de
elementos capazes de ensejar reflexões fundamentais para a compreensão do tema em
foco. Com isso, indagamos: se a universidade é lugar de análise, produção e experi-
mentação de saberes, então, a arte, que é um tipo de saber criativo e estimulante da
crítica e da transgressão, não precisa estar mais presente no espaço universitário? Nesse
rico contexto de aprendizagens esta reflexão torna-se fundamental para o conheci-
mento de como acontece a formação estética das pessoas, para que se possa ensejar e
dotar de maior consistência as propostas arte-educativas desenvolvidas na UECE no
âmbito da formação profissional, pois, assim, a referida Universidade poderá dire-

53
cionar, de modo contextualizado e problematizador (FREIRE, 1996), seus esforços
formativos, bem como as próprias práticas estético-pedagógicas. Particularmente no
caso da FACEDI, foco específico de análise, a educação estético-artística se exerce de
múltiplas formas, a saber: componentes curriculares obrigatórios como arte-educação
e literatura infantil, atividades de pesquisa e projetos de extensão. Estes, por sua vez,
garantem uma efervescência peculiar para o espírito acadêmico no que tange a edu-
cação estética. No ano de 2011, os projetos extensionistas da FACEDI foram finan-
ciados pela CAPES, por meio do Projeto Novos Talentos que os reuniu em uma ação
interdisciplinar e possibilitou um apoio fundamental para impulsionar e fortalecer
tais atividades.
Com nosso trabalho de formação e produção teatral no Projeto citado,
pudemos visualizar a práxis artística em exercício, instrumentalizando os sujeitos en-
volvidos para o fazer teatral embasado num alicerce técnico, político e criativo.

Primeiras reflexões: a criação artística como práxis


A arte, como uma das formas de expressão e comunicação humanas, bem
como um tipo de saber específico, distingue-se de outras formas de conhecimento –
como a Ciência, a Religião, a Política e a Filosofia – principalmente pela linguagem da
qual ela se utiliza para se fazer e se expressar. Ao mesmo tempo, ela mantém relações
híbridas com esses campos de saber, o que nos amplia a percepção da complexidade
das ações humanas em seus múltiplos entrelaçamentos.

A manifestação artística tem em comum com o conhecimento


científico, técnico ou filosófico seu caráter de criação e inova-
ção. Essencialmente, o ato criador, em qualquer dessas formas
de conhecimento, estrutura e organiza o mundo, responden-
do aos desafios que dele emanam, num constante processo de
transformação do homem e da realidade circundante. O pro-
duto da ação criadora, a inovação, é resultante do acréscimo
de novos elementos estruturais ou da modificação de outros.
Regido pela necessidade básica de ordenação, o espírito huma-
no cria, continuamente, sua consciência de existir por meio de
manifestações diversas. (BRASIL, 2000, p. 32).

A linguagem artística é permeada pelo acionamento dos diversos sentidos


do homem e essa peculiaridade, por apurar a sensibilidade e promover atos criativos

54
de modo mais visceral, traz em si uma intensa potencialidade para a formação inte-
gral do ser humano se comparada a outras formas de conhecimento. Não podemos
negar, no entanto, que a ciência, por exemplo, não se aproprie da sensibilidade e da
criatividade para produzir conhecimentos. Se afirmássemos isso, estaríamos sendo re-
ducionistas a ponto de fragmentar o ser humano em polos supostamente antagônicos
e cristalizados: razão versus emoção. Além disso, a linguagem artística não se produz
apenas pela manifestação da emoção. Nela, também, há grande trabalho racional e
técnico, entrelaçado com as dimensões intuitiva, corporal e emocional. É preciso que
percebamos a criação artística a com base na fusão dessas diversas dimensões compo-
nentes do homem, pois este vive com o corpo inteiro. Ele não é um ser mutilado em
que pode sobreviver somente com a “cabeça” (razão) ou só com o “coração” (emoção).
A forma pela qual o conhecimento artístico se manifesta realça os aspectos
simbólico e lúdico da experiência humana, fazendo com que a arte seja dotada de uma
linguagem plena de magia que atrai as visões mais dispersas ou desinteressadas.
Para Nietzsche (1992), a arte é um instrumento ou linha de fuga em rela-
ção às verdades instituídas e solidificadas pela sociedade, pois sua composição é aberta,
fluida, e permite-se agir livremente, transgredindo, assim, os enquadramentos que
esses esquemas de verdades impõem.
Arte é devir. É fluência da expressão humana, que se manifesta entre os
espaços da liberdade onírica, imaginativa e da técnica. Efetivamente, arte não é mero
devaneio, nem simples improviso. É também razão, pois a linguagem artística integra,
em sua composição, diversos modos de pensar-sentir. Relativamente a essa integração,
Nietzsche faz alusão à unidade entre o apolíneo e o dionisíaco. Apolo, deus da or-
dem, da clareza e da harmonia; Dioniso, divindade da exuberância, da desordem e da
música. Para esse filósofo, o apolíneo e o dionisíaco, complementares entre si, foram
separados pelo excesso de racionalidade da civilização14.
A produção artística possui uma realidade multidimensional, onde se en-
trelaçam as dimensões sócio-histórica, político-ideológica e mágico-transcendental,
à medida em que se observam o período de sua composição, o estilo, a intenção e
as energias que a constituíram. Sua realidade ambígua, no entanto, pode apresentar,

14 Sobre essa discussão, ver Nietzsche, F. O nascimento da tragédia – ou helenismo e pessimismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992.

55
concomitantemente a essas dimensões, os aspectos a-temporais, a-históricos e a-políti-
cos, porque a obra de arte não tem a obrigação direta e fechada de exercer apenas um
objetivo – de militância, por exemplo – pois as subjetividades de quem a produz e de
quem a aprecia estão em constante efervescência perceptiva no contato com a obra.
Uma obra de arte legitimada socialmente – e é daí que ela passa a ser con-
siderada arte – e divulgada por muitas gerações, pode produzir sensações diversas em
quem a aprecia, independentemente do momento histórico e da intenção ideopolítica
em que seus criadores e apreciadores possuem.
Os sentimentos e as reações humanas são prenhes de possibilidades de
expressão e também de interpretação. Até mesmo uma tendência de arte politica-
mente engajada, como o Teatro de Brecht, pode ter seu objetivo “conscientizador”
transcendido pela interpretação dos apreciadores. E isso é algo grandioso na arte. Ela
vai além, leva os sentidos humanos a caminhos que atravessam as fronteiras da vida
ordinária, da realidade objetiva. Enseja, pois, amplidão do olhar, do ouvir, do falar,
ou seja, da totalidade do ser. Com isso, os artistas possibilitam o exercício da práxis. A
práxis artística transforma por si mesma, tanto no decorrer do processo criativo para
a elaboração das obras quanto no momento da apreciação e fruição do produto pelos
sujeitos expectadores. A atividade artística exerce sua práxis desde o momento em que
produz processos de humanização:

Na medida em que a atividade do artista não é limitada pela uti-


lidade material que o produto do trabalho deve satisfazer, pode
levar ao processo de humanização que – em forma limitada – já
se dá no trabalho humano até suas últimas consequências. Por
isso, a práxis artística permite a criação de objetos humanos ou
humanizados que elevam a um grau superior a capacidade de
expressão e objetivação humanas, que já se revela nos produtos
do trabalho. A obra artística é, acima de tudo, criação de uma
nova realidade, e posto que o homem se afirma, criando ou
humanizando o que toca, a práxis artística – ao ampliar e en-
riquecer com suas criações a realidade já humanizada – é uma
práxis essencial para o homem. Como toda verdadeira práxis
humana, a arte se situa na esfera da ação, da transformação de
uma matéria que perderá sua forma original para adotar outra
nova: a exigida pela necessidade humana que o objeto criado
ou produzido há de satisfazer. A arte não é mera produção
material nem pura produção espiritual. Mas justamente por

56
seu caráter prático, realizador e transformador, está mais perto
do trabalho humano – sobretudo quando este não perdeu seu
caráter criador – do que uma atividade meramente espiritual.
(VÀZQUEZ, 1977, p. 198-199).

Por tudo isso, não podemos minimizar ou depreciar o valor e o poder da


elaboração artística em detrimento de outras formas de atuação na sociedade. A práxis
artística é tão essencial para a humanidade quanto qualquer outra forma de práxis –
política, religiosa, científica, produtiva etc.
E, como forma de aprofundamento desse tipo de práxis, exaltamos a ideia
de Herbert Read, a sugerir que façamos um esforço educacional voltado para formar
pessoas capazes de criar. Em outros termos, para Read, o objetivo da educação precisa
ser o da “formação de artistas”, ou seja, formação de “pessoas sensíveis e eficientes
nos vários modos de expressão.” (READ, 2001, p. 12). Assim, com uma formação
estética que exalte a dimensão poética da vida e estimule os diversos sentidos, os seres
humanos poderão se ampliar no sentido de pensar/viver com o corpo inteiro e pro-
mover ações criativas, solidárias e emancipadoras em diversos campos de saber e em
diferentes setores da sociedade.
Por conseguinte, Augusto Boal, teatrólogo brasileiro, anuncia que todos
somos artistas em essência: atores sociais que exercemos múltiplos papéis cotidiana-
mente e esses são permeados de máscaras, desejos, frustrações, sentimentos e pensamentos
variados. Assumamos, pois, nossos desejos e nossas formas de “ser artista”! E viva o estado
de arte!

Educação estética no âmbito da extensão universitária na FACEDI/UECE


O tema da Educação Estética e da Arte na Educação tornou-se fonte de
crescentes debates nas últimas décadas, tanto em função da obrigatoriedade legal15
das Artes16 no currículo escolar, como pela emergência de um projeto pedagógico que

15 Desde a LDB de 1971 (Lei nº 5.692/71) as Artes se inserem no currículo escolar de modo obrigatório. Era
organizada em forma de “atividade educativa” chamada “educação artística”. Com a LDB de 1996 (Lei nº
9.394/96), sua obrigatoriedade se mantém em todos os níveis da educação básica, sendo reconhecida como
área de conhecimento, podendo ser oferecida em forma de disciplina ou de outras formas, dependendo do
projeto político-pedagógico da escola.
16 O termo Artes aqui se inicia com letra maiúscula para destacar a referência a arte como campo de
conhecimento em suas diversas linguagens – teatro, dança, música, artes visuais. Esta opção tem como
fonte o trabalho de Barbosa (2003).

57
mobilize os diversos sentidos humanos em detrimento da hipervalorização da dimen-
são racional das pessoas – valorização incompatível com a elaboração de um projeto
societário de bases éticas. E o campo de conhecimento das Artes tem esse poder de
contribuir para a educação dos sentidos – leia-se Educação Estética – rumo à forma-
ção ética como estética comportamental (MORAES, 2006): há aqui uma forte defesa
da “decência e boniteza de mãos dadas”, ressaltando as palavras de Freire (1996, p.
32). Assim, a escola e a universidade, como instituições legitimadas para tal empreen-
dimento educativo, precisam assumir a efetivação de saberes diversos que abranjam a
educação da sensibilidade, onde o campo das Artes tenha seu espaço de relevância e
de possibilidades para o desenvolvimento de um ensino rigoroso, crítico, ético e inte-
gral (SCHILLER, 1991). Aclamamos a concepção de Schiller (1991) sobre Educação
Estética como educação do sentimento na busca do belo nas diversas formas de atua-
ção humanas – politicosocial (ética), artística, espiritual etc. A perspectiva de Schiller
sobre a necessidade da Educação Estética poderá contribuir significativamente para
análises e proposições sobre o currículo e a formação estética de pedagogos. Schiller
dá ênfase à sensibilidade e à intuição, sendo estas interligadas à razão e voltadas para
a percepção e para a criação da beleza. Nesse mesmo sentido, abraçamos a defesa da
“educação pela arte” defendida em Herbert Read (2001), que reforça o pensamento
de Platão (2001) de que a Arte deve ser a base da educação17. Acreditamos nessas
asserções para a consolidação de um projeto educativo que possibilite uma formação
integral. Para Read, a educação possui duas funções básicas: estimular as potenciali-
dades (inatas) dos indivíduos e neles instituir a cultura vigente da qual ele faz parte.
Nesse processo educativo, a Educação Estética, como educação dos sentimentos, é
para o autor fundamental. De acordo com Read (2001, p. 12), o objetivo da educação
é a “formação de artistas”, ou seja, pessoas sensíveis e eficientes nos vários modos de
expressão.
A Faculdade de Educação de Itapipoca – FACEDI – em seus 28 anos de
existência, possui uma trajetória marcada pela presença de projetos de extensão. Espe-
cificamente em artes, podemos destacar a institucionalização, pelo Centro Acadêmico
de Pedagogia, do “Intervalo com Arte”, já nas primeiras turmas do Curso; tivemos

17 Observe-se que, desde a Antiguidade, a Arte era defendida como elemento básico para todo o processo
educativo. Mais recentemente, na década de 1940, Herbert Read e outros educadores dos Estados Unidos
reforçam essa defesa, apontando caminhos para a efetivação de uma educação pela Arte no âmbito da
educação formal.

58
também, na década de 1990, diversos estudantes bolsistas de Iniciação Artística, que
produziam música e teatro e que hoje fazem parte da Banda Dona Zefinha; atualmen-
te temos o Núcleo de Artes Cênicas da FACEDI – NACE – que possui dois grupos:
“Palavra Encantada”, de contação de histórias e o Grupo TU, de Teatro Universitário;
o Coral “Encantando a FACEDI”; o “Cine Itinerante” e o “Tubo de Ensaio” (Gru-
po de Teatro da Química). Todas essas iniciativas em educação artística possibilitam
um espírito universitário mais dinâmico, envolvente e alegre, características, segundo
Freire (1996), imprescindíveis ao processo educativo, por possibilitarem a sedução e o
chamamento à aprendizagem por parte dos sujeitos envolvidos (professores e estudan-
tes). Além disso, tais ações possibilitam a experimentação, a apreciação e a análise de
obras artísticas, elementos fundamentais ao processo de formação estética das pessoas.

A atividade “Saltimbancos”18: teatro, educação e criatividade em ação


A Faculdade de Educação de Itapipoca – FACEDI/UECE – possui, desde
2006, o Núcleo de Artes Cênicas – NACE – que, por meio do projeto Novos Ta-
lentos/CAPES, desenvolveu a atividade intitulada “Saltimbancos: arte-educação por
meio do teatro”, com uma proposta formativa em teatro. Com as ações desenvolvidas
pelo NACE, visamos a valorizar e aprimorar o potencial artístico-educativo de estu-
dantes e professores da FACEDI, por meio da pesquisa em Arte e da realização de
atividades cênicas articuladas com o núcleo temático curricular de Arte-educação, fa-
vorecendo a formação artístico-estética dos educadores da microrregião de Itapipoca.
O teatro na educação formal, seja na educação básica ou no ensino supe-
rior, pode acionar habilidades com origem no fazer teatral que ensejam a desinibição,
a autoestima, o fortalecimento de uma autoimagem positiva, a socialização, a execu-
ção de projetos coletivos, a criatividade, enfim, a promoção de uma formação estética
das pessoas, tornando-as mais perceptivas e sensíveis aos estímulos do meio em que
vivem. O Parâmetro Curricular de Artes – PCN - em relação ao ensino de teatro, nos
diz que,

Ao participar de atividades teatrais, o indivíduo tem a opor-


tunidade de se desenvolver dentro de um determinado grupo

18 A atividade “Saltimbancos: arte-educação por meio do teatro” faz parte do subprojeto “Arte-Educação”
que compõe o Projeto Novos Talentos. Esta atividade possui como perspectiva a educação estética e buscou
aguçar os diversos sentidos humanos e o olhar sensível de estudantes na ênfase de uma dimensão que,
muitas vezes, está apenas adormecida nas pessoas: a dimensão lúdica.

59
social de maneira responsável, legitimando os seus direitos
dentro desse contexto, estabelecendo relações entre o indivi-
dual e o coletivo, aprendendo a ouvir, a acolher e a ordenar
opiniões, respeitando as diferentes manifestações, com a fina-
lidade de organizar a expressão de um grupo. (BRASIL, 2000,
p. 83).

Em nossas atividades teatrais, de produção, ensaios e apresentação de es-


petáculos, vivenciamos essa realidade de trocas contínuas de saberes e de negociações
permeadas pelo diálogo, o que nos possibilita grandes aprendizagens. Tais trocas e
negociações não se realizam sempre sem tensões, mas isso não é algo negativo, ao con-
trário, a tensão própria das disputas de ideias é algo próprio da manifestação de uma
relação social que realmente possui diálogo.

As propostas educacionais devem compreender a atividade


teatral como uma combinação de atividade para o desenvol-
vimento global do indivíduo, um processo de socialização
consciente e crítico, um exercício de convivência democrática,
uma atividade artística com preocupações de organização estética
e uma experiência que faz parte das culturas humanas. (BRASIL,
2000, p. 84).

Realizamos o curso de formação teatral em duas etapas. A primeira delas


foi a de “formação de multiplicadores”. Promovemos uma oficina formativa realizada
entre os dias 28/03 e 06/04/11, sendo ministrado à noite, de 21h30min às 23h30min,
a pedido de diversos participantes, pelo fato de eles trabalharem e estudarem durante
o dia. Esta etapa do curso foi ministrada pelo ator e arte-educador, Cláudio Ivo, tendo
a intenção de aprofundar nossas potencialidades como arte-educadores entre os inte-
grantes do Núcleo de Artes Cênicas da FACEDI – NACE – bem como das escolas
locais. Esta etapa inicial durou quatro dias (totalizando 40 h/a).
A segunda etapa do curso, que ocorreu entre os dias 05 e 13 de julho de
2011, teve o objetivo de produzir peças teatrais para exibição pública. Este momento
se desenvolveu em cinco dias, totalizando 40 h/a. Essa etapa foi planejada e facilitada
pelas arte-educadoras Ana Cristina (que coordenou e subsidiou todo o processo),
Blenda Priscila, Josélia Aparecida e Renata Kelly. Contamos ainda com a assessoria
técnica de dois bolsistas do NACE: Francisca Carla Matias e Artur Vitor (todos

60
estudantes do curso de Pedagogia da FACEDI). O público-alvo deste curso foram
alunos e professores das escolas da região, sendo ministrado no auditório da FACEDI
nos dias 05, 06, 11, 12 e 13 de julho das 8 às 12hrs, no auditório da FACEDI. Foram
realizadas reuniões para a formação do plano de aula, onde as decisões tomadas em
conjunto com professora e facilitadoras resultou no plano de trabalho.
Destacamos como aspecto positivo a disposição e o entusiasmo de todos os
que participaram. Todos os exercícios propostos aconteceram com louvor. Quem es-
tava fazendo o curso demonstrava seu interesse pelo saber das artes cênicas. O aspecto
negativo que surgiu foi em relação à pontualidade dos cursistas, pois, provavelmente,
em decorrer da localização da FACEDI (que é um pouco distante da parte central da
cidade), lugar onde ocorreu o evento, nem todos conseguiam chegar na hora marcada
para o início do curso.
O Projeto Novos Talentos financiado pela CAPES, nos deu a oportunida-
de de ministrar um curso de teatro para alunos e professores da rede pública do Muni-
cípio de Itapipoca. Foi muito prazeroso e gratificante ministrá-lo, pois os participantes
realmente se entregaram ao mundo mágico do teatro.
A primeira etapa se caracterizou pela execução de alguns exercícios de can-
to, de percussão com o corpo, de jogos teatrais e de exemplificações de cenas baseadas
em improvisações. Como havia muita gente participando, 43 pessoas, o arte-educador
Cláudio Ivo apenas escolheu alguns atores para fazer demonstrações de cenas para que
os demais observassem.
Na segunda etapa da formação teatral, desenvolvemos diversos exercícios,
jogos teatrais e o improviso. Obtivemos como resultado duas cenas criadas pelos pró-
prios participantes – intituladas como “Toda mãe sabe” e “Azar não, um dia de cão”.
Apresentamos as cenas no auditório da FACEDI/UECE. Foi muito satisfatório ver
o resultado final, em que os espectadores aplaudiram de pé. Após a apresentação das
duas cenas produzidas, demos continuidade as atividades do NACE, ensaiando uma
peça teatral intitulada “Brincando com Veríssimo”, que é uma adaptação das crônicas
de Luis Fernando Veríssimo, escritor brasileiro. Essa adaptação foi feita pelo Rui Carlo
P. Moura, professor da FACEDI/UECE. A produção desta peça trouxe um importan-
te diferencial para o NACE: a inserção, neste Núcleo, de três estudantes das escolas
locais, que participaram da formação do Projeto Novos Talentos e que decidiram
fazer parte de um grupo teatral, o que consideramos um grande ganho para nosso

61
trabalho extensionista da Faculdade. Tal continuidade de participação dos estudantes
da educação básica no NACE expressa a importância do estímulo e apoio da CAPES
nos projetos de extensão universitária. Estamos buscando convidar mais pessoas das
escolas e da própria Faculdade para se envolverem nos trabalhos de formação e de cria-
ção artísticas promovidas pelo NACE, para que nossa ação multiplicadora se fortaleça
e se amplie cada vez mais. Com a peça “Brincando com Veríssimo” elaborada, fizemos
algumas apresentações na FACEDI (dia 13/09/11), na Casa de Teatro Dona Zefinha
(dia 19/10/11), importante espaço cultural de Itapipoca, na Semana Universitária da
UECE e na Escola Conceição Mourão, em Fortaleza (ambas as apresentações no dia
25/11/11). Estas apresentações contavam com um público considerável, numa média
de, no mínimo, 68 pessoas assistindo. Assim, o Projeto Novos Talentos explicita sua
relevância e seu nível de abrangência, possibilitando tanto uma formação artística
aos envolvidos quanto a oferta de produtos artísticos de qualidade para apreciação e
fruição estéticas do público.

Contabilizando alguns resultados da ação


Durante o desenvolvimento do curso, percebemos que nos envolvemos na
realização do estudo sobre o teatro e, mais que isso, conseguimos uma sintonia que
em poucos grupos existe. A formação teatral realizada na FACEDI subsidiada pelo
Projeto Novos Talentos foi capaz de explorar limites do campo acadêmico e buscar
nas escolas verdadeiros talentos, como bem assistimos no dia 13 de julho de 2011.
O curso feito em cinco dias, porém, demonstrou a necessidade de um
tempo mais extenso para o aprimoramento das performances dos atores e atrizes en-
volvidos nas duas esquetes. Reconhecemos a satisfação do público diante das apresen-
tações, o que demosntra potencial para as artes cênicas dos participantes do curso, mas
também os “limites” do grupo que encontra-se em fase de formação.
No decorrer do curso, fizemos exercícios que estimularam a imaginação e
criatividade, quando pediam para que criássemos pequenas cenas, estimulavam tam-
bém a disciplina do corpo, quando pediam que expressássemos diferentes sentimen-
tos, bem como a sensibilidade para representar esses sentimentos.

62
A relevância e a repercussão da formação teatral: “Os saltimbancos”
sob o olhar dos participantes
Para sabermos a opinião dos participantes do curso de teatro do Proje-
to Novos Talentos, fizemos uma enquete para registrar as impressões e os ganhos
dos participantes, como forma de avaliar o impacto deste Projeto na formação e nas
aprendizagens das pessoas. Esta enquete foi respondida e entregue por escrito pelos
participantes, ao final de cada uma das etapas do curso.
Iniciamos com a indagação: como você avalia este curso? Eis algumas res-
postas:

Importante, não só para minha vida profissional, mas tam-


bém, para minha vida pessoal, pois é um curso que nos ajuda a
mudarmos nossa atitude diante do que a sociedade nos impõe.

Prazeroso. Acho que quando passamos por determinados pro-


blemas na vida e mesmo assim ainda encontramos felicidade,
descontração, vontade de aprender algo, a vida se torna muito
mais bela e tudo flui de maneira espontânea e divertida.

Ótimo, porque nos proporciona uma melhor aprendizagem,


já que o intuito maior é trabalhar o teatro na escola.

Bom, pois rompe paradigmas que eu tinha com a visão que os


outros faziam de mim, o medo do ridículo, o medo de fugir
dos padrões etc. Melhorou minha coordenação motora.

Maravilhoso, nele temos a oportunidade de eliminarmos al-


guns pré-conceitos e interagir mais com nós mesmos. É um
curso que aflora nossa imaginação e alegra o interior.

Este curso foi muito proveitoso. Aprendi muitos exercícios


que vou trabalhar em sala de aula.

De modo geral, os participantes consideraram o curso de teatro muito


proveitoso e instigante. Isso representa um importante diferencial para ensejar a con-
tinuidade dessas pessoas nos trabalhos em arte-educação. Os respondentes destacaram
a alegria muito presente no grupo e as aprendizagens profissionais que obtiveram.

63
Outra pergunta que fizemos foi:  que importância você atribui a este curso
na sua formação profissional e pessoal?

Na minha formação profissional, preciso realmente de ativi-


dades complementares divertidas, que mexam com meus sen-
timentos; para melhorar meu currículo preciso de atividades
artísticas. No pessoal, acredito que esse curso, mesmo sendo
breve, me ajudou muito a conhecer a mim mesma e principal-
mente ajudou a superar um momento muito difícil que estava
atravessando.

O curso contribui bastante para meu processo de formação


inicial, pois o mesmo trouxe bastante dinamismo, proporcio-
nando tirar minha timidez, tendo em vista que o profissional
docente precisa ser bem ativo.

Além de ser um ótimo referencial, é um acréscimo em meu


currículo, ajudou a reforçar técnicas que facilitam ensinar em
sala de aula.

Grande importância, pois através destes aprendi muitas coisas


positivas, consegui tornar as minhas aulas mais dinâmicas e
melhorar a autoestima dos alunos.

Como destaques dessas falas, podemos enfatizar a contribuição do curso


de teatro proporcionada aos participantes no que se refere à diminuição da timidez e
da inibição, à ampliação de saberes práticos (jogos teatrais) para seu exercício profis-
sional e até mesmo contribuir para a autoestima e o autoconhecimento.

O conhecimento da arte abre perspectivas para que o aluno


tenha uma compreensão do mundo na qual a dimensão po-
ética esteja presente: a arte ensina que é possível transformar
continuamente a existência, que é preciso mudar referências a
cada momento, ser flexível. Isso quer dizer que criar e conhe-
cer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental
para aprender. (BRASIL, 2000, p. 20-21).

Perguntamos, ainda: que saberes você adquiriu e que lhe foram marcantes?
Aponte-os:

64
Fortaleci o sentimento de que devo estar inteira no teatro e
na vida. Desfiz alguns medos. Percebi quantas possibilidades
nosso corpo tem para se expressar (o meu corpo necessita se
expressar).

Os exercícios de voz, os movimentos corporais.

Improviso, trabalho em grupo, reflexão, meditação, dentre


outros.

Disciplina, concentração, relaxamento, criatividade e muitos


outros motivos.

Não julgar, não ter medo do ridículo, ser humilde, deixar de


reclamar. Além de reforçar minhas amizades. Aprendi a viver
um dia de cada vez. Conta-se também as práticas teatrais.

Interação, percepção, concentração, vontade de realizar.

Diversos saberes parecem ter sido assimilados e produzidos pelos parti-


cipantes do Curso, segundo os depoimentos ora enfatizados; tanto saberes técnicos
referentes à elaboração teatral como valores humanos que servirão para a vida toda.

[...] pode-se chamar de saber a atividade discursiva que con-


siste em tentar validar, por meio de argumentos e de opera-
ções discursivas (lógicas, retóricas, dialéticas, empíricas etc.)
e lingüísticas, uma proposição ou uma ação. A argumentação
e, portanto, o “lugar” do saber. Saber alguma coisa é não so-
mente emitir um juízo verdadeiro a respeito de algo (um fato
ou uma ação), mas também ser capaz de determinar porque
razões esse juízo é verdadeiro. Ora, essa capacidade de arra-
zoar, isto é, de argumentar em favor de alguma coisa, remete
à dimensão intersubjetiva do saber. Segundo essa concepção,
o saber não se reduz a uma representação subjetiva nem a as-
serções teóricas de base empírica, ele implica sempre o outro,
isto é, uma dimensão social fundamental, na medida em que
o saber é justamente uma construção coletiva, de natureza
lingüística, oriunda de discussões, de trocas discursivas entre
seres sociais. (TARDIF, 2007, p. 196-197).

Outra pergunta que fizemos foi: o que você poderia apontar como limita-
ções deste curso e da proposta do Projeto Novos Talentos? Cite-as.

65
A relação entre o tempo e as atividades propostas! Acredito
que uma formação de multiplicadores demanda trabalho vi-
venciado de cada um dos participantes. Para quem iniciou a
primeira formação em teatro, acredito ser difícil a multipli-
cação tendo em vista que demanda um trabalho pessoal e do
papel de multiplicar, diferentes entre si.

Apenas o pouco tempo de curso, a proposta é excelente.

O tempo, não tivemos tempo suficiente, talvez se tivéssemos


mais alguns dias, a aprendizagem seria melhor.

O tempo deveria ser maior, deveríamos ter mais aulas com o


mesmo professor.

A referência ao pouco tempo para a realização do trabalho formativo em


teatro foi uma constante nos depoimentos. Realmente, é necessária a continuidade
dessa formação para que os saberes sejam aprofundados e para que uma ação grupal
seja desenvolvida, como a criação de peças mais elaboradas e a apresentação destas em
espetáculos nos mais diversos espaços socioeducativos da cidade.

Considerações Finais
A realização do “Projeto Institucional Novos Talentos – arte-educação e
ciências naturais no contexto da educação básica: a FACEDI formando novos ta-
lentos para a vida cidadã” possibilitou a ampliação da efervescência artístico-cultural
no âmbito da FACEDI durante todo o ano de 2011. Essa movimentação criou um
ambiente bem mais rico de estímulos, de estranhamentos e, consequentemente, de
aprendizagens significativas tanto para alunos e professores da Faculdade como para
diversas pessoas da microrregião de Itapipoca que participaram das atividades ligadas
ao referido Projeto.
Entendemos que, com todas as iniciativas realizadas, com suporte no Pro-
jeto Novos Talentos, a FACEDI/UECE desenvolve a contento seu papel de produtora
e disseminadora de saberes, além de ampliar o acervo pedagógico e cultural dos pro-
fessores em formação. Com efeito, defendemos que a ideia de: “O professor precisa
ser um agente social dinâmico, capaz de articular saberes sociais, éticos e curriculares,
de trabalhar o conhecimento em relação à aprendizagem significativa de seus alunos”
(OLIVEIRA & NASCIMENTO, 2011, P. 43).

66
Como aspectos positivos que observamos na realização do Projeto Novos
Talentos, destacamos: o apoio financeiro da CAPES, por meio desse Projeto foi es-
sencial para darmos um salto qualitativo em nossos projetos de extensão e, particular-
mente, no Núcleo de Artes Cênicas – NACE; a interatividade dos integrantes do cur-
so foi espontânea, essencial para uma equipe de teatro e sempre importante para um
grupo novo; as peças de improviso foram aproveitadas, virando, inclusive, esquetes.
Elencamos ainda, alguns aspectos que consideramos negativos, como o
pouco tempo que tivemos para a formação teatral. Um tempo muito curto, pois con-
siderando o potencial de todos os presentes, teríamos muito mais a oferecer; todo o
Projeto Novos Talentos possui um tempo de duração muito curto – um ano – o que
compromete nosso trabalho de formação contínua, pois precisamos de financiamento
e de continuidade das ações. Apesar disso, estamos dando continuidade ao nosso tra-
balho; a segunda etapa do Curso, momento de elaboração das peças, teve um número
reduzido de participantes (dez pessoas), considerando-se a presença de 43 na primeira
etapa.
Fortalecemos nossa compreensão de que as Artes, em suas diferentes lin-
guagens, possuem um potencial bastante mobilizador de energias, em relação à criati-
vidade, pensamento crítico, interações sociais e à sensibilidade das pessoas. O ensino
de Artes é essencial, não diretamente para formar artistas, mas também para atingir e
desenvolver os diversos sentidos humanos.
As sementes deixadas pelo Projeto Novos Talentos, certamente, plantaram
no coração e nas mentes de todos os envolvidos alguns saberes instigadores da criti-
cidade, da autonomia, da autoestima, da liberdade e da criatividade, elementos que a
Arte consegue sabiamente acionar.

Referências
BARBOSA, Ana Mae (org.) Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo:
Cortez, 2003.

BRASIL, MEC. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394/96).


Brasília – DF: MEC, 1996.

BRASIL, MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais: Artes. Rio de Janeiro: DP&A,


2000.

67
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MORAES, Ana Cristina. “Dos sonhos de Schiller ao estado estético no século XXI:
devaneios e caminhos – possíveis? – para uma educação estética da humanidade”. In:
VASCONCELOS, J. Gerardo & SALES, Albio (orgs.). Pensando com arte. Forta-
leza: UFC, 2006.

NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia – ou helenismo e pessimismo. São


Paulo: Companhia das letras, 1992.

OLIVEIRA, E. Colares; NASCIMENTO, M. Valcidéa. Introdução à arte-educa-


ção. Fortaleza: UAB/EdUECE, 2011.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2001.

READ, Herbert. A educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SCHILLER, Friedrich. Cartas sobre a Educação Estética da humanidade. São Pau-


lo: EPU, 1991.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis-RJ: Vozes, 2007.

VAZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

68
A SÉTIMA ARTE COMO FORMAÇÃO ESTÉTICO-
PEDAGÓGICA: EXPERIÊNCIA INOVADORA NO
ÂMBITO DO PROJETO NOVOS TALENTOS
José Alex Soares Santos
Antonio Valricélio Linhares da Silva

A educação brasileira experimenta um conjunto de políticas públicas, nos


últimos anos, que altera o ritmo das escolas, bem como exige de professores e alunos
novas atitudes perante a formulação do saber. Avançam de uma ideia estanque de
conteúdo aprendido, para a noção de capacidade para a inovação. Com base nessa
perspectiva, docência e discência são desafiadas a buscar paradigmas novos, voltados
para a formação altamente qualificada, conhecer e ter o domínio operacional de tec-
nologias nascentes, fazendo do ensino e aprendizagem um constructo do pensamento,
criar, a fim de imaginar e agir, não mais somente memorizar e reproduzir.
Aqui estamos lidando com a possibilidade de potencializar o ser social para
que seja autônomo e livre, atuando com e para a coletividade. Como bem escreveu
Morin (2010, p. 47) “na educação, trata-se de transformar informações em conheci-
mento, de transformar conhecimento em sapiência”. Acrescentamos, aqui – de cana-
lizar a sapiência para a práxis transformadora em prol da justiça e igualdade sociais.

O cinema como arte-total: significados para uma aprendizagem crítica


No horizonte deste “tempo novo” para a educação brasileira, o cinema
surge como proposição imprescindível para constituirmos um ensino aprendizagem
que consiga potencializar a capacidade crítica de educadores e educandos para o exer-
cício pleno de sua atividade genérico-humana com o fomento de sua ampla formação
cultural. Como exemplo deste, tramita na Câmera Federal o Projeto de Lei nº 185/08,
de autoria do senador Cristovão Buarque, que prevê para os estudantes de Educação
Básica (escolas públicas e privadas) assistir ao menos duas horas de filmes nacionais
por mês. Para o Senador, autor do projeto de lei, “o cinema é a arte que mais facilidade
apresenta para ser levada aos alunos nas escolas”19.

