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DIÁLOGOS CULTURAIS EM REDE

INQUIETAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

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Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult

Coordenadoria Executiva
Mario Ferreira de Pragmácio Telles – Presidente e Sócio-fundador
Cibele Alexandre Uchoa – Secretária Executiva e Sócia-fundadora
Cecilia Nunes Rabêlo – Coordenadora Administrativo-Financeiro e Sócia-fundadora
José Olímpio Ferreira Neto – Coordenador Cultural e Sócio-fundador

Conselho Fiscal
Marcus Pinto Aguiar – Membro do Conselho Fiscal e Sócio-fundador
Daniela Lima de Almeida – Membro do Conselho Fiscal e Sócia-fundadora
Vitor Melo Studart – Membro do Conselho Fiscal e Sócio-fundador

Presidência de Honra
Francisco Humberto Cunha Filho – Presidente de Honra

Conselho Editorial
Profa. Dra. Cláudia Sousa Leitão – UECE
Prof. Dr. David Barbosa de Oliveira – UFC
Prof. Dr. Francisco Humberto Cunha Filho – UNIFOR
Prof. Dr. Frederico Augusto Barbosa da Silva – UniCeub
Profa. Dra. Inês Virgínia Prado Soares – MPF – SP
Prof. Dr. José Ricardo Oriá Fernandes – Centro Cultural- Câmara dos Deputados
Prof. Dr. Luiz Gonzaga Silva Adolfo – UNISC
Profa. Dra. Manuelina Maria Duarte Cândido – UFG
Prof. Dr. Marcos Wachowicz – UFPR
Profa. Dra. Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça - UNIFOR
Prof. Dr. Martonio Mont’Alverne Barreto Lima – UNIFOR
Prof. Dr. Paulo Cesar Miguez de Oliveira – UFBA
Profa. Dra. Rebecca Atencio - Tulane University – New Orleans, LA
Prof. Dr. Tullio Scovazzi - Università degli Studi Milano-Bicocca - Milão, IT

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COORDENADOR

HUMBERTO CUNHA FILHO

DIÁLOGOS CULTURAIS EM REDE


INQUIETAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

1ª Edição

Fortaleza, 2017
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Diálogos Culturais em Rede – Inquietações Teóricas e Práticas
Copyright © 2017 by IBDCult
Todos os direitos desta edição reservados ao IBDCult

Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais


Mário Ferreira de Pragmácio Telles

Editoração
Gabriel Barroso Fortes

Capa, Design e Diagramação


Gabriel Barroso Fortes

Revisão de Texto
Gabriel Barroso Fortes

Ficha Catalográfica

D536 Diálogos culturais em rede: inquietações teóricas e práticas / Humberto


Cunha Filho (coordenador) - Fortaleza : IBDCult, 2017.
126p. (livro eletrônico)

ISBN 978-85-69652-07-6

1. Direitos culturais. 2. Incentivos fiscais à cultura. 3 Patrimônio


cultural. 4 Direito e arte. 5. Função social – Direito do autor.I. Humberto
Cunha Filho.

CDD 342

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SOBRE O SELO IBDCULT

O selo do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult já vem sendo reconhe-


cido no mercado como sinônimo de boa qualidade. Muitos professores, pesquisadores,
profissionais procuram nossa editora para publicar seus estudos, pesquisas, teses acadê-
micas etc. E os resultados, os livros, costumam ser elogiados, tanto pelos leitores quanto
pelos críticos. Acho que estamos no caminho correto!
Isso é sinal, portanto, de que o IBDCult vem cumprindo muito bem este papel de
catalisador, agregador e difusor dos estudos sobre os direitos culturais no país.
Mas também por isso a intenção é acompanhar o mercado editorial e posicionar-se
como referência no assunto, para cumprir sua função institucional. E com o presente livro
acredito que estamos iniciando uma nova etapa nessas atividades.
Tivemos o intuito de emplacar um novo programa editorial, moderno, profissional,
dinâmico, criativo, mas, principalmente, ainda mais criterioso.
O resultado é justamente o início do próprio projeto. Inauguramos, com a presente
obra, um novo tipo de linha editorial, uma publicação de novo formato, com um corpo edi-
torial exclusivo e personalizado, voltado para extrair o melhor de cada proposta, fazer as
obras chegarem ao seu público-alvo e potencializar a interlocução dos autores com seus
leitores.
Tomando-se este livro como exemplo, acredito que o leitor poderá verificar a nova
proposta que nosso corpo editorial conseguiu imprimir à publicação, facilitando a difusão
e a ampliação do debate sobre direitos culturais.

MÁRIO PRAGMACIO
Presidente do IBDCult

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SUMÁRIO

PREFÁCIO ..................................................................................................................................................... 7
NOTA DO EDITOR .................................................................................................................................... 9
PRÓLOGO ...................................................................................................................................................... 11

PRIMEIRO DIÁLOGO
Teoria dos direitos culturais, com Humberto Cunha .................................................... 16

SEGUNDO DIÁLOGO
Incentivos fiscais à cultura, com Fábio Cesnik ................................................................ 28

TERCEIRO DIÁLOGO
Sistema nacional de cultura, com Frederico Barbosa ................................................. 43

QUARTO DIÁLOGO
Direito ao (do) patrimônio cultural, com Inês Virgínia Prado Soares .................. 60

QUINTO DIÁLOGO
Direitos culturais como direitos humanos, com Marisa Damas ................................ 86

SEXTO DIÁLOGO
Direito e arte, com Eliene Oliveira ....................................................................................... 104

SÉTIMO DIÁLOGO
Patrimônio cultural material, com Mário Pragmácio .................................................. 109

OITAVO DIÁLOGO
Função social do direito de autor, com Gonzaga Adolfo ............................................. 120

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PREFÁCIO

S
er convidado a prefaciar um livro é algo que sempre nos traz muita satisfação. Ser
convidado a prefaciar uma obra colaborativa resultante de profundas e sérias pes-
quisas realizadas por especialistas renomados, coordenada por um pesquisador
com a respeitabilidade do Professor Doutor Humberto Cunha, sem a menor dúvida, é mo-
tivo de júbilo.
Conheci o professor Humberto Cunha primeiramente pelos seus escritos, ainda an-
tes de ter o privilégio de tê-lo em fraterno convívio. Sem dúvida, trata-se de um profissio-
nal com intensa atividade acadêmica, possuindo o mérito de aglutinar pessoas e institui-
ções diversas, que trabalharam intensamente os mais variados aspectos dos temas rela-
cionados com os Direitos Culturais.
A presente obra é fruto de intensas reflexões sobre as dimensões dos Direitos Cul-
turais, com uma metodologia inovadora na construção do conhecimento, trata-se de uma
obra colaborativa, na qual todos os pesquisadores são responsáveis intelectualmente pela
concepção final da obra.
O pensamento colaborativo subjacente na obra se revela na fluência do texto, na
homogeneidade da escrita, fazendo com que o leitor perceba que está diante de uma dou-
trina sólida e consistente.
Quero congratular a todos os pesquisadores cujos esforços resultaram na presente
obra, que por certo será um livro de referência aos estudiosos dos temas ligados aos direi-
tos culturais, ainda mais por terem aceitado o desafio de uma fusão de pensamentos, de
realizar uma criação colaborativa, tão profunda, que faz com que haja uma coerência es-
truturante de todo o pensamento jurídico no qual foi erigido o livro.
A proposta do livro vai muito mais além de uma coletânea de artigos no âmbito dos
Direitos Culturais, mas trata de vários aspectos sempre com implicações e reflexões para a
realidade brasileira.
Como o leitor observará, os Direitos Culturais crescem em importância na medida
em que se estabelecem novas dimensões para além das esferas do Direito Público, alcan-
çando, as searas dos direitos difusos e privados de toda a sociedade.
Este trabalho se justifica em razão da relevância jurídica, política e social que os
Direitos Culturais vêm adquirindo. A pesquisa possui o mérito de examinar as diversas
facetas dos Direitos Culturais sob a ótica dos interesses brasileiros.