19 Disponível em: http://www.cristovam.org.br/portal2/

69
Seguindo essa orientação, consideramos importante destacar o argumento
do professor Geovanni Alves (2010, p. 15) quando define o cinema como arte que
congrega todas as expressões artísticas em uma só, ou seja,

[...] o cinema é a arte-máquina, arte total, a arte mais com-


pleta do século XX, arte-síntese capaz de reunir as mais diver-
sas formas estéticas num sistema de imagens em movimento,
promovendo a compressão espaço-tempo e se apropriando da
subjetividade do sujeito-receptor, instigando a sua disposição
de virtualização com maior intensidade e amplitude. Por isso,
é arte superior, capaz de contribuir como meio estético para
a constituição da experiência crítica. Como forma cultural
de mediação estética, é capaz de desenvolver, num patamar
superior, a potentia de virtualização. A proposta de interpre-
tação do cinema como experiência crítica considera que o fil-
me é uma totalidade concreta aberta, capaz de “sugerir” um
complexo de temas significativos e eixos temáticos para uma
discussão sobre problemas crucias da vida humana que po-
dem ser apreendidos, de forma crítica, pelo espectador. Por
intermédio da problematização de temas sugeridos podem-se
discutir alternativas positivas radicais ao metabolismo social
do mundo contemporâneo.

A apropriação crítica (e compreensiva) do filme permite, por um lado, a


apreensão da forma e do sentido da obra fílmica em questão. Por outro lado, pode
contribuir para o desenvolvimento do complexo teórico-categorial utilizado pelo su-
jeito-receptor habilitado. Isto significa que a análise crítica do filme pode contribuir
para o desenvolvimento das ciências humanas, inclusa nesse campo a educação, nossa
área de interesse.
A relação do filme como objeto de reflexão crítica com o expectador pode
constituir experiência problematizadora capaz de propiciar um vínculo de compreen-
são hermenêutica e de dialogicidade plena.

[...] ao “dialogar” com a obra fílmica, o sujeito-receptor dialo-


ga, de certo modo, com sua tradição histórico-existencial. O
filme é apenas o elo mediador capaz de contribuir para a auto
-reflexividade crítica do sujeito-receptor. Tão logo descubra o
eixo temático essencial, o sujeito-receptor discerne os elemen-
tos compreensivos do filme. O intérprete esboça um projeto de
significação para todo o texto fílmico. (ALVES, 2010, p. 31).

70
Amparados por tal pressuposto, as atividades “A sétima arte como ferra-
menta pedagógica” e “Formação estética por meio da linguagem cinematográfica” –
integrantes do subprojeto “Cinema na escola: formando novos talentos para a cidada-
nia”20 – foram sendo consolidadas como experiências inovadoras e formativas, tanto
para educadores que atuam na educação básica, quanto para estudantes dos cursos de
licenciatura da FACEDI/UECE e de escolas de educação básica da rede estadual de
ensino, localizadas no município de Itapipoca.

A sétima arte no Projeto Novos Talentos – FACEDI/CAPES


A experiência adquiriu significação exponencialmente representativa den-
tro do Município citado, em função de este não possuir instalações de sala de cinema,
carência que potencializou a exibição de narrativas fílmicas e o acesso de muitos dos
participantes das referidas atividades à Sétima Arte. A projeção das películas na telo-
na impactou positivamente o público-alvo e despertou seu interesse em apropriar-se
criticamente do conteúdo dos filmes, pois tentamos preservar a qualidade técnica das
exibições21, porém, mais do que isso a qualidade do filme como conteúdo narrativo e
imagético. Efetivamente, as escolhas dos títulos para projeção passaram por criterioso
estudo, por defendermos a ideia de que um bom filme, com seus close-ups, revela as
partes mais recônditas de nossa vida polifônica, educando os telespectadores para a
visualização dos intrincados detalhes imagéticos da vida, da mesma forma que uma
pessoa lê uma partitura orquestral (PASOLINI, 1990).
Configura-se como resultante dessa experiência a imersão dos participan-
tes no deleite estético, articulado com formação pedagógica e crítica, consoante ex-
presso nas falas dos participantes:

20 O subprojeto CINEMA NA ESCOLA: FORMANDO NOVOS TALENTOS PARA A CIDADANIA


constituiu-se da exibição de filmes e documentários temáticos para educadores e educandos da educação
básica, estudantes das licenciaturas da FACEDI/UECE, os quais contemplaram temáticas do mundo do
trabalho, das relações sociais no universo do capital, questões ambientais, políticas e aspectos da cultura
nordestina. Tal subprojeto, na estrutura geral do Projeto Novos Talentos, continha, ainda, a terceira
atividade, denominada de “Produção de documentários”.
21 A sala de realização das atividades foi devidamente adaptada para proporcionar no público-alvo a sensação
de estar em uma sala de cinema propriamente dita. Com um potente aparato de som, completamente
desprovida de luz e com equipamentos de projeção de imagem com qualidade inquestionável tínhamos à
nossa disposição os instrumentos tecnológicos necessários para a viabilização qualitativa da experiência de
exibição de produções cinematográficas.

71
O curso trouxe novas oportunidades para eu ter uma visão
mais conceitual e uma opinião melhor sobre a sétima arte.
Trouxe-nos filmes que nunca tinha visto, como “Beleza ame-
ricana” e “Guerra de canudos”. Aprendi a distinguir filmes
muito comerciais e enlatados e que existem muitos filmes
desconhecidos que são bem trabalhados na direção, figurino
e atores.

Ao longo do curso tivemos a oportunidade de estar em con-


tato com um pouco do mundo cinematográfico. Também ti-
vemos a oportunidade de fazermos uma leitura dos filmes em
seus aspectos político, econômico, social e também a visualiza-
ção da importância de cada personagem na história.

A formação, do ponto de vista metodológico, compreende: a exibição do


filme, interlocução (facilitadores das atividades e sujeitos-receptores), categorização
das temáticas identificadas na narrativa fílmica, diálogo problematizador sobre as te-
máticas.
Ao tratarmos de noções sobre cinema, filme e o que constitui a lingua-
gem cinematográfica, adicionamos elementos essenciais para o desenvolvimento da
percepção e da compreensão estética da narrativa fílmica, bem como para o trabalho
pedagógico do filme na sala de aula ou numa comunidade. Essa característica das
atividades ligadas à Sétima Arte no Projeto Novos Talentos (FACEDI/CAPES) tem
sua síntese no seguinte relato:

A linguagem cinematográfica pode estabelecer uma visão mais


ampla das temáticas de cada filme. Foi muito interessante as
discussões após cada filme, fez com que os alunos absorves-
sem as idéias centrais de cada filme. Adorei participar desse
curso, pois foi gratificante para entender melhor a linguagem
do cinema.

Na objetivação de “A sétima arte como ferramenta pedagógica”, cabe


ressaltar a utilização de tutorial22 que auxiliava os participantes da atividade na

22 Este tutorial apresenta dicas de como utilizar as ferramentas dos softwares “NERO” e “POWERPOINT”
na produção de slides que contenham texto escrito, fotografia e imagem em movimento. O conteúdo
completo do tutorial encontra-se disponível no endereço eletrônico: http//www.lutemos.blogspot.com.

72
montagem de apresentações didáticas do conteúdo do filme, utilizando fotografias
e imagens em movimento (planos, cenas e sequência) de curta duração, recortadas
do próprio filme exibido e disponibilizadas didaticamente no formato de slides,
relacionadas às categorias identificadas. Esse recurso pedagógico pode ser adotado
pelos docentes em sala de aula para qualificar e dinamizar o conteúdo de seus
componentes curriculares perante seus discentes, em especial para alunos do ensino
fundamental II, ensino médio e de graduação.
Torna-se perceptível, desse modo que as experiências pedagógicas, no âm-
bito do Projeto Novos Talentos (FACEDI/CAPES), com a Sétima Arte nos conduzi-
ram à compreensão de aspectos relevantes da relação cinema e educação, particular-
mente, o uso do filme como recurso didático e pedagógico para professores e meio
de desenvolvimento da percepção estética dos jovens, até então, pouco familiarizados
com uma visão mais sensível e com a criticidade necessárias a uma boa apreensão do
sentido da obra fílmica e a relação da história abordada com o mundo concreto em
que está situado o ser social, mundo que necessita de melhor apreciação de tal ser.
Neste caso, destacamos aspectos, tais como o papel que o cinema pode de-
sempenhar na educação, com vista a contribuir para ampliação qualitativa da prática
pedagógica de professores e da visão de mundo de jovens estudantes-espectadores;
o questionamento e a contraposição visual e dialógica sobre a indústria cultural que
banaliza a desumanização e vulgariza imagens, dando a elas um sentido meramente
mercadológico, meio de indução ao consumo multifacetado, degradante e vazio; o
potencial educativo da imagem; a desproporcionalidade entre o volume e a velocidade
com que a informática e as novas tecnologias chegam à escola em relação às políticas
e práticas de cinema na escola, uma desproporção questionável, considerando o reco-
nhecido poder da imagem na vida das pessoas historicamente.
Ao refletir sobre esses aspectos, Leivas (2010), alerta para o fato de que a
imagem foi quase banida da academia e da própria escola, restringindo-se a estudos
específicos e exclusivos; enfim, há uma grande dívida e um enorme espaço aberto para
a relação cinema e educação nos espaços formativos da juventude brasileira.

A relação escola e cinema: desafios e perspectivas


A escola centra sua ação numa diversidade de projetos e práticas pedagógicas
que visam à apropriação da Linguagem e da Matemática e suas tecnologias,

73
fragmentadas na apreensão técnica da leitura e da escrita e no domínio de determinadas
habilidades no campo da Aritmética e da Geometria etc. Os componentes curriculares
de Matemática e Língua Portuguesa, sem desmerecimento de sua importância para
o desenvolvimento cognitivo e sociocultural dos estudantes, ocupam maior espaço
nos tempos escolares. A Língua Portuguesa, por exemplo, dispõe de nada menos do
que cinco horas/aula semanais, enquanto que Arte-Educação, Sociologia e Filosofia
ocupam apenas o tempo de uma hora/aula. Ao considerarmos essa distribuição de
carga horária e a forma como os componentes curriculares que dominam os tempos
escolares são conduzidos, cabe requerermos mais espaço no currículo escolar para
áreas do conhecimento que possam estimular a criatividade, criticidade e sensibilidade
humanas, com o intuito, inclusive, de ressignificar os conteúdos de Matemática e
Língua Portuguesa, em sua essência, reconhecidas como áreas de conhecimento,
fundamentais para o desenvolvimento da aprendizagem em geral.
Consideramos que, ao continuar como se encontra, esta forma converte-se
em contrasenso, ao comparar-se com o discurso da sociedade do conhecimento e da
informação. Na prática, a ocupação do tempo e do espaço curricular da escola atende
a esta sociedade tecno-cientítico-informacional para reproduzi-la ou tomá-la como
desejável. Um lugar de realização da illusio, de acordo com o esforço que cada um faz
para se apropriar das habilidades e competências ministradas na escola e fora dela.
Vendo mesmo a situação como realmente é, tais habilidades e competên-
cias, contudo, se resumem àquelas duas linguagens (Língua Portuguesa e Matemáti-
ca), já que a “vida cidadã”, convertida em trabalho explorado, exige pouca qualifica-
ção e baixa remuneração, caracterizando o que Quenzer (2005) chama de “inclusão
excludente”.
Por conseguinte, a relação cinema e educação é espaço em aberto e o desen-
volvimento da percepção estética por meio do cinema é algo distante da vida escolar
dos jovens estudantes da educação básica. Longínqua, também, se torna a formação
de professores inspirada na iniciação à Sétima Arte como experiência pedagógica e de
aguçamento da percepção crítica como leitura de mundo.
Esta compreensão faz parte das argumentações de Macedo e Alves (2010,
p. 8-9) quando assinalam que

[...] A formação dos cidadãos, formal ou informalmente, den-


tro e fora do universo educacional, está cada vez mais sujeita

74
a um discurso dominante e homogêneo, que ocupa todo o
universo audiovisual, sem que haja nas redes de ensino, meios,
métodos de decodificação, compreensão crítica autônoma
desse discurso. Não há, tampouco, a utilização sistemática
do cinema ou audiovisual como ferramenta pedagógica, seja
no enriquecimento do estudo das matérias oferecidas, seja na
promoção da transversalidade do processo de aprendizado da
grade curricular ou, ainda, como instrumento de expressão
dos alunos. Também não há disponibilização de formação,
quanto às linguagens audiovisuais e seu uso pedagógico, para
os corpos docentes das redes de ensino.

As experiências que vivenciamos com professores da educação básica e jo-


vens estudantes do ensino médio nos revelaram a riqueza de potencialidade de saberes
e a capacidade de gostar de algo tão banalizado ou secundarizado na escola – o filme
como uma obra estética, social e política, veículo de representação e formação de
imagens sobre o mundo na consciência do espectador. Nem nossas experiências com
cinema em sala de aula, nem o ponto de vista de professores e alunos que participa-
ram das atividades do Projeto Novos Talentos (FACEDI/CAPES), referentes à Sétima
Arte, serão os mesmos, depois de ver o filme como “reflexo estético da vida social”.
Isso significa que seja possível, por meio da análise fílmica, desenvolver um tipo de
experiência hermenêutica crítica capaz de enriquecer a práxis singular do sujeito-re-
ceptor (ALVES, 2010).
Tal é o resultado de uma abordagem didático-pedagógica que não só traba-
lha o filme por si, mas que também representa a passagem da consciência teórico-ca-
tegorial à experiência estética da catarse. Com base nesta suposição, partimos de uma
concepção de uso do filme em sala de aula não como mero instrumento para chegar à
explicação e entendimento de um conceito ou temática, mas de uma abordagem que
tem como ponto de partida a apropriação do filme como obra estética, suscitando o
tratamento com origem numa pergunta: o que é o cinema? Em seguida, passamos à
sua linguagem estética e ao que é o filme e como se constitui o sentido de sua narrativa
nas técnicas de filmagem, na fotografia e figurino, na trilha sonora, nos personagens
e no texto.
Outro aspecto relevante dessa experiência é o que aparece na fala dos par-
ticipantes das atividades formativas “A sétima arte como ferramenta pedagógica” e

75
“Formação estética por meio da linguagem cinematográfica”, sobre os professores-
mediadores, uma constante referência ao bom desempenho do trabalho pedagógico.
O fato revela a necessidade de os professores estarem bem preparados em termos de
conhecimento didático-pedagógico, saberes sobre cinema e relação deste com a edu-
cação e de saberem lidar com o estudo e a interpretação de obras fílmicas, para que
a experiência hermenêutica crítica catártica se realize. Isto significa que o ser social,
como sujeito histórico inacabado, por meio da catarse, pode superar seus limites e
vivenciar um processo educativo de reencontro com o gênero humano.
Nesse sentido, o professor que tenciona trabalhar de maneira mais subs-
tancial com cinema na escola, ou a escola que pretende incluir o cinema e a educação
como prática significativa para a formação estética, ampliação da visão de mundo e
da criticidade dos jovens estudantes, precisam se apropriar sistematicamente da lin-
guagem cinematográfica e do cinema como arte total. Este movimento pressupõe
compreensão dialética e crítica da relação cinema-educação e do uso do filme na sala
de aula, bem como a valorização da imagem na formação estética, cultural e verdadei-
ramente cidadã destes jovens.
Como bem analisa Alves (2010, p. 38), ao tratar da hermenêutica do filme,
articulada com a ideia de cinema como experiência crítica,

[...] na análise crítica do filme, precisamos está familiarizados,


num primeiro momento com as técnicas e convenções da lin-
guagem cinematográficas adotadas por um determinado fil-
me; enfim, devemos ter certa compreensão de seus “códigos”,
entendendo-se por isso, as regras que governam sistematica-
mente as maneiras pelas quais o filme expressa seus significa-
dos. A análise do filme exige, portanto, um sujeito-receptor
habilitado por uma rede de conhecimento social e conheci-
mento técnico geral que age como tese primordial a partir da
qual ele se apropria da obra fílmica.

Nessa perspectiva, a experiência com o cinema, nas atividades do Projeto


Novos Talentos (FACEDI/CAPES) foi adotada para apreender o sentido do filme e o
filme para aprender sobre cinema e sua linguagem. Tal premissa está de acordo com
o que indicam Miranda, Coppola, Rigotti (2000, paginação irregular) ao afirmarem
que: “não aprendemos a linguagem do cinema separado da história do filme”.

76
Os participantes dessas atividades verão desde já o filme de maneira dife-
rente, atentando para aspectos estéticos, para a produção e a direção, buscando captar
o sentido implícito na obra, a qualidade do filme quanto ao tema abordado, história,
roteiro, som e trilha sonora, imagem, fotografia, luz e movimento etc. As falas a seguir
são reveladoras da transformação efetivada na forma de ver o filme como objeto de
reflexão crítica, ou seja, capaz de nos dar uma autoconsciência histórica profunda de
nossas identidades:

As pessoas desenvolvem uma prática diferente de ver um fil-


me, por diversão, para obter entendimento, opinião e conhe-
cimento. [...] Também saí do curso com uma nova visão do
modo como eu via o filme.

Através deste curso pude abrir os olhos e interpretar o que re-


almente o filme quer nos passar. Não importando a categoria
[gênero], se de comédia, romance, documentário e etc., mas
perceber que todo filme tem sua mensagem a ser interpretada.

Ensinar a linguagem cinematográfica e os elementos que compõem a obra


fílmica, conjugados com uma perspectiva crítica que vê o filme não só como entre-
tenimento, mas também como obra estética permeada de sentido social, político e
ideológico, parece ser uma das mais importantes estratégias ligadas à relação cinema
-educação no espaço escolar, ou seja, propicia uma perspectiva mais filosófica do que
contemplativa e permite maior fruição estética do filme, forma o espectador crítico
capaz de perceber os nexos do real, presentes, na obra fílmica, rompendo com a de-
seducação do olhar e com a banalização da imagem, geralmente presa aos filmes mais
comerciais e dependente de uma forma televisiva do filme.

Referências
ALVES, Giovanni. Tela crítica: a metologia. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2010.

______. MACEDO, Felipe. Apresentação. In: ALVES, Giovanni; MACEDO, Feli-


pe. Cineclube, cinema & educação. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2010. p. 7-9.

KUENZER, Acácia Z. Exclusão includente e inclusão excludente... In: LOMBARDI,


José Claudiney; SAVIANI, Dermeval; SANFELICE, José Luís (orgs.). Capitalismo,

77
trabalho e educação. 3. ed. Campinas/SP: Autores Associados, 2005 (Coleção edu-
cação contemporânea). p. 77-95.

LEIVAS, Regina Zauk. Educação e cineclubismo em trânsito afetivo – “cineclubar”


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GOTTI, Gabriela Fiorin. A educação pelo cinema. Disponível em: <http://artigo-
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PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes: antologia de ensaios corsários. São Paulo:
Brasiliense, 1990.

78
PARTE II - NARRATIVAS
FÍLMICAS EM ANÁLISE
AMOR SEM ESCALAS23: TRABALHO, DESEMPREGO
E VIDA PESSOAL24
Giovanni Alves

O filme “Amor Sem Escalas”, de Jason Reitman (2008) possui como eixo
temático a problemática da relação trabalho e vida pessoal, um dos temas candentes
que emerge com o capitalismo global, tendo em vista que, sob as condições da crise
estrutural do capital, tempo de vida tende a estar cada vez mais reduzido a tempo de
trabalho. Deste modo, a precarização do trabalho oculta outra dimensão da precariza-
ção laboral: a “precarização do homem-que-trabalha”. Neste caso, como iremos tratar
adiante, corroem-se os laços pessoais do homem como ser genérico, isto é, a relação
do homem consigo mesmo e do homem com outros homens.
O filme é baseado no romance homônimo do escritor Walter Kirn, no-
velista estadunidense, crítico literário e ensaísta, nascido em 1961. O romance foi
lançado nos EUA em 2001. Ele trata de uma temática candente da época de crises
financeiras, quando as grandes empresas tiveram que se reestruturar, enxugando seus
quadros de pessoal. Submetidas à lógica do capital financeiro, os downsizing torna-
ram-se frequentes ante a instabilidade sistêmica. Foi neste contexto do capitalismo
global que emerge empresas dedicadas tão-somente a mediar o processo de demissão
em massa nas grandes empresas. Num certo momento do filme, o gerente da empresa
diz: “Os varejistas enfrentam um prejuízo de 20%. A indústria automotiva está mal.
O mercado imobiliário está apático. É um dos piores momentos já registrados nos
EUA. Este é o nosso momento.”

23 O filme “Amor sem escalas” tem como personagem principal Ryan Bingham (George Clooney) e sua
função consiste em demitir pessoas. Por estar acostumado com o desespero e a angústia alheios, ele mesmo
se tornou uma pessoa fria. Além disto, Ryan adora seu trabalho. Ele sempre usa um terno e carrega uma
maleta, viajando para diversos cantos do País. Até que seu chefe contrata a arrogante Natalie Keener (Anna
Kendrick), que desenvolveu um sistema de videoconferência onde as pessoas poderão ser demitidas sem que
seja necessário deixar o escritório. Este sistema, caso seja implementado, põe em risco o emprego de Ryan.
Ele passa então a tentar convencê-la do erro que é sua implementação, viajando com Anna para mostrar a
realidade de seu trabalho. Dirigido por Jason Reitman. Ano: 2008.
24 Este texto é um extrato da análise crítica mais desenvolvida do filme “Amor sem escalas” que compõe o
volume 4 do livro “Trabalho e Cinema” (Editora Práxis, no prelo).

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Ilusionismo e perversidade na arte da demissão
Demitir alguém torna-se arte da manipulação. É uma forma de perver-
sidade social, pois, nesse caso, o consultor motivacional deve preparar o empregado
para sua “desmontagem” pessoal: o desemprego desmonta a vida pessoal do homem
que trabalha. Na verdade, o filme expõe o capitalismo global como uma máquina de
“desmontar” pessoas humanas. No filme, não apenas as vítimas de desemprego são
desmontadas, mas o próprio personagem principal – Ryan Bingham - possui uma
“vida líquida” que flui, com muitos poucos laços humanos e sem compromisso afeti-
vo. Bingham é o forasteiro pós-moderno, herói solitário do capitalismo inglório, que,
com alta dose de cinismo e técnicas motivacionais, busca legitimar a perversidade da
demissão laboral.
Ryan Bingham (interpretado pelo ator George Clooney) tem por função
demitir pessoas. Ele trata em seu cotidiano com o desespero e a angústia alheios.
Ryan naturalizou o ato de demitir ou comunicar a demissão, buscando reconfortar as
pessoas. Faz aquilo com habilidade emocional, possuindo uma psicologia adequada
para lidar com o choque da demissão. Ryan parece aceitar seu trabalho como ele é. Ele
acata a sua vida como esta ocorre.
Talvez Bingham despreze seu trabalho, mas não o demonstra. Pelo contrá-
rio, aquilo se tornou uma rotina perversa que ele cumpre com frieza e habilidade pro-
fissional. Na verdade, aquele “Mundo do Ar” lhe é acolhedor: o deslocamento pelos
Estados Unidos da América “nas nuvens”, acumulando pontos no cartão de fidelidade
da empresa aérea e buscando bater um recorde extraordinário de pontos por milhas
aéreas lhe dão uma estranha satisfação pessoal.
No filme, Ryan Bingham sempre usa terno e carrega uma maleta, viajando
para diversos lugares do País. Talvez possamos comparar Ryan Bingham com um agen-
te funerário de esperanças e perspectivas de carreiras, que executa seu trabalho com
a frieza e habilidade profissional do coveiro; ou ainda compará-lo com aqueles pisto-
leiros solitários do velho Oeste, “matadores de aluguel” do capitalismo flexível, isto é,
assassinos de sonhos e anseios profissionais, carismáticos exterminadores do futuro.
Ryan Bingham, entretanto, é um personagem complexo. Primeiro, ele ape-
nas cumpre os desígnios do capital. É um mero executor da lei do valor que se impõe,
como entidade abstrata, a homens e mulheres que trabalham. Ele se recusa (e não tem

82
a pretensão) de ser um herói antissistema. Pelo contrário, ele se adaptou e cumpre sua
função sistêmica com disciplina e responsabilidade pessoal: comunicar às pessoas que
elas foram demitidas e reconfortá-las com o trágico destino. Ele quer fazê-las dar uma
resposta individual propositiva à tragédia da demissão.
Ante o desígnio inevitável do capital concentrado, a tarefa digna de Ryan
Bingham é tentar, com sua técnica motivacional, evitar que a demissão e o desem-
prego signifiquem a morte efetiva para aqueles homens e mulheres que trabalham
(é interessante observar que, em nenhum momento do filme, aparece o nome da
empresa que demite, que parece ser tão abstrata quanto o capital que domina, oprime
e explora).
Ryan Bingham criou um mote de consolo para dizer àqueles que comuni-
cam a demissão. Diz ele: “Quem construiu impérios e mudou o mundo passou por
isso. E por ter passado por isso obteve sucesso. Essa é a verdade. Crie uma nova rotina
e logo estará de pé de novo.”
Esta frase de Bingham é deveras interessante, pois expõe a ideologia do
convencimento perverso que o capital opera hoje no plano linguístico-locucional:
fracasso é sucesso; morte é vida. Sofrimento é redenção. Enfim, estamos diante da
ideologia da autoflagelação. Ora, perante o inevitável, só nos resta adaptar-nos ati-
vamente, visando a re-inserir-se com atitudes proativas, sempre individualmente, na
roda vida do sistema. Ou, melhor ainda: é importante – e decisivo – ver o lado positi-
vo da negatividade do capital. Como tratamos com destinos individuais, o consultor
motivacional deve ter perspicácia para verificar as possibilidades positivas contidas na
tragédia da demissão e do desemprego.
Ryan Bingham exerce o papel de ilusionista social. Ele deve ter a habilidade
profissional para fazer as pessoas demitidas acreditarem que outra vida é possível. Ou
melhor, fazê-las acreditar na positividade do estranhamento. Por exemplo, numa das
suas entrevistas, Ryan Bingham demonstra, com genialidade, a arte de transformação
do fracasso profissional em realização pessoal. Um homem demitido está inquieto:
não sabe o que dizer para mulher e filhos. Nesse momento, Bingham é acompanhado
pela jovem Natalie Keener, colega de trabalho que quer aprender – e exercitar – a arte
de demitir pessoas, reconfortando-as e instigando-as a atitudes proativas na superação
do desemprego.

83
No primeiro, momento, é a jovem Natalie Keener quem entrevista o ho-
mem demitido. Ela pergunta: “Subestima o efeito positivo dessa transformação sobre
seus filhos?”. A resposta dele é ironicamente contundente: “Efeito positivo? Ganho 90
mil por ano. O seguro-desemprego dá 250 dólares por semana. É um efeito positivo?
Ficaremos mais aconchegados sem pagar a prestação da casa, porque nos mudaremos
para um apartamento de quarto e sala. E sem os benefícios poderei abraçar minha
filha, que sofre de asma, já que não poderei pagar a medicação.”
Indiferente ao drama humano, Natalie utiliza um argumento tipicamente
tecnocrático para legitimar a barbárie social. Diz ela: “Os testes mostram que crianças
sob trauma moderada tendem a se empenhar academicamente como forma de colabo-
rar.” Indignado com a argumentação dela, o homem demitido exclama: “Vá à merda.
É o que meus filhos pensarão.”
Ryan Bingham percebe que a linha “tecnocrática” de argumentação utiliza-
da por Nathalie não funciona. É preciso utilizar outro expediente de convencimento.
Ele questiona o homem demitido: “A admiração de seus filhos é importante?”. Eis
o ponto nevrálgico da estratégia do convencimento a ser utilizada por Ryan. Deve-se
manipular a percepção (e autopercepção) que o homem demitido tem de seus filhos e
da sua família. Trata-se de elemento importante da constituição do self. Bingham ob-
serva: “Duvido que o admirassem”. O homem demitido fica intrigado com a observa-
ção, pois, segundo ele, Ryan devia consolá-lo e não questioná-lo. “Não sou terapeuta,
só vou alertá-lo”, diz Ryan.
A atitude calculada de Ryan Bingham é mais um elemento da estratégia de
convencimento: o distanciamento desinteressado como meio para legitimar o argu-
mento. Bingham só quer alertá-lo e nada mais. Ele interroga o homem demitido: “Por
que crianças amam atletas?”. E ele mesmo responde: “Crianças amam atletas porque
perseguem seus sonhos”. Eis a questão: o homem demitido deve perseguir seus sonhos
se quiser que seus filhos o admirem.
De modo hábil, Ryan sabia que o homem demitido tinha sido, há tempos,
especialista em cozinha francesa. Muito provavelmente, o sonho dele era ser cozinhei-
ro profissional. Em algum momento, entretanto, depois da faculdade, abandonara
o sonho, vindo a trabalhar na empresa que hoje o demite. Ryan pergunta: “Quanto
pagaram para desistir do seu sonho?”. E arremata: “E quanto pretendia pagar para
fazer o que gosta?”.

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O homem demitido, pondera e exclama: “Boa pergunta!”. E Ryan Bin-
gham conclui com sua lição de vida: “Vejo pessoas trabalhando na mesma empresa
a vida toda, como você. Chegando e saindo todo dia. E não têm um momento de
alegria. Então é a sua oportunidade, Bob! Isto é um renascimento. Se não fizer por
você, faça por seus filhos!”. Enfim, eis o sentido magistral da argumentação de Ryan: o
desemprego é uma oportunidade de renascimento pessoal. Ao perseguir seus sonhos,
Bob, o homem demitido, poderia reconquistar a admiração dos filhos.
Nesta cena, estamos no limiar do filme como representação ideológica. A
ideologia contida na narrativa fílmica de Up in the Air, porém, irá aparecer, em todo
seu esplendor, nas últimas cenas do filme, com os singelos depoimentos de homens
e mulheres demitidos. Como exige a operação ideológica que legitima o desemprego
como fato natural, expõe-se o desemprego como tragédia irremediável do ciclo da
vida econômica. Por exemplo, uma mulher demitida – e há muitos depoimentos de
mulheres demitidas no decorrer do filme – diz: “Há muita gente desempregada. Real-
mente não sei quando haverá luz no fim do túnel.”. Há também, no entanto, muitos
depoimentos de homens negros demitidos no filme. É curioso que é um homem
negro demitido que, a seguir, vai expressar a ideologia do filme. Diz ele: “Não sei dizer
do que me orgulho. Me orgulho dos meus filhos!”.
Aos poucos, essa linha ideológica de reconforto pessoal, por meio do reco-
nhecimento da vida familiar, se afirma nos depoimentos derradeiros do filme. No pri-
meiro momento, temos a autopercepção da redundância do trabalho vivo (“há muita
gente desempregada!) e da irremediável contingência da força de trabalho (“Acho que
a raiva vem do fato de que eu não era mais necessário!”). Depois, na segunda ocasião,
homens e mulheres demitidos são obrigados a reconhecer o valor da família e dos ami-
gos no reconforto do fracasso profissional. Por exemplo, um homem negro demitido
observa: “Diria que sem meus amigos e minha família, não teria conseguido”. Ou,
ainda, um homem branco observa: “Seria bem mais difícil se eu estivesse sozinho”. A
seguir, outro homem demitido diz: “Quando acordo de manhã, olho em volta e vejo
minha mulher. Aí sim, consigo ver sentido nas coisas.”
Os dois últimos depoimentos de demitidos na cena final do filme são de
uma mulher e de um homem negros (os dois maiores contingentes de gênero e de
etnia atingidos pela onda de demissões nos EUA). Diz a mulher: “O dinheiro mantém
você quentinho; ele paga a conta da calefação; ele compra o cobertor; mas ele não

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esquenta como o abraço do meu marido”. E o homem negro conclui, afirmando: “É
o que me permite levantar, sair e procurar alguma coisa: meus filhos são o sentido da
minha vida. Minha família.”.
Deste modo, percebemos como opera a ideologia legitimadora do desem-
prego. É importante observar que o desemprego em massa tornou-se, sob o capita-
lismo global, um problema estrutural que desconstitui o homem-que-trabalha. Em
razão da lógica da financerização, os downsizing tornaram-se práticas corporativas
constantes. O capitalismo global virou uma máquina de destruir carreiras profissio-
nais. Por isso, é necessário elaborar, de forma sofisticada, um memorando íntimo
capaz de autolegitimar o desmonte pessoal do homem que trabalha.

Fenomenologia crítica do homem desempregado


O filme “Up in the Air” contém uma série de depoimentos de homens e
mulheres demitidos, brancos e negros, a maioria na meia-idade, que ilustram o drama
humano exposto no filme. Trata-se de homens e mulheres condenados à exclusão
social, pois muitos deles, em razão da idade, terão imensas dificuldades de recolocação
profissional. Eles expõem, nas suas falas narrativas, uma deriva pessoal constituída
pela mescla de sentimentos de decepção, frustração e injustiça pessoal.
No seu íntimo, os demitidos ou desligados exclamam: “Não é justo!”. Por
exemplo, um deles, o primeiro depoente do filme, um homem negro, diz: “É isso que
eu ganho em troca de 30 anos de serviço?”. A seguir, uma mulher branca, observa:
“Tem muito peito em demitir a melhor funcionária daqui.” Outra diz: “É ridículo.
Tenho sido uma boa funcionária há mais de 10 anos, e é assim que você me trata?”.
Mais adiante, uma mulher demitida assevera: “Não estava esperando por isso...”. E
outra observa: “Estou frustrada. Dediquei a minha vida...”. Ou ainda: “Não é justo”.

A deriva pessoal do homem demitido


Decepção
Frustração
Injustiça pessoal
Sentimento de culpa
Perplexidade
Invisibilidade pessoal
Autoflagelação
Futuridade obliterada

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Ao lado da mescla de sentimentos de decepção, frustração e injustiça pessoal,
temos também, ali e acolá, sentimentos de culpa e perplexidade. Um homem branco
demitido exclama: “Fiz algo errado? Posso fazer de forma diferente?”. Ryan Bingham
tenta consolá-lo com argumentos obviamente inverídicos. Diz ele: “Não foi uma
avaliação da sua produtividade. Não é nada pessoal!”.
É claro que a demissão não foi nada pessoal, mas é improvável que a em-
presa não tenha utilizado uma avaliação de produtividade como critério de demissão.
Talvez o conceito de produtividade utilizado tenha sido outro totalmente diverso da-
quele convencional. Na época do capitalismo global, o conceito de produtividade é
tão fictício, quanto o próprio capitalismo. É produtivo aquilo que é adequado à valo-
rização do capital fictício. Isto significa que a produtividade não se mede pelo esforço
e dedicação pessoal dos empregados e operários. Por isso, a indignação e perplexidade
de homens e mulheres demitidos que se dedicaram de corpo e alma à empresa há anos
e que, de repente, são demitidos.
No primeiro momento, como expressam alguns depoimentos de homens
e mulheres demitidos, emerge o sentimento de culpa. Afinal a culpabilização das víti-
mas é um mecanismo ideológico recorrente no capitalismo global. Ante a perplexida-
de íntima de deriva pessoal, exclamam: “Por que eu? O que farei agora?”. É expressão
suprema de insegurança pessoal decorrente da situação-limite – o desemprego – que
equivale à morte social.
Na sociedade capitalista, o homem-que-trabalha só possui como meio de
subsistência pessoal a venda da sua força de trabalho. É por meio do trabalho assa-
lariado que as individualidades pessoais de classe elaboram sua identidade social e
pessoal. Como diz a canção, “sem o seu trabalho, um homem não tem honra e sem a
sua honra, se morre, se mata”. No caso de sociedades mercantis complexa, o emprego
estável contribui para o equilíbrio sociometabólico de homens e mulheres assalariadas.
O emprego como atividade profissional e o salário como renda monetária constituem
mediações essenciais para a afirmação da personalidade social burguesa, principal-
mente entre trabalhadores de “colarinho branco”, mais implicados no fetichismo da
mercadoria e que constituem a totalidade dos homens e mulheres demitidas do filme.
Como observou um demitido, o sentimento da demissão é como um sen-
timento de morte em família. Diz ele: “Dizem que perder o emprego causa o mesmo
estresse que morte na família. Mas, particularmente, sinto que as pessoas com quem

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trabalhava eram a minha família, e eu morri.” Morrer significa invisibilizar-se. Na ver-
dade, ele se estressa pela morte de si próprio. Deste modo, o desligamento do local de
trabalho – que aparece como “comunidade salarial” – é o desligamento da fonte vital,
demonstrado que, mesmo imerso no trabalho estranhado, o homem-que-trabalha en-
contra espaços de sociabilidade humana no interior das relações sociais instrumentais
que predominam nos locais de trabalho.
Como mediador do processo de desligamentos, Ryan Bingham é alvo ime-
diato da fúria dos homens e mulheres demitidos. Este é, com certeza, um elemento de
insalubridade emocional na profissão de Bingham. Ele executa o trabalho sujo da lógi-
ca da acumulação capitalista. Talvez ele se acha (e deve se achar) coautor das demissões
em massa. Bingham torna-se, de fato, “testa de ferro” das misérias do capital. Por
isso, como persona do capital e sendo, ele mesmo, do mesmo modo, oprimido pelo
próprio capital, ele representa, em si e para si, a contradição viva em pessoa humana.
Para quem vive nestas “localizações contraditórias de classe” (WRIGHT,
1985), os conflitos íntimos são intensos, muitos deles deslocados pelos mecanismos
de defesa do ego. Por isso, talvez as atitudes de Ryan Bingham, com respeito a sua vida
afetiva e seu radical descompromisso em assumir laços afetivos, sejam mecanismos de
defesa do ego. Na verdade, ele não quer se comprometer e justifica o seu desinteresse
em comprometer-se como uma forma de evitar sofrimento psicológico em decorrên-
cia da função profissional que exerce. Ele precisa negar para si aquilo que é intimado a
desconstruir nos outros. O curioso, porém, é que, mesmo assim, Bingham reencontra
irremediavelmente aquilo que nega para si: os laços familiares como último refúgio
contra o desmonte pessoal do mundo do capital.
Em razão do seu papel de “testa de ferro” do capital-em-processo, Ryan
Bingham é obrigado a enfrentar cotidianamente ódios e rancores voltados contra si.
Não é à toa que um homem demitido exclama: “Como consegue dormir à noite, cara?
Como vai a sua família? Eles dormem bem? Sua luz não foi cortada? Tem calefação?
A geladeira está cheia de comida?” Talvez, por isso, Ryan Bingham, homem solitário,
que resiste a constituir laços afetivos, é o homem perfeito para a sua profissão. Con-
vém que ele não conceba, nem sequer no plano da idealização possível, o desmonte
de sua vida familiar. Ele precisa estar suficientemente leve para se mover diante das
turbulências da vida liquida do capitalismo global. Na verdade, Ryan Bingham nasceu
literalmente para a sua profissão.

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As reações das pessoas demitidas e desligadas do emprego no filme expres-
sam um grau de consciência contingente da classe. Ante o desígnio abstrato da demis-
são injustificável – provavelmente, todas as demissões do filme sejam “demissões imo-
tivadas” – os homens e mulheres demitidos revoltam-se individualmente, não contra a
empresa, visto que ela aparece tão-somente como ente abstrato e se trata, na verdade,
de uma “sociedade anônima”; mas sim, contra o mediador imediato, o profissional
que está diante de si, comunicando a demissão e pior, procurando reconfortá-la. Um
dos demitidos exclama: “Mandam um idiota como você para me dizer que perdi o
emprego? Deviam tirar você do seu emprego”. Logo a seguir, outra observa: “Você
vai pra casa com muito mais dinheiro e eu vou sem o meu salário. Vá a merda!”. Ou
ainda: “Não sei como consegue viver consigo mesmo, mas dará um jeito, enquanto
nós sofremos”.
A reação de homens e mulheres demitidos é a reação de espontaneidade
da consciência contingente de classe, que impede a constituição da consciência ne-
cessária de classe na medida em que transfere a indignação imediata para uma pessoa:
o “bode expiatório”. A massa indignada não consegue ir além da miséria econômico-
corporativa, descarregando seu ódio e rancor contra uma pessoa imediata ou mesmo
uma empresa em particular. Deste modo, tornam-se incapazes de constituir, por si, no
plano da percepção e entendimento, as mediações ético-politicas do processo de criti-
ca social capaz de apreender a verdadeira natureza da sua condição de proletariedade.
Ryan Bingham e Natalie Keener, tanto quanto os homens e mulheres de-
mitidos, são vítimas oprimidas pelo sistema sociometabólico do capital. Tanto eles,
como os outros, estão irremediavelmente subsumidos à condição de proletariedade,
isto é, vivem numa situação de estranhamento social no sentido de terem diante de si,
obstáculos sociais (e institucionais) ao pleno desenvolvimento pessoal como ser gené-
rico (ALVES, 2010). Na verdade, a ideia de “capital” entendida como modo de con-
trole estranhado do metabolismo social é uma categoria teórica indispensável para a
constituição da perspectiva científico-radical de crítica da condição de proletariedade.
Bertold Brecht (1972) observou:

Creio que não percebe quão difícil é para os oprimidos torna-


rem-se unidos. A sua miséria une-os (...) Mas por outro lado a
sua miséria é capaz de separá-los uns dos outros, pois são for-
çados a arrancar as pobres migalhas das bocas uns dos outros.

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Deste modo, é ilusão acreditar que espontaneamente os oprimidos diante
de sua deriva pessoal possam unir-se e dar uma resposta coletiva às misérias humanas
provocadas pelo mundo do capital. Pelo contrário, a miséria do capital é tão contradi-
tória quanto o próprio capital – aquilo que une os oprimidos, também é capaz de sepa-
rá-los na medida em que não conseguem ir além da consciência contingente de classe.
Na mesma direção, o educador Paulo Freire (1994, p. 53) salientou:

À força de ouvirem de si próprios que são indolentes, que são


improdutivos, que nada sabem, os oprimidos se persuadem
da inferioridade de sua classe. Não se estranha, por isso, que
os trabalhadores que se tornam capatazes de seus antigos ca-
maradas, tomem uma posição ainda mais opressora do que
a que o opressor teria, neste sentido: o sonho do oprimido,
quando sua educação política é muito baixa, não é libertar,
nem mesmo libertar-se: seu sonho, sua utopia necrófila, é um
dia poder oprimir.

Significa que a miséria do capital possui a capacidade intrínseca de reiterar,


em si e para si, a alienação de homens e mulheres oprimidos, na medida em que ela,
de modo perversamente pedagógico, desconstitui a autoestima das individualidades
pessoais de classe. Deste modo, o processo de culpabilização das vítimas, o mais sofis-
ticado processo ideológico vigente no capitalismo global, é um modo de desconstituir
a capacidade íntima das pessoas reagirem, de forma radical, à miséria do capital.
Para libertar-se e libertar os outros, é preciso acreditar em si e não culti-
var sentimentos de inferioridade de classe. Caso contrário, os oprimidos encontrarão
como resposta contingente a sua opressão, a opressão de si mesmos, cultivando o que
Freire denominou “utopia necrófila”. É interessante que o psicanalista marxista Erich
Fromm salientou, na mesma direção, que o capitalismo tardio tende a disseminar, se-
gundo ele, um sentimento de necrofilia, isto é, uma vez na sociedade capitalista aliena-
dora, o homem perde o espontâneo amor à vida que se transforma alternativamente, em
terrível amor à morte (FROMM, 1983).
Nos depoimentos de homens e mulheres demitidos existe o sentimento
de preocupação com o futuro danificado. É uma preocupação incisiva que paralisa as
pessoas demitidas. O homem é um animal utópico, isto é, nossa práxis cotidiana é
mediada não apenas pelas experiências vividas no tempo-passado e tempo-presente,
mas também pelas experiências expectantes, experiências do tempo futuro no sentido

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de expectativas socialmente construídas. A modernidade do capital desligou homens
e mulheres dos laços de comunidade, jogando-os no mercado de trabalho. O capita-
lismo histórico, ao destruir os laços tradicionais da comunidade humana, afirmou o
estado de desamparo efetivo de homens e mulheres.
O desamparo é um dos traços da condição de proletariedade. Os existen-
cialistas apreenderam com vigor este traço dessa circunstância, mas o transformaram
numa condição metafísica – humana – e não numa situação histórica determinada pe-
las relações sociais do mundo do capital. Para os existencialistas – que se mantêm, por-
tanto, no ponto de vista da Economia Política, isto é, não têm uma visão histórica da
miséria social do homem – o homem é um ser jogado no mundo, destinado à morte.
Sob o capitalismo histórico, o emprego assalariado com benefícios de segu-
ridade social ou a carreira profissional fordista-keynesiana – a ideia de carreira vitalícia
– formulação histórica da época do capitalismo ascendente, tornou-se o laço social
possível capaz de garantir as pequenas utopias pessoais na preservação da família e no
atendimento às necessidades (como pagar a prestação de uma casa). Por exemplo, uma
mulher negra demitida assevera: “Não posso ficar desempregada. Tenho prestações da
casa e filhos.” Um homem exclama: “Como vou explicar à minha mulher que perdi
o emprego?”. Enfim, a demissão é a desconstituição das experiências expectantes e a
dissolução dos elos possíveis de identidade pessoal. Significa que, sem a providência
de segurança do emprego, não há utopia salarial possível.
Na verdade, a indignação dos demitidos decorre da captura de suas utopias
pessoais vinculadas às suas relações humanas essenciais inscritas na família. Embora
a ideologia da narrativa fílmica de Up in the Air, como salientado a pouco, apele
para a família como refúgio numa situação de demissão salarial, numa situação de
desemprego de longa duração e precarização do trabalho, é a família que é mais da-
nificada. Ela não escapa intacta da implosão das experiências expectantes vinculadas
à carreira profissional. Talvez, no primeiro momento, ela constituía efetivamente um
lar aconchegante capaz de amortecer a deriva pessoal. Na medida, entretanto, que o
desemprego se torna de longa duração, ocorrem abalos estruturais nos laços familiares.
A força do mercado se impõe com vigor.
A maioria dos homens e mulheres demitidos no filme é de meia-idade,
significando que devem ter dificuldades de encontrar empregos, pelo menos com
o mesmo padrão salarial. O espectro da exclusão social os persegue. Por isso, uma

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das negras demitidas só encontra na perspectiva da morte sua redenção pessoal. Ela
opta pelo suicídio. Em seu depoimento, ela demonstra firmeza de atitude. Age de
forma racional. Nada questiona com a jovem Natalie que a interroga. Não aceita ser
reconfortada. A demissão é quase um desígnio inexorável dos deuses. Diz: “Vou ser
demitida, certo?”. E depois exclama: “Não precisa aliviar. Conheço o procedimento.”
Apesar disso, ainda pergunta: “O que me oferecem?”. É no depoimento desta mulher
que se conhecem as indenizações oferecidas aos empregados demitidos. Diz Natalie
Keener, tentando, sem sucesso, aliviá-la. “É muito boa. Três meses de salário. Seis de
assistência médica. E um ano de serviços de recolocação no mercado”. A demitida
ironiza o serviço de recolocação oferecido: “Serviço de recolocação. É bem generoso”.
Sabe, porém, que as chances de encontrar outro emprego são diminutas. A mulher,
todavia, tem outros planos. Diz ela: “Tem uma bela ponte perto de casa. Vou pular
dela”. Trata-se de uma atitude de desespero racionalmente calculada.
Natalie transtorna-se com o plano de suicídio da pobre mulher. Não se
sente bem diante de alguém que decidiu renunciar a própria vida. Na verdade, Natalie
sente-se coautora da demissão suicida. Ryan tenta acalentá-la, dizendo: “Eles nunca
fazem isso”. Mais adiante, iremos ver que Ryan se enganou ao subestimar o que o
desespero provoca em certas personalidades singulares.
Um dos recursos psicológicos de defesa do ego que alguns demitidos mo-
bilizam para aceitar o inaceitável é conformar-se salientando que “eu não sou o úni-
co”. É preciso fazê-los se conformar com a demissão como destino. Por isso, um dos
homens demitidos observa: “Devia me sentir melhor por não ser o único?”. A ideia
de compartilhar um destino coletivo é tranquilizadora, entretanto, os mecanismos de
defesa do ego não agem de forma perene, como supõe o freudismo. Por exemplo, eles
encontram resistência interior na pré-consciência lastreada em sonhos expectantes que
não deixam de reconhecer a candente injustiça cometida pelo capital em processo.
Muitos dos demitidos sabem que não foram apenas eles a serem demitidos. Embora
isto contribua para reduzir o sentimento de culpa, por outro, lado não reduz a frustra-
ção e a decepção com o establishment.
Ryan e Natalie tentam convencer homens e mulheres demitidos de que
não existem caminhos de flores para o sucesso. Deste modo, os transtornos do desem-
prego devem ser encarados como etapas necessárias para a realização pessoal e profis-
sional futura. Diz Natalie, num certo momento, que o trabalho dela – e de Bingham
– deve ser “um processo que culmina com você se realizando num novo emprego.” Os

92
homens e mulheres de sucesso também passaram por dificuldades. Assim, o discurso
ideológico de Ryan e Natalie expressa um modo de convencimento espúrio utilizado
pela ideologia do capital que incorpora o apelo para a autoflagelação como meio da
redenção pessoal.
Autoflagelação e atitude proativa na busca de um novo emprego. É uma
prática ideológica que, ao lado da inculpação das vítimas, visa a legitimar, em última
instância, um ilusionismo social. É uma mera peça ideológica que não visa – é claro –
a convencer ninguém, mas apenas afirmar a farsa como modo de metabolismo social
do capital. Por exemplo, ao demitir o Sr. Samuels, de 57 anos – demissão a distância,
por meio da tela do computador – Natalie tenta convencê-lo de que melhores opor-
tunidades o aguardam. Samuels trabalhou 17 anos para a empresa e agora – diz ele
– “mandam uma estudante me despedir?”. E exclama: “Que merda é essa?”. Como
“testas de ferro” do capital, Natalie e Ryan nada podem dizer a não ser repetir o script
do convencimento espúrio: “Quem construiu impérios e mudou o mundo passou por
isso. E por ter passado por isso, obteve sucesso.”
É interessante que a psicologia do convencimento espúrio utilizado pelo
capital em sua prática ideológica incorpora um conjunto de sentimentos perversos de
manipulação da alma humana, utilizados, em tempos pretéritos, pela religião católica.
Por exemplo, a exploração do sentimento de culpa para cercear os carecimentos radi-
cais e a autoflagelação como recurso para obtenção do sucesso como redenção pessoal.
Na verdade, trata-se de um modo de esmagar a autoestima e paralisar a
capacidade humana de dar respostas radicais à opressão do capital. O capital mani-
pula hoje, de forma intensa, tais sentimentos de medo, culpa e autoflagelação como
recursos de dissuasão dos sujeitos humanos indignados com sua condição de prole-
tariedade.

Referências
ALVES, Giovanni. A condição de proletariedade. Bauru-SP: Práxis, 2010.
BRECHT, Bertold. Collected plays. v. 9. New York: Pantheon Books, 1972.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

93
KIRN, Walter. Nas Nuvens. Lisboa: Livros de hoje, 2010.

WRIGHT, Erik Olin. Classes. London: Verso, 1985.  

94
ASSALTO AO BANCO CENTRAL25: GRANA SUJA PARA
COMPRAR DESTINOS

Antonio Valricélio Linhares da Silva


Um plano até certo ponto perfeito. Um dos maiores assaltos a banco da
história é realizado em Fortaleza, sem disparos, sem acionar dispositivos de alarme
e sem registros nas câmeras de segurança. O cofre do Banco Central é assaltado na
noite do dia 5 para o dia 6 de agosto de 2005, conforme o plano da quadrilha que
contava com informações privilegiadas e experientes escavadores de túneis, como Tatu
(Gero Camilo). A quadrilha, imbuída de “espírito aventureiro”, tem bastante tempo
para fugir de maneira articulada e tramar falsas pistas, até que a polícia Federal inicia
as investigações dois dias depois na tentativa de prender os bandidos e recuperar os
184,7 milhões em notas de R$ 50,00. De Marcos Paulo, em sua estreia como diretor
de cinema, “Assalto ao Banco Central” tem como “principal ponto de foco da histó-
ria”26 o assalto. Para este ponto concorrem os personagens e a própria investigação do
crime pela equipe da Polícia Federal, chefiada por Chico Amorim (Lima Duarte). A
trama tem início com o planejamento, articulação de pessoas e informações-chave e
a composição do grupo liderado por Barão (Milhem Cortaz), homem aparentemente
frio e inteligente o suficiente para dirigir toda a logística do assalto. Barão tem caráter
forte, clareza do que quer, é habilidoso, observador, amoral, frio, estratégico, temido,
respeitado. Possui atributos que o fazem protagonista entre os demais personagens.
Nele reside o principal ponto de foco da narrativa. É ele, ao lado de Mineiro (Heri-
berto Leão) e de Doutor (Tonico Pereira), que nos dá o ponto de vista dos assaltantes
sobre o assalto, um “trabalho organizado, uma distribuição de renda, trabalho justo,
honesto”.

25 Esta película apresenta Barão (Milhem Cortaz) e sua mirabolante e fantástica ideia de ganhar muito
dinheiro em pouco tempo ao cometer o crime perfeito, sem violência. Para tanto, bastava arrumar as
pessoas certas, dispostas a receber R$ 2 milhões, botar o plano em prática e executar a façanha. Após cerca
de três meses de operação, R$ 164,7 milhões foram roubados do Banco Central, em Fortaleza, no Ceará.
Sem dar um tiro, sem disparar um alarme, os bandidos entraram e saíram por um túnel de 84 metros
cavado sob o cofre, carregando três toneladas de dinheiro. Foi o segundo maior assalto a banco do mundo.
Dirigido por Marcos Paulo. Ano: 2011.
26 Sobre este conceito referente à elaboração de roteiro, conferir Campos (2009).

95
O filme é uma ficção inspirada na história real do assalto, seus personagens
e roteiro, entretanto, não seguem necessariamente aos fatos e constitui obra de ação
com narrativa apenas aproximada e não deve ser entendida como a verdade sobre o
acontecido. O próprio delegado da Polícia Federal, Antonio Celso dos Santos, respon-
sável pela investigação real, considera que os livros e o filme sobre o assalto estão longe
de relatar os fatos com verossimilhança27. Mas o que interessa aqui não é uma crítica
da validade do filme em relação aos fatos, mas a obra fílmica.
A análise que segue é baseada na metodologia do projeto Tela Crítica, co-
ordenado pelo professor Giovanni Alves (2006), uma abordagem hermenêutica socio-
lógica de base dialético-materialista. O pressuposto básico da proposta metodológica
é o de que o filme é não só reflexo verdadeiro do real, mas forma mediada da própria
realidade, isto é, figura como uma forma de representação da totalidade das relações
sociais, embora centrado em uma parte destas relações. Nesse sentido uma análise fíl-
mica de viés crítico não é apenas uma crítica parcial e moral, mas uma experiência de
análise que exige a apropriação de categorias sociológicas adequadas às temáticas que
emergem da própria obra fílmica. Nenhum elemento imagético e sonoro do filme é
desproposital e sem nexo com a totalidade do real, mesmo numa ficção. Se uma obra
sociológica expressa categorias e conceitos de maneira sistemática, isso se apresenta na
obra fílmica (e no cinema), de acordo com Alves (idem), a partir de técnicas e expres-
sões estéticas produzidas em outros campos como a literatura, a pintura, arquitetura,
música, etc. Tudo isso compõe a forma do filme, além do caráter e dramaticidade dos
personagens, o roteiro, a montagem.
Por que este filme de um diretor estreante no cinema e sobre uma história
que nem retrata o mundo do trabalho, nem fatos históricos da política ou da cultu-
ra nacional? Qual o problema? Também sou estreante na análise fílmica, mas posso
arriscar que se trata de uma grande produção que envolve uma parceria com uma
importante produtora hollywoodiana, possui um bom roteiro e um grande elenco, in-
cluindo atores consagrados como Milhem Cortaz, Tonico Pereira e Lima Duarte. Não
só os filmes clássicos e os que envolvem temáticas sociais mais presentes em análise

27 A informação, seguida de um relato do próprio delegado com alguns detalhes inéditos do assalto, e
que guardam grandes diferenças em relação ao filme e aos livros, está disponível em: <http://noticias.uol.
com.br/cotidiano/2011/07/23/nao-ha-como-recuperar-mais-dinheiro-do-assalto-ao-bc-diz-delegado-dois-
estao-foragidos.jhtm>.

96
fílmica podem ser objeto de análise crítica. O filme aqui escolhido é visto ainda como
uma obra ideológica antes de ser uma boa composição estética mediadora do real.
Além do mais narra a história de caracteres de brasileiros e sugere temáticas bastante
relevantes para uma crítica da sociedade.
Pelo menos seis temáticas aparecem no filme, algumas das quais transitam
ao longo do roteiro textual e cênico, como é o caso do comunismo, (sua afirmação e
contradição personificados) sugerido explicitamente na composição do personagem
Doutor, que por acaso em sua caracterização tem 65 anos de idade, mesmo número
da sigla de um partido comunista nacional. Esse tema aparece sempre ao lado da
ideia de distribuição equitativa de bens e frutos do trabalho, como é o caso em que
Saulo (Creo Kellab), depois de algumas conversas com o comunista Doutor, acaba
por reivindicar a repartição por igual do dinheiro roubado; a religião de orientação
evangélica, uma temática bastante presente no cinema brasileiro mais recente, sendo
carregada por um único personagem, o Devanildo (Vinicius de Oliveira), sempre de
maneira muito intensa pelo drama no qual ele se vê entre o crime e a devoção a Deus,
entre o dinheiro e a conduta moral da fé, o pecado e a salvação. Ele opta pelo pecado,
mas sem se desvincular da fé.
Mas o tema que ocupa lugar central no filme e aqui nesta análise, e sobre o
qual vai se tecendo o espírito dos personagens do assalto, é mesmo o dinheiro: a razão
do assalto, a esperança numa vida de riqueza e sem trabalho, e ao mesmo tempo a
armadilha que desencadeou a perseguição de rapinagem de dois policiais aos desgra-
çados milionários cobrando o que se chama de cred-crime, uma extorsão recorrente
em crimes de assalto de grande monta. O dinheiro foi o veículo de dispersão e desba-
ratamento do grupo pela polícia: Carla (Hermila Guedes) separa-se de Barão por este
não aceitar sua sugestão de começar a gastar e viver como milionários, além de ter-lhe
negado a posse direta da grana, e fica com Mineiro na perspectiva de viver as aventuras
que o dinheiro pode pagar.
O dinheiro não tem outra forma de aparecer a um grupo de assaltantes, a
maioria com pouca instrução, senão como meio de compra para alimentar e realizar
os sonhos de consumo de quem viveu sempre uma vida cheia de carências (ou de
privações de consumo mesmo com muita grana na mão, dado ao risco de ser notado
pela polícia) ao lado da recorrência ao crime para se dar bem. Mas também aparece
no filme como meio de pagamento e de financiamento do crime, cuja sofisticação,

97
logística e infraestrutura demandavam grande volume, o que fazia a quadrilha parecer
uma verdadeira empresa. Neste caso o dinheiro reveste-se de sua forma capital, um
meio de investimento que visa à maior acumulação, uma valorização sem passar pelo
processo produtivo, mas que sem o trabalho duro dos escavadores não seria reposto,
uma reposição milionária para uma bagatela significativa do capital investido.
Não se trata aqui de uma valorização propriamente dita, porque esta pres-
supõe ao processo de trabalho e à relação de mercado por completo, uma circulação
completa do dinheiro como capital: D – M – D (dinheiro – mercadoria – dinheiro),
uma compra (na qual D – M envolve a produção), seguida necessariamente de uma
venda. Desse modo, a análise do fenômeno do assalto não pressupõe a busca de expli-
cação na mais-valia, uma vez que não há propriamente um processo de valorização via
de produção, pois o mais valor que iria para as mãos dos articuladores do assalto não
resulta do trabalho. Este é apenas um meio de chegar ao cofre do Banco Central. Lá
reside o valor monetarizado – dinheiro resultante da produção e circulação no largo
da sociedade produtora de mercadorias.
Considerando, contudo, que um pressuposto do dinheiro como capital é
que seu “ponto de partida é o dinheiro e o retorno ao mesmo ponto”, não encerrando
no consumo como na circulação mercantil simples (MARX, 2011), podemos quali-
ficar o dinheiro investido no assalto ao banco como capital, a empreitada do assalto
como empresa capitalista e seu manipulador (o Barão) como capitalista ou capital
personificado. Interessante que até o nome do personagem em questão agora sugere
uma personificação do investidor capitalista.
O assalto é uma modalidade de apropriação do dinheiro, ou da mercado-
ria, e mesmo que se contrate um grupo de assaltantes para realizar a obra da firma
(organização do crime) não se altera em nada o valor já constituído no montante de
dinheiro, aquele montante já está constituído enquanto portador de valor. Portanto
não faria sentido investigar abstratamente a empresa do assalto pala mesma lógica
esquemática do circuito D – M – D. Ao olharmos para o que é verdadeiramente um
investimento capitalista típico em termos de valores percentuais, o dinheiro que retor-
na às mãos do capitalista não chega a ser tão díspar proporcionalmente ao investido.
Aquilo que o banco guardava de maneira aparentemente segura, o dinhei-
ro em notas de R$ 50,00 (trabalho social cristalizado) é que poderia ser propriamente

98
objeto de estudo no sentido de mapear o processo de sua geração no meio das relações
materiais de produção capitalista.
Talvez por isso mesmo (pelo fato de o dinheiro do banco conter plasmado
em si as relações estranhadas, relações de exploração) é que Doutor não hesitou em se
associar ao plano de assalto ao banco. Ele não o fez somente pelo fetiche do dinheiro
(NETTO; BRAZ, 2009), como é o caso dos demais membros do bando. Sua razão é
mais ideológica que tipicamente material. O senso de distribuição da riqueza social e
a convicção leninista acerca do sistema bancário foram uma forte razão para ingressar
no assalto ao banco. A cena que é mais marcante ocorre logo no início do filme quan-
do Gouveia (Daniel Filho) facilmente convence o comunista Doutor de participar da
ação ousada que exigia a sua qualificação de engenheiro. Ela inicia quando Doutor se
apresenta ao escritório de Gouveia e depois de uma troca de ironias entre ambos, o ve-
lho comunista de inspiração marxista-leninista responde a seu interlocutor a pergunta
recheada de intenção sobre o que ele acha do sistema bancário: “Como dizia o Lenin
numa noite gelada, assaltar um banco não é nada perto de fundar um banco”. A per-
gunta foi a chave para contratação do engenheiro. A cena e as demais que envolvem
o personagem de Tonico Pereira e seus reflexos em trechos do filme marcam o caráter
ideológico da obra fílmica dirigida por Marcos Paulo.
Doutor, único do bando que não é preso nem assassinado, fecha sua par-
ticipação no roteiro do filme deliciando-se prazerosamente com um vinho nobre em
uma mesa de um refinado restaurante francês, fazendo o que Mineiro arrisca acertar
quanto à seu paradeiro, “a tal redistribuição de renda”. Aqui o personagem aparece
mesmo como o velho engenheiro utilizando o dinheiro do assalto, realizando um
sonho de consumo pequeno-burguês, o outro de seu traço identitário comunista.
Esta parece ser agora a razão material porque Doutor ingressara no espetacular assalto.
O velho comunista rende-se mais uma vez, entrega-se aos apetites incontroláveis do
mundo das coisas, deixando passar a idéia de que o comunismo e a revolução não
passam de ideais defasados, ou que não há mesmo alternativa à social democracia
burguesa. Mas o filme poderia levar em conta que o próprio liberalismo burguês e as
extravagâncias em torno do bem-estar ruíram a partir dos fenômenos recentes da crise
estrutural do capital. Parece, contudo, neste caso, que a preferência de Marcos Paulo
foi pela construção ideológica de um personagem pouco fiel aos seus ideais, um perso-
nagem incoerente (o que não é o mesmo que contraditório). Só não soou provocador,

99
embora desconfortante para muitos, porque Doutor não é mesmo uma representação
legítima de experientes comunistas que conhecemos e que a história mundial nos
legou. Ele estaria mais para um pretenso assaltante que para um defensor de ideais
libertários. Se fosse preciso deslocar a narrativa para os personagens coadjuvantes no
sentido de justificar sua inclinação ao crime, certamente explicariam melhor as razões
da adesão de Doutor ao plano e execução do assalto junto à quadrilha e revelaria a
identidade cínica e corrompida do engenheiro, que o faria emergir na história não
como um comunista que ingressou no crime por razões ideológicas, mas pela grana
fácil, igualando-se aos demais assaltantes.
Voltando ao tema do dinheiro, no livro “Toupeira”, de Roger Franchini
(2011), os aspectos simbólicos da mercadoria dinheiro e dos ideais de consumo dos
personagens centrais do assalto, aparecem de maneira mais explícita a exemplo do
cigarro Malboro dado por Alemão à Moisés, líder do grupo, que aparece no filme na
persona de Barão; o perfume francês oferecido como presente à Geniglei, a mulher do
assalto real, que no filme aparece retratada por Carla, além das referências de Moisés
e Alemão à garotas de programa gringas e festas de chamar a atenção da polícia na
Espanha. Referência a esse tipo de símbolo aparece também no filme como é o caso
de Carla que diz ter tomado um banho de loja na Itália a partir de um italiano rico
que escolhera. Ela agora é a mulher do Barão, o grande e respeitado líder do grupo,
certamente quem pode custear seu gosto por roupas caras e uma vida luxuosa.
Apesar da recomendação do experiente e seguro Barão de que o grupo não
devia gastar (nem se encontrar) o desencadeamento da parte pós-assalto no filme, e
que envolve o dinheiro, aparece na descoberta feita por dois policiais corruptos de que
uma amante de Léo foi vista em shopping gastando “tubos de dinheiro”. Esta infor-
mação fornecida pela mulher de um dos policiais despertou o interesse em saber como
Léo teria posto a mão em tanta grana28. Quase que por acaso os policiais concluem
que Léo participara do assalto ao Banco Central. Começa, então, a busca violenta dos
três aos outros membros do grupo, culminando no assassinato de Décio (Luciano
Casarré), sendo barrada somente quando a Polícia Federal prende de uma só vez uma

28 Na história real, “um dos líderes do bando, Raimundo Laurindo Barros, o Neto, foi sequestrado nove
meses depois de participar do assalto ao Banco Central. Para ser libertado, Neto deveria pagar R$ 400
mil para os sequestradores: um grupo de policiais civis.” (portal R7. Disponível em: <http://programas.
rederecord.com.br/programas/domingoespetacular/edicoes.asp?id=145>. Acesso em 1 de dez. de 2011).

100
parte do grupo de assaltantes, incluindo o Léo, quando o bando se acha dentro do
segundo erro, o de se reunirem.
Outro símbolo de consumo dos ladrões de altos vultos de dinheiro está não
só no usufruto de carros importados, mas também no ideal de uma grande fazenda ou
de uma grande casa. Alemão, personagem real do assalto, depois de ser vigiado e visto
em concessionária de carros, é preso numa fazenda em Brasília. No filme, Caetano
(Fábio Lago) não se surpreendendo com a chegada do delegado e seu assistente em sua
casa, pensando se tratar de mais um bando de policiais corruptos a tentar extorqui-lo,
revela com risadas que acabara de investir sua grana em um casarão. Aqui o uso do
dinheiro é uma forma de lavagem aparentemente segura das notas sujas do assalto,
uma “higienização”.
Como já vimos, a participação de Devanildo dá uma carga dramática mui-
to intensa ao filme, primeiro na cena em que ele cede à curiosidade (ato de que nin-
guém se furtaria) e descobre o túnel. A trilha sonora não podia ser melhor para fundir
o encontro do sagrado em Devanildo com o profano do mundo do crime, fazendo
uma orquestração de som e uma harmonia entre a atuação do ator, o movimento e a
imagem à meia luz perfeitos, uma cena realmente marcante e que certamente toca o
espectador. Logo a seguir, a segunda cena narra o desespero de Devanildo prostrado
diante de Barão quando este quase o mata por descobrir o crime e contra este expres-
sar rápida desaprovação. O fiel, humilde e ingênuo Devanildo se desespera levando o
espectador consigo à uma grande carga emocional. A mesma trilha sonora retorna na
cena onde Devenildo tenta distribuir os volumes de cinqüenta reais com a Igreja. Ele
acaba cedendo apenas uns poucos blocos, os quais aos olhos grandes do pastor (Mil-
ton Nascimento), também tomado pelo “fetiche” do dinheiro, acha pouco. O olhar
penetrante do pastor parece tentar ir ao fundo da alma e da consciência de Devanildo,
mas este já se achava resoluto e convencido de que fizera seu acerto com Deus, sem
mediações.
Saulo também é capturado pelo fetiche do dinheiro. Depois de ver o mon-
tante reivindica uma divisão igual de 15 milhões para cada membro do grupo. A outra
inspiração para esta reivindicação é exatamente a orientação comunista particular-
mente assimilada por Saulo de suas conversas instrutivas com Doutor. O problema é
que não se trata de uma reivindicação no mundo das relações de trabalho formais do
sistema do capital, mas do sistema informal do crime. Inicialmente seu intento soa

101
justo perante o bando, mas a justiça não está no universo de Barão da mesma forma
que está no pensamento de um comunista que a vê num plano social maior, numa
totalidade de relações, embora não seja isso a representação fiel da persona de Doutor.
É que Barão julgava estar fazendo uma justa divisão segundo a lógica da firma que ele
representa e não uma divisão de natureza moral e equitativa. Por isso mesmo e por sua
própria natureza é que Barão mata Saulo.
Não poderia passar sem ser vista a vacilação de Firmino (Cadu Fávero) em
assumir ou não a identidade de Barão. Seu medo estava em ter que assumir o que ele
não era e ao mesmo tempo chamar para si a responsabilidade pela autoria intelectual
do crime, o que lhe renderia a pena máxima entre os membros da quadrilha. Hesitou,
mas logo que Gouveia sugere grande volume de dinheiro, Firmino se rende e resolve
assumir a identidade de Barão, o que poderia por termo à investigação conduzida por
Amorim – afastado do caso por uma misteriosa carta de aposentadoria compulsória
que lhe pega de surpresa, possível reflexo de corrupção policial.
Outras temáticas poderiam ser discutidas, mas não ocuparam no filme um
lugar de destaque que merecesse atenção analítica mais extensa. É o caso da dupla
identidade dada à polícia, uma marcada pela corrupção entre altos e baixos membros
de sua hierarquia, e a outra figura-se como idoneidade moral e profissional de muitos
de seus oficiais, como é o caso da equipe de investigação comandada pelo delegado
Amorim. Esta sim representa o ideal da forma do Estado de direito, o que busca ga-
rantir a segurança dos indivíduos e o direito da propriedade privada. Ou ainda caberia
uma análise da investigação criminal aos interessados neste campo de estudo.
Há ainda uma crítica ao serviço público, considerado por Doutor como
um problema por ser dominado pela empresa privada. Uma referência a uma das
críticas ao caráter privatista do Estado neoliberal brasileiro que plasmou em parte
a mentalidade político-ideológica dos partidos de esquerda nos anos de 1990. Mas
temáticas como estas são apenas auxiliares bem secundárias na construção da narra-
tiva de “Assalto ao Banco Central”. O aspecto dramático e a composição do caráter e
emoções dos personagens poderia ser objeto de estudo aqui, mas fiquemos com esta
análise que centreliza-se da categoria dinheiro, emergente do próprio filme. O chama-
do “espírito aventureiro” do brasileiro sem dúvida concorreu para que se formasse um
grupo tão ousado, aliado à perícia de homens como Doutor e Tatu.