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Os textos aqui coligidos, e as ideias que deles exsurgem, foram debatidos em diver-
sas ocasiões, o que traz ao leitor a certeza de uma construção doutrinaria firme, fruto de
um pensamento jurídico consolidado.
Os estudos por certo não esgotam o tema, mas antes abrem novos caminhos a per-
correr.
Com efeito, a presente obra é de leitura obrigatória aos estudiosos do direito, as
críticas e conclusões a que chegaram os autores propiciam um espectro amplo que é ter-
reno fértil e excelente para novos estudos.
Sem dúvida, estamos diante de uma obra imprescindível nos estudos dos Direitos
Culturais, cujo grande mérito está em possibilitar que haja novas leituras e novas formas
de realização dos Direitos Culturais.
Parabenizo o professor Humberto, pela capacidade de aglutinar uma gama de es-
pecialistas de alto nível, bem como ter levado a cabo um projeto colaborativo inovador.
Este livro tornar-se-á, desta forma, obra de leitura obrigatória a todos os profissio-
nais da área e para aqueles que pretendam compreender a dinâmica dos Direitos Culturais
na sociedade brasileira.
Só nos cabe, a partir das colocações postas pelos autores colaborativos, sobre os
temas abordados, ressaltar que estamos diante de estudos aprofundados e sérios, dese-
jando uma leitura proveitosa a todos.

MARCOS WACHOWICZ
Professor de Direito – UFPR

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NOTA DO EDITOR

Este livro foi editado – e é lançado – alguns meses após o fim do seu período de e-
laboração, que começou no ano 2015 e foi até 2016. Por isso, algumas alusões feitas pelos
autores-interlocutores podem incitar certo deslocamento, em razão do decurso temporal;
mas, por outro lado, elas também revelam seu aspecto de registro histórico. O leitor deve
ser remetido, então, ao contexto da fala, caso necessário eventualmente.
Sabendo como foi desenvolvida a obra, a proposta da edição foi representar – co-
mo evidencia o título – o diálogo que houve entre os autores, que se reuniram para um
bate-papo à distância. Nesse sentido, tivemos a ideia de reproduzir graficamente uma di-
nâmica de mesa-redonda, onde todos os participantes têm a palavra à mão.
Os recursos visuais que foram utilizados para estilizar o livro têm uma dimensão
estética, mas também funcional. Tenho basicamente três coisas para destacar.
A disposição do texto, que corre em duas colunas paralelas, pode transmitir a sen-
sação de simultaneidade, sendo possível notar em muitos momentos as falas que vão sur-
gindo enquanto outras vão se interrompendo ou encerrando. O objetivo, ao mesmo tempo,
é conotar a fluidez da fala, que deveria se aproximar duma conversa pessoal e, portanto,
dinâmica, pontual. A escrita em colunas deve fazer a leitura fluir com alguma velocidade, o
que, por outro lado, aumenta a necessidade de concentração. O autor prende, assim, a a-
tenção do leitor, como se estivessem frente a frente.
Ademais, cada participante foi colorizado, ou melhor, para cada autor foi atribuída
uma cor. Isso tem a intenção não só de embelezar o preto-no-branco que tradicionalmente
caracteriza os livros técnico-didáticos, mas, semanticamente, transmitir a ideia de diversi-
dade, da pluralidade de ideias, de falas, de sotaques, enfim. Para isso não foi adotada uma
paleta específica, mas cores aleatórias mesmo, justamente com o intuito de traduzir o plu-
ralismo dos diálogos. Entretanto, outra função também guarda este recurso: a de ajudar o
leitor a situar-se no texto e poder identificar, rapidamente, a pessoa que está interagindo
em cada momento.
A terceira função a ser destacada é a das linhas em volta dos textos: as bordas. Ca-
da participante que inicia uma fala – seja introduzindo o tema do seu momento, seja fa-
zendo alguma pergunta ao “entrevistado”, seja fazendo um comentário final – dá cor à
borda que escolta o escrito. Nesse sentido, quando o participante faz uma pergunta, a linha
leva a sua cor, mas engloba também a resposta do interlocutor-entrevistado. A próxima

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fala, que logo se segue, vai ganhando outra cor, sempre envolvendo o texto de resposta
também. Já quando alguém tem uma fala isolada, ou se a resposta não veio imediatamente
em seguida, a borda terá a cor do falante-escrevente, englobando apenas o seu texto.
Bem, talvez seja até mais fácil perceber do que explicar. A ideia é reforçar a conti-
nuidade da interação, acentuar a fluência do texto, mas também ajudar o leitor a lembrar,
ao longo da passagem, quem está interagindo naquele diálogo, a quem está se dirigindo o
escrevente-falante, quem fez a pergunta que está sendo respondida.
Por fim, um esclarecimento talvez seja necessário: um dos diálogos que estava
programado para acontecer – sobre Patrimônio Cultural Imaterial, capitaneado por RODRI-
GO VIEIRA – não pôde ser realizado. Portanto, quando se referem alguns participantes à ex-
pectativa desse específico diálogo, lembre-se o leitor deste aviso. Pelo organizador da obra
me foi dito, contudo, que, numa eventual reedição, o diálogo faltante será contemplado.
Oxalá!

O EDITOR

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PRÓLOGO

Neste 2017, completo vinte anos de docência no ensino superior, para cuja celebra-
ção não fiz, até o momento em que escrevo estas linhas, qualquer festa no sentido mais
compartilhado dessa palavra. Todavia, desde que me dei conta da efeméride (o que ocor-
reu em Manaus – Amazonas, ao ministrar uma cadeira sobre Federalismo para uma exce-
lente turma de doutorado, a qual me fez lembrar da minha primeira turma de graduação,
em Sobral – Ceará), cada ato da minha vida acadêmica passou a ter um agradável gosto de
celebração.
Sabor especial encontro na publicação destes DIÁLOGOS CULTURAIS EM REDE: INQUIE-
TAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS, ocorridos em sua maior parte nos anos de 2015 e 2016, mas
que, revisitados permanentemente, mostram ter o mesmo frescor, por variados motivos,
alguns dos quais passo a detalhar.
Um desses motivos é a ideia de horizontalidade que adotei para a minha atividade
acadêmica, e consiste em diálogos abertos, desprovidos de hierarquia, sobretudo a mera-
mente formal que é conferida pelos títulos, a partir da qual adoto a convicção de que o sa-
ber está diluído no mundo e nas pessoas, do que decorre que o papel do professor é o de
ajudar a refletir, preferencialmente integrado à dita reflexão, de modo que não somente
ensina, como principalmente aprende, mais e melhor.
Outra razão é o meu gosto por voar nas asas da imaginação, dentre elas as que de-
correm da sensação de ubiquidade que nos é proporcionada pela internet, instrumento
que permite a conexão simultânea de pessoas nos mais distintos lugares; no caso deste
livro em várias regiões do Brasil, todas vinculadas pelo gosto e pelas intensas práticas co-
muns com as questões culturais e os direitos respectivos.
Para não alongar, apenas um terceiro motivo, consistente no meu desconforto e ao
mesmo tempo na minha grande atração para com as dimensões temporais: essa troca de
ideias, com alguns dos mais importantes pesquisadores da atualidade, lembra, no formato,
os simpósios da antiguidade ou os torneios medievais, mas se preocupa com o porvir dos
temas tratados.
No início da jornada, as pessoas convidadas a participar do projeto – algumas pre-
feriram ficar apenas como observadoras ou formuladoras de questões – assim se apresen-
taram umas às outras, como forma de testar o uso da ferramenta de compartilhamento de
arquivos (certas situações se alteraram, mas podem ser vistas em tópico próprio do livro):