102
A tese da “aversão ao trabalho”, de Buarque de Holanda (1995), que ins-
piraria o povo brasileiro não se aplica ao marginal, muito menos a povo trabalhador.
O marginal na figura dos assaltantes que sonham em ter muito dinheiro e nunca mais
ter que trabalhar é, na verdade, um efeito de uma sociedade cujo planejamento é feito
do centro para a periferia, baseada numa lógica competitiva, seletiva e excludente,
ao passo que suas políticas públicas são voltadas para a reprodução da desigualdade
social, tão cara à doutrina neoliberal. Por outro lado, a suposta “reduzida capacidade
de organização social” também parece não se aplicar aos marginais que formam qua-
drilhas cada vez mais articuladas, verdadeiras redes sociais do crime com ramificações
por todo o território brasileiro.
“Assalto ao Banco Central” não deixa fácil a decifração das temáticas cen-
trais, muito menos o centro da narrativa para um iniciante em análise fílmica. O
assalto em si, objeto que marca o gênero do filme e que é o principal ponto de foco
da história, parece ser o tema de maior relevância para a análise, mas depois de ob-
servar cuidadosamente os personagens (sujeitos que veiculam a narrativa) vemos logo
sua relação com o dinheiro e suas manifestações reificadas. Foi assim que o dinheiro
emergiu como principal no meio das outras temáticas. Vendo agora é possível notá-lo
como tal até quando aparece na música La Plata, de Jota Quest, que rola na cena em
uma casa noturna onde se encontram Mineiro, Tatu, Barão e Carla. A investigação
orbita em torno do assalto e parece ocupar o centro da narrativa, mas a verdade é que
o desenrolar da história se confunde com o assalto mesmo, de forma que o êxito da
análise depende bastante de nossa experiência crítica e a metodologia sugerida para
a análise fílmica, tanto para apropriação estética e analítica do filme, quanto para a
percepção dos nexos essenciais da sociabilidade moderna, como sugere a metodologia
do Tela Crítica.
No mais, embora eu não seja um crítico de cinema, considero o filme de
Marcos Paulo como uma excelente produção em termos de forma estética e conte-
údo, mesmo que algumas cenas ou clichês pudessem ser evitados e substituídos por
elementos do imaginário do bandido. De qualquer modo, as críticas de cinema que
circulam pela internet não reduzem o valor de “Assalto ao Banco Central”. Para um
cinema que tem experimentado pouco o universo da ficção policial, ou do gênero
ação, parece que estamos indo bem.

103
Referências

ALVES, Giovanni. Trabalho e cinema: o mundo do trabalho através do cinema.


Londrina: Práxis, 2006.

CAMPOS, Flávio de. Roteiro de cinema e televisão: a arte e a técnica de imaginar,


perceber e narrar uma estória. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

FRANCHINI, Roger. Toupeira: a história do assalto ao banco central. São Paulo:


Editora Planeta do Brasil, 2011.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 29. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.

NETTO, José Paulo, BRAZ, Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica.
5. ed. São Paulo: Cortez, 2009. (Biblioteca básica de serviço social; v. 1).

104
A DIDÁTICA ENTRE A CONFORMAÇÃO E A
CONTESTAÇÃO SOCIAL: ANÁLISE À LUZ DO FILME
ESCRITORES DA LIBERDADE 29

Carlos Bonfim30

O filme Escritores da Liberdade (Freedom Writers, de Richard LaGravene-


se, EUA, 2007) é uma ficção baseada em fatos reais, inscritos nos diários coletados dos
alunos da sala 203, da escola pública de ensino médio Woodrow Wilson, em Long
Beach, Califórnia (EUA). Do modo como foi dirigido e editado, o drama suscita ele-
mentos importantes para a análise e a reflexão sobre a educação escolar na sociedade
contemporânea.
Dentre os vários elementos acendidos, este ensaio preferiu focar sua análise
na didática promovida pela personagem central do filme, a professora Erin Gruwell
(interpretada pela premiada atriz Hilary Swank). Isso com o seguinte problema: para
qual finalidade social a personagem pensou e trabalhou didaticamente a função re-
produtiva da escola? Para a conformação ou para a contestação social? Antes do deli-
neamento da questão, no entanto, em primeiro lugar carece situar os acontecimentos
reais que serviram de base para o enredo ficcional do drama.

O enredo e o contexto
Do ponto de vista conceitual, pode-se dizer com Marx e Engels que a
história não faz nada, não possui nada, não combate nada, pois ela não é um ente,
um sujeito. Ao contrário, dizem eles, “são os indivíduos reais e vivos que fazem tudo,
possuem bens e lutam nesses combates”. E concluem: “a história não passa de ativida-

29 Hilary Swank atua nessa instigante história como Erin Gruwell, envolvendo adolescentes criados no
meio de tiroteios e agressividade, e a professora que oferece o que eles mais precisam: uma voz própria. A
personagem Erin Gruwell combate um sistema deficiente, lutando para que a sala de aula faça a diferença
na vida dos estudantes. Agora, contando suas próprias histórias, e ouvindo as dos outros, uma turma de
adolescentes vai descobrir o poder da tolerância, recuperar suas vidas desfeitas e mudar seu mundo. O filme
“Escritores da liberdade” é baseado em fatos reais. Dirigido por Richard LaGravenese. Ano: 2007.
30 Dedicado a Claudiana Maria Nogueira de Melo, grande educadora e meu amor.

105
des dos indivíduos em busca da realização de seus próprios fins e interesses.” (MARX
& ENGELS, 1972, p. 140).
No filme “Escritores da liberdade”, essa parece uma das lições que a per-
sonagem Erin Gruwell implicitamente sugere à sua turma de alunos originários dos
grupos da classe popular, considerados “turbulentos”, com grande número envolvido
com gangues.
Segundo Marx, entretanto, a história “não é feita tal como os indivíduos
querem; pois eles não a fazem sob as circunstâncias de sua escolha arbitrária e sim
mediante aquelas com que se defrontam diretamente dentro da sociedade, legadas
e transmitidas pelo passado.” (MARX, 1997, p. 21). Isso não é diferente quanto ao
enredo de “Escritores da liberdade”; ao se basear em fatos reais, as ações e relações que
constitui em contexto da história dos alunos e da professora Erin Gruwell são legadas
e transmitidas pelo passado remoto e próximo, comum à particularidade da formação
social capitalista dos Estados Unidos.
As circunstâncias legadas e transmitidas pelo passado remoto conjugam-se
de inúmeras décadas de “subjugação e segregação racial” relativa aos “afro-america-
nos”; conjugam-se de desenfreados preconceitos e discriminações às minorias étnicas
de origem latina e asiática, grande parte resultante da imigração legal e ilegal, para
atender aos conceitos do mercado de trabalho capitalista, ou seja, oferta abundante
de força de trabalho para ser explorada legal e ilegalmente; circunstâncias discrimina-
tórias que nem a ideologia da “liberdade de mercado” cultuada pelos “conservadores”
(neoliberais), cujo protagonista maior foi Milton Friedman, teve condições de res-
tringir. A esse respeito, é emblemático o discurso de Friedman (1985, p. 101-103),
ao dizer que a diminuição das restrições sofridas pelos grupos minoritários se deve “ao
mercado livre” ajustado pelo capitalismo. Ou seja, para Friedman e consortes, o mer-
cado é tão milagroso que elimina até as discriminações étnicas e preconceitos sociais.
Só os conservadores acreditam nesse discurso, porque no campo da histó-
ria real estadunidense se leem duas tendências. A primeira relaciona-se ao fato de as
tensões e a discriminação étnica ser realidade estrategicamente explorada pelos grupos
políticos conservadores. A estratégia tem o intuito de criar e disseminar o conceito
antropológico de que a população é “naturalmente formada por grupos étnicos” (an-
glo-saxônico, afro-americano, latino, asiático), e não historicamente por classes sociais
(capitalista, média, trabalhadora, latifundiária). A lógica da coisa é fazer com que cada

106
indivíduo, pertencente ao seu grupo étnico, deve lutar individualmente para superar
as dificuldades e conseguir êxito socioeconômico no mundo competitivo do mercado.
E os meios principais para alguém lograr esse êxito são o trabalho e a educação: a Te-
oria do Capital Humano, por exemplo, fora criada estrategicamente para disseminar
essa ideologia. Em outras palavras, seja em período de expansão ou de crise da eco-
nomia, o escopo da ideia é o de prevenir as populações de se apropriarem, latente ou
ativamente, dos conceitos de divisão e de luta de classes.
Diz-se aqui mais uma vez que a fórmula se presta ao conceito de estrutu-
ração populacional pelo viés dos grupos étnicos, e fazer de tudo para desviar o foco de
suas revoltas das questões socioeconômicas gerais e canalizá-las para conceitos de su-
peração e afirmação étnica do indivíduo no mercado e na vida. Constituído ao longo
da história dos EUA, esse panorama enraizou tensões e discriminações étnicas que de
tempo em tempo costumam sair de controle, para o qual sempre emergem forças para
atenuá-las. Dessas forças abre-se a segunda tendência: movimentos de arrefecimento
das tensões e discriminação racial.
Esses movimentos irromperam mediante intensa luta política e cultural
empreendida pelos afro-americanos. Não se relacionou com a “mão invisível do mer-
cado”. Em um primeiro momento, a luta política e cultural brotou entre 1955 e 1968
por meio do “método da não violência”, cuja liderança maior foi o Martin Luther
King, assassinado em abril de 1968. No segundo período, a luta política e cultural
continuou com os movimentos eclodidos entre 1966-1975, mediante o Black Power
e os Panteras Negras, combatendo o racismo, a injustiça e a violência branca por
meio da afirmação cultural e da violência direta e indireta, cujo principal inspirador
ideólogo foi o Malcolm X, assassinado em fevereiro de 1965. Diferente de outros
movimentos, contudo, os Panteras Negras se organizaram em partido: baseado na
ideologia socialista, o movimento lutou por motivações associadas à emancipação da
classe trabalhadora e não só das etnias – Rap Brown e Eldridge Cleave foram desta-
ques na existência dos Panteras Negras.
Com esses movimentos, tensões e conflitos se intensificaram ao ponto
de ameaçar a “segurança social” necessária aos negócios do capital. Preocupados, os
grupos conservadores reagiram: criam os “programas de integração [pacificação]”: a
educação fora usada como uma das principais opções. Assim, antes com restrições,
escolas e universidades tradicionais com maior amplitude passaram a receber afro-a-
mericanos.

107
Por sua vez, as circunstâncias legadas e transmitidas pelo passado próximo
são aquelas resultantes dos distúrbios de Los Angeles, em 1992. O enredo do filme
começa expondo os efeitos desse legado. A revolta explodiu em 29 de abril de 1992,
após um júri composto hegemonicamente por brancos ter absolvido os quatro po-
liciais que, no ano anterior, haviam sem piedade espancado o negro Rodney King.
Milhares de pessoas, em sua maioria jovens, entre negros, latinos e asiáticos, revol-
taram-se e realizam motins, saques, incêndios e assassinatos, com mais de 60 mortes
e bilhões de dólares de prejuízo para o Estado e para o setor privado. Ainda relata o
filme que, nos meses subsequentes aos distúrbios, “mais de 120 mortes ocorreram em
Long Beach”, região metropolitana de Los Angeles – na época considerada a cidade
mais multicultural do País.
Outra circunstância legada e transmitida pelo passado próximo tem a re-
lação com as constantes crises econômico-financeiras. Por exemplo, o legado da crise
do capitalismo dos EUA do final dos anos de 1980 ainda se fazia sentir forte na
população jovem. A economia era dinamizada por um mercado regido pelo mais am-
plo laissez-faire, resquícios do monstruoso governo neoliberal de Ronald Reagan. O
mercado se mostrava discriminatório para com os grupos étnicos minoritários. A taxa
de desemprego era grande e considerável parte da juventude, pertencente aos grupos
étnicos latinos, afro-americanos e asiáticos, não via expectativas de melhoria de vida
pela educação escolar. A formação política da juventude parecia ter desaparecido, e a
Justiça não era justa para com os indivíduos desses grupos étnicos.
Referenciado nesse contexto social decadente, o filme “Escritores da liber-
dade” expõe que “a violência das gangues e a tensão racial chegou ao ponto máximo”.
Assim, narrada pela aluna Eva Benitez, a primeira cena do filme denuncia a realidade
brutal do conflito violento entre as gangues étnicas e a subjugação policial e jurídica
contra essas etnias. Eva Benitez narra que latinos e negros e asiáticos não se respeitam
em Long Beach: cada um “pode ser baleado toda vez que sair de casa”. Matava-se “por
causa da raça, orgulho e respeito”.
Em verdade, cada etnia representava e responsabilizava as outras pela de-
cadência socioeconômica por que passava a região. Por esse motivo se odiavam. Em
outras palavras, os efeitos da opressão e desigualdades gerados pelo sistema do capital
não eram vistos pela óptica socioeconômica, mas sim pela perspectiva étnica. Nisso, o
sofrimento social se canalizava por meio da violência aberta – demonstrando inexistir

108
formação política. De fato, experiências históricas evidenciam que grupos sociais sem
formação política, em geral canalizam suas revoltas por intermédio da violência direta
contra indivíduos, grupos, população, objetos etc.
Toda essa realidade alienada e alienante reflete na ambiência da educação
escolar pública de Long Beach, produzindo nos jovens das classes populares a ideia de
que a educação escolar não fazia nenhuma diferença em suas vidas. Nisso, os “progra-
mas de pacificação” daí em diante também passaram a incorporar os demais grupos
étnicos. E novamente a educação fora uma das principais opções: antes com muitas
restrições, escolas e universidades tradicionais recebiam latinos e asiáticos. Nesse âm-
bito é que em uma das escolas públicas de Long Beach, a professora Erin Gruwell ini-
cia, em 1994, sua primeira experiência docente, com uma missão assumida: cooperar
com o programa de pacificação social.

O encontro com a realidade da escola púbica


O enredo do filme expressa que no início do ano letivo de 1994, em Long
Beach, Califórnia, a personagem Erin Gruwell se apresenta à escola pública de ensino
médio Woodrow Wilson, para lecionar Língua Inglesa e Literatura. Ali exibe seus
planos de aula à chefe de departamento, mas logo é informada sobre as condições dos
alunos: a maioria envolvida com gangues, detenção juvenil, drogas e desiludida com
a educação. Portanto, iria lecionar às turmas de menor desenvolvimento educacional
da escola.
É aconselhada a não usar, na sala de aula, bens pessoais valiosos, tampouco
empregar alguns dos livros previstos nos planos de aula. A chefe de departamento insi-
nua que o “capital cultural” dos alunos é tão baixo que não têm condições de entender
o conteúdo das leituras. Por essas razões, ela sugere à professora não esperar muita
coisa: lecionasse apenas o básico. Vê-se aí a antiga solução clássica ao modo como
apresentado por Adam Smith e ironicamente criticada por Marx (1996, p. 476): aos
grupos da classe popular, recomenda-se uma “educação em doses prudentemente ho-
meopáticas”. No mais, a novata Erin Gruwell foi inteirada de que a escola Woodrow
Wilson era modelo e sempre tivera ótimo rendimento. Depois dos distúrbios de 1992,
porém, a Secretaria de Educação criou o Programa de Integração [leia-se, pacificação]
e a escola recebeu “alunos indomáveis” dos grupos étnicos da periferia: e perdeu mais
de 75% de seus melhores alunos, e a qualidade caiu – esclareceu a chefe de departa-
mento da escola.

109
A professora Erin Gruwell, no entanto, deu evidências de estar decidida
em cooperar mediante sua práxis educativa com o programa de pacificação social.
Expôs que diante do contexto violento vivenciado pelos jovens, e quando ela desejava
fazer Direito na época dos Distúrbios de 1992, pensou: “Céus, quando eu estiver de-
fendendo um jovem num tribunal, a batalha já estará perdida; acho que a verdadeira
luta deve acontecer aqui na sala de aula”. Ora, isso significa uma coisa: a professora via
na educação escolar um meio de pacificar e desviar os jovens da violência urbana e dos
tribunais, e, de sobra, prepará-los para o mercado – locus de acumulação e expansão
do capital.
No dia seguinte, a professora tem seu primeiro contato direto com a am-
biência da escola. Parece ao mesmo tempo animada e assustada, porém, as primeiras
aulas na sala 203 são um fracasso: não consegue a atenção da turma: desrespeito,
bullying, confusões e conflitos eram constantes dentro e fora da sala. A indiferença e o
pouco valor à educação, à vida de si e do outro, predominavam entre os alunos. Estes
estavam na escola como se forçados. A esse respeito, é exemplar a palavra da persona-
gem Eva Benitez, aluna que cumpria liberdade condicional:

Se fosse por mim, nem aparecia à escola. Meu agente da con-


dicional me ameaçou, dizendo que ou era a escola ou o refor-
matório. Que babaca. Ele acha que os problemas que rolam
em Long Beach não vão me afetar na escola Wilson. O infeliz
não entende que as escolas são como a cidade, e que a cidade
é como uma prisão, toda ela dividida em seções separadas de
acordo com as tribos: tem um pequeno Camboja [asiáticos], o
gueto [negros], a branquelândia [anglo-saxões], e nós, a fron-
teira sul ou a pequena Tijuana [latinos].

Após uma briga generalizada no pátio da escola, há uma cena no filme a


qual dá a entender que a professora Erin Gruwell percebe que a divisão e a intolerância
entre os grupos étnicos na região de Long Beach se reproduziam na escola. Suspeita,
ainda, de que tal evento poderia ser uma das causas da indiferença, fato que didati-
camente estava lhe impedindo de administrar o processo ensino-aprendizagem com
eficiência e qualidade.
Depois da briga generalizada daquele dia, em casa, nos braços de seu espo-
so, a professora chora desconsolada. Em seguida, em um jantar de família, o seu pai
a desencoraja de continuar, ao alegar que ela ensina em um presídio. Ela retruca, ao

110
dizer que foi ele quem a ela contou sobre o movimento dos direitos civis, lhe abriu os
olhos para as causas sociais. O pai responde: “os seus alunos são gangues criminosas, e
não ativistas; os garotos provavelmente não conhecem sequer Rap Brown ou Eldridge
Cleave”. E concluiu: “vai desperdiçar seu tempo com pessoas que não dão a mínima
para a educação”.

A indiferença e seus efeitos em sala de aula


A personagem Erin Gruwell fica abalada com as palavras do pai, mas está
decidida a cooperar com o programa de pacificação social – não desistirá da causa.
Portanto descobriria meios didáticos para atingir seu objetivo. Primeiro: pacificá-los
em sala. Segundo: levá-los a aprender os conteúdos curriculares. Terceiro: prepará-los
pacificados para vida fora da escola, ou seja, para se integrarem às estruturas sociais
opressivas do sistema capitalista.
Para alcançar esse objetivo, a primeira atitude de Erin Gruwell foi de-
senvolver ações didáticas capazes de eliminar as barreiras que estavam bloqueando
o processo didático. Nota que os alunos se agrupam de acordo com suas identidades
étnicas, mas, por outro lado, individualmente não interagem nem se respeitam. Não
se conhecem nem se reconhecem. Não veem identidade entre si, nada enxergam de
comum que os faça se descobrirem como iguais. Por esse motivo, neles não aflorava
a tendência para “sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias ex-
perimentadas pelo outro”. Em definitivo, uma ambiência educacional nesse estado, é
impossível de se realizar o processo ensino-aprendizagem: ela não conseguia ensinar
nem os alunos conseguiam aprender.
O drama faz lembrar Adam Smith (1996). Este concebia o “individua-
lismo” competitivo dinamizado pelo mercado a fonte geradora da harmonia social.
Diferente pensava Émile Durkheim (1992). O francês tinha o “altruísmo” como o
dínamo da sociabilidade, cuja principal mediação para atingi-lo era a educação. A
ética humanista pende mais para o conceito de E. Durkheim. A questão é impor-
tante, porque na atualidade ela é também situada do ponto de vista da superação da
“indiferença” (apatia, menosprezo) pela “empatia” (capacidade de se identificar com
outra pessoa e senti-la como igual). Isso constitui um dos temas centrais da ética. E na
ambiência de uma sala de aula, a ética é essencial ao processo ensino-aprendizagem.
Talvez por tal motivo, Erin Gruwell se visse disposta em desenvolver ações didáticas

111
possíveis de levar seus alunos do estado de indiferença para circunstância de empatia.
Em termos gerais, a empatia emerge da identidade gerada entre os indivíduos.
Para promover identidade entre os alunos, Erin Gruwell tenta utilizar tex-
tos de música do rap. Não dá certo. Então, tem uma ideia didática promissora: pôr os
alunos em movimento na sala: ordena a todos a mudarem de lugar. Com efeito, esse
movimento os permite pela primeira vez se cruzar face a face: por breve período, se
percebem, no entanto, a insensibilidade e as tensões agudas persistem. Mesmo assim,
ela descobre o recurso didático adequado: fazê-los interagir para se enxergarem, fazê
-los compartilhar experiências para encontrarem identidade social.

A pacificação
No filme há uma cena que demonstra um bullying de amplo impacto: de
origem latina, o aluno Tito desenha a caricatura de seu colega Jamal, um afro-ameri-
cano, com lábios e beiços proeminentes. A caricatura é passada de carteira em carteira.
Todos riem, fazendo descaso de Jamal.
Indignada ao ver o desenho, a professora Erin Gruwell explana que os
nazistas utilizaram técnica semelhante: caricaturas de judeus com nariz enorme. As
caricaturas eram colocadas nos jornais “pela gangue mais famosa da história”, disse
ela. E continuou falando que essa gangue não se contentou em dominar a vizinhança;
ela reprimiu países, dizimando aqueles que eram responsabilizados pela vida dura que
levavam. Disse ainda que a gangue também publicava supostas evidências científicas,
demonstrando que judeus e negros eram espécies humanas inferiores: “judeus e ne-
gros eram tidos como animais; e se eram animais, não importava se vivessem ou mor-
ressem: na verdade, a vida seria bem melhor se todos estivessem mortos”. Concluiu:
“foi assim que o holocausto começou”. Daí em diante iniciou o primeiro diálogo sério
entre os alunos e a professora Erin Gruwell.
Os alunos defendem o ódio racial, a inutilidade da educação escolar, a
guerra entre as gangues como maneira de lutar e morrer por honra, para ganhar res-
peito no grupo. Uma das alunas alude: “respeito não é de graça, é conquistado”. A
professora rebate, dizendo que para alguém ter respeito é preciso respeitar. Outro
aluno indaga como poderia respeitar a professora se não a conhecia? Uma aluna afirma
que a professora é branca e por isso a odeia. A professora replica: “você não pode me
odiar se não me conhece”. Outro aluno relata que a vida deles é uma guerra, e não

112
tem medo de morrer protegendo os seus: “quando se morre pelos seus, morre-se com
respeito, feito guerreiro”.
Em contra-argumento, a professora contesta:

Sabe o que vai acontecer quando você morrer? Vai apodrecer


no solo. E as pessoas vão continuar vivendo e se esquecerão de
você totalmente. E quando você apodrecer acha que vai fazer
diferença ter sido de uma gangue? Vai está morto. E ninguém,
ninguém vai querer se lembrar de você... porque tudo que dei-
xou para o mundo foi o preconceito e a indiferença para com
os outros.

A aula desperta a atenção e aflora as sensibilidades de todos. Um aluno se


interessa em saber sobre o holocausto. A professora então pede para levantar a mão
quem na sala já foi alvo de tiros: todos levantam a mão, exceto um aluno branco. A
cena comove.
Parece que nessa aula Erin Gruwell descobre mais uma maneira de con-
tinuar com sua didática: fazê-los ler. Procura apoio da escola. Não teve: a biblioteca
empresta apenas livretos resumidos e não os livros mesmos. A chefe de departamento
insiste que os “alunos indomáveis” têm baixa capacidade para entender o conteúdo
das leituras: “O melhor seria tentar fazê-los obedecer, a aprender a disciplina; isso já
significaria uma realização enorme para eles”. Então a professora recorre aos colegas.
Também não recebe apoio. Daí, motivada por uma pedagogia messiânica, resolve
arranjar empregos paralelos, para juntar dinheiro e comprar por conta própria livros
para seus alunos.
Novamente em sala de aula, a professora efetua mais uma ação didática:
põe uma linha no meio da sala, e, mediante perguntas, pede para ficar um instante
e depois se afastar da linha aqueles que moram em conjuntos habitacionais, aqueles
que têm amigos ou parentes em alguma prisão, quem já foi preso, perdido amigos por
causa da violência das gangues. Nesse vaivém, os alunos se aproximam entre si e aos
poucos se percebem com problemas semelhantes. Experimentam a sensação de sentir
o que sentiriam caso estivessem circunstâncias experimentadas pelo outro. A ação
didática parece originar identidade e empatia. O caminho à pacificação estava aberto.

113
Não satisfeita, Erin Gruwell coloca em prática nova ação didática: o auto-
conhecimento por meio da escrita. Para isso distribui diários aos alunos, dizendo que
“todos têm sua própria história, e é importante contá-la, mesmo que para si mesmos
[...] e se dessem permissão, ela leria as histórias”. Essa atitude didática foi efetiva em
dois sentidos. Primeiro, ao escreverem suas vidas diárias, os alunos podem encontrar
uma oportunidade para refletir, se conhecerem e documentar suas experiências, usan-
do isso como energia terapêutica. Em segundo lugar, ao ler os diários, a professora teve
a chance de conhecer a situação de vida de seus alunos, importante para a gerência da
relação ensino-aprendizagem. Essa ação foi um sucesso.
A ulterior ação didática empreendida pela professora consistiu em levar a
turma a assistir a documentários temáticos e ler uma literatura específica, relacionada
a problemas semelhantes aos vivenciados por eles: violência das gangues, preconceito,
intolerância etc. Os alunos se identificaram com essa literatura e alargaram o interesse
pela leitura. Os livros, que poderiam ser obtidos por outras fontes, foram comprados
pela própria professora e distribuídos gratuitamente aos alunos. De todo modo, o en-
redo do filme expressa que a leitura e a escrita fluíram em sala e o êxito do ensino e da
aprendizagem também. Em troca de sua pedagogia messiânica, porém, Erin Gruwell
paga um preço alto: a separação do marido.
Assim, ao seguir o drama narrado no filme “Escritores da liberdade”, per-
cebe-se que Erin Gruwell dedicou-se de corpo e alma a descobrir e realizar ações didá-
ticas para atingir o objetivo perseguido. Conseguiu. Primeiro: pacificou seus “alunos
indomáveis”. Segundo: levou-os a aprender os conteúdos curriculares. Terceiro: pre-
parou-os pacificados para vida fora da escola – isto é, educou-os de modo apropriado
para a acomodação às estruturas sociais opressivas do sistema capitalista.
É importante salientar que a didática criativa desenvolvida por Erin
Gruwell foi decisiva para ela criar, na particularidade de sua sala, uma ambiência edu-
cacional propícia à relação satisfatória do processo ensino-aprendizagem: permitiu-lhe
ensinar com eficiência, ou seja, atingir os objetivos de ensino a que se propôs; e os
alunos conseguiram aprender com qualidade, isto é, efetivamente, se apropriaram dos
conteúdos do programa curricular. Nesse caso, sua didática a fez realizar, com sucesso,
a função específica da educação escolar, porém, para qual finalidade social?

114
A didática e as funções da educação escolar
A experiência e a literatura evidenciam, no caso de docentes que não ar-
ticulam uma didática criativa com suas práticas, o fato de suas aulas tenderem a ser
pouco interessantes, e produzem alunos apáticos para aprender. Por sua vez, aquele
que age mediado por uma didática criativa tem a possibilidade de laborar melhor com
o ensino e com os problemas socioeducacionais que repercutem no palco da sala de
aula.
A didática, nesse sentido é imprescindível à atividade docente. Em primei-
ro lugar, porque seu objeto de estudo e atuação é o processo ensino-aprendizagem,
com foco especial na teoria e na atividade de ensino. Depois, a didática se constitui
mediante um núcleo dialético básico, cuja função é dinamizar e orientar o ensino por
meio das seguintes mediações imanentes: o que ensinar (conteúdos); como ensinar
(métodos); para quem ensinar (perfil social e psicológico dos alunos); para que ensinar
(finalidades imanente e exterior).
Nesse âmbito, as mediações imanentes à didática são postos em movimen-
to com o seguinte propósito: gerir com eficiência e qualidade o ensino e aprendiza-
gem. Para atingir tal objetivo, a didática necessita levar em conta a multidimensionali-
dade deste processo: esta constituída pelas dimensões técnica, humana, ética, estética
e sociopolítica. Se essas dimensões forem bem analisadas e bem articuladas, dão ao
docente maior capacidade de gerenciá-lo com eficiência e qualidade.
Ante o exposto, pode-se afirmar que Erin Gruwell desenvolveu e se serviu
com sucesso das mediações imanentes à didática: preocupou-se com “o que ensinar”,
“como ensinar”, “para quem ensinar”, “para que ensinar”. Ao mesmo tempo, ela arti-
culou bem a multidimensionalidade do processo de ensino e aprendizagem, porém,
se observa pouca importância dada à dimensão sociopolítica. Tentou. Há uma cena
breve em que se vê apresentando para a turma um documentário sobre o movimento
dos direitos civis. A coisa, porém, se restringiu só ao movimento em si: não fez relações
com o quadro histórico das estruturas sociais comum à sociedade capitalista dos EUA.
Isso expressa um fato: a depender da visão de mundo do docente, a dimensão sociopo-
lítica pode ser articulada tanto pelo viés reacionário como pela óptica da contestação
à ordem socioeconômica estabelecida.

115
Em verdade, a personagem Erin Gruwell não contextualizou e tampouco
relacionou, às tensões, as discriminações étnicas, a violência das gangues, do Estado,
da política conservadora, do desemprego estrutural, das famílias desfeitas, da baixa
qualidade da educação escolar pública, com as mediações constituidoras da sociedade
de classes capitalista. Por tal motivo, a formação da consciência crítica e a contestação
ao sistema socioeconômico capitalista não se manifestaram em suas aulas. Por medo?
Não se sabe.
Ora, os filmes hollywoodianos sobre educação silenciam a respeito da for-
mação da consciência crítica e a contestação ao sistema social: fazer essa tarefa requer
tocar em assuntos caros à política fundamentalista predominante nos EUA, tais como
a lógica destrutiva do capital e do capitalismo, a teoria da divisão de classes, as de-
sigualdades sociais historicamente geradas, o socialismo, comunismo, Karl Marx e
outros. Talvez por essa razão o diretor do filme tenha deixado de abordar esses assun-
tos. Ou então ele e os produtores não acreditam em alternativa à gestão da sociedade.
Contentou-se em consolidar uma personagem cuja ação educativa se resume em co-
operar com o programa de pacificação social, almejando contribuir com o “melho-
ramento” da ordem. Seja, entretanto, do ponto de vista da personagem criada (Erin
Gruwell) ou da professora realmente existente (Erin Gruwell), torna-se desnecessário
fazer condenações, porque, infelizmente, quem trabalha no sistema escolar real não
faz outra coisa senão contribuir para a reprodução e conservação da ordem.
Esse apontamento faz lembrar outros temas, e traz à tona o problema das
funções exteriores e imanentes do sistema escolar na sociedade capitalista. A esse res-
peito, o educador espanhol Pérez Gómez desenvolve um conceito baseado em uma
constatação crítica. Diz que, vista em seu aspecto amplo, a escola de fato desempenha
uma função “puramente conservadora”, por um razão simples: ela é uma instituição
concebida para “garantir a reprodução social e cultural como requisito para a sobre-
vivência mesma da sociedade” (GÓMEZ, 2000, p. 14). Dentro desse quadro geral
reprodutivo, Pérez Gómez observa que a escola ainda exerce duas funções específicas:
a primeira, a preparação do alunado para sua “incorporação futura no mundo do
trabalho”; a segunda, a formação do indivíduo para a cidadania, “para sua intervenção
na vida pública” (GÓMEZ, 2000, p. 14-15).
O pedagogo espanhol, ao mesmo tempo, observa que, ao exercer tais fun-
ções, a escola, a igual tempo, transmite e consolida ideologias, cujos valores se carac-

116
terizam pelo individualismo, a competitividade e a falta de solidariedade; valores que,
segundo ele, promovem, entre os indivíduos, uma cultura conformista em relação à
desigual ordem social (GÓMEZ, 2000). O pensador húngaro István Mészáros de-
fende posição similar. Segundo ele, a educação escolar “fornece os conhecimentos e o
pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital”, e tam-
bém “gera e transmite um quadro de valores que legitima os interesses dominantes”
(MÉSZÁROS, 2005, p. 35). Ressalva-se, no entanto, que ambos fazem uma consta-
tação crítica, e não uma declaração conformista e conservadora.
Com inspiração em György Lukács (1981), no entanto, é oportuno ressal-
var a função da educação escolar por seu aspecto imanente. Por essa perspectiva, pode-
se dizer, sem embargo, que a função imanente exercida pela escola é a de reproduzir,
às novas gerações, as aquisições do desenvolvimento sociocultural. Essa reprodução
(o passar adiante) das aquisições do desenvolvimento sociocultural, todavia, produz
duas disposições distintas, mas imbricadas entre si: a disposição de conservar a riqueza
sociocultural herdada do passado próximo, distante e remoto, e a tendência de trans-
formá-la em base para posterior desenvolvimento, com o fim de resolver os novos
problemas originados do movimento dinâmico e cambiante das relações sociais. Por
intermédio desse duplo movimento (conservar e transformar), consolida-se tanto a
conservação do velho como a criação de tudo o que é novo na sociedade. Em outros
termos, a tarefa reprodutiva da educação produz dois efeitos: conservar o velho e criar
o novo.
No capitalismo, a função imanente da escola é institucionalizada pelo Es-
tado e movida por classes, instituições, grupos, indivíduos, segundo condicionamen-
tos e interesses divergentes de toda espécie. Assim não é de se estranhar que, desse
contexto, esguichem tendências sociais conflitantes no tocante a forma de lidar com
a função reprodutiva da escola. Por exemplo, verifica-se que as tendências sociais con-
servadoras e reacionárias buscam, por todos os meios possíveis, efetivá-la a serviço da
acomodação dos indivíduos às estruturas e aos interesses da classe dominante, para a
conservação da ordem social. Já as tendências resistentes procuram lidar com a função
reprodutiva da educação a serviço da conscientização crítica, para gerar movimentos
de contestação e lutas por libertação dos fatores e condicionamentos socioeconômicos
e políticos opressivos, com vistas à transformação social. Logo, a função reprodutora

117
do sistema escolar não é neutra, porque não se realiza isolada do mundo nem dos
interesses sociopolíticos de seus agentes.
Assim, cabe sempre interrogar sobre para qual fim a didática que se traba-
lha na sala de aula está lidando com a função reprodutiva da escola (conservar o velho
e criar o novo): se para o conformismo e a conservação ou se para a contestação e a
transformação social. Se o enredo de “Escritores da liberdade” for analisado por esse
parâmetro, conclui-se que a didática realizada pela personagem Erin Gruwell abordou
a função reprodutiva da escola a serviço da acomodação social, que alardeia e robuste-
ce nos educandos apenas o conformismo.
Aliás, no geral, o filme “Escritores da liberdade” comunica, mediante a
ideologia do apascentamento étnico, um anseio burguês peculiar, a saber: o estado
contínuo de pacificação e conformação da classe trabalhadora ao sistema, segundo os
interesses e desígnios da classe capitalista; estado que se traduza no seguinte panora-
ma prosaico: trabalhadores esquecidos da contestação e satisfeitos em viver, arranjar
emprego, receber salários, se formar, se casar, consumir, pagar contas, ter suas casas,
viajar... enfim, cada um fazer sua parte, abnegado, no processo de acumulação e ex-
pansão do capital.

Considerações Finais
Uma das formas de lutar no âmbito da escola contra a conformação é
articular, com criticidade, a dimensão sociopolítica com as outras dimensões (técnica,
humana, ética e estética) de ensino e aprendizagem. Se abordada mediante a pers-
pectiva marxista, a dimensão sociopolítica pode se tornar um momento oportuno de
os alunos refletirem sobre a possibilidade de irrupção de uma nova sociedade, livre
do capital e do capitalismo. Provocar essa reflexão na juventude significa hoje uma
demanda cogente.
Como também é imperioso recriar, desenvolver, aperfeiçoar e disponibi-
lizar teorizações e ações opcionais às teorias e às práticas conservadoras, “até que o
politicamente impossível se torne politicamente inevitável: a transição ao socialismo”;
ou então, como diz Mészáros (2003, p. 108), será “a barbárie, se a humanidade tiver
sorte”. Aliás, conservadores e consortes parecem preferir a última alternativa: a barbá-
rie – que em verdade é o que já se vive! Por isso é forçoso efetivar uma educação contra
o sistema. Ce qui est fait, es fait – o que está feito, feito está.

118
Referências
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MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
__________. O século XXI: socialismo ou barbárie. São Paulo: Boitempo, 2003.

119
NARRADORES DE JAVÉ 31: A LUTA PELA CONSERVA-
ÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DE
UM POVO
Taciane de Lima Silva
José Alex Soares Santos

“A escrita precisa da história contada para existir e,


a oralidade necessita da escrita para perpetuar-se.”
Aline Macedo et al.

Trataremos aqui de analisar a produção cinematográfica, intitulada “Nar-


radores de Javé”, com roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu, dirigida por
Eliane Caffé (2004). Esta película mostra o drama de uma cidadezinha pacata no
interior da Bahia que seria extinta para dar lugar a uma grande hidrelétrica. Trata-se de
Javé, que ficaria debaixo d’água, sendo sacrificada em prol do “progresso”. Daí o “povo
javélico” começa uma grande empreitada para tentar livrar o povoado das águas.
De acordo com a abordagem de Alves (2006, p. 56);

[...] o filme apresenta narrativas dentro de narrativas, estru-


turadas em flashbacks, configurando uma mise en abîme, ou
seja, uma construção em abismo, como define a Narratologia.
Ao fim, tem-se uma narrativa geral, constituída por uma sé-
rie de outras narrativas, e cujo final pode ainda dar margem
a uma nova, ou levar ao início da primeira que foi contada.
Portanto, existem na obra vários contratos de comunicação e
encenações do ato de linguagem dentro de outros contratos
e encenações, em diversos mundos paralelos que se mostram
ao espectador, sempre fingidos, uma vez que fazem parte de
um universo de papel (ou “de película”, já que o gênero em
questão é o cinema narrativo de ficção).

31 Narradores de Javé é uma produção cinematográfica que chama atenção do telespectador para a seguinte
situação: somente uma ameaça à própria existência pode mudar a rotina dos habitantes do vilarejo de
Javé, quando eles deparam o anúncio de que a cidade pode desaparecer sob as águas de uma enorme usina
hidrelétrica. Em resposta à notícia devastadora, a comunidade adota uma ousada estratégia: decide preparar
um documento contando todos os grandes acontecimentos heróicos de sua história, para que Javé possa
escapar da destruição. Como a maioria dos moradores é analfabeta, a primeira tarefa é encontrar alguém
que possa escrever as histórias. Dirigido por Eliane Caffé. Ano: 2004.

121
Para atrair a atenção do telespectador, a diretora traz para o enredo do
filme uma sequência de cenas que culmina com a imagem da proprietária de um bar,
utilizado como espaço em que os passageiros se concentram para tomar o barco –
um dos meios de transporte que faz chegar e sair de Javé, mas também é um ponto
de encontro e diálogo entre os habitantes de Javé. Trata-se de uma senhora já idosa,
absorta na leitura, ao ponto de não perceber o pedido de um cliente que, ao perder o
barco, resolve sentar, tomar uma água de coco e ouvir as memórias que buscam reaver
o legado histórico do vale. Percebendo a desatenção da mãe para o pedido do cliente,
Souza (Matheus Nachtergaele) diz: “fecha esse livro mãe! [...] Depois de velha resolveu
aprender a ler”.
A asserção de Souza é a ponte para a aparição de Zaqueu (Nelson Xavier),
o narrador da história. A expressão reflexiva de Zaqueu, com aspecto dramático, inte-
gra-se ao comentário feito em função da importância de saber ler, ao afirmar que: “às
vezes é bom, [...] eu mesmo que não sou das letras posso contar o rebuliço que uma
escritura foi capaz de fazer”. Então, com esse mote a narrativa central do filme começa
a ser descortinada em flashback. A tessitura narrativa são as memórias de Zaqueu e,
com base nestas, se reconstitui a saga do Vale de Javé.
O primeiro flashback da narrativa transporta o telespectador para a nave
de uma igreja, antecedida pelo dobre do sino e de pessoas correndo em direção a ela.
A cena remete à ideia simbiótica entre o sagrado e o profano, já que a igreja é um
espaço de culto ao sagrado, mas na cena em questão este espaço sacro se torna ponto
de encontro para decisões políticas do vilarejo. O silêncio do público nas missas é
profanado pela balbúrdia dos comunitários na ânsia de decidir quem dentre eles es-
creveria o dossiê sobre a história do Vale de Javé. Neste documento histórico, estaria a
esperança do povo javélico de não assistir ao vale ser invadido pelas águas da represa,
após a constituição da hidrelétrica, pois por meio deste, Javé teria a possibilidade de
se tornar patrimônio histórico, garantindo, destarte, sua conservação como povoa-
do. Justamente nesse ponto, no entanto, surge o drama de tão recôndita população.
Quando Zaqueu pergunta quem dentre eles escreveria a grande história do Vale de
Javé, um silêncio sepulcral absorve a balbúrdia e agitação de antes.
A sequência da narrativa fílmica é reveladora do drama social a que uma
população pode ser submetida quando não é minimamente alfabetizada. Temos aqui
uma alusão crítica ao problema do analfabetismo que continua em descensão no Bra-

122
sil, mas infelizmente ainda é grande seu número absoluto por sermos a sexta maior
economia mundial. De acordo com o “Anuário Estatístico da CEPAL – 2010”existem
cerca de 18 milhões e 240 mil pessoas sem saber ler e escrever, ou seja, um percentual
de 9,6% da população brasileira. Esse fato é gravíssimo, apesar de o IPEA (2010), com
base nos dados do PNAD ter identificado uma redução em termos relativos de 11,5%,
para 9,7% na taxa de analfabetismo.
Por influxo de dramático contexto, o desenvolvimento do enredo de “Nar-
radores de Javé” leva o povo do vilarejo a tomar uma decisão que em outras circuns-
tâncias jamais seria adotada. Resolveram procurar Antonio Biá (José Dumont), único
adulto alfabetizado daqueles confins e, este teria como tarefa recuperar a história e
transpor para o papel de forma “científica” as memórias dos moradores. O problema é
que Biá já tinha sido expulso do povoado em virtude de suas trapaças para manter-se
como funcionário do posto dos Correios.
Assumindo a função de carteiro, Biá convivia com o drama de perder o
emprego, já que sua função era desnecessária em um povoado de analfabetos. Então,
este utiliza sua criatividade de escritor para criar causos sobre os moradores do povo-
ado, os quais depois de escritos eram endereçados para o destinatário. Essa estratégia
desonesta, típica de um malandro sagaz mantinha a função de carteiro ativa no povo-
ado. Com isso Biá se mantinha com o emprego de carteiro e, ainda, se divertia com
o humor sarcástico das histórias inventadas. Esse foi o motivo do seu banimento de
Javé, já que um dia a população descobriu a trapaça.
Ao retornar na condição de registrar os fatos importantes do Vale do Javé,
Biá, no seu jeito irreverente e sarcástico, chacoteou: “que diabo de coisa importante
aconteceu em Javé?”. Com o intuito de indicar-lhe uma diretriz, Zaqueu observa: “o
que Javé tem de valor são as histórias das origens, dos guerreiros... Do começo que
vocês vivem contando e recontando, isso é patrimônio, isso é história grande”. Com
esse indicador, Antônio Biá é nomeado pela comunidade para coletar as histórias
dos moradores e registrá-las “cientificamente” com fim único de tornar a memória
do povo javélico patrimônio histórico e imaterial, salvando o lugarejo da inundação.

Num vilarejo como Javé, que representa municípios que de


fato existem no sertão brasileiro, a oralidade não é simples-
mente uma tradição, é também um traço conjuntural, devido
à precária situação sócio-econômica dos moradores, maioria

123
deles analfabetos ou semi. No filme, ao receber a notícia da
inundação, os moradores se viram desesperados, por não pos-
suírem nenhum registro histórico que comprovasse o valor
cultural do povoado. Por mais que eles conhecessem e sou-
bessem revelar o tesouro de Javé à sua maneira, acabaram re-
féns da ausência de uma versão oficial documentada. (ALVES,
2006, p. 86).

O drama predomina no conjunto da narrativa fílmica, no entanto a tra-


jetória do enredo permite, sem prejuízo do conteúdo dramático, várias cenas que o
aproximam da comédia. Então, podemos nomeá-lo de comédia dramática. Em meio
às cenas de drama e comédia, Biá começa sua árdua tarefa de entrevistar os moradores
que têm uma ligação identitária mais forte com a fundação de Javé. Ao perceberem
a oportunidade de tornarem-se uma personalidade histórica, os moradores querem
fazer parte da memória do Vale e cada qual passa a disputar com os demais a oportu-
nidade de ficar no registro histórico, nomeado de “livro da salvação” ou de “Odisseia
do Vale de Javé”. A ideia de científico nesse ponto adquire conotação mítica e mística,
como anota Alves (2006, p. 84)

[...] os Narradores de Javé são pessoas humildes e, por isso, não


conhecem o significado da palavra científico. Mas acreditam,
a priori, que se trate de algo verdadeiro, que possui registro
e comprovação, pois assim deve ser o livro que irão escrever.
E o resultado dessa atividade deles será a transformação da
“grande história” de Javé em um evento científico, consequen-
temente inabalável e digno de preservação. Portanto, o termo
adquire, para esses moradores, uma aura de fator fundamental
à tarefa deles. Nesse sentido, eles seguem à procura de provas,
documentos, registros que possam validar suas narrativas.

Na abordagem assumida por Biá para a coleta dos dados, completamente


assistemática, fica subtendida à ideia de que o método científico, para apresentar resul-
tados consistentes, necessita de critérios claros que orientem o pesquisador. Sem esse
procedimento, o registro da história por meio da oralidade perde o seu significado e a
ciência histórica sua legitimidade e validade.
Outro aspecto importante é a conotação assumida pelo discurso de quem
conta a história. Esses discursos são sempre associados ao ponto de vista de quem os

124
elabora. No caso de “Narradores de Javé”, a história de fundação da cidade assume
caracterização que segue a própria história de vida dos personagens entrevistados.
Todos eles afirmam ter algum parentesco com Indalécio, o herói que fundou Javé, ou
Mariadina personagem contraditória na narrativa, ou seja, de identidade díspar. Na
versão de Deodora (Luci Pereira), heroína, mas, para Firmino (Gero Camilo), uma
mendicante e louca. Assume, ainda uma figuração mitológica com aspectos visioná-
rios da tragédia anunciada para o povo javélico. Eis as consequências do que alguns
insistem chamar de progresso.
O primeiro morador a contribuir para o “dossiê” é “Seu Vicentino” (Nél-
son Dantas) que afirma ser parente do herói, fundador de Javé, e mostra uma arma
que teria sido de Indalécio, objeto que representa o espírito guerreiro do fundador
e primeiro líder do povo javélico. Tal instrumento também condiz com uma “prova
científica” que na visão do personagem comprovaria a sua identidade com Indalécio
e com a origem de Javé.
Nas memórias de Deodora, a fundadora e heroína de Javé é Mariadina, foi
ela quem cantou suas divisas. Aqui o discurso sobre a fundação envolve sutilmente
a questão de gênero. A identidade do discurso assume a personalidade de quem o
profere. Deodora destaca em seu relato que a gente que acompanhou Mariadina saiu
“fugida” de uma guerra contra a Coroa, mas Vado (Rui Resende) a corrige com a
seguinte justificativa: “fugido não, em retirada”, fugir é para os covardes e a história
a ser contada para tornar-se “patrimônio salvacionista” de um povo não deve estar
associada à covardia, um vício degradante da dignidade humana.
Firmino é outro personagem que participa da reconstituição das memó-
rias históricas sobre o nascimento do povoado de Javé. No seu discurso, Mariadina
não corresponde à imagem narrada por Deodora. Para este Mariadina, nunca foi do
bando de Indalécio, pois, antes do segundo chegar a Javé, a primeira já vivia como
uma doida, e o fundador de Javé foi realmente Indalécio e ele não morreu lutando
em cima de um cavalo, mas agachado por causa de uma disenteria. Nessas descrições,
estão incorporados o mito, o discurso mítico e a memória como narrativa imagético-
discursiva, assim como mostra também a análise realizada por Alves (2006, p. 81-82):

Vicentino caracteriza Indalécio como um “nobre chefe de


guerra”, “grande homem guerreiro”, e o povo de Javé como
“um punhado de gente valente que era sobra de uma guer-

125
ra perdida”. O objetivo era reaver as terras ricas em ouro das
quais o grupo tinha sido expulso pelo rei de Portugal, e Inda-
lécio, que estava ferido, mantinha-se firme para encontrar um
lugar onde todos fariam uma parada para descanso. Na versão
de Vicentino, Indalécio foi aquele que, além de liderar brava-
mente o bando, foi capaz de matar a fome deles. E assim, o ve-
lho narrador contribui com sua história para a criação do mito
que revela os fundadores de Javé através da imagem de guerra,
de valentia, de persistência e da liderança viril de Indalécio.

Deodora, por sua vez, insere no contexto fornecido por Vi-


centino a imagem mítica da mulher como um valor de força,
poder e coragem. Ela confere o papel de heroína à sua an-
cestral Mariadina, “mulher que de fato teve importância”, e
que assumiu a liderança do grupo quando Indalécio morreu.
Segundo Deodora, foi Mariadina quem cantou as divisas de
Javé, ou seja, foi ela quem delimitou, na palavra dita, qual se-
ria o território correspondente ao povoado. Foi sua voz, depois
que ela tomou o comando e “desapareceu por um dia e uma
noite”, que legitimou as terras de Javé. E, para isso, Mariadina
contou com a ajuda dos pássaros da noite, que lhe mostraram
o vale. O que significa que, ao complementar o mito do povo
guerreiro com a imagem de uma mulher mártir, ela também
acrescentou uma dimensão sobrenatural ao momento do en-
contro entre o povo e as terras de Javé, indicadas misticamente
por aves noturnas.

Firmino desconstrói as imagens criadas por Vicentino e De-


odora, transformando Indalécio num caipira simplório, que
morreu de disenteria, e Mariadina numa velha louca de ar me-
donho. A versão narrada por ele, como já foi dito, seria prati-
camente uma paródia das duas primeiras. No entanto, apesar
do humor, ele reafirma que seus antepassados eram guerreiros,
ao corrigir, em sua história, que eles não saíram de sua terra
natal fugidos, mas em retirada. E aumenta o teor místico em
sua versão, ao caracterizar Mariadina como a mulher que, em-
bora demente, profetiza a maneira como Javé será encontrada:
“os pássaros vão piá e avoar, invertido, aos contrário, tomando
a noite pelo dia e levar ocês até as terras que serão suas...”

Pai Cariá atualiza a imagem de Indalécio na feição do che-


fe de guerra negro Indaléu, “pinta” seus antecedentes como
um bando de negros fortes, e afirma que Javé é a morada de

126
Oxum, a deusa das águas. Mais uma vez percebe-se a imagem
mítica fundadora de Javé como a história de nobres guerreiros
em busca de uma terra predestinada. Como afirma o próprio
Antônio Biá, “até aqui a história vai batendo mais ou me-
nos...” E, embora os conteúdos das narrativas dessas quatro
personagens sejam diferentes, eles acabam por reforçar uma
unidade em torno das características marcantes do mito fun-
dador, comum a todas as versões narradas.

Os gêmeos, em meio à disputa pela herança de seu pai, afirmam que os


restos mortais de Indalécio estão enterrados nas terras deles; terras com imprecisão de
quem é o proprietário já que o personagem “O Outro” não é reconhecido pelo seu
suposto irmão como tal, mas sim primo em primeiro grau em relação à paternidade e
irmão no caso materno. Cena constituída com muito humor, mas que sutilmente pro-
cura demonstrar a traição matrimonial por parte do gênero feminino, pouco aceita na
cultura desses povoados fortemente permeados pela dominação masculina. Também
produz na subjetividade do telespectador a dúvida machadiana que encerra a trama de
“D. Casmurro” com o enigma da traição ou não de Bentinho por Capitu, personagens
principais da obra. No caso da película, “Narradores de Javé” teria mesmo a mãe dos
gêmeos, na sua noite de núpcias cometido incesto e mantido relações sexuais com os
dois irmãos (esposo e cunhado) que eram gêmeos? Como vimos, tratando do fabrico
e da representação do real pelo discurso, a resposta dependerá do ponto de vista de
quem assistirá à cena e de como interpretará o fato fictício, articulado com a realidade.
Com suporte na sequência descrita, sinalizamos que o discurso represen-
tado nas cenas que tratam da fundação de Javé com as memórias de personagens
diversos se aproxima da ideia desenvolvida pela linguagem pós-estruturalista, tomado
no sentido foucaultiano, em que o discurso é compreendido como “um conjunto de
sequências de signos, enquanto enunciados, isto é, enquanto lhes podemos atribuir
modalidades particulares de existência” (FOUCAULT, 1987, p. 124). Na perspectiva
pós-estruturalista, este conceito é utilizado para enfatizar o caráter da linguagem na
elaboração do mundo social. “Foucault argumenta que o discurso não descreve sim-
plesmente objetos que lhe são exteriores: o discurso fabrica”. (SILVA, 2000, p. 43).
Portanto, o discurso compreende conjuntos de expressões verbais e não
verbais identificados com certas instituições ou situações sociais. No caso específico
do filme em análise, as diferentes subjetividades dos moradores de Javé, suas histórias,

127
crenças e vivências, mediante as quais se fabricavam discursos completamente dife-
rentes, já que cada indivíduo narrava uma versão da história sempre dando ênfase aos
seus antepassados, colocando-se assim como herdeiros da trajetória dos grandes feitos
e dos destacados heróis de Javé.
A história de Javé, segundo a narrativa de seus personagens compreende
a forma discursiva pós-estrutural, já que no relato das memórias orais está presente a
fabricação de sua fundação segundo a história subjetiva de cada um dos narradores.
Com base nesse entendimento, a história da vida do povoado é a história das narra-
tivas que ouviram, viram, e quase nada escreveram. A cada narrador, “outra” história!
A mesma Javé tinha sentidos diferentes, tanto para aquele que contava, quanto para
aqueles que ouviam, produzindo assim, multiplicidade de histórias e diferentes efeitos
de sentidos. Somos, constituídos e perpassados pelas nossas histórias e pelo que narra-
mos delas. Portanto, a autonarrativa é um dos lugares que a pessoa ocupa provisoria-
mente para si mesmo, com a presença da própria voz para dar sentido ao que viveu e
produzir a própria realidade (LARROSA, 1996).
A partir de tal compreensão, a narrativa fílmica trata de um esforço no
sentido de preservar a identidade e a memória de um povo que encontra no modo de
contar histórias oportunidade para se descobrir e sobreviver ao “fatídico progresso”.
Os narradores de Javé, por intermédio do que expressam pela oralidade, instauram
reflexões sobre a procura constante do ser social por sua origem, por seu destino, pela
verdade e manutenção de sua existência.

Memória cultural do “povo javélico” e sua relação com o real


concreto
No enredo do filme: “Narradores de Javé”, o fator memória é algo muito
visível, principalmente nos testemunhos dos moradores. A memória a que nos referi-
mos não é somente o fato de os moradores lembrarem suas histórias e contá-las, mas,
sobretudo, a história que essas pessoas perderam e que submergiu nas águas represadas
pela construção da hidrelétrica. História semelhante à realidade dos moradores do
Vale de Javé vem sendo experimentada por comunidades pobres do interior cearense.
Temos o caso da população da ex-cidade de Jaguaribara, que submergiu
nas águas da barragem do Castanhão, sendo sua população transferida, depois de
muita luta entre comunidade e Estado, para “Nova Jaguaribara”. O drama real da

128
população dessa cidade é algo que se assemelha às cenas do trágico e dramático fim
da população de Javé, principalmente na sequência de cenas em que os moradores
emocionados, mas também indignados, começam a fazer depoimentos diante de uma
câmera filmadora, destacando a identidade que tinham com o local, lembranças de
toda uma vida, os antepassados que lá haviam sido deixados, os quais doaram os
seus longos anos de vida para estabelecer com muito sacrifício um espaço de trocas
simbólicas, sociais, culturais e históricas que literalmente fora engolido pelas águas do
“progresso”.
O Estado autoritário, revestido do discurso da Modernidade e em nome
do progresso, nesse caso, assume a posição do Leviatã. Destarte, com tal atitude, “di-
lui” a identidade cultural, a história de um povo, que só não é destruída por completo
porque será conservada pela memória da oralidade e o registro histórico mediado pela
ciência histórica, mas com muito pesar e descontentamento por parte daqueles que
sofrem a agressão estatal. O ato arbitrário do Estado, entretanto, não consegue justi-
ficar a ideia de que a Modernidade possa ser feita às custas do sacrifício de um povo.
Nos dois casos, seja no fictício (Javé) ou no real (Jaguaribara), submerso nas águas da
barragem, não ficariam somente as casas da população, mas também a memória de
vidas diversas, a cultura e a identidade de uma cidade inteira.
No final do filme “Narradores de Javé” apesar da resistência e das contra-
dições suscitadas pela construção da hidrelétrica no seio da população javélica, o que
assistimos é ao não reconhecimento do povoado como patrimônio histórico, isso por-
que Antonio Biá termina por não escrever o “dossiê científico” da “salvação de Javé”.
Enquanto os cidadãos javélicos fazem a reconstituição da história de sua fundação
pelos fios da memória, a construção da hidrelétrica era concluída e a inundação de
Javé se tornava inevitável.
Em Jaguaribara aconteceu algo semelhante, mas, nesse caso, a construção
da barragem tinha como justificativa a escassez de água no Estado do Ceará, carência
que seria amenizada com a finalização da barragem do Castanhão. A desapropriação
brusca do povo de Jaguaribara de suas terras, entretanto, a ameaça de destruição de
seu patrimônio histórico forjou a luta em prol da conservação desse patrimônio e
uma consciência política por condições dignas de vida da população. Essa luta deu-
se por intermédio do engajamento de vários moradores no Movimento Nacional de
Atingidos por Barragens – MAB, exemplo que demonstra a vivacidade das pessoas em
defender o que é forjado no seio de uma convivência coletiva. Sugerimos, portanto,

129
a leitura do trabalho de Monte (2005) para uma compreensão mais profunda desse
fenômeno que faz parte da história do povo de Nova Jaguaribara.
Outra comunidade que sente fortemente a ameaça de desapropriação de
seu território ou patrimônio histórico e cultural é Maceió, localizada no Município de
Itapipoca. O povo dessa comunidade, trava há anos uma luta contra a invasão de suas
terras praianas pelo Projeto Pirata – investimento empresarial de iniciativa do capital
estrangeiro para construção de rede hoteleira no litoral oeste do Estado cearense. Em
Javé, a hidrelétrica representa o progresso, mas inunda todo o vilarejo expulsando
de seu “torrão natal” uma população inteira. No caso concreto de Maceió, o Projeto
Pirata representa essa ameaça de expatriamento de suas terras do povo daquela comu-
nidade que até então resiste bravamente contra tal investida.
A ameaça imanente de desterro, assim, como mobilizou o povo de Nova
Jaguaribara a resistir contra a empreitada do Estado (MONTE, 2005), em Maceió
também tem implicado brava mobilização de sua população à resistência para con-
servar o espaço da comunidade e, por influxo, seu patrimônio histórico, cultural e
ambiental. Essa resistência torna-se manifesta no relato de um dos líderes da comu-
nidade e, consequentemente, do movimento de luta em defesa da conservação do
espaço historicamente estruturado: “temos 10 anos de resistência e quase cinco anos
de ocupação da praia de Maceió contra o Projeto Pirata”. Um ato de coragem de um
povo que luta para manter sua identidade constituída através do tempo histórico, bem
como conservar o patrimônio natural de uma das últimas faixas de praia do litoral
oeste que conserva sua paisagem nativa, pouco afetada pela ação destrutiva e predató-
ria da especulação imobiliária e da atividade turística na perspectiva do consumismo,
simbolicamente associada, no filme, à construção da hidrelétrica em Javé.
Maceió é uma praia ainda com pouca interferência da ação humana e uma
das raras faixas de praia do litoral cearense com baixo fluxo turístico, característica
que mantém seu ambiente natural em bom estado de conservação. Por influxo de tal
contexto, dar-se-á a luta de seus habitantes em prol da preservação do patrimônio na-
tural de sua comunidade e a tranquilidade representada pela aquela extensão de praia.

A faixa de praia do assentamento, conta com uma vasta exten-


são de recifes costeiros. Esses ambientes têm uma importância
fundamental na preservação da biodiversidade marinha, pois
associados aos bancos de algas, funcionam como regulador da

130
cadeia alimentar, garantindo áreas de reprodução, alimentação
e crescimento, além de oferecer proteção e abrigo para inúme-
ras espécies de peixes e crustáceos (lagostas e camarões) – o
que repercute positivamente na atividade pesqueira – princi-
pal fonte de renda e segurança alimentar de muitas comunida-
des da zona costeira. (ASSENTAMENTO MACEIÓ, 2012,
paginação irregular).

Caso tivessem progredido as investidas do Projeto Pirata, essas terras já


tinham sido invadidas por grandes construções que receberiam turistas, fazendo do
povo que ali nasceu e se desenvolveu deserdado dentro do seu próprio território. Ao
compararmos a realidade concreta de Maceió com a dimensão ficcional de “Narra-
dores de Javé”, o Projeto Pirata está para a comunidade de assentados assim como as
águas da represa estavam para o povoado de Javé.

Sentindo a necessidade de encontrar novas formas de ocupa-


ção da praia, como estratégia de garantia do território e pre-
servação dos recifes costeiros, o Assentamento Maceió, apren-
dendo com experiências de outras praias cearenses, decidiu
aproveitar um potencial natural da comunidade para construir
um projeto produtivo coletivo na faixa de praia. Nesse senti-
do, os/as assentados/as começaram a desenvolver o Cultivo de
Algas do Maceió, o projeto CALMA.

Desta forma, a garantia dos territórios e modos de vida das


populações que desenvolvem atividades tradicionais é de fun-
damental importância para preservação dos ambientes costei-
ros e da vida marinha, agregando as práticas tradicionais de
produção e o desenvolvimento de tecnologias sustentáveis.
(ASSENTAMENTO MACEIÓ, 2012, paginação irregular).

A iniciativa da comunidade de Maceió de desenvolver projetos produtivos


e autossustentáveis, sem a agressão predatória do meio ambiente, é uma das estraté-
gias de valorização daquele espaço, como sendo do povo maceioense e representa em
termos figurativos, ao ser comparado à narrativa fílmica, um dos meios encontrados
para salvar o povoado da invasão imanente do projeto Pirata.
Outro aspecto de aproximação de cenas do filme Narradores de Javé com
a comunidade de Maceió corresponde ao valor simbólico dado à igreja, ao bar, à mer-
cearia, por exemplo, como locais que assumem “segunda natureza” ou função, isto é,

131
como ponto de encontro e tomada de decisões políticas da comunidade que constitui
o vilarejo. No caso de Maceió, a barraca montada pelos moradores, além de símbolo
da luta para manter o território livre da especulação imobiliária e de investimentos
que visam à atividade turística predatória, é também um lugar de encontro, união e
animação. No espaço da barraca, os moradores se reúnem para avaliar a luta e planejar
os próximos passos, bem como para narrar suas histórias de resistência e assegurar a
preservação de seu habitat; formas de organização que fortalecem os traços de união
entre os pares da comunidade que acreditam na preservação e conservação do territó-
rio como seu e que não deve ser abandonado em hipótese alguma.
O significado político da barraca para a comunidade como ponto de resis-
tência e de encontro ganha vida no relato de uma das comunitárias:

Organizamo-nos em grupos de 15 a 20 famílias, aí revezamos


vigiando. Na praia de dia, as mulheres rendeiras e de noite os
homens e jovens. Já vai completar cinco anos que fazemos isso
sem falta. Sempre tem as refeições, café da manhã, almoço e
janta, derrubamos cocos do campo coletivo do assentamento
para contribuir com o sustento da barraca. Nossa barraca já foi
derrubada duas vezes pela polícia militar (ilegalmente), mas
nós a levantamos no mesmo dia. A barraca recebe muita gente
de fora, universitários e estudantes do ensino médio, recebe
também visitas de gente do exterior, de ONG’s, que querem
nos apoiar. Muita gente valoriza nossa luta e querem nos aju-
dar, sabem a importância de enfrentar e frear a especulação
imobiliária que está acabando com as praias e dunas do Estado
e de todo o Brasil.

Reconhecendo a legitimidade da luta dessa comunidade e sabendo da rela-


ção existente entre a narrativa do filme “Narradores de Javé” e o cotidiano vivenciado
pelos comunitários de Maceió, em contato com suas lideranças, acertamos para exibir
o filme para a comunidade, experiência viabilizada pelo projeto de extensão “Cine
Itinerante: leitura do mundo por do cinema”, vinculado ao Laboratório Universitário
de Educação Popular, Trabalho e Movimentos Sociais – LUTEMOS, da FACEDI/
UECE.
O contentamento e o frisson que o filme causou nas pessoas – crianças,
jovens, mulheres e homens de todas as idades – anunciavam que o espírito de luta
daquela gente se fortalecia, encorajando sua continuidade para consolidação cole-

132
tiva, cada vez mais consistente da comunidade. A fabricação do contentamento foi
constatada em dois tempos, no momento do filme, pelos risos e comentários sobre
determinadas cenas; posterior ao filme, quando a comunidade reconheceu de coração
aberto e com sentimentos autênticos o quanto ações desse tipo são significativas para
o engrandecimento do ser humano em sua totalidade, bem como enaltecer o espírito
de quem participa.
Outro ponto de destaque da ação foi o exemplo de participação que o
público demonstrou, pois, mesmo com a brisa fria da praia castigando as epidermes
dos telespectadores, estes permaneceram no anfiteatro da escola “Nazaré Flor” para
fazer o debate sobre o filme, com depoimentos repletos de sabedoria, ressaltando que
a comunidade vive situações que se assemelham à narrativa fílmica.
Com efeito, o trabalho de divulgação das obras cinematográficas com a
análise fílmica é uma prática que deve ser massificada com os cuidados necessários na
seleção dos filmes e na mediação com o público-espectador que adotará uma posição
de crítico do conteúdo fílmico, ao estabelecer as conexões desse conteúdo com sua
realidade concreta, problematizando a sua situação existencial na perspectiva de trans-
formá-la em favor dos interesses coletivos da comunidade ou espaço a que pertença
tal público.

Referências

ALVES, Carolina Assunção de. Narradores de Javé: uma análise semiolinguística do


discurso fílmico. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguíticos) – Universidade Fe-
deral de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.

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TO MACEIÓ. Disponível em: <http://www.assentamentomaceio.org/>. Set. 2011.

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2010. Disponível em: <http://websie.eclac.cl/anuario_estadistico/anuario_2010/esp/
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BRASILEIRA – AVANÇOS E PROBLEMAS. Disponível em: <http://www.ipea.

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SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.

134
BESOURO32 E OS ORIXÁS
Lourival Andrade Júnior

Este artigo discute o papel dos orixás no contexto do filme “Besouro” e


especialmente Exu, figura central na dramaturgia da película, mas ainda periférica
nos estudos acadêmicos e escolares. Mais do que apenas uma análise conceitual do
trabalho realizado pelo diretor e produtores do filme, vale um debruçar sobre as carac-
terísticas que movem as ações humanas, representadas no filme por suas personagens,
e sua relação com algumas deidades que aparecem no desenrolar da trama. Exu é o que
move todos, corroborando para a concretização de seu mito.
A temática da africanidade é absolutamente necessária no tocante ao deba-
te que se faz indispensável em nossos meios escolares na atualidade. Esta africanidade
precisa se tornar mais presente em nossas falas e várias são as possibilidades de se
buscar estas conceituações e aproximações, em particular, nas práticas pedagógicas
das escolas.
Assim, visibilizar as práticas culturais afro-brasileiras é dar cor e voz aos
sujeitos históricos ainda escondidos.
No passado, muitos episódios de violência, discriminação étnica, religiosa,
cultural e atitudes de intolerância, coexistiram e silenciaram a voz de muitos povos,
etnias e/ou indivíduos isolados. Muitos deles, ainda hoje, sequer sabem, por exemplo,
que seus locais de culto religioso estão dispensados de impostos, como prevê a Cons-
tituição Brasileira de 1988 no seu artigo 150, VI, “b” que define: “Sem prejuízo de
outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Dis-
trito Federal e aos municípios – instituir impostos sobre: templos de qualquer culto”.
A desoneração destes espaços é um direito constituído e inalienável, mas ainda muito
pouco aplicado pelas religiões afro-brasileiras.

32 O besouro é um inseto que, por suas características, não deveria voar, mas voa. E Besouro também é o
nome do maior capoeirista de todos os tempos, Manoel Henrique Pereira. Um menino que, ao se identificar
com o inseto que desafia as leis da Física, desafia ele mesmo as leis cruéis do preconceito e da opressão.
Um mito, um super-herói. O filme Besouro, que conta a história desse mito da capoeira é um épico em
que fantasia e registro histórico se misturam no cenário deslumbrante do Recôncavo Baiano dos anos
1920. Inspirado em fatos reais, Besouro é um filme de aventura, paixão, misticismo e coragem sobre este
personagem real que se tornou lenda. Representa para a capoeira, o que filmes chineses contemporâneos
como Herói e O Tigre e o Dragão são para as artes marciais orientais: um espetáculo de aventura, onde
a paixão, o misticismo e a emoção têm papel central. Dirigido por João Daniel Tikhomiroff. Ano: 2009.