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HUMBERTO CUNHA:
- Amig@s,
O presente arquivo é para teste de como teremos acesso ao arquivo comum
e de como poderemos nele inserir nossas perguntas, comentários e outras
manifestações.
Para chegar ao arquivo, basta clicar no link enviado; para inserir suas par-
ticipações, basta encontrar e clicar na opção editar on-line.
Para teste, proponho que nos apresentemos. Toda vez que formos escrever
no artigo, devemos anteceder nosso texto do nosso nome, como segue:
***
Olá, pessoal, sou cearense de Quixadá e professor da Universidade de For-
taleza – UNIFOR. Querem saber algo mais?
FÁBIO CESNIK:
- Olá pessoal. Sou paulista e paulistano, mas morando no Rio de Janeiro
desde maio de 2013. Sou advogado e tenho um escritório na área cultural
chamado Cesnik, Quintino e Salinas Advogados.
ELIENE R OLIVEI RA (LN):
- Olá! Sou mineira de Patos de Minas e resido em Uberlândia. Uma curiosa
sobre Direito e Arte. Iniciei estudos na área junto à Universidade Federal de
Uberlândia nos cursos de mestrado em Artes, especialização em Interpre-
tação Teatral e em Direito Constitucional. Prazer imenso estar aqui.
RI CARDO ORIÁ:
- É um enorme prazer participar dessa proposta de Diálogos Culturais. Sou
mestre em Direito Público pela UFC e doutor em História pela USP. Como
Consultor Legislativo da área de educação e cultura da Câmara dos Deputa-
dos, tenho me interessado pela temática dos Direitos Culturais. Pretendo
aqui contribuir com minhas ideias sobre o Direito à Memória e na discus-
são de temas atinentes à política de preservação do Patrimônio Cultural e
da política museológica.
MÁRIO PRAGMÁCIO:
- Sou um advogado culturalista, cearense, morando no Rio de Janeiro desde
2007 e venho empreendendo minhas pesquisas, desde a graduação, na área
do patrimônio cultural. Atualmente leciono na pós da Universidade Cân-
dido Mendes.

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MARISA DAMAS:
- Olá pessoal, sou uma mineira nascida em Araguari, mas goiana de criação,
pois resido em Goiânia desde criança. Graduada em Comunicação Social,
com Especialização e Mestrado em Música na linha de pesquisa "Música,
Cultura e Sociedade", sou Produtora Cultural na Universidade Federal de
Goiás desde 1993, tendo atuado anteriormente no Museu Antropológico e,
desde 2011, no Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos
Humanos.
MARCOS WACHOWI CZ:
- Sou professor universitário na UFPR, venho empreendendo minhas pes-
quisas sobre direitos autorais e sociedade da informação, inclusão tecnoló-
gica e cultural, propriedade intelectual e novas tecnologias da informação e
comunicação. Atualmente coordeno o Grupo de Estudos de Direito Autoral
e Industrial - GEDAI-UFPR.
RODRIGO VIEI RA:
- Saudações culturais a todxs! Sou Professor de Direito Público da Universi-
dade Federal Rural do Semiárido - UFERSA e doutorando em Direito da U-
niversidade Federal de Santa Catarina. Faço parte do GEPDC, coordenador
pelo professor Humberto, e do GEDAI, coordenado pelo prof. Marcos Wa-
chowicz. Empolgado com esta proposta de formato do Diálogos! Vamos em
frente.
GYL GIFFONY:
- Oi! Sou Gyl, tecnólogo em Artes Cênicas, graduado em Direito e licenci-
ando em Teatro, com mestrado em Memória Social. Moro em Fortaleza, e
aqui nasci também, apesar de ter morado no Rio de Janeiro e em Natal. Te-
nho desenvolvido pesquisas e atuado nas áreas do teatro, organização da
cultura e direitos culturais. Sou membro do Instituto Brasileiro de Direitos
Culturais (IBDCult), participo da Inquieta Cia. de Teatros, como ator e en-
cenador, estou curador da área de artes cênicas do Centro Cultural Banco
do Nordeste Fortaleza e sou professor do curso de Rádio e TV da Fanor De
Vry.
IN ÊS VIRGINI A:
- Olá pessoal, sou sergipana de nascimento e cearense de coração, já que fui
criada em Fortaleza e me formei em Direito na UFC. Moro em São Paulo
desde 1997. Sou procuradora regional da república e atuo na área criminal.
Fiz mestrado e doutorado na PUC/SP (tese sobre proteção jurídica do pa-

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trimônio arqueológico no Brasil) e pesquisa de pós-doutorado no Núcleo
de Estudos da Violência da Usp, onde estudei a aplicação dos instrumentos
jurídicos para preservação da memória coletiva sobre as violações em mas-
sa aos direitos humanos durante a ditadura. meu maior interesse aca-
dêmico é a efetividade dos direitos culturais e a proteção dos bens cultu-
rais.
MARCELO IKEDA:
- Boa noite a todos, sou carioca, moro em Fortaleza desde 2010. Sou profes-
sor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará
(UFC). Trabalhei na ANCINE entre 2002 e 2010. Minha principal pesquisa
acadêmica é sobre as políticas públicas para o audiovisual brasileiro, espe-
cialmente no período após a "retomada", com foco nas leis de incentivo e a
criação da ANCINE. Tenho formação em economia e em cinema. Sou tam-
bém cineasta, crítico e curador. Publiquei os livros "Lei da ANCINE comen-
tada (MP2228-1/01)" e "Leis de incentivo para o audiovisual", entre ou-
tros. Ainda neste ano, publicarei pela Editora Summus o livro "O cinema
brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos".
FREDERICO BARBOSA:
Sou pesquisador na área de políticas sociais. Comecei na área da saúde e
transitei por temas como participação social, finanças públicas e planeja-
mento, me envolvi com as questões sociais e fui migrando gradualmente
para a área da cultura. Aqui apareceram temas como desenvolvimento, tra-
balho, consumo e práticas culturais. Atualmente trabalho intensivamente a
questão das práticas culturais como cinema, leitura, circo, dança, teatro e
museus.
GONZAGA ADOLFO :
- Sou o Gonzaga Adolfo. 49 anos, gaúcho de São Sepé (no coração do Rio
Grande, na região da Grande Santa Maria). Gremista. Resido há 41 anos em
Sapucaia do Sul, na Grande Porto Alegre. Sou pesquisador na área dos Di-
reitos Autorais desde 1989. Sou Doutor em Direito pela UNISINOS (2006).
Atualmente (desde 1995) sou Professor da Universidade Luterana do Bra-
sil – ULBRA (Gravataí/RS) e do Programa de Pós-graduação em Direito
(Mestrado e Doutorado) da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.
Pesquiso e leciono também na área da Filosofia do Direito e do Direito Civil.