135
Outro aspecto a ressaltar é o fato de que, no tocante ao ensino nas redes
públicas e privadas do Brasil, é obrigatoriedade constar no currículo escolar a temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Neste ponto, a lei define que sejam
ministradas aulas de

[...] História da África e dos africanos, a luta dos negros e dos


povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasi-
leira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional,
resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e
política, pertinentes à história do Brasil”. (Lei nº 11.645, de
10 de março de 2008).

Sabe-se que as manifestações da cultura africana que se consolidaram no


Brasil se fizeram com as diversas hibridações comuns na cultura dos povos. Quando
nos referimos às hibridações, estamos nos apropriando do conceito de Néstor Garcia
Canclini, em “Culturas Híbridas” (2000), que nos exprime as possibilidades de adap-
tações, justaposições e interfaces que os contatos multiculturais podem produzir. O
que interessa é discutir que não podemos desqualificar nenhuma das práticas culturais
que amalgamaram a formação do Brasil. Teoricamente, temos que nos aproximar das
análises de Michel de Certeau(1994) no campo das “invenções do cotidiano” e das
múltiplas possibilidades de análise que este cotidiano nos apresenta.
Para os alunos de nossas escolas descobrirem estas teias que se ligam por
meio da cultura de matriz africana requer rigor dos educadores que ministram os
componentes curriculares relativos a estas temáticas para que não se criem mais pre-
conceitos, bem como possibilitem mais uma forma de entender sua história.
Esse debate traz um grande desafio para a sociedade: pô-lo em prática, pois
se sabe que em uma espécie de consentimento tácito a sociedade permitiu, por muitos
séculos, atos de intolerância étnico-racial e as suas formas de expressão. Há ainda um
longo caminho a ser trilhado no enfrentamento e eliminação do preconceito e da
discriminação.
Em um recorte mais específico ao Brasil, essa intolerância não cessou com
a lei assinada pela filha do Imperador, em 1888. Os negros, então “libertos”, continu-
avam a trabalhar para seus antigos donos, uma vez que não possuíam nenhuma outra
habilidade, ou melhor, possibilidade. As péssimas condições de trabalho, os assédios
sexuais, a violência que se apresentava no preconceito nas práticas das culturas africa-
nas que teimavam em se manter, permanecia visível na sociedade brasileira.

136
As discussões em torno desta seara têm um espaço profícuo de debate no
contexto do filme Besouro, sob análise nesse artigo.

Besouro em tela
Um filme que mostra claramente o reino da incompreensão é “Besouro –
da capoeira nasce um herói”, que estreou nos cinemas brasileiros em 30 de outubro
de 2009. Dirigido por João Daniel Tikhomiroff, produtor de filmes publicitários,
mostrou ao país a saga de uma personagem invisibilizada por muitas décadas de nossa
História. O negro que se revoltou contra a opressão e utilizou a capoeira como arma e
como filosofia nos foi apresentado na companhia de alguns orixás do panteão ioruba-
no, revelando a força da ancestralidade africana em nossa gênese cultural.
“Besouro” é rico em imagens do final do século XIX e início do XX do
Recôncavo Baiano, mais especificamente de Santo Amaro da Purificação, local onde
se desenvolve a história de Manoel Henrique Pereira, nascido em 1897 e filho de ex
-escravos, João Grosso e Maria Haifa. Ainda por volta dos 20 anos, já era conhecido
entre os negros da região e também pelos brancos que mantinham as práticas escravo-
cratas, como Besouro Mangangá ou Besouro Cordão de Ouro. Este nome, besouro,
foi escolhido pelo próprio Manoel, prática comum entre os capoeiristas, por entender
que o besouro mangangá era forte (com grossa carapaça) e leve (voava rápido e com
desenvoltura).
Besouro aprendeu capoeira por meio dos ensinamentos de Mestre Alípio,
que era um dos negros mais odiados pelos fazendeiros da região, por pregar a liberdade
e lutar contra os maus-tratos que ainda eram mantidos no Recôncavo. Besouro foi
envolvido em diversos conflitos, tanto com fazendeiros e seus capangas, como com
policiais que na maioria dos casos estavam aliados às oligarquias rurais.
A história de Besouro é montada como um quebra-cabeça forjado na ora-
lidade. Poucos documentos escritos são encontrados sobre sua vida, mas as histórias
relatadas por pessoas que conviveram com suas façanhas dão conta de um sujeito que
não aceitava passivamente as imposições de feitores e latifundiários da região. Trazia
consigo uma característica do inseto que o inspirou. Atacava e fugia. Para os negros
que contavam suas histórias, não era estranho ouvir que “ele fugia voando”.

137
Neste sentido, o “voar” ganha no filme um lugar especial. O diretor levou
ao pé da letra o que a oralidade contava. Para isso, contou com a técnica de Huen
Chiu Ku, que já havia trabalhado no filme “O Tigre e o Dragão” e que revolucionou
a forma de mostrar na tela as lutas dos guerreiros orientais. “O Tigre e o Dragão” é
mais do que um filme, é uma poesia. Besouro apontou para esta direção, fazendo com
que, no início do filme e o nosso olhar sobre os locais da ação, se dessem pela visão
do inseto voando sobre árvores e casas. Da mesma forma, o capoeirista Besouro, voa
sobre a mata, as casas e seus inimigos.
Na análise do filme Besouro, não podemos nos furtar de em, algumas li-
nhas, comentar ainda sobre a capoeira, que foi a arma de muitos negros. A capoeira
chegou ao Brasil no século XVI, com negros, principalmente vindos de Angola, tanto
que sua forma mais tradicional é conhecida como Capoeira Angola, onde o ritmo
musical é lento e os golpes jogados mais baixos (próximos ao solo).
Com o passar do tempo, a capoeira deixa a categoria de dança e passa a ser
encarada como luta e se adapta a esta nova realidade de seus praticantes. Recebe influ-
ências regionais, Capoeira Regional, como no caso da capoeira baiana, que caracteri-
za-se pela mistura da malícia da Capoeira Angola com o jogo rápido de movimentos,
ao som do berimbau. Neste tipo de prática, os golpes são mais rápidos e secos. Há
ainda a Capoeira Contemporânea, que junta as características das duas outras e é a
mais praticada em todo o Brasil.
O filme mostra o quanto a capoeira era rechaçada pelos brancos patrões
dos negros e pelas autoridades locais (forças policiais e municipalidade). Às escondi-
das, os afro-brasileiros mantinham suas raízes e encontravam nela não apenas uma
forma de luta, mas também uma afirmação de suas identidades culturais. Ser capoeira,
portanto, era viver um pouco a África distante.
O reconhecimento definitivo da capoeira como patrimônio cultural brasi-
leiro se deu apenas em 2008, ou seja, um ano antes da estreia do filme.
Da mesma forma que a capoeira é um elo na trama, os orixás iorubanos
também o são. Em Besouro, temos uma mostra destas divindades que são elencadas
na trama como contrapontos da ancestralidade africana em sua mais pura essência. Os
orixás aparecem como membros orgânicos na vida de Besouro, não como coadjuvan-
tes. Exu é o que leva o capoeirista a lutar, definitivamente; o empurra para sua missão.

138
Os orixás que aparecem no filme vão dando a moldura da trama, muito
embora, somente Exu, ou seja, é realmente guindado a personagem que dialoga com
Besouro.
Besouro é filho de Ogum, orixá guerreiro. Da mesma forma que no mito
Ogum é visto como portador de potencialidades opostas, Besouro também o é. Ogum
abriu o caminho dos orixás para a humanidade e depois se isolou dos dois mundos, é o
que forjou o ferro, criando instrumentos para a agricultura (vida), mas também forjou
armas (morte), que se compadece daqueles que ama e depois os mata, assim conta o
mito. Besouro se dizia contra seus algozes, mas nada fazia para que isto se alterasse.
Sua luta era mais pessoal do que coletiva, diferente de Mestre Alípio. Mesmo instado
por todos para a luta por um ideal, foi somente com a intervenção de Exu que ele se
colocou na luta de todos.
Outro orixá guerreiro que aparece na tela é Xangô, mas neste caso apenas
como ilustração, não havendo uma presença mais marcante. Aparece em uma gruta
quando Besouro pensa sobre a luta e a justiça. Xangô é esta representação. Sobre este
orixá, vale destaque a noção de que é o mais cultuado na África e um dos mais temi-
dos. Segundo o mito, era homem (o único orixá que se tornou orixá), Rei de Oyo
(cidade ainda muito importante na Nigéria) e que nutria obsessão pelo poder e pelas
guerras. Levado ao mundo dos orixás (Orum) após seu suicídio, tornou-se o repre-
sentante da justiça no panteão ioruba e regente dos trovões e raios, junto com Iansã.
Iansã, no filme, aparece três vezes, na primeira, recebendo uma oferenda
de Besouro em uma pedra próximo a um lago, depois quando ferido e começa a ser
tratado por Ossaim e Oxum e depois na morte de Besouro. Iansã é vista sempre como
guerreira incansável, senhora dos ventos e raios; também possui uma ligação extrema
com a morte, já que é responsável por levar os eguns (espíritos desencarnados) para
longe ou perto dos seres vivos. Besouro, após sua morte, aparece deitado no colo de
Iansã que o afaga.
Numa das fugas de Besouro, ele se joga de um penhasco e cai em um lago,
ferindo-se. Quem cuida de seus ferimentos é Ossaim e Oxum. O primeiro é o orixá das
ervas medicinais e com sua sabedoria consegue curar qualquer problema com a utiliza-
ção dessas ervas. Oxum é orixá das águas doces, maternal e protetora. Besouro feriu-se
em seus domínios e, sendo assim, sua intervenção na cura se tornou determinante.

139
A materialização desta cura se dá pelas mãos de Mãe Zulmira, conhecedora
dos poderes dos orixás. É ela quem entrega um colar de proteção a Besouro, dizendo
que seu “corpo estava fechado”, com a proteção de Ogum. Na cultura ioruba, o corpo
fechado é a concretização do poder material dos orixás, que impossibilitam que seus
filhos sejam feridos ou mortos pelos inimigos. Somente uma faca ou espada feita de
ticum (árvore de madeira dura) poderia quebrar a determinação dos orixás. Assim
morreu Besouro, ferido por uma faca de ticum, após ser traído por seu melhor amigo,
o capoeira Quero-Quero.
A africanidade não ficou no continente do outro lado do Atlântico quando
da vinda dos negros em tumbeiros desumanos para a América. Ela veio nas práticas
culturais de povos que nos locais de origem eram inimigos e a solidariedade do ca-
tiveiro fez com que as animosidades fossem substituídas pela compreensão de suas
manifestações culturais religiosas. A união dos negros em solo brasileiro preocupava
as autoridades locais. Por isso, o batuque (danças ritualísticas) foi aos poucos sendo li-
berado, pois se acreditava que as nações anteriormente inimigas pudessem ter reacen-
didas suas diferenças e com isso os negros não se uniriam contra o inimigo comum,
o branco escravocrata.
O que se viu foi o contrário. Na África, o culto a determinados deuses
ou deusas não se dava no mesmo espaço, ou seja, cada grupo social tinha as próprias
práticas religiosas e cultuavam determinadas deidades em espaços determinados. Esta-
mos usando como referência o Benin (antigo Daomé) e a Nigéria, local onde viviam
os iorubas, povo que trouxe de forma bem mais marcante a cultura dos orixás para as
terras americanas. No Brasil, a própria prática autorizada dos batuques fez com que
povos historicamente opositores convergissem suas manifestações nos mesmos rituais
e surgissem novas formas de culto aos orixás que não eram perceptíveis, e, em grande
monta, impossíveis nos locais de origem destes povos. A América, e em especial o
Brasil, uniu o que parecia impraticável.
O Orixá,

[...] na África é uma força da natureza, uma coisa de aspecto


sobrenatural, um fenômeno poderoso que é estabelecido, fixa-
do pelos cuidados de um ser humano, num lugar determina-
do. Um pacto de aliança e de interdependência é feito entre
essa força e esse homem. (ARAÚJO, 2007, p. 32).

140
Esta força e esta interdependência são evidenciadas em Besouro. A perso-
nagem que dá o título ao filme vivencia com os orixás e com os mortos de seu povo
as experiências de sua ancestralidade e de seu cotidiano; ancestralidade fundamental
para entendermos os domínios do conhecimento milenar africano, onde o passado e o
presente andam juntos num tempo mítico e não apenas cronológico. Falar da história
dos povos africanos é também romper com alguns de nossos pressupostos teóricos,
principalmente na contagem do tempo linear. O mítico é uma das colunas sustenta-
doras de sua historicidade. Por isso, os orixás e os mortos (ancestrais) possuem lugar
de destaque em suas vidas. No filme que analisamos, isto aparece tanto na relação de
Besouro com os orixás, quanto nas aparições de Mestre Alípio para ele após a morte
do primeiro. Ele vem para aconselhar seu discípulo mais dileto e também para estar
com ele após a morte. Iansã une Mestre Alípio e Besouro no mundo dos mortos, sem
que estes percam contato com o mundo dos vivos (Ayé).
Dentre as presenças que destacamos como marcante na película está Exu,
um dos orixás mais instigantes do panteão africano ioruba, que também é conhecido
por outros nomes, como: Esu, Bara, Ibarabo, Legbá, Elegbara, Eleggua, Ekésan, Igèlù,
Yangí, Ónan, Lállú, Ijèlú, entre outros.
Exu aparece ou é citado no filme seis vezes, em momentos estratégicos:
quando Mestre Alípio está na senzala onde morre após ter sido baleado por capangas
do Coronel Venâncio; é citado por Mãe Zulmira, quando Chico, negro capoeira que
havia ficado ferido após ser agredido por Noca de Antônia (capanga de Coronel Ve-
nâncio), por estar jogando Capoeira (que tinha sido proibida), chuta oferenda para
Exu numa encruzilhada; quando aparece na feira e provoca Chico, iniciando uma
luta entre Exu e Besouro (discutiremos este momento mais adiante); aparece atrás de
Besouro quando ele sai da casa de Mãe Zulmira que o curou, com a ajuda dos orixás,
de um ferimento após ter se jogado de um desfiladeiro em um lago (já citamos);
reaparece quando é morto o jagunço Zé Moreno pelos seus próprios amigos quando
caçavam Besouro; e se faz presente quando Quero-Quero vê sua amada Dinorah e
Besouro juntos. Neste último momento, Quero-Quero trairá Besouro, contando a
Noca de Antônia que um homem de corpo fechado só poderá morrer se for perfurado
com faca de ticum.
É no diálogo entre Besouro e Exu na feira que ficam evidenciadas as carac-
terísticas mais marcantes deste orixá e do que se pensa sobre ele. Exu aparece na banca
de peixe de Chico, mas somente o veem o próprio Chico, Mãe Zulmira e Besouro.

141
Exu provoca Chico, que puxa uma faca e vai lutar com ele. Todos que estão no local
acham que Chico está tendo alucinações. Chico é desarmado pelos amigos, mas Be-
souro parte para cima de Exu (era isso que o orixá desejava desde o início, provocar
indiretamente Besouro). Besouro vai ao encontro de Exu, sem saber quem ele é e
inicia o único diálogo entre Besouro e este orixá (no filme é o único que fala):
Besouro: Quem é você?
Exu: Exu. Sou bom para quem é bom comigo e mal para
quem não sabe me reverenciar. Reinei na cabeça de seu mestre
durante muito tempo.
Besouro: Meu mestre era pessoa do bem, não te devia nada.
Exu: E existe o bem sem o mal? Ou a morte sem a vida? Mestre
Alípio sabia disso.
Besouro: O que você quer de mim?
Exu: Reverência. Ajoelhe aos meus pés.
Besouro: Não vou me ajoelhar porque não sou escravo de você
nem de ninguém.
(Besouro ataca Exu que só se defende e o provoca)
Exu: O que você estava fazendo naquele dia? Estava lá do lado
dele? Cuidando?
Besouro: Quem é você para me culpar?
Exu: Vaidoso. Orgulhoso. Você deixou Alípio morrer. Vamos
Besouro, acorda.
(Besouro se rende e se ajoelha aos pés de Exu. Quando levanta
a cabeça está rodeado de capangas do Coronel Venâncio. Luta
com eles e foge).

Exu provoca Besouro em seu ponto fraco, sua vaidade. A morte de Mestre
Alípio se deu quando Besouro jogava capoeira, mas deveria estar cuidando de seu
mestre que já estava jurado de morte. Percebe-se que a morte de Alípio é o fio que
levará Besouro a ser empurrado para seu maior desafio. A capoeira seria a arma que
libertaria os oprimidos de seu povo com a proteção dos orixás, mas Besouro precisava
ser empurrado para este fim. Exu cumpre então seu papel.
Orixá do movimento, Exu conhece todos os segredos dos outros orixás.
É o mensageiro entre Orum (mundo dos orixás) e Ayé (terra dos vivos); é o único
que conhece o caminho entres estes dois mundos. Nenhum orixá é mais próximo
da humanidade do que Exu. Ele traz a sabedoria dos orixás aos humanos e leva suas
oferendas, por isso, sempre ele deve ser reverenciado primeiro. Nada acontece sem que
Exu autorize, nem mesmo a repetição. Orixá questionador de tudo o que é normal
e aceitável, prefere o indizível e o transformador. Nunca se acostuma. Para alcançar

142
um objetivo, Exu trilha o próprio caminho e leva consigo aqueles que ele deseja. Para
fazer com que Besouro assumisse o seu papel na história de seu povo, Exu não se
acanhou em fazer com que Quero-Quero visse sua Dinorah nos braços de Besouro,
nem mesmo fez qualquer movimento para proteger Mestre Alípio. São várias as lendas
que falam de Exu como o que coloca amigos em confronto, fazendo com que aquilo
escondido por uma amizade viesse à tona, inclusive a inveja. Assim foi com Besouro
e Quero-Quero.
Como guia do caminho da sabedoria sagrada, Exu leva o indi-
víduo e o grupo além da obviedade, pois o âmbito do comum,
das aparências superficiais, não é o da sabedoria sagrada. Exu,
como trickster, consegue romper o verniz quase sempre duro
do lugar-comum. Exu age para romper as maneiras de ser im-
produtivas e antiquadas, em ato ou em pensamento, abrindo
caminho para o revigoramento do eu e da sociedade. (FORD,
1999, p. 224).

Em relação ao movimento, Exu também é descrito como o guardião dos


caminhos (encruzilhadas) e da própria procriação humana, ou seja, da sexualidade
que está ligada a ele. Por conta disto, grandes falos aparecem nas imagens reproduzi-
das e reverenciadas deste orixá na África. Também se percebe o falo nas representações
que se fazem no corte de cabelo destas imagens. No filme “Besouro”, isto fica evidente
na forma como aparece o penteado de Exu.
Exu também é o equilíbrio entre as forças dos orixás e do próprio ser hu-
mano. É preciso, segundo os mitos iorubanos, saber conviver com os bens espirituais e
materiais. Não se pode viver somente com uma destas potências. Exu é o que equilibra
a espiritualidade e a materialidade. Mais uma vez, ele se confessa como o mais presen-
te no cotidiano dos homens e mulheres. Da mesma forma que “é o grande mediador
das forças contrárias da vida. Ao negociar com os deuses, como faz com freqüência
nos mitos iorubanos, ele reafirma um equilíbrio, por exemplo, entre a compaixão de
Obatalá e o espírito guerreiro agressivo de Ogum”. (FORD, 1999, p. 225).
Esta impetuosidade de Exu foi encarada pelos europeus que invadiram
a África desde o século XV, como anomalias na cultura local. Este orixá foi relatado
pelos viajantes como sendo o Príapo33 africano e como o diabo medieval cristão. Esta
dualidade foi cara a este orixá que chegou ao Brasil já com a pecha de representante
do mal. O Diabo ganhava forma no panteão ioruba. Vale esclarecer que esta dualidade
33 Na cultura grego-romana, era o guardião dos lares, jardins, pomares, praças, ruas encruzilhadas; protetor
da família e patrono da sexualidade. Em sua imagem aparecia um enorme falo.

143
cristã-judaica não existia na África. Por conta disto, a relação de Exu como compósito
do discurso contra o mal ficou por conta dos brancos escravocratas e, na maioria,
católicos. O próprio sincretismo que desqualificou e deturpou as práticas ritualísticas
iorubas fez com que Exu perdesse de sua imagem o falo e ganhasse aspectos do Diabo
idealizado pelos cristãos: chifres, rabo e até pés de bode. A constituição do demônio
vindo da África está pronta; o cristianismo já conseguia visualizar o seu inimigo mais
poderoso.
Longe disto, os que entendem as origens deste orixá percebem como esta
demonização de sua imagem reflete o próprio temor da sociedade de promover mu-
danças e de se perceber como conservadora:

Como mensageiro dos deuses, Exu tudo sabe, não há segredos


para ele, tudo ele ouve e tudo ele transmite. E pode quase
tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas
as magias. Exu é transformador, é aquele que tem o poder de
quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma
e promover a mudança. Não é de se estranhar que seja consi-
derado perigoso. Ao mesmo tempo representa o princípio da
continuidade garantida pela sexualidade e reprodução huma-
na. (PRANDI, 2005, p. 74-75).

Besouro precisou de Exu para que sua missão fosse levada a cabo. Mestre
Alípio o preparou para a luta sob a bênção dos orixás, inclusive de Exu. Coube a este
último mostrar, de seu jeito, para Besouro que o caminho para a luta já estava aberto e
que seu corpo preparado deveria se colocar diante de seus algozes. Na frase de Mestre
Alípio para Besouro, dita sobre uma árvore, após a morte deste por ter sido ferido
por uma faca de ticum, mostra que a luta não estava encerrada, mas que a missão de
Besouro estava cumprida: “A morte não existe, Besouro. A morte é viver debaixo da
bota dos outros”.
Besouro foi assassinado em 1924, a capoeira foi liberada em 1953, os ter-
reiros de Candomblé e das religiões de matriz africana proliferaram pelo País, ou seja,
a luta deste capoeirista filho de Ogum não foi em vão. A sincretização dos orixás for-
jou uma aceitação destas deidades e suas aproximações católicas no âmbito da socie-
dade em geral, aqui se excluindo os neopentecostais e, mais atualmente, o movimento

144
carismático católico, que continuam a pregar o preconceito e até mesmo o terrorismo
contra as divindades africanas e suas práticas religiosas no País.
Mesmo com a paliativa aceitação do Candomblé e dos orixás, Exu conti-
nua causando desconfiança e temor. Seu espírito sempre inconformado e, para mui-
tos, indecente, nos situa perante de nossas fragilidades, como colocou Besouro. Não
há meio-termo, ou partimos para fazer o que deve ser feito ou nos conformamos com
nossa mediocridade passiva. Assim, Exu continua a reinar nas encruzilhadas, sempre
mostrando, segundo os crentes de seus poderes, que existem vários caminhos. O que
não se deve é ficar parado. É sempre necessário tomar alguma decisão.
O filme Besouro cumpre um papel estético e dramático deveras relevante
nas atuais discussões sobre a genética cultural do Brasil e como estes assuntos devem
chegar a um maior número de pessoas. Discutir o filme e suas diversas possibilidades
de análise (a nossa foi apenas uma delas) é imprescindível quando nos situamos como
organicamente pertencentes a uma cultura multi e pluri como é a brasileira. Nenhum
dos aspectos de nossa formação deve ser deixado de lado nem relegado à periferia de
nossos estudos. Por isso, caminhemos. “Laroê, Exu!”

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Companhia das Letras, 2005.

145
RETRATOS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
NO COTIDIANO DE JOSEY AIMES EM TERRA FRIA34

Maria do Socorro C. Maciel

Este capítulo versa sobre o filme “Terra Fria” com o foco na mulher que
sofre violência doméstica e tenta superá-la. O interesse é contribuir para elucidar a
trajetória das mulheres que, ao recusarem a violência doméstica e familiar, entrando
na chamada rota crítica da violência, vivenciam inúmeros desafios na constituição de
uma nova identidade e no rompimento do ciclo da violência.
O entendimento da rota crítica como a trajetória que as mulheres per-
correm para a superação das situações de violências domésticas e/ou familiares que
vivenciam, e que comumente resultam no agravamento dos abusos que sofrem, será
útil para a visualização dos dramas cotidianos vividos pela protagonista de “Terra
Fria”, Josey Aimes (Charlize Theron) e – almeja-se – serão de valia para aqueles que
querem “meter a colher em briga de marido e mulher”. Para tal propósito, também é
útil o conhecimento de que episódios de intimidação, ameaça, lesões contra a própria
mulher, bem como contra seus filhos e filhas, ameaças de morte, atentados femicidas
ou a própria consumação do femicídio são comuns no repertório de violações das
mulheres na rota crítica. Os episódios de extrema violência se intercalam com fases de
aparente arrependimento, demonstrações de amor por parte do agressor (lua de mel)
e culpabilização da mulher pelas explosões de violência, criando um círculo de ferro
muito difícil de romper.
Vale igualmente advertir: as categoriais de análise presentes em “Terra
Fria” – cunhadas no interior das lutas feministas como violência doméstica e familiar

34 Após um casamento fracassado, Josey Aimes (Charlize Theron) retorna à sua cidade natal, em Minnesota,
em busca de emprego. Mãe solteira e com dois filhos para sustentar, ela é contratada pela principal fonte de
empregos da região: as minas de ferro, que sustentam a cidade há gerações. O trabalho é duro mas o salário é
bom, o que compensa o esforço. Aos poucos, as amizades conquistadas no trabalho passam a fazer parte do
dia a dia de Josey, aproximando famílias e vizinhos. Incentivada por Glory (Frances McDormand), uma das
poucas mulheres da cidade que trabalha nas minas, Josey passa a trabalhar no grupo daqueles que penam
para arrancar o minério das pedreiras. Ela está preparada para o trabalho duro e, às vezes, perigoso, mas o
que não esperava era sofrer com o assédio dos seus colegas de trabalho. Como, ao reclamar do tratamento
recebido, é ignorada, ela decide levar à justiça o caso. Dirigido por Niki Caro. Ano: 2005.

147
contra a mulher, violência de gênero, rota crítica, ciclo da violência, divisão sexual do
trabalho, dentre outras – não devem ser tratadas abstratamente, mas como categorias
analíticas históricas, vivas, como ingredientes marcantes na vida das mulheres que so-
frem violência. Elas estão contidas na obra cinematográfica com o propósito não só de
entreter a plateia, mas, tal como anota Macário (2012, p. 37), buscando retratar, por
meio dos personagens, “os conflitos que caracterizam sua época, sua condição social
ou mesmo aqueles mais universais que marcam os confrontos entre a individualidade
e o gênero humano”. Ao mostrar a trajetória de Josey Aimes, uma mulher mergu-
lhada no ciclo da violência doméstica e familiar, o filme traz a denúncia da opressão
feminina, por se tratar de um problema recorrente não só na realidade específica da
protagonista, mas também na vida de milhares de mulheres. O preconceito, o assédio
sexual, a violência física, psicológica, sexual, material e outras experiências ultrajantes
da personagem remetem à opressão histórica de gênero contra a qual as mulheres lu-
tam para se libertar. É um filme com forte teor evocativo porque retrata a barbaria que
se desenrola em sociedades modernas, do centro e da periferia capitalista, e em meios
sociais ditos atrasados economicamente. O filme é um convite ao engajamento nos
movimentos que defendem a igualdade entre homens e mulheres.

Aproximações conceituais na elucidação do drama das mulheres em


situação de violência
Rota crítica é o conceito utilizado pelo dicionário feminista para denomi-
nar a trajetória que as mulheres percorrem para a superação das situações de violência
que vivenciam no ambiente doméstico e/ou familiar. O processo tem início quando a
mulher decide romper o silêncio acerca da situação de violência que vivencia, dividin-
do o problema com alguém fora do círculo familiar e de amizade. Montserrat Sagot
(2000, p. 89) estabelece o conceito da seguinte forma:

La ruta crítica es un proceso que se construye a partir de la


secuencia de decisiones tomadas y acciones ejecutadas por las
mujeres afectadas por la violencia intrafamiliar y las respuestas
encontradas en su búsqueda de soluciones. Este es un proceso
iterativo constituido tanto por los factores impulsores e inhi-
bidores relacionados con las mujeres afectadas y las acciones
emprendidas por éstas, como por la respuesta social encontra-
da, lo que a su vez se convierte en una parte determinante de
la ruta crítica. En ese sentido, con el concepto de ruta crítica

148
se reconstruye la lógica de las decisiones, acciones y reacciones
de las mujeres afectadas, así como la de los factores que inter-
vienen en ese proceso.

O início da rota crítica pode ser considerado como o “romper o silêncio”,


ou seja, as mulheres iniciam sua rota crítica quando decidem revelar sua situação de
violência a uma pessoa fora de seu âmbito doméstico ou familiar imediato, como ten-
tativa de buscar soluções para o rompimento do ciclo da violência e pôr termo a uma
relação baseada na assimetria de poder, no autoritarismo e na instabilidade das fases
que marcam o ciclo da violência35.
Comumente, a rota crítica resulta no agravamento da violência doméstica
porque é o momento da desobediência aos padrões de comportamento impostos pela
sociedade e adotados como modelo na relação de abuso do homem agressor para com
a mulher. Aquela mulher que recusa a violência doméstica e inicia o percurso de (re)
constituição da sua identidade fica sensivelmente sujeita a violações ainda mais graves
ou à morte36.
O apoio à mulher nesse momento pode significar fator decisivo para a
superação da violência, pois, ao iniciar a rota crítica, a mulher “cria” disposição para
quebrar as regras que lhe foram impostas durante anos de educação repressora e vio-
lenta. O apoio também se faz muito relevante porque, ao entrar na rota crítica, a
mulher nem sempre tem a exata dimensão do significado da desobediência em termos
da sua integridade psicofísica. É, portanto, frequente o não dimensionamento dos
riscos e é igualmente comum a falta de clareza em torno das possíveis estratégias a
serem adotadas para o rompimento do ciclo da violência, ou seja, a mulher não pode
se mostrar imparcial diante do problema no qual ela própria está envolvida porque “o
que está sendo posto à mesa” é a relação de intimidade que mantém com o agressor e

35 Cf. Alcipe (s/d, p. 26): O ciclo da violência deve ser entendido como um sistema circular, no qual as
dinâmicas da relação de casal se manifestam sistematicamente passando por três fases distintas que podem
variar consoante o tempo e intensidade para o casal e entre diferentes casais: 1) Aumento de Tensão. As
tensões acumuladas no quotidiano, as injúrias e as ameaças do agressor, criam, na vítima, uma sensação
de perigo iminente; 2) Ataque Violento. O agressor exerce violência física e psicológica contra a vítima,
aumentando na sua frequência e intensidade; 3) Lua de Mel. O agressor envolve agora a vítima de carinho
e atenções, desculpando-se pela violência exercida e prometendo mudar de comportamento.
36 A relevância da decisão pela quebra do silêncio acerca da violência e as respostas que uma mulher obtém
para os movimentos que faz ao iniciar a rota crítica são decisivas para a preservação da sua integridade, uma
vez que a desobediência às regras impostas pelo abusador tem resultado com grande frequência em trágicas
punições para a mulher.

149
essa relação não se baseia na justiça ou na igualdade, mas no autoritarismo, na opres-
são e na intimidação pela força.
Conforme enfatiza o conceito de rota crítica, a recusa da violência por
parte da mulher consiste num processo crítico e de grande complexidade, pois é um
momento marcado pela fragilidade emocional e material: a mulher experimenta si-
tuações frequentes de rompimento dos vínculos pessoais e familiares, principalmente
quando necessita se afastar do convívio com a sua comunidade para evitar a morte,
pagando alto preço pelo rompimento do ciclo da violência, pois, ao deixar para trás
as redes familiares e sociais que a amparam, mergulha num processo de orfandade
desses vínculos.

O silêncio, o segredo e a violência contra a mulher


A mulher que sofre violência mantém segredo sobre sua experiência du-
rante longos períodos. Pesquisas revelam que, em alguns casos, mulheres vivenciam
situações de violência por mais de quatro décadas sem conseguirem vencer o medo e
revelar a uma terceira pessoa o problema que vivenciam. Não revelam muitas vezes
porque alimentam a esperança de que seus homens se transformem, deixando de mal-
tratá-las e adotem condutas não opressivas para com elas.
O contato com mulheres em situação de violência revela episódios em que
a comunidade da qual participam é conhecedora dos abusos não verbalizados pelas
vítimas. O medo e outras barreiras psicológicas e sociais promovem o adiamento do
desenvolvimento das estratégias que caracterizam a rota crítica, tornando necessário
que a mulher, ela mesma, supere a barreira da “normalidade” e da tolerância em re-
lação ao intolerável para “detonar o gatilho” da denúncia. Teorizando a esse respeito,
Schraiber (2003) refere que a violência vivida é uma dor que não tem nome, e que a
experiência da violência se mostra de revelação difícil, prescindindo, as mulheres em
situação de violência doméstica e ou sexual, de um aprendizado em termos de expres-
são da dor e de reestabelecimento ou estabelecimento de novos vínculos com pessoas
ou instituições que lhes propiciem suporte para o início da rota crítica.
Diniz e Pondaag (2004), explorando os significados do silêncio e do segre-
do nos contextos de violência doméstica, apontam que os dois elementos relevam o
lugar social da mulher na violência, uma vez que faz parte do modelo patriarcalista a
subjugação da mulher ao homem e à família, a quem deve-se dedicar com respeito,

150
obediência e dedicação sem medidas. Nas palavras das pesquisadoras; a mulher perde
a autonomia para ser um ser para os outros e dela não se espera menos do que a dis-
ponibilidade de cuidar para que a família se reproduza social e materialmente dentro
de perspectivas satisfatórias. Daí a sua sobrecarga no exercício de vários papéis – mãe,
cuidadora, esposa, trabalhadora e, frequentemente, como mantenedora, papéis, no
entanto, não recompensados ou reconhecidos.
As autoras observam que da, expectativa de desempenho desses papéis,
também são provenientes as culpas que as mulheres sentem ao constatar que “algo
deu errado” na família, bem como a minimização das violações sofridas, mediante
referências benevolentes aos episódios de violência. Referem-se ao problema como
nervosismo, agressividade, falta de paciência e jeito severo do homem agressor, poden-
do também isso indicar a resposta das mulheres à expectativa que a sociedade expressa
sobre elas de mantenedora da coesão familiar. Desta forma, a mulher introspecta um
modelo de sociabilidade que colocará seus desejos, vontades e necessidades em segun-
do plano em relação aos interesses da família (DINIZ; PONDAAG, 2004).

Terra Fria: da ficção ao universo da mulher em situação de violência


“Terra Fria” é baseado na experiência verídica de uma mulher que, ao re-
cusar a opressão do casamento com um homem violento, luta para tomar nas mãos o
próprio destino, abrindo caminho no mundo do trabalho como operária numa mi-
neradora no interior do Estado de Minnesota, nos Estados Unidos. Em Minnesota, a
mina representa a única possibilidade local de venda da força de trabalho e os homens
brigam para se manterem ali com exclusividade, não aceitam a presença das mulheres
como colegas, encarando-as como potenciais concorrentes. Afirmam que as mulheres,
ao ocuparem os postos de trabalho disponíveis, apropriam-se dos lugares que perten-
cem a eles por direito, pois o labor da mina é um trabalho masculino – mina não é
lugar para mulher, as mulheres causam confusão e acidentes, dizem reiteradamente
durante o filme. Trabalho de mulher é cuidar dos filhos e da casa, como afirma Sammy
(Thomas Curtis), filho de Josey Aimes. A mina constitui, portanto, na divisão sexual
do trabalho, espaço masculino, fato notório em diversas cenas do filme: nas cenas
iniciais, quando Josey manifesta desejo de trabalhar na mina e seu pai, Hank (Richard
Jenkins), a acusa de lesbianismo, quando a sindicalista Glory (Frances McDormand)
pergunta a Josey se ela é lésbica, quando a mãe de Josey, Alice Aimes (Sissy Spacek),
afirma que se ela for trabalhar na mina envergonhará o pai etc.