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Estes diálogos foram encetados com duas características básicas: cordialidade e
franqueza; pela primeira, ampliamos laços de proximidade, inclusive afetiva e de admira-
ção uns para com os outros; pela segunda, não abrimos mão de nossas convicções teóricas
e práticas e, com isso, ideias foram contrapostas e doutrinas foram testadas em intensi-
dade máxima, mas tudo em patamar de sensatez, sem que ninguém recorresse a instru-
mentos outros que não a argumentação lógica e científica.
Após isso tudo, suponho que os grandes vencedores destes diálogos, simpósios ou
torneios foram, além de seus participantes, os leitores, que passaram a ter instrumentos
para suas escolhas, e os direitos culturais, que saíram fortalecidos com o grande teste de
coerência a que se submeteram diante de um grupo tão qualificado.
Para mim, repito, na celebração das minhas primeiras duas décadas na academia,
todo o processo foi, ademais, uma grande festa! E coisa boa sempre nos induz a querer
mais; portanto, estimo que novos diálogos virão.

HUMBERTO CUNHA FILHO


Coordenador

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PRIMEIRO DIÁLOGO

TEORIA DOS DIREITOS CULTURAIS

com Francisco Humberto Cunha Filho

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TEORIA DOS DIREITOS CULTURAIS Uma incompletude está em algo que
poderia passar despercebido, que é o
diálogos com nome do livro por você citado. De fato, o
H UMBERTO CUNHA título completo dele é “Direitos Culturais
como Direitos Fundamentais no Orde-
MÁRIO PRAGMÁCIO namento Jurídico Brasileiro”. Ele resul-
- Você acha que a tríade "arte – memória tou da minha dissertação de mestrado,
coletiva – fluxo de saberes", proposta por defendida em 1999. A parte final do títu-
você no livro “Direitos Culturais como lo, omitida na questão, é muito importan-
Direitos Fundamentais”, em 2000, dá te, por ser um elemento de delimitação,
conta do atual debate sobre direitos cul- indicativo de que eu estava a buscar uma
turais ou necessita de uma revisão? definição para os direitos culturais, tendo
por foco principal o direito brasileiro.
HUMBERTO CUNHA Na época, como ainda agora, grande
- Você principia este diálogo com uma parte da doutrina não se ocupava em de-
pergunta difícil, instigante e complexa, finir os direitos culturais, mas em tentar
mas muito adequada para uma conversa fazer uma relação exaustiva deles, o que
cuja pretensão é passear por uma teoria acho incompatível com os padrões cien-
dos direitos culturais. É adequada por- tíficos instituídos a partir da moderni-
que a base inicial de toda teoria está nos dade e com a dinâmica contemporânea
conceitos ou nas definições dos objetos de criação do direito, afetada por anoma-
por ela tratados; no caso, HUMBERTO é Doutor em Direito pela Univer- lias como a da “febre
você almeja saber se o sidade Federal de Pernambuco (UFPE), legiferante”, que se ma-
professor do Programa de Pós-Graduação
que entendo abstrata- em Direito Constitucional da Universidade nifesta pela aprovação e
de Fortaleza (UNIFOR), membro da Acade- revogação de leis em
mente por direitos cultu- mia Cearense de Letras Jurídicas e advogado
rais ainda tem validade da União ritmo frenético e impre-
ou já foi superado. Nessa curiosidade visível.
reside o que há de mais difícil na per- Nesse contexto, meu intento era o de,
gunta, porque ela aparentemente cria observando o direito brasileiro, princi-
uma situação dilemática: caso eu con- palmente a seção constitucional dedicada
firme meu escrito inicial e, se – como vo- à cultura, delimitar de forma abstrata o
cê diz – existe um debate “atual” sobre que seriam os “direitos culturais” nela
direitos culturais, assumo meu anacro- mencionados. Olhando atenta e repeti-
nismo; se eu renegar a minha definição, damente os artigos 215 e 216 da Consti-
confesso um erro. tuição Federal, bem como suas matrizes,
De fato, não tenho problemas com observei que eles sempre convergiam
uma coisa nem outra; nem com anacro- para os campos por você mencionados:
nismo, nem com erro, pois, se eu tivesse, artes, memória coletiva e fluxo de sabe-
equivaleria a desconhecer a dinâmica da res.
vida e me imaginar infalível. O problema Se considerarmos, em termos norma-
que vejo é que toda situação de dilema – tivos, que o “debate atual sobre direitos
insolúvel, por definição – surge de pelo culturais” encontrou materialização nas
menos um defeito congênito; no caso da chamadas emendas constitucionais da
pergunta, creio que ela parte de premis- cultura, as que alteraram e ampliaram a
sas incompletas, cuja obrigação de suprir respectiva seção constitucional, nada de
– reconheço – não é sua, mas minha. Va- novo foi substancialmente acrescentado,
mos a elas. pois vinculação de recursos, imunidades