151
A sindicalista Glory (Frances McDormand) adverte Josey Aimes de que
se ela não for lésbica precisa ser “durona”, pois mulher para trabalhar na mina deve
ser dura e suportar as condições impostas pelos homens, não se importando com as
grosserias e com o assédio moral/sexual dos companheiros. A advertência se confirma
quando a protagonista depara os ataques dos colegas homens e com o constrangimen-
to de ouvir o supervisor falar da sua nudez no momento da realização do exame de
gravidez.
As trabalhadoras da mina também não devem se importar com o controle
dos seus corpos, controle esse que o capitalista leva ao limite ao exigir teste de gravidez
como requisito para admissão das mulheres a mina. A esse respeito Marques et al.
apud Castro e Lavinas (1992, p. 221) argumentam constituir um processo de recria-
ção, no ambiente de trabalho, das experiências de opressão sexual que as mulheres
vivenciam na sociedade. Nas suas palavras,

[...] recria-se na fábrica a mesma forma de hierarquia social


característica do patriarcado, onde as mulheres se encontram
sob o domínio direto (chefia) dos homens. [...] [onde dá para]
reconhecer [...] a prática combinada do capitalismo com o
patriarcado na construção social da subordinação feminina,
necessária à reprodução da sociedade de classes.

A opressão das mulheres em Terra Fria também se dá como violência de


gênero37 gestada nos esquemas patriarcais de família que desbordam essa esfera e al-
cançam os espaços de trabalho e de lazer, bem como outras instâncias de sociabilidade.
Tanto sob a forma física, o espancamento, como aparece numa das cenas iniciais do
filme onde Josey é vista no chão da cozinha com o rosto sangrando, quanto moral e
psicologicamente, mediante do tratamento preconceituoso e discriminatório dispen-
sado às mulheres – situações emblemáticas são retratadas no filme quando a protago-
nista é acusada de promiscuidade no tribunal, ao ser chamada de cadela pela mulher
que a acusa publicamente de ter assediado seu marido, ou por gestos sub-reptícios ao
ser olhada de lado pelas outras mulheres.

37 Izumino e Cf. Santos (2011, p. 11) para quem a violência de gênero é uma categoria de violência mais
geral, que pode abranger a violência doméstica e a violência intrafamiliar. Segundo as autoras, a violência
de gênero ocorre normalmente no sentido homem contra mulher, mas pode ser perpetrada, também, por
um homem contra outro homem ou por uma mulher contra outra mulher.

152
Esse quadro é característico de violência de gênero e não especificamente
de violência contra a mulher, pois, conforme Saffioti (2004), o registro não é apenas
de atos de rompimento da integridade física ou psíquica impetrado nas relações entre
homens/mulheres; esses atos também são observados entre mulheres/mulheres porque
estas, como parte da sociedade patriarcal, assimilam a violência que sofrem e a repro-
duzem nas suas relações com as outras; reproduzem a violência/opressão que sofrem
nos espaços de convivência com os(as) outros (as) e também a exercem. Na cena em
que a esposa supostamente traída vai até a rival – Josey Aimes - e a ameaça com duras
expressões e constrangimentos verbais do tipo “não se aproxime do meu marido!”, o
que faz a agressora é precisamente proteger, inocentar ou poupar o homem atribuindo
toda culpa à outra mulher. A mulher traída não acusa nem condena o traidor por
considerá-lo inocente, vítima das tentações praticadas pela “cadela desavergonhada”;
esta sim, merece punição! Nessa lógica, as bruxas continuam sendo queimadas, as-
sim como ocorreu na Idade Média. A mulher agressora joga Josey Aimes na fogueira
pública porque é permitido desafiar e oprimir outra mulher, mas não é permitido
desafiar o poder masculino e reprimir o homem.
Os estudos de Saffioti também permitem considerar: a violência que as
mulheres sofrem em diferentes espaços de sociabilidade se insere no quadro de opres-
são que lhes é imposto no chamado esquema patriarcal de pensamento e de família.
Essa opressão tem lugar na lógica do chamado contrato original, celebrado entre ho-
mens e cujo objeto são as mulheres. Pelo casamento burguês, um homem firma um
contrato com outro homem: o pai e o noivo. O objeto desse contrato, no entanto,
não é outro homem, mas uma mulher, sobre a qual o noivo passará a ter direitos: de
mandar, controlar seu corpo, decidir sobre sua vida e ter acesso sexual regular. Essa
lógica patriarcal, conforme Saffioti, é reproduzida na nossa sociedade: no ritual do
casamento, o pai leva a filha até o altar e a entrega ao seu noivo; ali há a transferência
dos poderes que o pai tinha sobre a filha, agora é seu marido que assumirá o “controle”
sobre ela.
Terra Fria não aborda implicitamente o ritual do casamento burguês, mas
mostra a protagonista sendo compelida pelos pais a reatar a relação marital com o
companheiro que a espancava sistematicamente, e, embora esta não silencie sobre a
violência física, sua mãe frisa que aquele homem é seu esposo e a mensagem inaudita
é: isso é coisa de homem, é natural! O pai de Josey Aimes, por sua vez, justifica que

153
seu companheiro a espancou porque ela mereceu, ela o traiu ao rompeu as regras do
casamento, desobedeceu ao seu senhor. Quando isso ocorre, o homem deve demostrar
autoridade, espancando, humilhando ou cometendo o femicídio para deixar claro
quem manda. A cultura patriarcal é clara: o não cumprimento das regras estabelecidas
no contrato original implica punição física, psicológica, moral e outras.
Na sociedade patriarcal, o exercício dos macro poderes é seara masculina.
Aos homens cabem as posições de mando. Eles são os chefes da família, representam
a autoridade, por isso uma família sem o componente masculino fica em posição de
fragilidade, tanto material quanto moral: a fragilidade material das mulheres é expres-
sa quando não são consideradas pares dos homens, são mais exploradas e mais mal
remuneradas e têm acesso limitado aos melhores postos de trabalho, apesar de possu-
írem escolaridade mais elevada. Não à toa, inúmeras pesquisas demonstram a pobreza
como fenômeno feminino. A fragilidade moral ocorre porque mulher sem homem é
considerada “cadela sem dono”. Na cultura machista, para a mulher ter crédito, deve
ter um homem para falar por ela e representá-la moralmente. Esse elemento aparece
no filme no momento em que Josey Aimes vai à assembleia do sindicato e se posiciona
publicamente, sofrendo inúmeros ataques morais; a assembleia de sindicalistas – em
sua esmagadora maioria masculina – só lhe dá crédito quando seu pai intercede ao
seu favor, reclamando em nome da honra própria, ao lembrar que quando levam
suas famílias a uma festa, nenhum homem fala mal de suas esposas e filhas. Em tom
imperativo, reclama dos maus-tratos a sua filha e afirma ter orgulho dela. Só então os
demais silenciam as agressões e alguns até se colocam ao lado do pai e de Josey nas re-
clamações contra os abusos físicos, morais e psicológicos protagonizados na empresa.
Ou seja, as colocações de Aimes não são reconhecidas como legítimas porque vêm de
uma mulher; as do seu pai sim, pois ele é homem.
Os meandros da dualidade classe/gênero são abordados nas cenas em que
os operários da mina demonstram resistência em aceitar as mulheres (que estão ali
por uma imposição legal e não por um consenso de classe) como colegas de trabalho.
Não é pela vontade dos operários que as mulheres são aceitas, mas por uma conquista
jurídica destas. A recusa dos homens em aceitá-las, no entanto, é latente: quando a
sindicalista Glory reivindica melhores condições de trabalho para as mulheres, não o
faz de forma substantiva, pois ela não está no sindicato em condição de igualdade, não
vai para o confronto com os colegas, não os enfrenta, finge que é forte e não liga para
o desrespeito com que é tratada; na verdade, finge-se de “durona” para continuar na

154
mina, que é o seu trabalho, pois amolecer significaria sua exclusão como trabalhado-
ra. Desta forma, tanto Glory quanto Josey Aimes e as demais trabalhadoras da mina
aprendem a conviver com os abusos físicos e verbais, repetindo o drama secular que
acompanha as mulheres desde suas infâncias: a naturalização da violência.
Outra passagem emblemática no dilema classe/gênero se dá quando Josey
Aimes é orientada por seu advogado a entrar com uma ação coletiva das trabalhadoras
contra os abusos por elas sofridos. A ação é frustrada na medida em que ela não con-
segue mobilizar as companheiras de trabalho: procura-as, pede ajuda, mas as mineiras
se negam a colaborar por medo de perder os empregos ou por preconceito. É, então,
que a protagonista ajuíza uma ação individual, que é recusada. Sua solidão aumenta.
Para a ação se caracterizar como ação de classe, há a necessidade de que, pelo menos,
quatro querelantes se manifestem. Do contrário, não poderá ser reconhecida como
iniciativa coletiva, pois não expressa a voz das trabalhadoras.
O percurso da protagonista em “Terra Fria” é o caminho pelo qual ela se
descobre como parte da classe trabalhadora e do gênero feminino, superando a consci-
ência inicial, isolada, individual, e assumindo-se como parte do gênero feminino e da
classe trabalhadora. Nesse sentido, a evolução do enredo fílmico permite a mediação
entre a particularidade vivida pela personagem e as leis que orientam as sociedades
patriarcalistas e classistas: o indivíduo é envolvido em grupos e classes e sua ação
torna-se cada vez mais consequente na medida em que é capaz de atuar individual e
coletivamente em busca da transformação da realidade. Não é outra a lição deixada
no desfecho da história: Josey Aimes e suas companheiras reafirmam o direito de
trabalhar na mina e põem em andamento um processo de transformação da cultura
machista e da violência de gênero que se desenrola na família, no grupo, na cidade e,
especialmente, na empresa.
Vale ressaltar que as outras mulheres da mina vivenciavam os mesmos so-
frimentos, igual opressão classe/gênero, mas foi necessária a iniciativa de Josey Aimes
para que a naturalização da violência fosse rompida. Com isto, o filme repõe a dife-
rença entre coletivo e individualidade e põe – sem nenhum resquício de heroísmo
abstrato – a decisão e a iniciativa da mudança nas mãos dos próprios indivíduos que
sofrem a opressão. Certo é que o desfecho do filme mostra uma mudança substantiva
na vida daquelas mulheres trabalhadoras: sacudidas por Josey Aimes elas redescobrem
o sentido da vida, do trabalho e de ser mulher, o que todas buscamos!

155
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157
DIREITO, CINEMA E COTIDIANO: ANÁLISE JURÍDICO-
SOCIOLÓGICA DO FILME REGRAS DA VIDA38

Rogério de Araújo Lima

Direito e cinema: por uma metodologia da realidade


O Direito, tal como a obra de arte, o artesanato e o cinema, é produto
cultural, forjado pelo homem para a satisfação dos interesses individuais e coletivos; é
algo constituído e não apenas achado como se encontra. É, portanto, manifestação no
domínio da cultura, e igualmente pode ser analisado sob inúmeros aspectos, dentre os
quais o meramente formal e o essencialmente material.
Nesse âmbito, buscamos experimentar, no primeiro ano do curso de ba-
charelado em Direito da UFRN/CERES, mais precisamente nos componentes curri-
culares Introdução à Ciência do Direito I e II, a abordagem fílmica como metodologia
idônea a desvendar as relações entre a norma e o fato, o escrito e o dito, o “dever ser”
e o vivido e, por que não dizer, entre a ficção e a realidade.
Dentre os filmes trabalhados em sala de aula, destacou-se a película “Re-
gras da Vida”, pela multiplicidade de temas jurídicos que aborda e pela oportunidade
que enseja no enfrentamento do sensível dilema jus filosófico norma versus fato, regras
do Direito versus normas da vida.
Aborto, incesto, homicídio, suicídio, falsidade ideológica, ocultação de
cadáver e falsificação de documento fazem parte do rol de ocorrências do filme que
resultaram impunes, justificadamente impunes.
A análise da obra cinematográfica deu-se por meio de importante mecanis-
mo de interpretação jurídica dos fatos, a saber, a teoria acerca dos atributos de validez
do Direito (vigência, eficácia, efetividade e legitimidade).

38 O filme “Regras da Vida” baseado no romance The Cider House Rules, de John Irving, recordista de
vendas nos Estados Unidos, conta a emocionante história de Homer Wells (Tobey Maguire), um jovem
criado e educado como médico em um orfanato pelo adorável doutor Wilbur Larch (Michael Caine), e
que decide deixar o “lar” em busca de uma nova vida. Com apenas uma maleta e nada mais, Homer é
apresentado para um mundo maior, cheio de novas atrações, aventuras e amizades, assim como tragédia,
traição e perigo. Dirigido por Lasse Hallström. Ano: 1999.

159
Regras do Direito e Regras da Vida
Em St. Cloud’s, Maine, EUA, no ano de 1943, um orfanato envolto em
uma paisagem bucólica abriga inúmeras crianças deixadas para trás por mães que
resolveram não optar pelo aborto, comumente praticado pelo Dr. Wilbur Larch (Mi-
chael Caine), médico que compartilhava com duas enfermeiras a administração da-
quele lugar. Uma espécie de chaminé que contrastava com o cenário lançava fumaça
dia e noite. Era, na verdade, um incinerador, usado para cremar os fetos abortados
com o auxílio do Dr. Larch e seu assistente, Homer Wells (Tobey Maguire), órfão
duas vezes rejeitado pelos adotantes e que cresceu no orfanato.
Dr. Larch, que criava as próprias regras, via no aborto a solução para o pro-
blema de mães desesperadas e futuras crianças abandonadas. Questionado por parte
de Homer Wells acerca da ilegalidade da prática dos procedimentos abortivos, asse-
verou que cada regra que criava ou quebrava tinha como prioridade o futuro de um
órfão, pois entendia que não valia a pena viver sob qualquer condição.
De fato, o tema central do filme é o aborto, a morte, mas curiosamente
ele fala de vida, de abandono, de traição, e em torno desse enlace se refere a regras,
cumpridas ou não bservadas, mas igualmente regras.
Do ponto de vista jurídico, o aborto era inconcebível porque proibido
por lei, mas ali, em St. Cloud’s, ele era abertamente tolerado, porque os fatos não
correspondiam à norma e esta não possuía o condão de garantir um futuro promissor
para tantos quantos ficariam no orfanato em função de um aborto não realizado. As
adoções rareavam, mas a chaminé era perene.
Em uma cena do filme, ainda no contexto do aborto, uma jovem, aparen-
tando ser menor de idade, aparece com o útero perfurado em razão de tentativa de
aborto feita com auxílio de pessoa inábil. Após a intervenção infrutífera do Dr. Larch
na tentativa de salvá-la, ela morre. Ali mesmo é enterrada. O Dr. Larch afirma que se
ela tivesse procurado o orfanato antes, a morte teria sido evitada. Um debate é travado
entre ele e Homer Wells, que se recusa a realizar tais intervenções, alegando que não
concorda com a prática ilegal e que não era médico, embora fosse tido pelo Dr. Larch
como autor de “procedimentos de obstetrícia e ginecológicos próximos da perfeição”.
Insatisfeito com a vida que levava, Homer Wells resolve pegar carona com
um casal que procurou o orfanato para realizar um aborto, e partiu sem saber para
onde ir, convicto apenas de que St. Cloud’s não era mais o seu lugar.

160
Na companhia do tenente Wally Worthington (Paul Rudd) e da bela Can-
dy Kendall (Charlize Theron), vê pela primeira vez o mar. Como não tinha destino
certo, é convidado pelo tenente para trabalhar na colheita de maçãs da fazenda de sua
mãe. Passa a morar na “casa da sidra”, na companhia do Sr. Rose (Delroy Lindo) e sua
filha, Rose Rose (Erykah Badu), além de outros três trabalhadores.
Ali descobre o amor, ao se apaixonar por Candy Kendall, que corresponde
e passa a trair o seu noivo, o tenente Wally Worthington, em missão de guerra.
Tendo abandonado a prática ilegal da Medicina e o auxílio ao aborto, Ho-
mer Wells julgava não se deparar mais com as situações ilícitas tão comuns no orfana-
to/maternidade. Equivocou-se.
Na “casa da sidra” dividia o mesmo teto com quatro negros que, todo santo
dia, nas palavras do Sr. Rose, criavam as próprias regras.
Em uma das passagens, ao nosso olhar, mais marcantes do filme, Jack
(Evan Parke), um dos colhedores de maçãs que ocupava aquele fétido cômodo cha-
mado de “casa da sidra”, pergunta a Homer Wells o que estava escrito em uma folha de
papel envelhecida pendurada há tempos na parede, ao que se segue o diálogo seguinte:

Homer: Parece ser uma lista de regras.


Jack: Regras de quem?
Rose Rose: Regras de que?
Muddy: Deve ser deles para nós.
Jack: Então leia, Homer.
Homer: Primeira: por favor, não fumem na cama. [A maioria
fumava sobre a cama naquele momento. Todos riram].
Rose Rose: É muito tarde para essa. Continue lendo, Homer.
Homer: Segunda: não trabalhe com o moedor ou prensa se
você bebeu.
Sr. Rose: Sabe, essas regras não são as nossas regras, Homer.
Não vejo motivo para as lermos.
Homer: Certo. [A leitura foi interrompida].

Havia um fosso ente aquelas regras e a realidade dos trabalhadores que ali
viviam. Com exceção de Homer, único branco e que teve acesso à educação formal,
nenhum sabia ler. Para eles, os crioulos, como se denominavam, até aquele momento
aquelas regras sequer existiam no mundo fático. Existindo, não eram as regras deles.

161
Homer depara novamente a quebra de regras do Direito, agora em am-
biente diverso do único que conhecia, o orfanato/maternidade. Lá presenciou e par-
ticipou de incontáveis abortos. Aqui não fazia ideia do que estava por vir: homicídio,
incesto, suicídio e, novamente, aborto, este realizado com as próprias mãos, quando
Rose Rose engravidou do próprio pai (Sr. Rose) e teve a gestação indesejada interrom-
pida com a ajuda da perícia médica de Homer.
No orfanato, o Dr. Larch preparava o retorno de Homer, pois seria subs-
tituído e queria garantir que os “benefícios” por ele realizados quando, nas suas pa-
lavras, “brincava de ser Deus”, se perpetuariam. Para tanto, falsificou um diploma
de médico no qual constavam dados de Homer Wells, que sequer havia concluído o
“segundo grau” (ensino médio), mas fora treinado por Dr. Larch na arte da Medicina.
Na “casa da sidra”, depois do procedimento abortivo realizado por Homer
Wells em Rose Rose, a discussão acerca das “regras da casa da sidra”, interrompidas
pelo Sr. Rose quando da tentativa de primeira leitura, fora retomada e concluída nos
seguintes termos:

Sr. Rose: Quem mora nesta “casa da sidra?” Quem tem que moer
as maçãs, espremer a sidra, limpar a sujeira? Quem é que vive
aqui cheirando aquele vinagre? Alguém que não vive aqui fez
essas regras. Essas regras não são para nós. Nós é que devemos
fazer nossas próprias regras. Agora nós fazemos... todo santo dia.

A essa altura, o Sr. Rose havia supostamente matado um homem (Jack) e


tido relação incestuosa com a sua filha, que engravidou em razão do ato, tendo con-
sentido o aborto realizado por Wells. Peaches (Heavy D.), colhedor de maçãs, então
sugere: “Por que não queima essas regras? Vá em frente, Homer.”
Homer se aproxima do fogão a lenha e atira ao fogo as regras. As regras do
Direito sucumbiram em face das regras da vida.
Mais à frente, Rose foge, não sem antes ferir o pai, Sr. Rose, a facadas, que
conclui o feito apunhalando a si próprio num gesto suicida que o leva a morte.
Com a notícia do retorno do tenente Wally Worthington da guerra, agora
paraplégico, e sabedor da morte acidental (na verdade por overdose de éter) do Dr.
Larch, Homer Wells retorna ao orfanato em St. Cloud’s e passa a exercer ilegalmente
a Medicina com um diploma falso de médico cuidadosamente preparado pelo Dr.
Larch.

162
Realizada tal digressão, passamos a ponderar, com base na doutrina mais
abalizada, o fenômeno do rompimento com as regras do direito perfilado no filme
“Regras da Vida”.

Atributos de validez do Direito e costumes contra legem no filme


Regras da Vida
Como já foi asseverado, a análise do filme “Regras da Vida” se deu a partir
do entendimento prévio da teoria que versa acerca dos atributos de validez do direito,
que compreende os fenômenos jusfilosóficos e jussociológicos da vigência, da eficácia,
da efetividade e da legitimidade.
O jurista Paulo Nader (2006, p. 68-69), um dos teóricos que com maior
acuidade se debruçou sobre o tema, desenvolveu com clareza os conceitos prelimina-
res de cada um dos atributos há pouco indicados, segundo o qual:

O termo vigência [...] é identificado aqui como validade ex-


trínseca da norma pelo preenchimento de formalidades essen-
ciais a sua formação. É o período de tempo no qual a norma se
mantém obrigatória. Pelo atributo eficácia, designamos restri-
tamente a norma que obtém socialmente a realização do valor
pretendido por seu autor. Por efetividade do Direito, tratamos
a norma que logra extensa adesão entre os seus destinatários
e acatamento pelos órgãos encarregados de sua aplicação, seja
no âmbito da administração ou da justiça. [...] Finalmente,
por legitimidade abordamos a justificação ética das normas.
Tal atributo é denominado, por alguns expositores, por vali-
dade intrínseca ou fundamento ético do Direito.

Passemos, então, a cotejar os aspectos selecionados do filme que confron-


tam com os atributos de validez do Direito.
Seguindo a ordem ora transcrita, pode-se perceber que, do ponto de vista
da zigência da norma, que tomaremos aqui como o lapso em que a norma “vale” ou
está apta a produzir os efeitos, salta aos olhos o fato de que, na casa da sidra, onde
moravam os colhedores de maçãs, ela não vigorava porque resultava inexistente, pela
simples razão de que os seus destinatários, os “crioulos”, sequer sabiam o que ali es-
tava escrito, pois todos eram analfabetos. Somente com a chegada do letrado Homer
Wells, que leu aquelas regras para os demais, foi que lhes ocorreu o que ali estava
escrito ou, mais precisamente, proibido.

163
É consabido que em regra ninguém pode se escusar do cumprimento de
uma norma sob a alegação de que a desconhece. O que dizer, então, de pessoas inca-
pacitadas de terem acesso a tais comandos, como no caso da barreira intransponível,
naquele caso, da cegueira do analfabetismo, que no contexto do filme tinha como
pano de fundo a questão racial dos destinatários daquelas regras/proibições, todos
negros em plena década de 1940 em território estaduniense?
Até mesmo Hans Kelsen, um dos maiores teóricos do Direito de todos os
tempos, que defendeu a tese purista de que o atributo vigência indicava a ordem do
dever ser e não do ser, modificou o seu entendimento, advertindo que “uma norma
que nunca e em parte alguma não é eficaz em certa medida não será considerada como
norma válida ou vigente” (apud NADER, 2006, p. 71).
O que se percebia ali e alhures, na casa da sidra e no orfanato em St.
Cloud’s, apesar de realidades distintas, era uma norma formalmente válida, vigente,
mas que não condizia com os costumes construídos e observados pelos seus destina-
tários, a saber, verdadeiros costumes contra legem, que nenhuma pertinência tinha
com a observância da norma feita por quem não conhecia a dura realidade da casa da
sidra e do orfanato.
Quanto à eficácia, percebe-se que as regras do direito no filme restaram
ineficazes, pois não conseguiram provocar, no mundo dos fatos, os resultados espera-
dos pelos autores das ditas regras. Não se está com isso dizendo que se concorda com
os abortos ou mesmo o incesto. Apenas no filme se ressalta o insucesso dos autores das
regras no que diz respeito ao que se almejou alcançar por meio delas. A prática coti-
diana da casa da sidra e do orfanato não comportava aquelas regras, e ao que parece
quem as confeccionou nada sabia da realidade dos negros colhedores de maçãs ou dos
órfãos fruto de abortos não realizados ou de mães desesperadas.
A respeito da efetividade, que corresponde à observância das normas pelos
seus aplicadores e pelos seus destinatários, eis mais uma sutileza do filme “Regras da
Vida”, que põe na mesma vala comum os transgressores das regras e aqueles que deve-
riam fazer com que as mesmas “valessem”. Nada do que ocorria na casa da sidra ou no
orfanato, com rara exceção na tentativa de substituir o Dr. Larch por um médico que
não praticasse aborto, era combatido fora daquelas cercanias. Quanto ao Dr. Larch,
não houve um enfrentamento legal por parte dos representantes do Estado (assistentes
sociais), mas uma tentativa meramente administrativa de tentar substituí-lo. Na casa

164
da sidra ninguém se deu conta do “sumiço” do colhedor de maçãs Jack (Homer apenas
perguntou única vez por ele). O enredo do filme dá a entender que fora assassinado
pelo Sr. Rose. Já a morte deste, supostamente desencadeada em razão dos golpes de
faca que sofreu da sua própria filha Rose Rose, fora noticiada como suicídio e não
homicídio. As regras da casa da sidra, que não eram aquelas afixadas na parede suja
em papel desbotado, impunham tal conduta. Não houve, portanto, nem aceitação
social das regras do Direito pelos seus destinatários e muito menos a sua execução por
parte dos seus aplicadores. Por fim, o atributo da legitimidade tem a ver com o fun-
damento ético das normas e, dependendo do ponto de vista, pode ou não inviabilizar
a aplicabilidade do Direito.
Com efeito, concordamos com Paulo Nader em face da asserção segundo
a qual “pura e simplesmente admitir que a lei não careça de qualquer fundamentação
ética é também admitir como Direito qualquer expressão normativa por mais infame
que seja.” (2006, p. 76). O contexto aqui, ao contrário do que poderia se supor diante,
por exemplo, dos abortos praticados no filme, leva em conta que as leis devem ser jus-
tas e não injustas e, sendo injustas, não deveriam ser aplicadas. No contexto do filme
“Regras da Vida”, porém, quais eram as regras injustas, as do Direito, que proibiam
o aborto e cujo resultado seria um orfanato cheio de crianças abandonados à própria
sorte e, nas palavras do Dr. Larch, vivendo por viver sob quaisquer circunstâncias?
Ou seriam ilegítimas as regras da vida, aquelas “feitas todo santo dia” na casa da sidra
pelos crioulos analfabetos ou na intimidade do orfanato administrado pelo Dr. Larch?
Diríamos que o leitor, assim como todos quantos depararam o filme “Regras da Vida”,
pode possuir respostas diferentes acerca de tal questionamento, e não há a intenção,
aqui, de induzi-las. Uma realidade se torna, porém, patente na experiência fílmica que
todo e qualquer um teve e terá ao assistir ao filme “Regras da Vida”: lá, as regras da
vida se sobrepuseram às regras do Direito.

Considerações finais
No decorrer deste capítulo – as conclusões com base no propósito que bus-
cam alcançar com a experiência fílmica em sala de aula foram indiretamente descritas
ao final de cada sessão, no entanto necessário se faz retomar sucintamente aquilo que
ficou de certa forma evidenciado no decorrer do texto.

165
A primeira advertência a ser feita, para evitar erros terminológicos ou mes-
mo o enquadramento inadequado do fato à norma, é que intencionalmente não rea-
lizamos a comparação dos fatos ocorridos no filme, que retrata a realidade do Direito
estadunidense, com as normas vigentes no Brasil, abordando apenas os aspectos mais
gerais que em regra se aplicam ao Direito, no caso, os atributos de validez vigência,
eficácia, efetividade e legitimidade.
A segunda observação a ser ressaltada é o fato de que a análise dos aconte-
cimentos se circunscreveu ao que foi retratado no filme, não correspondendo neces-
sariamente ao juízo de valor do autor do texto em relação a tudo aquilo retratado em
“Regras da vida”.
De fato, não há como negar que as regras de Direito presentes no filme, le-
vando-se em conta os seus destinatários (os moradores do orfanato em St. Cloud’s e os
ocupantes da casa da sidra), restaram ineficazes, ineficientes e injustas. Eram também
anacrônicas e artificiais, e sendo assim não havia de se esperar a adesão daqueles para
os quais tais regras eram endereçadas.
Embora se trate de filme, que por ser arte se permite ir além ou aquém do
imaginário comum, “Regras da vida” é pura realidade, muitas vezes não revelada por
motivos idênticos àqueles retratados ou por outras ali não expostas, mas com seme-
lhante resultado prático.
Tendo como cenário um orfanato cujos órfãos lá mesmo nasciam, e como
protagonista um órfão por duas vezes rejeitado, o filme “Regras da vida” trata com
leveza da quebra de regras do Direito pelas mesmas da vida.
Ao fim da sessão, há mais dúvida do que certeza sobre as práticas sociais
reveladas no decorrer do filme, mas fica a convicção de que “algumas vezes você tem
que quebrar as regras, deixar a coisa certa” (Sr. Rose).

Referências
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de Richard N. Gladstein, direção de Hallström Lasse. Estados Unidos, Miramax
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166
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NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo de Direito. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense,


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OLIVEIRA, Mara Regina de, ORTEGA, Luciano Correa. Regras da vida: uma
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Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/impressao.php?t=artigos&n=732>.
Acesso em 09 jan. 2012.

PARINI, Jay. A arte de ensinar. Tradução de Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro:
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TRIPICCHIO, Adalberto. A estética em busca do aborto ético. RedePsi.


Disponível em: <http://www.redepsi.com.br/portal/modules/smartsection/item.
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VIVEIROS, Marina. Regras da vida – sobre o filme: filme aborda temas polêmicos.
Folhaonline. Disponível em: < http://dvdteca.folha.com.br/filmes/regrasdavida/
sobre.html>. Acesso em: 09 jan. 2012.

167
TROPA DE ELITE39: INDÚSTRIA CINEMATOGRÁ-
FICA, NEONAZISMO E A CADEIA PRODUTIVA DA
VIOLÊNCIA NO BRASIL

Fernando Bomfim Mariana

Introdução ao tema
Há pouco tempo, encontrei em uma livraria um estranho livro intitulado
“Glamouroso nazismo”! O livro, em sua breve introdução, versava rapidamente em
15 ou 20 linhas sobre os perigos das ideologias políticas totalitárias e sobre a esperança
em que futuras gerações se distanciassem do nazismo. Da segunda página em diante,
o livro trazia uma série de fotografias e composições visuais relacionadas ao título da
obra: imagens glamourosas de apologia nazi, acentuadas pela bela e cuidadosa edição
gráfica de 90 páginas.
Folheando o livro, não me seduzi pelas fotos. Creio, porém, que apenas
em razão do meu conhecimento e imediata repulsa ao nazismo e outras ideologias
totalitárias, uma vez que as imagens estavam impressionantemente bem compostas
esteticamente – e muitas vezes unidas a outras temáticas como sexo, armas, violência,
ou até mesmo a outros motivos politicamente corretos, tais como pequenas vilas, pai-
sagens naturais exuberantes, convívio familiar etc. Pouco a pouco, fui percebendo a
beleza medonha daquele livro. E me perguntava o porquê da existência de tal publica-
ção, uma vez que as ideias das breves palavras introdutórias contrárias ao nazismo não
faziam jus às ideias apresentadas pelas fotografias: a suástica exibida em corpos nus de
mulheres, ou se misturando numa cena de amor e convívio comunitário, ou mesmo
colocada de maneira subliminar em paisagens afrodisíacas de vida e prazer.

39 O filme ‘Tropa de elite” procura retratar o contexto da cidade do Rio de Janeiro no ano de 1997.
Nascimento (Wagner Moura), capitão da Tropa de Elite do Rio de Janeiro é designado para chefiar uma das
equipes que tem como missão “apaziguar” o Morro do Turano por um motivo que ele considera insensato.
Ele tem que cumprir as ordens enquanto procura um substituto. Sua mulher, Rosane (Maria Ribeiro),
está no final da gravidez e todos os dias lhe pede para sair da linha de frente do Batalhão. Pressionado, o
capitão sente o efeito do estresse. Neste clima, é chamado para mais uma emergência no morro. Em meio
a um tiroteio num baile fank, Nascimento e sua equipe têm que resgatar dois aspirantes a oficiais da PM:
Neto (Caio Junqueira) e Matias (André Ramiro). Ansiosos para entrar em ação e impressionados com a
eficiência de seus salvadores, os dois se candidatam ao Curso de Formação da Tropa de Elite. Dirigido por
José Padilha. Ano: 2007.

169
Tudo isso me revoltou, pois, após folhear o livro, percebi que se tratava de
uma publicação claramente neonazista, e que as palavras introdutórias representavam
apenas uma justificativa formal para que o livro não estivesse proibido ou impedido
de circular pelas livrarias.
Os conteúdos e as ideias contidas nas imagens ultrapassavam infinitamente
o significado das palavras. E é dentro desta lógica que inicio neste texto a crítica ao
filme “Tropa de elite”, partindo do princípio de que o discurso fílmico apresentado
nas cenas ultrapassa infinitamente o sentido literal dos diálogos.

Simbologia neonazista no BOPE


Atualmente, a simbologia neonazista ultrapassa a simbologia nazista da
suástica, utilizada largamente pelo regime totalitário na Alemanha de Hitler e pelos
seus simpatizantes. Aliás, a suástica só é utilizada hoje em dia por movimentos nazistas
anacrônicos que não souberam revigorar e atualizar sua simbologia de poder autoritá-
rio: movimentos que não aprenderam a lição das grandes empresas e corporações fi-
nanceiras estadunidenses40 que, por sua vez, se apropriaram e refinaram as concepções
de slogan e propaganda de J. Goebbels para reconstruir a simbologia de um poder
totalitário. A simbologia neonazista, no meu entender, está muito mais vinculada a
novos e revigorados símbolos de poder autoritário que objetiva constitui no imagi-
nário social sua ideologia: corpo de ideias vinculadas à hierarquização social, ordem,
comando e submissão. Nesse sentido, o símbolo utilizado pelo Batalhão de Operações
Policiais Especiais (BOPE) – uma caveira com uma faca e uma metralhadora – repre-
senta um típico símbolo neonazista da polícia no Brasil.

Estética, música e valores sociais neonazistas no filme Tropa de Elite


Assim, imagine assistir a um filme cuja simbologia neonazista inunda
impunemente as diversas cenas da história? O filme “Tropa de elite” não se restringe,
porém, à disseminação em massa na sociedade da simbologia neonazista do BOPE.
As imagens elaboradas cuidadosamente pelo diretor José Padilha apresentam outros
elementos estéticos fundados na ideologia nazista – e que também foram reformulados

40 “Quem quiser estudar o fascismo actual não pode prender a atenção em insignificantes grupúsculos
de paranóicos nostálgicos. Devemos partir da constatação de que o Estado Amplo é hoje o principal lugar
do poder e de que é na administração de empresa que a política se exerce no sentido mais pleno”, afirma
Bernardo (2003, 858) ao denunciar elementos do fascismo pós-moderno.