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tributárias, planos e sistemas de cultura soas diferenciadas, de elevados conheci-
são apenas garantias para a materializa- mentos acadêmicos, algo que poderíamos
ção dos direitos culturais, segundo a con- chamar – se fôssemos generosos – de
figuração originalmente para eles traça- aristocracia.
da a partir de 1988. Esse fenômeno se mostrou tão arrai-
Assim, enfrentando diretamente a gado e forte na nossa história que, mes-
questão, mas antes lembrando que uma mo após a vigência da Constituição Cida-
definição não passa de uma ferramenta dã, muitas leis instituidoras dos órgãos
que possibilita conhecer o objeto defi- que usualmente são chamados de “conse-
nido de forma sintética e abstrata, acho lhos de políticas culturais” perma-
que os três núcleos por você menciona- neceram vigentes ou foram criadas ado-
dos continuam a ofertar uma boa noção tando-se como critério, para investidura
do campo de abrangência dos direitos dos conselheiros, o do “notável saber
culturais. cultural”, geralmente medido pelos livros
publicados, pelos títulos universitários e
ELIENE OLIVEIR A (LN) pela fluência em línguas estrangeiras.
- No capítulo IV do seu livro "Cultura e Nesse contexto, não se pode negar que
Democracia na Constituição Federal de havia preocupação com as manifestações
1998 – A Representação de Interesses e populares, mas elas eram mais encaradas
sua Aplicação ao Programa Nacional de como objetos de estudo, de preocupa-
Apoio à Cultura", você registra que uma ções, de políticas preconcebidas, do que
das novidades da Constituição de 1988 é como emanadas de sujeitos capazes de
a estrutura normativa acerca da "gestão externar, na formação da vontade do Es-
pública da cultura", sendo a ação estatal tado, suas próprias vontades. Claro que
condicionada à colaboração da comuni- leis como as referidas, mesmo vigentes,
dade. Pegando carona na tríade "arte – eram inconstitucionais, não porque in-
memória coletiva – fluxo de saberes", cluíam os intelectuais nos órgãos de deli-
mencionada pelo MÁRIO, eu gostaria de beração política, mas porque excluíam os
saber sobre as suas impressões (e possí- demais atores da cena cultural.
veis exemplos) acerca da efetivação dos Para prosseguir, vejo-me obrigado a
direitos culturais ao longo dos últimos retomar algo da resposta que dei ao MÁ-
anos, no Brasil, levando-se em considera- RIO : a reação contra isso demorou mais
ção a participação da sociedade civil. de uma década e principiou em ações
municipalistas e estaduais, até chegar à
HUMBERTO apelidada “reforma constitucional da
- Realmente, uma das ideias que trabalho cultura”, materializada principalmente
no livro por você mencionado é a de que pelas Emendas Constitucionais nº
normativamente o Brasil despertou para 19/2003, 48/2005 e 71/2012, que, res-
a gestão cultural de natureza democrá- pectivamente, facultaram aos Estados e
tica a partir da Constituição de 1988. Distrito Federal vincular 0,5% (meio por
Normativamente – enfatizo a palavra – cento) de suas receitas líquidas para fun-
porque, mesmo após o advento da atual dos de fomento à cultura e instituiu os
Constituição Federal, o Estado brasileiro, planos e os sistemas públicos para a cul-
em suas distintas manifestações, conti- tura.
nuou, em considerável medida, a com- Note que o objetivo comum das e-
preender a gestão pública da cultura – e mendas foi criar garantias para a efeti-
ela própria – como algo vinculado a pes- vação dos direitos culturais, tal qual você

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pergunta; e todas elas podem ser conec- momentos permeiam as discussões rumo
tadas com a ideia constitucional da parti- a uma teoria dos direitos culturais.
cipação da comunidade na promoção e No seu ponto de vista, tendo como re-
proteção dos referidos direitos, porque ferência o Brasil, quais têm sido os maio-
tanto a vinculação quanto os planos e os res desafios para se chegar a uma teoria
sistemas devem ser instituídos por lei, dos direitos culturais, quando confron-
que, por sua vez, desde o processo de tamos o direito e essas questões trazidas
formação até a aplicação definitiva, deve por outras áreas nas suas interrelações
abrir espaço para a contribuição e para o com a cultura, com a própria natureza da
atingimento dos legítimos interesses dos cultura e com os reflexos conflituosos ad-
partícipes da democracia, que também vindos dessas relações?
são os interessados.
Assim, não é razoável desconhecer es- HUMBERTO
ses avanços na seara normativa, porém, - Para trabalhar sobre a relação conflitu-
seria ingênuo imaginar que eles são per- osa entre cultura e direito tive que refle-
feitos e suficientes; basta observar empi- tir sobre o tema e realmente percebi que
ricamente a realidade. De fato, as garan- o grande motor da cultura é o conflito.
tias jurídicas, além de aprimoramento Por isso, concordo com você quando a-
próprio, jamais dispensam as atuações firma que onde ela aparece – e isso ocor-
políticas e as lutas sociais que, na verda- re em todos os lugares habitados por
de, devem formar um tripé de mútua sus- mais de uma pessoa – o conflito se ins-
tentação. taura. Daí se verificarem os embates com
a economia, a pedagogia, a educação, a
MARISA DAMAS política, a sociologia, as relações interna-
- Tomo como referência a sua fala na cionais e tantas outras, como você coloca,
webconferência "A relação entre cultura e e não apenas com o direito. Mas o fenô-
direito: mitos e fatos". A tensão e, ao meno chega ao ponto de nos permitir
mesmo tempo, a interdependência entre averiguar que o mais frequente mesmo é
cultura e direito, bem como os conflitos o embate da cultura consigo própria.
entre ambos, poderiam, a meu ver, ser Ao descrever essa característica tão
também percebidos em várias outras marcante, veio à minha mente a metáfora
áreas e instâncias que compõem nossos da cultura como um guerreiro cercado de
universos teóricos e práticos, tais como combatentes (veja que não uso a palavra
na economia, nas ciências políticas, nas “inimigos”) que, não bastasse a necessi-
próprias relações internacionais e – por dade de agir num flanco de 360 graus,
que não? – até mesmo na pedagogia ou ainda por cima se flagela.
nas teorias educacionais, nas quais ques- A minha escolha por tratar dos confli-
tões como ensino formal e ensino infor- tos entre cultura e direito realmente de-
mal (onde os aspectos culturais apare- corre do meu recorte de estudo, os direi-
cem com grande destaque), por exemplo, tos culturais, expressão indicativa da re-
ainda não estão bem resolvidas. Certa- lação entre os dois campos que – imagino
mente, essa rota de colisão é mais evi- – têm ingredientes peculiares, que lem-
dente em alguns casos e em outros é bram uma pessoa olhando para o espe-
mais tênue. lho, no qual enxerga a própria imagem e
A sua prática e suas discussões teóri- os próprios movimentos, mas tudo apa-
cas são direcionadas para o direito, mas rece invertido.
penso que essas outras áreas em vários

19
Desculpe o excesso de metáforas, mas não foram suficientes para alterar a de-
elas são bons instrumentos de materi- signação, mas não se pode dizer que a
alização das coisas muito abertas e abs- rigor estávamos falando da mesma coisa.
tratas. As metáforas e também os mitos. Algo parecido ocorre no campo da cultu-
Aliás, para caracterizar as naturezas o- ra.
postas do direito e da cultura, ando evo- Mas você questiona sobre “os maiores
cando, respectivamente, as lembranças desafios para se chegar a uma teoria dos
de Palas Atenas (a organizadora das rela- direitos culturais”; assim sendo, devo
ções) e Prometeu (o violador das regras apontar pelo menos dois. Se acima indi-
postas). Mas para caracterizar os modos quei um problema cuja matriz é cultural,
de operação de um e outro, o mito que para equilibrar, devo indicar outro de
uso é o dos gêmeos Cástor e Pólux, am- matriz jurídica. Acho que no direito uma
bos guerreiros, por sinal, um mortal e o grande dificuldade resulta do caráter
outro imortal, que revezam o dom da ainda juvenil dos direitos culturais, que
vida eterna exatamente no momento em não são levados muito a sério, como se
que o detentor da mortalidade corre o fossem adolescentes tutelados por ramos
risco de sucumbir. adultos da ciência jurídica, como o civil, o
Essa alternância mostra a outra faceta administrativo e o tributário, principal-
da relação: a interdependência. A hipóte- mente. Essa tutela refreia o desenvolvi-
se do nascimento geminado rompe com mento e a compreensão dos institutos e
muitas teorias culturalistas que dizem dos princípios que são próprios dos di-
que o direito é produto da cultura, o que, reitos culturais.
se não é de todo falso, é apenas meia
verdade, pois a cultura é também produ- GONZAGA ADOLFO
to do direito. - Não tenho certeza se o tema está dire-
Nesse universo de conflitos reside a tamente relacionado à ideia de Teoria
matriz de uma das principais dificulda- Geral da Cultura, mas creio que ao menos
des para a construção de uma teoria dos de certo modo sim. Recente polêmica na
direitos culturais, que são direitos ema- Folha de São Paulo questionou qual é
nados da cultura, mas a própria cultura mesmo o papel do Estado no apoio (ma-
não consegue se conceituar, ou seja, não terial) à cultura (aqui entendida na sua
consegue delimitar a si própria, de forma vertente de bens/produtos culturais). Ou
única e definitiva, o que, aliás, não é um seja, se debateu se a ocorrência de várias
defeito. A regra do conflito a ela ima- áreas de atuação (musical, por exemplo)
nente faz implodir qualquer conceito dependendo de patrocínio do Estado se-
proposto. Uma teoria dos direitos cultu- ria saudável ao processo como um todo e
rais, portanto, somente pode trabalhar – além do mais – democrático. Veja-se a
com definições, palavra cuja etimologia concentração da maioria destes projetos
significa reconhecer os fins, as fronteiras, de incentivo deferidos na região sudeste
os quais se alteram com a mudança dos do país. Apreciaria ter sua opinião sobre
marcos que as definem. o tema.
É como na geografia (mais uma metá-
fora!): a faixa territorial do Tratado de HUMBERTO
Tordesilhas era o Brasil; depois da ex- - Inicialmente, peço permissão para des-
pansão creditada aos bandeirantes, con- locar a sua pergunta do campo de uma
tinuou sendo; o ingresso do Acre ou a “Teoria Geral da Cultura” para uma Teo-
saída da Província Cisplatina (Uruguai) ria dos Direitos Culturais, por duas ra-

20
zões principais: não tenho conhecimen- ele convive mais proximamente com a
tos suficientes para tratar a primeira e o realidade atual.
pouco que tenho me permite apenas ta- É bem verdade que esse legislador e o
tear pela segunda, muito confiante de administrador que materializa as suas
que o nosso diálogo me ajudará a en- deliberações são falíveis e podem fazer
tendê-la e configurá-la melhor. Ademais, tudo errado. Para medir-lhes a atuação, o
uma Teoria Geral da Cultura seria oceâ- passo inicial é contrastar se os funda-
nica; já uma Teoria dos Direitos Cultu- mentos e as consequências de seus atos,
rais, apesar de também grande, tem con- ou seja, se os incentivos que criam vio-
tornos mais definidos, o que é propiciado lam os demais valores constitucionais ou
por balizas como o tão criticado – mas, os específicos princípios culturais, que
mesmo assim, indispensável – direito po- imagino serem vinculados às ideias de
sitivado pela forma escrita. pluralismo, participação, atuação logísti-
Ainda preliminarmente, convém lem- ca do Estado, respeito à memória coletiva
brar que teorizar é, em princípio, enten- e universalidade.
der em abstrato. O resultado desta ope- Deste modo, se o incentivo é destina-
ração permite vislumbrar as leis de re- do a quem sem ele poderia do mesmo
gência do objeto estudado para, uma vez modo atuar, se provoca dependência e
conhecidas, ser aquilatado se as práticas retira a autonomia cultural, se privilegia
estão sendo desenvolvidas conforme tais etc., está errado.
leis ou se delas se distanciam, e em que Tentando arrematar a resposta, e
medida. sendo específico no exemplo por você
Sua pergunta, se a observarmos em trazido, o da música, é bem provável que
termos mais genéricos, reacende o tema a reportagem tenha focado um segmento
do papel do Estado no fomento à cultura. específico dessa manifestação, identifi-
Se a resposta fosse dada a partir de uma cado com o que se chama de indústria
Teoria Geral da Cultura, seria aberto es- cultural, que, de fato, muito provavel-
paço para as múltiplas possibilidades mente pode – e até deve – dispensar os
imagináveis; todavia, a partir de uma Te- incentivos pecuniários para a sua produ-
oria dos Direitos Culturais, mesmo sem ção e circulação no Brasil, por possuir
desconhecer essas múltiplas possibilida- meios próprios para tanto.
des, os elementos que a cercam e per- Todavia, pode ser beneficiária, even-
meiam, como a legislação, a doutrina e a tualmente, de uma política que expanda a
jurisprudência, ajudam a dar uma res- sua inserção em outros mercados. O que
posta mais concreta. não se pode esquecer é que o segmento
Tentando chegar a ela, não se pode “música” compreende, sim, o chamado
desconhecer que na Constituição Brasi- mainstream, mas também as loas, os rit-
leira há a determinação de que “a lei es- mos dos distintos locais, as cantigas de
tabelecerá incentivos para a produção e o viola e tantas outras manifestações.
conhecimento de bens e valores cultu- Conclusão: a validade de uma teoria,
rais” (§ 3º do art. 216). que se pretende genérica, em casos como
É certo, portanto, que existe a permis- esse da sua pergunta, é para dizer que há
são para os incentivos, mas quais serão, muitas manifestações no campo dos di-
por quanto tempo, por quais motivos, reitos culturais para as quais a ação mais
para quais destinatários... é algo que foi adequada não dispensa ponderação e
confiado ao legislador ordinário, porque tratamento específicos da situação con-
creta.

21
RICAR DO OR IÁ valores (axiologia). Nada dessa constru-
- Apenas para complementar sua apre- ção – advirto – surge de ato puramente
sentação, aqui vai um questionamento: criativo, mas de dedução do ordenamen-
nessa "Teoria Geral dos Direitos Cultu- to constitucional da cultura, como diria o
rais", há a possibilidade de estabelecer- Professor José Afonso da Silva.
mos uma melhor tipificação de quais se- Não desconheço que essa “definição”
riam esses direitos? Pergunto isso, pois por mim proposta, ao lado de encontrar
sinto que as pessoas, de modo geral, con- boa aceitação, também se depara com
fundem "direito à cultura" e "direitos desconfiança e refutação, como é natural
culturais". e salutar para o diálogo científico. A base
da oposição que ela recebe se assenta na
HUMBERTO convicção de que direitos de outros cam-
- Chamo o que venho tentado desenvol- pos jurídicos poderiam nela ser enqua-
ver apenas de “Teoria dos Direitos Cultu- drados. Tal percepção não está errada,
rais”, mas concordo que a reflexão sobre mas é rasteira e revela que seus formula-
certo objeto somente merece a designa- dores não sabem ou não lembram – ou
ção de “teoria”, se tiver natureza “geral”. não querem lembrar – que não se trata
Esse aspecto geral, por seu turno, so- de um “conceito” (entendido, repito, co-
mente se averigua com a presença de mo dicção única para certo objeto), mas
múltiplos elementos, como as definições, de “definição”, que é uma delimitação
as delimitações, os valores (axiologia) e assaz razoável, cuja aproximação mais
as finalidades (teleologia). precisa com o objeto é feita a partir do
É bem verdade que, na resposta à per- recorte e da observação do campo estu-
gunta do MÁRIO, abordei – e apenas de dado, no caso, o integrado – reitero – pe-
forma parcial – o aspecto das delimita- las artes, memória coletiva e fluxo de
ções, ao identificar, para o direito brasi- saberes.
leiro, os campos de incidência dos direi- Ter a diferença entre “conceito” e “de-
tos culturais. Os outros aspectos teóricos finição” é o mote perfeito para principiar
para “melhor tipificação de quais seriam a tentativa de dar resposta à segunda
esses direitos culturais”, justamente rei- parte de sua intervenção, pela qual você
vindicada por você, creio que podem ser me instiga a debelar a confusão que, em
vistos na definição completa que venho geral, as pessoas fazem sobre as expres-
propondo para os mencionados direitos: sões “direito à cultura” e “direitos cultu-
“Direitos Culturais são aqueles afetos às rais”.
artes, à memória coletiva e ao fluxo de A esse respeito, começo por lembrar
saberes, que asseguram a seus titulares o que, se, por um lado, uma teoria deve ser
conhecimento e uso do passado, interfe- geral e coerente, por outro, goza da prer-
rência ativa no presente e possibilidade rogativa de ter acesso aos instrumentos
de previsão e decisão de opções referen- necessários para se desenvolver, sendo o
tes ao futuro, visando sempre à digni- mais evidente deles o uso discricionário
dade da pessoa humana”. do sentido das palavras e expressões,
Na primeira parte da definição acima desde que tenha a lealdade de previa-
transcrita, como dito, abordo a delimita- mente dizer o que significam dentro de
ção; ao me referir àquilo que os direitos suas formulações.
culturais asseguram, abordo a finalidade Quero dizer com isso que uma teoria
(teleologia); e ao dizer ao que visam per- poderia legitimamente considerar as ex-
manentemente, estou tratando de seus pressões por você mencionadas (e ou-