170
para nosso tempo histórico: a exaltação da força e da preparação militar, a suposta
honestidade dos incorruptíveis agentes do BOPE, o poder masculino (como nas cenas
de violência doméstica do agente do BOPE contra sua mulher: ela se cala e consente
com a atitude violenta do marido), o sentimento de dignidade no ofício da guerra,
a dissociação entre trabalho e vida pessoal (a família e a comunidade devem estar
alienados da natureza do trabalho de um nazista) etc.
Outra consideração importante refere-se à estética corporal: a estética do
corpo hipoteticamente perfeito, ancorado em padrões angulares definidos pelo mer-
cado e pela lógica capitalista41, está fundada no padrão da beleza nazista: a mulher
submissa, loira, alta, magra, com seios grandes (valorizando-se a prostituição, a indús-
tria da cirurgia plástica e outras formas de mercadorização da mulher); ou o homem
artificialmente musculoso, com o corpo dito “bombado” e “sarado” (valorizando-se
anabolizantes ou drogas lícitas da indústria farmacêutica). Tal definição estética pro-
cura maior legitimidade perante outras: estabelece hierarquias para a beleza. E, ao
tentar estabelecer a hierarquização estética, também procura imprimir certa hierar-
quização social42.
A diferença do nazismo de Hitler para o neonazismo do capitalismo globa-
lizado contemporâneo é que agora também se valorizam outras etnias que obedeçam
ao padrão estético do mercado: enquanto o nazismo anacrônico idealizava a mulher
branca em detrimento de outras, o neonazismo atual inclui outras etnias desde que
enquadradas nas diretrizes estéticas da mulher magra, alta, seios grandes etc. (e a mes-
ma lógica valendo para o homem, obviamente).
O filme “Tropa de Elite” reforça valores sociais neonazistas ao propagar
a idéia da força contra as mazelas do mundo. Os musculosos policiais do BOPE são
retratados constantemente como seres humanos superiores em força física (até mes-
mo imbatíveis) em relação aos policiais militares, traficantes de drogas ou demais

41 No artigo visual “A produção Política e Visual da Criança”, Almeida (2001) assinala os impactos da
padronização da estética corporal para a infância mediante os concursos de beleza estadunidenses voltados
para crianças, além de contextualizá-los com outras ramificações desta cadeia produtiva.
42 Esta hierarquização autoritária é desestruturada cotidianamente nas infinitas possibilidades de estéticas
de corpos diferentes, somados à beleza de relações humanas libertárias. Isso sem aprofundar o debate em
relação às dificuldades sexuais enfrentadas pelos homens e mulheres aparentemente “gostosos”, mas que,
no momento da intimidade, exacerbam suas angústias existenciais e impossibilitam a boa prática dos jogos
sexuais e do amor livre de estereótipos e preconceitos.

171
personagens; ou seja, a cooperação entre os mais fracos fisicamente jamais poderia
ser equiparada aos “super-homens” do BOPE – escolhidos por dedicação e submissão
à corporação policial de elite mediante competição violenta, degradante e indigna a
qual foram submetidos nos testes de seleção para o trabalho de guerra social.
Venceria na competição da guerra social o mais forte? E, dentro dessa ló-
gica nefasta, venceriam as ideologias neonazistas? A competição valorizada em detri-
mento da cooperação, porém, é apenas uma das temáticas levantadas pelo filme. No
caso específico da trilha sonora do filme, o processo de alienação musical se desenvolve
com o funk.
Antes de tudo, vale ressaltar que duas concepções antagônicas da expres-
são musical do funk podem ser percebidas ao longo de sua explosão desde meados
dos anos 1980. Por um lado, há tempos que o funk carioca está sendo utilizado pela
indústria da violência para fazer proliferar a cultura do medo, da violência, da guerra
e do terror na juventude marginalizada e excluída do Rio de Janeiro e de outras cida-
des. Além disso, perpetua relações de submissão e dominação nos bailes funk, onde
mulheres adolescentes são incentivadas a prostituir-se ou dançar de forma ultrajante e
indigna (incluindo simulações de relações sexuais com armas de fogo). Por outro lado,
no entanto, vale salientar que isso não é uma regra geral. Existem muitas letras de mú-
sicas, bailes e DJ’s que procuram fortalecer o funk como um ritmo inovador autêntico
de uma cultura popular não comercial, inclusive de resistência ao sistema capitalista.
Infeliz filme “Tropa de elite” que subverte esta última tendência inova-
dora, vinculando a música funk aos interesses da indústria da violência. Para a trilha
sonora do filme foi encomendada uma nova versão do “Rap das Armas” (que, apesar
do título, em nada se vincula à cultura contestadora do rap ou do hip hop), um funk
de propaganda e marketing que apresenta um variado menu das armas disponíveis no
mercado capitalista. Além do “Rap das Armas”, a música “Tropa de Elite” difunde em
massa uma trilha sonora para a atuação de terrorismo de Estado do BOPE, misturan-
do ficção e realidade, e difundindo a cultura da repressão e da morte.
Enquanto isso, nas academias de ginásticas, os tais homens “bombados” e
“sarados” e as ditas mulheres “gostosas” continuam pedalando suas modernas máqui-
nas e cultuando o corpo saudável – ao alto e bom som das trilhas sonoras de “Tropa
de elite”. O que não conseguem desconfiar é que, indiretamente, também pedalam a
máquina do terrorismo de Estado e do culto das pulsões de morte. Alguma semelhan-
ça com a cultura nazista ou mera coincidência?

172
Consequências sociais do filme Tropa de Elite
O filme “Tropa de elite” assemelha-se a uma novela pela estrutura narrativa
escolhida pelos autores da obra: discursos invariavelmente inacabados, enredo trivial,
confusão e contradição nos diálogos dos personagens, ausência de postura política
clara na mensagem do filme – esta última característica talvez represente o mais pe-
rigoso elemento narrativo, pois pressupõe imparcialidade ideológica ao tratar de um
tema tão controverso como o terrorismo de Estado praticado livre e impunemente no
Brasil. Tal tema é abordado de forma leviana e confusa, aproveitando covardemente
a ausência de espaço público de discussão sobre a questão e disseminando mediante
a comunicação de massa uma série de imagens repletas de preconceitos e estereótipos
– receita perfeita para a venda do produto “Tropa de elite”43. E receita maldita para
uma sociedade carente de discussões aprofundadas sobre o assunto – discussões públi-
cas que possam efetivamente propiciar investigações e condenações aos torturadores
oficiais e assassinos da Polícia Militar e do BOPE, atribuindo responsabilidades aos
representantes do Poder Judiciário.
Ao mesmo tempo, o filme “Tropa de elite” confunde realidade e ficção,
exatamente como a estrutura narrativa das novelas televisivas; mas as conseqüências
principais dessa confusão não são as alienações audiovisuais e/ou o “final da novela”, e
sim, consequências sociais que agravam o quadro da violência no Brasil.
Em primeiro lugar, e ainda na perspectiva da confusão entre realidade e fic-
ção, o filme acentua a alienação do espectador-consumidor com base em dos progra-
mas televisivos policialescos (sempre com boa audiência na televisão aberta brasileira)
que, de ordinário, utilizam os tais discursos neonazistas apelativos para resolver os
problemas sociais: por um lado, defesa da pena de morte para bandidos comuns; pelo
outro, o ocultamento das extorsões financeiras realizadas livremente por empresários
e pelas grandes corporações transnacionais – principais causadoras das desigualdades
sociais e da marginalização de milhares de trabalhadores. Nesses programas, o espec-
tador-consumidor alienado assiste ao crescimento das operações do BOPE nas favelas,
ao tráfico de drogas como justificativa para qualquer violação dos direitos humanos,
ao massacre de seres humanos, enfim, ao terrorismo de Estado camuflado como numa

43 “Transformei o filme numa empresa, da qual os investidores compram cotas”, diz Padilha ao referir-se ao
filme “Tropa de Elite 2” em entrevista publicada no Caderno “Vídeo Popular contra o cinema mercadoria.”
(2010, p. 12).

173
ficção audiovisual. Assim, a indústria da comunicação de massa (jornais, programas
televisivos, rádios etc.) – sempre conivente e cúmplice do sistema de crime organiza-
do, e por isso parte integrante deste sistema – revela versões de fatos reais da mesma
maneira que veicula suas propagandas, fazendo a notícia como um produto a ser con-
sumido, e nunca como informação a ser utilizada na transformação e enfrentamento
do problema. O exemplo mais recente é a minissérie policial Força Tarefa, veiculada
atualmente pela Rede Globo de Televisão.
Outra consequência do filme é a constituição da imagem distorcida das
ações do BOPE. As imagens de tortura e autoritarismo praticadas pela polícia e exibi-
das no filme refletem apenas parcialmente as atividades cruéis, covardes e desumanas
daquelas praticadas no trabalho das forças policiais do Estado. O BOPE, assim como
outros batalhões especiais da Polícia Militar (tais como a ROTA em São Paulo) e
da Polícia Civil (GOE, GARRA, etc.) são corresponsáveis por execuções sumárias
e chacinas, pelo tráfico de armas e drogas em grande escala (por isso as constantes
ofensivas contra os traficantes de pequeno porte que contrariam as diretrizes oficiais),
pela tortura sistemática realizada secretamente nas delegacias e nos quartéis (ao con-
trário do que diz o filme, que apresenta o BOPE torturando na favela), pela proteção
a autoridades governamentais ligadas ao banditismo de terno e gravata (políticos e
empresários) e, principalmente, pela formação de organizações paramilitares, como
esquadrões da morte44 e muitas outras que vêm aumentando seu papel na sociedade
de controle e vigilância no Brasil.
A terceira consequência do filme reside no impacto educacional e cultural
causado na população brasileira, em especial, crianças e jovens. A distribuição do filme
através do mercado pirata de DVD e da sua veiculação em diversas salas de cinema co-
mercial (auxiliada pela revista semanal VEJA que publicou matéria de capa elogiando
o filme, além de outros sustentáculos da indústria da comunicação de massa) alcançou
o objetivo de ampla difusão social. Tal difusão social transgrediu as recomendações

44 Podemos identificar um exemplo recente de atuação dos esquadrões da morte no Estado de São
Paulo (2006), após os ataques do PCC às bases da Polícia Militar e às instituições bancárias: os grupos
encapuzados do BOPE exterminaram nas ruas de bairros pobres da cidade cerca de 200 pessoas desarmadas
e sem antecedentes criminais (incluindo crianças, adolescentes, deficientes físicos, grávidas, idosos etc.)
impedindo inclusive o reconhecimento dos corpos pelos familiares. Até hoje os responsáveis não apenas
estão impunes, como muitos deles foram condecorados e ocupam os principais cargos de chefias da polícia
brasileira. Para reflexões acerca do sentimento de insegurança na atualidade, e também das falsificações do
sentimento comunitário na atual sociedade de controle e vigilância, ver Bauman (2003).

174
oficiais para que o espectador do filme estivesse em acordo com a legislação vigente,
ou seja, um público-alvo maior de 14 anos. E o resultado percebemos no dia a dia:
crianças e adolescentes imitando as ações do BOPE nas ruas e nas escolas, assimilando
os valores do filme e da polícia da mesma maneira que assimilam os conteúdos das
matérias escolares. Educação para a violência – educação que acarreta comportamen-
tos desnecessários para toda a sociedade, e que dissemina valores de ódio e violência.
A revolta, porém, jamais está dirigida contra grandes empresários, políticos ou outros
responsáveis pela miséria, e sim contra o pobre, o favelado, o fraco, o vagabundo.
Cultiva a semente do preconceito: a semente do neonazismo.
Finalmente, destacamos a tentativa de legitimação social de uma institui-
ção desnecessária para a sociedade. Qualquer ser humano que compreende as dinâ-
micas essenciais da guerra social no Brasil encontra suas causas na miséria urbana, no
desemprego, na desigualdade social, no consumismo etc. A “guerra contra o tráfico”
ou a “guerra contra o terrorismo” são meros pretextos para ocultar a verdadeira razão
das operações militares neofascistas: a dinamização da economia da indústria da vio-
lência (principalmente compra e venda de armas), cuja linguagem nas negociações
transnacionais se refere ao Brasil como um território aberto para a economia da guer-
ra de baixa intensidade. Nesse sentido, devemos assinalar o papel fundamental dos
exércitos humanitários da ONU que, ao lado da prática impune de crimes contra a
humanidade sob o pretexto de defendê-la, agem como negociadores e empreendedo-
res da economia da violência45.

Considerações finais: a propaganda da economia da morte


“A música é uma mentira. A arte é uma mentira. Você precisa contar uma
mentira tão maravilhosa que os seus fãs a transformam em verdade.”
Lady Gaga
A afirmação de Lady Gaga está publicada na revista Rolling Stone (n.
46, julho de 2010) em que a autora da frase estampa a capa do periódico seminua,
loira e magra, e armada com dois reluzentes fuzis automáticos. Assemelha-se muito

45 Lembremos das atrocidades cometidas pelas tropas brasileiras no Haiti, atingindo seu ápice com o
misterioso suicídio de Urano Teixeira da Matta Bacellar, comandante militar da Missão das Nações
Unidas para a estabilização no Haiti, cujas investigações foram encobertas pelo Estado e pelos meios de
comunicação de massa. Para outros exemplos similares, indico a extensa obra “Los Ejércitos Humanitarios
y la violencia sexista militar”, do Colectivo Gasteizkoak.

175
particularmente às imagens do livro citado no início deste capítulo; sexo e morte, dois
elementos que facilitam a circulação da mercadoria ao evocarem paixões humanas.
A música e a arte compreendidas como mentiras nos indicam um dos pres-
supostos nazistas voltados para processos de alienação cultural – mecanismos eficazes
para a ascensão de regimes totalitários de controle e vigilância social. A indústria cul-
tural na contemporaneidade incorpora tais mecanismos em seus princípios filosóficos.
Na dinamização da economia da indústria da violência, a compra e venda
de armamentos novos e/ou obsoletos representam um dos mais importantes segmen-
tos lucrativos. Em virtude da proibição da propaganda e marketing de armas na maio-
ria das legislações, porém, a principal alternativa encontrada pelo mercado bélico é a
utilização da indústria cultural, principalmente a indústria cinematográfica.
A indústria cinematográfica dos Estados Unidos é o principal meio de
propaganda e marketing da indústria bélica, não apenas por transformar em heróis
os personagens desequilibrados mentalmente e homicidas, causadores de chacinas e
destruição em massa, como também por apresentar ao mundo o cardápio das armas
disponíveis no mercado global. A indústria tabagista foi o primeiro grande segmento
industrial que já utilizava os longas-metragens para propaganda subliminar, patroci-
nando parte das produções cinematográficas em troca da inserção do hábito de fumar
para os personagens centrais dos enredos dos filmes. E, logo em seguida, com base no
mesmo jogo de interesses, surgiu a íntima relação entre a indústria cinematográfica e
as indústrias do petróleo (exacerbação do automóvel) e da violência (exacerbação das
armas, da morte e da destruição). Os filmes iniciais que anunciavam os produtos béli-
cos ensinavam, inclusive, o manejo das armas e o uso da munição. Atualmente, esses
filmes fortalecem o imaginário de um mundo inconcebível sem armas e sem polícia.
Alguma mera coincidência com “Tropa de elite”?
O filme “Tropa de elite”, além da inovação em inaugurar na indústria ci-
nematográfica brasileira sua estreita relação com o neonazismo e a cadeia produtiva
da violência, não passa de um filme ruim, com uma história banal de polícia contra
bandido. Talvez houvesse maior clareza se o diretor intitulasse o filme como “Tropa
da elite”, e não “Tropa de elite”, uma vez que a polícia aumenta sua atuação e seu
número de efetivos na mesma proporção em que cresce a desigualdade econômica na
sociedade. Enquanto isso, a elite brasileira festeja a legitimidade do BOPE e a lógica

176
da exclusão social e da guerra de baixa intensidade – elementos fundamentais para a
dinâmica da indústria transnacional da violência globalizada.
Qual será o limite desse amálgama entre forças militares repressoras e tec-
nocracia civil? Enquanto a Polícia Federal volta suas ações de repressão a trabalhado-
res auto-organizados contra o desemprego (muitos por de mecanismos de economia
popular de pirataria e distribuição de cultura musical e cinematográfica, ou venda a
preços justos de cd´s e dvd´s para toda sociedade), o crime organizado cresce vertigi-
nosamente no Brasil, diversificando suas áreas de atuação econômica dentro da ordem
e do progresso da cadeia produtiva da violência.
O mais preocupante desta economia da morte está na distância infinda em
relação aos pressupostos de uma economia popular organizada pelos trabalhadores, e
cujas bases das produções cinematográficas residam em outras formas de comunica-
ção – estas livres e diretas entre grupos organizados. Com efeito, devemos valorizar as
rádios livres, as televisões comunitárias, os cineclubes de bairro, os debates públicos,
os jornais e periódicos com informações voltadas para a conquista da autonomia social
em relação aos meios de propagação coletiva. Isso porque a destruição dos canais de
televisão e rádios comerciais – e sua substituição por meios de comunicação populares
– é uma das formas de obstruir o atual processo de alienação visual e letargia social:
processo que possibilitou o surgimento dos sistemas políticos totalitários (como o na-
zismo e o fascismo) e que possibilita, hoje, o fortalecimento dos terrorismos de Estado
e de organizações paramilitares.
A resistência popular artística e anticapitalista reside na criação autônoma
de formas de pulsões de vida mediante ações culturais voltadas para a emancipação
social, opostamente a toda indústria cultural – em especial a indústria cinematográfica
e, neste caso analisado, filmes como “Tropa de elite” – derivada da economia da morte
que rege os processos produtivos hoje; mas amanhecerá.

Referências
ALMEIDA, Milton José de. A produção política e visual da criança. Artigo visual.
Campinas: Laboratório de Estudos Audiovisuais OLHO, Faculdade de Educação da
UNICAMP, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003.

177
BERNARDO, João. Labirintos do fascismo. Na encruzilhada da ordem e da revolta.
Porto: Edições Afrontamento, 2003.

COLECTIVO GASTEIZKOAK. Los ejércitos humanitarios y la violencia sexista


militar. Vitoria-Gasteiz: Zapateneo, 2008.

COLETIVO DE VÍDEO POPULAR. Vídeo Popular contra o cinema mercadoria.


São Paulo, 2010.

178
DA INCITAÇÃO À REPRESSÃO: O SADISMO EM
FOUCAULT E PASOLINI
David Silva de Oliveira
Helena Dabul Thomaz de Almeida

Tudo é bom quando é excessivo.


Marquês de Sade

“Salò, ou os 120 dias de Sodoma”46 (1975), de Pier Paolo Pasolini é desses


filmes que chocam não somente pelas imagens projetadas, mas também é igualmente
intensa a carga dramática das alegorias sentidas e insinuadas que nos faz imergir ao
desespero numa rápida e dolorosa visita a uma espécie de inferno. Inferno sadiano,
é bom completar, visto que Salò trata-se de uma “tradução” da obra do Marquês de
Sade, “Os 120 dias de Sodoma”47.
A obra do Marquês conta com “uma longa introdução seguida de quatro
partes em forma de diário, […] dividida entre paixões: simples, duplas, criminais e
assassinas”; as histórias contadas são intercaladas com os “eventos chocantes ocorridos
de fato no château”48 e escrita com detalhes extensos, minuciosos, cuidadosamente
numerados e ordenados, oferecendo uma obra com certo teor médico, cirúrgico. A
lista é grande:

46 Salò ou os 120 dias de Sodoma é uma das obras mais perturbadoras da história do cinema. Provoca até
hoje a ira em muitos de seus espectadores. Baseado livremente em histórias de Marquês de Sade (“Círculo
de Manias”, “Círculo da Merda” e “Círculo do Sangue”), passa-se na Itália controlada pelos nazistas, onde
quatro libertários fascistas sequestram 16 jovens e os aprisionam em uma mansão com guardas. A partir
daí, eles passam a ser usados como fonte de prazer, masoquismo e morte. Dirigido por Pier Paolo Pasolini.
Ano: 1976.
47 Grande parte da obra de Sade foi produzida quando estava encarcerado no Forte de Vincennes. Os 120
dias de Sodoma foi escrito durante sua prisão na Bastilha, em 1785; com letras minúsculas em pequenas
folhas finíssimas de papel, que juntas somavam aproximadamente 12 metros, frente e verso, o Marquês
produziu o manuscrito em sigilo. Quando Sade foi transferido e todos os seus pertences tiveram diferentes
destinos, o autor imaginou ter perdido “Os 120 dias de Sodoma”, e de fato morreu acreditando nisso. A
obra, no entanto, foi achada anos depois na cela de Sade, vindo a ser publicada pela primeira vez em 1904.
48 “The form of the 120 days is clearly modelled on Boccacio’s Decameron and Marguerite of Navarre’s
Heptameron. A lengthy introduction is followed by four parts, in form, […] and divided into passions
described as ‘simple’, ‘double’, ‘criminal’ and ‘murderous’, the story of which is interlocked with the actual
´shocking events in the château´.” LÉLY, 1961, p. 304. Tradução nossa.

179
Cento e vinte dias, seiscentas paixões. Quatro meses de libertinagem, qua-
tro classes de vícios. A cada dia, cinco modalidades, somando cento e cinquenta por
mês. Para dar conta dessas cifras, uma comitiva formada por quarenta e seis pessoas,
distribuídas em oito categorias distintas, das quais sete pertencem à classe dos súditos.
Oito meninos, oito meninas e oito fodedores. Quatro criadas e seis cozinheiras. Qua-
tro esposas. Quatro narradoras. Por fim, na classe dos senhores, os quatro libertinos
que sempre merecem designação individualizada: Curval, Durcet, Blangis e o Bispo.
(MORAES, 2006, p. 81).
Assim, “a enumeração sadiana visa a explicitar as cifras do gozo […] e re-
presenta uma contestação aos discursivos alusivos que só se referem a matérias sexuais
por meio de subterfúgios retóricos” (MORAES, 2006, p. 82). Em Sade, o prazer se-
xual está diretamente ligado ao poder preenchido, relação recíproca e interdependente
sadomasoquista. Há, entretanto, a necessidade do poder diferenciado para haver o
prazer, como demonstra uma das primeiras falas do Duque: “nós libertinos queremos
esposas que sejam nossas escravas […] e bem sabeis o quanto vale o despotismo para
os prazeres do nosso agrado”. (SADE, 2011, p. 16. Grifo nosso).
Foi expresso há pouco que Pasolini “traduziu” Sade. Falamos no sentido
de apropriação da obra original e ressignificação desta com novos suportes teóricos
e motivações as mais diversas, estéticas, políticas, sentimentais. Pasolini transforma
a França do século XVIII na Itália fascista. Os personagens são os mesmos, mas, de
nobres senhores da aristocracia francesa tornam-se, em Salò, dignitários do regime
fascista. As orgias do château realizam-se na República de Salò, sede do governo de
Benito Mussolini. É uma analogia interessante pela ideia que Pasolini formulará acer-
ca da “anarquia” do poder: o poder sanciona e legitima a violência sobre os que dele
são faltos, torna-se, trazendo Foucault, uma posse ou “direito (lucrativo)” para aqueles
que o detêm e “obrigação (custosa) para os subordinados” (FOUCAULT, 1979, p.
42). O sexo, além de servir como metáfora de uma relação obrigatória (imposição de
condutas, valores, uma moral dada pelo avanço da indústria do consumo) também
é utilizado por Pasolini para mostrar o poder existente entre os “desfrutadores” e os
“desfrutados”; é um mecanismo de controle dos corpos, privilégio do poder soberano
que detém o direito de vida e morte dos servos (FOUCAULT, 1988, p. 147). Diz uma
personagem de Salò: “lá onde tudo é proibido, quem de fato quiser, poderá fazer tudo.
Há a possibilidade real de fazer tudo; em outra perspectiva, lá onde tudo é permitido
fazer qualquer coisa, se poderá fazer somente qualquer coisa”. (BRITO, 2009, p. 9).

180
Os senhores de Salò se propõem escrever regulamentos e regularmente
aplicá-los; as leis são refeitas de acordo com as vontades:

[...] não esperais que vos especifiquemos sempre as ordens


que queremos que executeis: um gesto, um olhar e, com fre-
quência, um simples sentimento interno de nossa parte as
revelarão, e sereis punidas tanto por não tê-las adivinhado e
previsto, quanto se, após terdes sido notificadas, tivessem pro-
vocado qualquer desobediência de nossa parte. (SADE, 201,
p. 60-61).

As leis são meios (mais ou menos eficazes) de se conseguir e prolongar


o prazer sodomita. Logo, “tudo é permitido desde que satisfaça a lógica do poder”
(BRITO, 2009, p. 9), não contrarie as “regras”. A liberdade, o “fazer qualquer coisa”,
é imposta, regulada – tem limites precisos (o prazer é punido com a morte) dentro da
reprodução das relações de poder.
A liberação sexual na época da ocupação fascista italiana, para Pasolini, foi
uma farsa, uma mistificação,

[…] en realidad una convención, una obligación, un deber so-


cial, un ansia social, una característica irrenunciable del tipo de
vida del consumidor. En suma, la falsa liberalización del bienes-
tar, ha creado una situación igual y quizás más insana que aque-
lla de los tiempos de la pobreza [...]; es una facilidad “inducida”
e impuesta, que se deriva del hecho de que la tolerancia del poder
concierne únicamente a la exigencia sexual expresada por el con-
formismo de la mayoría 49.

“Não se vive uma liberdade sexual”50, diz Pasolini, mas uma liberdade con-
cedida por um poder “permissivo”, já que o Estado permissivo permite liberdades,
bem-estar, contanto que estejam em seus parâmetros. “O Estado é hoje tão permissivo
quanto pode ser um Estado. Sua tolerância, contudo, não é infinita, mas limitada –
uma forma mascarada de repressão, quer dizer: uma repressão mais total”. (NAZARIO,
2006, p. 102). O Estado permissivo “no tiene otra necesidad que consumidores”51.

49 PASOLINI, Pier Paolo. Escritos Corsários, El coito, el aborto, la falsa tolerância del poder, el
conformismo de los progressistas, 1975, s/n.
50 BERTOLUCCI, Bernardo. Pasolini Nosso Próximo.
51 PASOLINI, Pier Paolo, op. cit., Corazón, 1975, s/n.

181
É notável a realidade econômica como fator decisivo das relações sexuais, o
prazer apenas se realiza entre aqueles que possuem o poder: Sade inicia sua obra falan-
do das guerras realizadas por Luís XIV e de como estas resultaram no enriquecimento
de um número reduzido de senhores, cujas “fortunas obscuras [...] não resplandecem
senão por um luxo e devassidões tão nefastas quanto elas”, “devassidão” essa praticada
por esses senhores respeitados, influentes politicamente, “unidos por uma conformi-
dade de riquezas e gostos”. (SADE, 2011, p. 15). Os laços são estreitados através do
casamento dos libertinos com suas filhas, cada um escolhendo como esposa a filha do
outro.
Na obra de Pasolini a separação entre opressores e oprimidos, senhores
e servos, não é tão maniqueísta: traços de humanidade aparecem nos torturadores,
como o suicídio ou a dança final, o punho cerrado do soldado flagrado com uma em-
pregada; a interiorização da lógica do poder também aparece nos torturados, com as
delações, as colaborações que possivelmente os levarão a Salò (espécie de paraíso, lugar
que se sobrepõe ao palácio das orgias e ao mundo exterior, já distante e independente
das práticas regulamentadas – Salò parece ser não um espaço físico, mas uma promessa
não tão distante aos “desfrutados”).

A hipótese repressiva
Foucault nos apresenta a hipótese repressiva da sexualidade, segundo a
qual o século XVII seria o início da idade repressiva aos discursos sexuais que circu-
lavam com facilidade numa época anterior. No lugar dos corpos que “pavoneavam”
(FOUCAULT, 1988: 9) com a condescendência das normas, a intransigência vito-
riana cedia às sexualidades ilegítimas, lugares determinados onde podiam romper o
“tríplice decreto” 52 puritano da proibição, inexistência e mutismo.
O controle dos discursos, ou o seu policiamento, aconteceu mediante a
confissão. O sexo e seus efeitos, a partir deste momento (estabelecido pelo Concilio
de Trento), são examinados e incitados: não somente o ato sexual, mas os desejos do
confessor devem vir à tona - “examinai, mesmo, até os vossos sonhos para saber se,
acordados, não lhes teríeis dado o vosso consentimento” 53. A minúcia dos relatos,
“colocação do sexo em discurso” 54, lembra a precisão que Sade buscava nas narrativas,
52 Ibid., p. 11.
53 Ibid., p. 26
54 Id., ibid.

182
no longo detalhe dos costumes, na quase obsessão pelos números, na quantificação
dos rituais sodomitas. Segundo Foucault, “Sade vincula a análise exaustiva do sexo aos
mecanismos exasperados do antigo poder de soberania” 55.
A hipótese, portanto, relaciona uma época de dominação social – o de-
senvolvimento do capitalismo 56 – com o silenciamento dos discursos sexuais. A pos-
tura crítica perante a repressão é questionada por Foucault por não entendê-la como
ruptura à idade repressiva, mas integrando uma “economia geral dos discursos” 57,
fazendo parte da proibição que tanto nega. A própria ideia da evidência histórica da
repressão do sexo dever ser (re)avaliada, uma vez que o século XVII é posto como mo-
mento limítrofe entre duas idades, duas maneiras opostas de encarar as manifestações
sexuais e isso não poderia ser demonstrado, ou comprovado. Outra ressalva feita por
Foucault é se a relação entre sexualidade e poder se dá somente por censura ou proi-
bição, possuindo necessariamente uma aparência negativa.
“O poder penetra e controla o prazer cotidiano – tudo isso com efeitos que
podem ser de recusa, bloqueio, desqualificação, mas também de incitação, de inten-
sificação, em suma, as técnicas polimorfas do poder´” 58. O Poder adere às condutas
individuais e, segundo Foucault, é um instrumento de incitação dos discursos sobre
a sexualidade. Contrapondo Pasolini, não pode ser entendido somente como fator de
proibição destinado a dizer uma verdade sobre o sexo ou impor condutas sexuais aos
jovens em Salò, por exemplo, mas como meio de produção de saberes sexuais, forma-
ção de uma ciência sexual. Diz Foucault: “o interdito, a recusa, a proibição, longe de
serem as formas essenciais do poder, são apenas seus limites [...]. As relações de poder
são, antes de tudo, produtivas” (FOUCAULT, 1979, p. 236).

Considerações finais
A obra de Marquês de Sade serve a interpretações diversas, e, às vezes, con-
flitantes. Pasolini retoma “Os 120 de Sodoma” para tratar do sexo como “metáfora do
que o poder faz com o corpo humano, (sua) comercialização, redução do corpo huma-
no a uma coisa, que é típico do poder, de qualquer poder” 59. Segue-se o exemplo de
55 Id., p. 162
56 Ibid., p. 12
57 Ibid., p. 17
58 Ibid., p. 18
59 BERTOLUCCI, op. cit.

183
Sade na personificação do poder em quatro imagens (desprovidas de individualidade,
ressalta Pasolini): o Duque, o Bispo, o Magistrado e o Banqueiro. Os quatro senhores
encarnam a repressão, ditam e reeditam as leis, submetem os servos a seus desejos,
cronometram e metrificam as ações de todos os indivíduos nas cerimônias.
Foucault discorda da identificação espacial do poder feita por Pasolini, sua
localização em um centro, em um grupo ou estrutura física, como o Estado fascista,
o chatêau ou mesmo a cena inicial do filme, onde os quatro senhores assinam o regi-
mento das práticas. O poder, antes de qualquer coisa, encontra-se diluído e absorvido
nas relações sociais, deve ser investigado “como algo que só funciona em cadeia […]
e se exerce em rede” (FOUCAULT, 1979, p. 183), não como efeito de dominação de
uma classe sobre outra – a ideia de “repressão” seria insuficiente para o entendimento
dos aspectos produtivos do poder: “o que faz com que o poder se mantenha e que
seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que
de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”60.
Não se trata de separar o poder da verdade, ou o poder da sexualidade, mas
identificar as formas pelas quais o poder produz os discursos e assim “constituir uma
nova política da verdade”61, esta entendida como resultado de coerções diversas. Da
mesma forma, a relação entre prazer e poder não é excludente, o poder não delimita a
sexualidade, mas estabelece novas condutas (perversões) nos indivíduos.
Contrário à tese foucaultiana, Pasolini vê na tolerância do poder às novas
sexualidades possíveis outra forma de totalitarismo, dessa vez baseada no consumo. O
poder concede às minorias sexuais guetos onde poderiam se realizar longe da opinião
pública (os lugares de tolerância de que fala Foucault). O ponto de vista da tolerância
é, então, sempre majoritário e intransigente.
O sexo na obra de Sade, aponta Foucault, não tem regras (1988, p. 162), a
única lei a qual obedece é a sua própria satisfação. Pasolini talvez questionasse: existem
os regulamentos e as personas que legitimam as normas, existem os limites às necessi-
dades sexuais, barreiras são erguidas entre o prazer e o poder (ao menos o prazer dos
“desfrutados”).
Se há algo com o que os dois autores comungam é a visão que se tem de
Sade: não a do libertino libertário precursor da revolução sexual de séculos depois,
60 Ibid., p. 8
61 Ibid., p. 14

184
mas de alguém que retoma a prática confessionária da narração nos (e precisos, van-
gloria-se Sade) detalhes. O prazer se dá na ênfase à descrição, na incansável enumera-
ção, no adiamento do gozo – seu próprio prolongamento.

Referências
AMARAL, Mônica G. T. do. A intolerável tolerância da era moderna. Perspectivas.
Revista de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista - UNESP, São Paulo, v.
14, p. 69-79, 1991.

BRITO,  Flávio Costa Pinto de.  Salò - Ritos de controle e poder no último filme
de Pier Paolo Pasolini. Seminário apresentado no  XXXII Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação – Curitiba, PR – 4 a 7 de setembro de 2009.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de


Janeiro: Edições Graal, 1988.

_______ Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979

LÉLY, Gilbert. The Marquis de Sade - a biography. London: Elek Books, 1961.

MORAES, Eliane Robert. Inventário do abismo. Revista de Filosofia (PUCPR), v.


18 n. 23, p 81-86, jul./dez. 2006.

NAZARIO, Luis. Todos os corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007.

PASOLINI, Pier Paolo. Escritos corsários. Disponível em: http://scholar.


googleusercontent.com/scholar?q=cache:YZkbPwkNwqUJ:scholar.google.
com/&hl=pt-BR&as_sdt=0 Acesso 02 Jan. 2012.

PITTA, Ana Lúcia. Os 120 dias de Sodoma: do Marquês maldito da literatura ao


Poeta da desobediência. XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região
Sudeste – São Paulo - SP – 12 a 14 de maio de 2011.

SADE, Marquês de. Os 120 dias de Sodoma - ou a escola da libertinagem. São Paulo:
Iluminuras, 2006.

Filmografia
PASOLINI, Pier Paolo. Salò – ou os 120 dias de Sodoma. Produção Alberto De
Stefanis, Antonio Girasante e Alberto Grimaldi. Direção de Pier Paolo Pasolini. Itália,
Produzioni Europee Associati (PEA), 1975. 116 minutos

185
BERTOLUCCI, Bernardo. Pasolini Nosso Próximo. Produção: Cinemazero e
Ripley’s Film. Direção de Giuseppe Bertolucci. Itália, 2006. 58 minutos

KAUFMAN, Philip. Contos proibidos do Marquês de Sade. Direção de Philip


Kaufman, EUA, Fox Searchlight pictures, 2000. 124 minutos.

186

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