22
tras) como sinônimas ou, opostamente, definir os papéis do Estado na ordem
como distintas, desde que justificasse a econômica (artigo 174), quando estatui
sua opção. Porém, esse poder discricio- “como agente normativo e regulador da
nário, para uma ciência que pretende se ordem econômica, o Estado exercerá, na
comunicar de maneira ampla com as pes- forma da lei, as funções de fiscalização,
soas e não apenas com os que nela sejam incentivo e planejamento, sendo este
iniciados, deve preferir, sempre que pos- determinante para o setor público e indi-
sível, padrões comunicacionais comuns, cativo para o setor privado”. Estas passa-
o que implica no uso corrente das pala- gens dão fundamento para a criação da
vras, pois o contrário provoca, no âmbito estrutura de fomento público, em espe-
do conhecimento, a exclusão aristocrá- cial dos vários incentivos fiscais que esti-
tica ou oligárquica, para utilizar a lingua- mulam o setor, da Lei Rouanet
gem aristotélica. (8.313/91) aos mecanismos de apoio ao
Se tomarmos o referido padrão comu- audiovisual (lei 8.685/93 e MP
nicacional comum como sendo a legisla- 2.228/01).
ção matricial até agora construída sobre Não bastassem essas passagens, a
o tema, elegendo como base a Declaração Constituição de nosso país tem a des-
Universal dos Direitos Humanos (O- treza de inibir o Estado como produtor
NU/1948), a que acresceu os “direitos ou mesmo definidor de qual o tipo de cul-
culturais” à cena política dos países sig- tura que vai ser consumido pela popula-
natários, e se generosamente entender- ção, quando traz, em diversas passagens,
mos que “direito à cultura” é o que na a necessária presença da sociedade civil
referida Declaração corresponde à prer- na realização das atividades. O parágrafo
rogativa de “participar da vida cultural primeiro do artigo 216, já mencionado
da comunidade”, chegaremos à conclusão pelo HUMBERTO, traz, por exemplo, o co-
de que “direitos culturais” é gênero e “di- mando nessa direção: “O Poder Publico,
reito à cultura” é espécie. com a colaboração da comunidade, pro-
moverá e protegerá [...]". Observem que
FÁBIO CESNIK nossa Constituição, liberal que é, preten-
- Caros, demorei a entrar neste debate. A deu contar com a sociedade apoiando e
discussão segue no mais alto nível e fi- realizando as atividades culturais e inibir
quei interessado de tocar no tema tra- o Estado como provedor único do que
zido pelo GONZAGA e muito bem ponde- deve ser consumido pela população. Mui-
rado pelo HUMBERTO, para prosseguir na to pelo contrario.
discussão do fomento, matéria que es- É com essa pureza de propósitos que
tudo faz algum tempo. surgem as primeiras leis de fomento no
Em primeiro lugar, faço eco à fala do país, da Lei Rouanet aos instrumentos de
HUMBERTO, que bem ressalta que o incen- fomento ao audiovisual. Falemos da Lei
tivo e a estrutura de financiamento de- Rouanet em primeiro lugar. Nela 3 três
correm da nossa Carta Magna. Além do são os instrumentos criados: o Fundo
digitado parágrafo 3º do artigo 216, te- Nacional de Cultura (FNC), uma fração de
mos também o caput do artigo 215 que recursos a ser destinado diretamente
reza: “O Estado garantira a todos o pleno pelo Ministério da Cultura ao mercado; o
exercício dos direitos culturais e acesso incentivo fiscal; e a possibilidade de es-
as fontes de cultura nacional, e apoiará e truturação de fundos privados (FICART)
incentivará a valorização e difusão das para estimular que recursos do mercado
manifestações culturais”, e logo antes ao pudessem ser alocados na produção cul-

23
tural. O FNC e o FICART surgem com os Ministério da Cultura. Isto fez com que os
objetivos mais bem definidos, mas ambos recursos fossem distribuídos no local da
com problemas estruturais. O FNC é cri- sede das empresas, portanto, do paga-
ado como fundo exclusivamente orça- mento dos impostos. Por isso que, nacio-
mentário, e não financeiro, o que tem nalmente, os recursos ficaram concentra-
levado historicamente ao Ministério da dos na região sudeste. Mas não é só.
Cultura ficar dependendo da liberação de Se examinarmos o Estado do Ceará,
recursos pelo Planejamento e Fazenda, por exemplo, veremos que os recursos
para ter fôlego de aplicar recursos no estão concentrados na capital, Fortaleza,
mercado. Mesmo quando uma lei, em e assim por diante. Agora esta leitura é
1999, triplicou o percentual da loteria agravada por um problema de sistema do
federal destinado ao FNC, o resultado foi Ministério da Cultura: a avaliação de con-
nenhum acréscimo de recursos no fundo centração feita pelo Ministério hoje leva
e, por conseguinte, na produção cultural. em conta o CNPJ da empresa proponente.
Ideal seria que esse fundo fosse orça- Então, por exemplo, o projeto da Funda-
mentário e financeiro. O FICART, ao seu ção Roberto Marinho (que fica no Rio de
passo, cria um fundo privado para inves- Janeiro), que construiu o equipamento
timento em artes, mas não estabelece cultural em Recife “Paço do Frevo”, conta
nenhuma vantagem especifica que esti- como recurso concentrado no Rio de Ja-
mule a estruturação de fundos desse ti- neiro. Todos esses elementos mostram
po; ao final o mercado preferiu usar as que, sendo uma lei premiadora, o argu-
estruturas conhecidas, como fundos de mento da concentração é o mais frágil
participação ou de investimento em di- para criticar a Lei Rouanet.
reitos creditórios (FIP ou FIDC), por e- Outro argumento igualmente frágil é
xemplo. Tal carência de alguma vanta- esse debate de artista consagrado. O pro-
gem especifica matou o FICART na ori- blema da lei não é aprovar projeto de
gem. Mas e o incentivo? artista consagrado (desafio alguém aqui
Com as carências estruturais dos dois a definir “consagrado”, respeitando o
primeiros mecanismos, toda engenharia principio da isonomia), mas da própria
de fomento ficou centrada no incentivo definição de origem da lei: deve a lei fo-
fiscal. Ao incentivo coube financiar aquilo mentar que tipo de manifestação cultu-
que seria papel do FNC, mas também os ral? Deve ela estimular as atividades cul-
projetos que caberiam aos fundos FI- turais de fomento de linguagem sem co-
CART, além das atividades que estariam brança de ingresso, ou deve, como o in-
desde o inicio sob sua seara. E na escala centivo do IPI para automóveis, ser gera-
dos benefícios fiscais, único instrumento dora de emprego e renda? Se ela for ge-
realmente funcionando, ao invés de se radora de emprego e renda, de que im-
privilegiar a finalidade pública das ativi- porta mesmo o preço do ingresso, por
dades, a lei guiou-se nas áreas da produ- exemplo?
ção cultural (música erudita ou popular) Esta falta de finalidade de propósitos
para definir qual deveria oferecer maior gera hoje, na minha opinião, a maior fra-
percentual de abatimento. gilidade desses mecanismos e onde uma
Em relação ao beneficio fiscal, foi cri- revisão da Lei Rouanet deveria agir.
ado um percentual único do imposto de Para completar os falsos debates, ou-
renda, que qualquer empresa brasileira, tra polemica é a questão do abatimento
tributada no lucro real, poderia aplicar de 100% no imposto de renda. Ora, todos
em projetos previamente aprovados pelo os incentivos criados no Brasil em todas

24
as áreas – relaciono: lei do esporte, fundo mentos jurídicos, políticos e sociais pos-
da criança e adolescente, fundo do idoso, tos à disposição para que os direitos se-
pronon, pronas, vale cultura, funcine, lei jam efetivados. Elas são reconhecíveis
do audiovisual – TODOS TRAZEM 100% por certas características, sendo uma das
de abatimento no imposto para as em- mais marcantes a sua natureza acessória
presas. Qual seria a razão de mudar o face aos direitos a que dão suporte. Isso é
percentual só pra Lei Rouanet? Eis ai facilmente entendido, se notarmos que o
mais um debate falacioso que está colo- principal é o direito, por exemplo, de fa-
cado. zermos criações artísticas; o dinheiro
Sinto se apimentei o debate. Mas fiz vindo das leis de incentivos, neste con-
porque sei que todos nossos colegas aqui, texto, é acessório, considerando que so-
muito graduados, podem contribuir, e mente faz sentido se servir à criação ar-
muito, com o aprofundamento dessas tística, porque, em última análise, ela é o
questões e gostaria de ouvir nossos ami- principal e pode ocorrer sem dinheiro e
gos. até contra ele. O que acabo de dizer, cla-
ro, não é nem de longe desejável, pois o
HUMBERTO ideal mesmo é a boa sintonia entre os
- Não tenho que desculpar, mas que a- direitos e as garantias.
gradecer pela sua intervenção, na qual há Focando especificamente na Lei Rou-
mais desafios do que pode supor a nossa anet, objeto central da sua observação,
vã filosofia, como diria Hamlet, o mais ela nitidamente tem ou deveria ter natu-
introspectivo de todos os personagens de reza de garantia, tanto que, os dispositi-
Shakespeare. vos constitucionais por você citados, para
Vou me referir a três deles: há o desa- fundamentar a referida Lei, sempre estão
fio expresso para alguém desse diálogo em função de algo, quer seja “a produção
“definir [artista] ‘consagrado’, respeitan- e o conhecimento de bens e valores cul-
do o principio da isonomia”; outro, estru- turais”, “a valorização e difusão das ma-
tural, que é o de dar conta de tantos pon- nifestações culturais”, ou da promoção e
tos por você levantados (já me declaro proteção do patrimônio cultural brasi-
vencido!); mais um, implícito, consistente leiro. Como hipotética garantia dos direi-
em abordar as questões e assertivas por tos culturais, a Lei Rouanet deve ser re-
você levantadas no plano teórico, de mo- gida pelos mesmos valores a eles peculi-
do a que possam ser entendidas em abs- ares, tanto os mais específicos, corres-
trato e delas serem deduzidas ou induzi- pondentes aos princípios constitucionais
das leis (no sentido amplo e científico culturais (já mencionados em outra res-
dessa palavra) de regência dos fenôme- posta), quanto os mais gerais, constantes
nos e objetos sob estudo. Como por ante- dos princípios estruturantes, aqueles que
cipação já perdi um dos desafios, vou aos perpassam toda a Constituição.
outros dois, na ordem inversa em que Para avaliar se a Lei Rouanet está es-
foram mencionados, esperançoso de que, truturada de acordo com a principiologia
neles, todos saiam vencedores. referida, as premissas de análise devem
Penso que um questionamento sobre estar – no máximo possível – distancia-
a operacionalização de uma, de alguma das de imprecisões que, acaso existentes,
ou de todas as leis de incentivos à cul- podem afetar o resultado final da obser-
tura, teoricamente, se situa no campo das vação. Digo isso, FÁBIO, porque penso que
garantias aos direitos culturais. As garan- suas conclusões sobre o tema podem
tias, como sabemos, são todos os instru-

25
estar afetadas por premissas não muito tórios, o que possibilita o tratamento
exatas. isonômico, compreendido, desde Aristó-
Uma dessas premissas, bem discutível, teles, como a possibilidade de tratar dife-
na minha opinião, está em você conside- rentemente as pessoas, até que todas
rar a “nossa constituição, liberal que é”. tenham acesso aos bens e serviços ao
Imagino que, por estarmos tratando de menos em um nível mínimo aceitável.
incentivos fiscais, você se refere ao libe- Você pode imaginar, amigo, aparen-
ralismo econômico. Mas como ter a pre- temente com razão, que eu estou ten-
missa de que a Constituição pode ser tando fugir do seu desafio. Mas, não. O
considerada liberal, depois de terem sido problema é que, na plataforma em que
mencionadas, por você próprio, pelo me- você o assentou, a da hermenêutica (in-
nos quatro passagens em que ela deter- terpretação) literal, ele parece ser inven-
mina ou possibilita intervenções estatais, cível, pois a partir de qualquer coisa que
exatamente para corrigir as distorções se diga para definir “artista consagrado”,
do estado mínimo? Como considerar que remanescerá a possibilidade de variação
a Constituição é liberal e reivindicar in- de elementos, o que torna imprecisa a
centivos públicos para as manifestações definição, algo, como visto acima, ine-
artísticas? rente à sua natureza.
Por argumentação, caso se chegasse à De fato, situações como a que você
conclusão de que nossa Constituição é propõe, há muito têm razoável trata-
liberal, isso colocaria a indústria cultural mento no direito; isso porque uma ex-
numa situação difícil, pois, nesse caso, a pressão como “artista consagrado”, sem
referida indústria deveria receber, no dificuldade, pode ser enquadrada naquilo
Brasil, tratamento semelhante ao que que os estudiosos, sobretudo os do Di-
recebe nos Estados Unidos, tal qual rela- reito Administrativo, chamam de con-
tado por Frédéric Martel, no seu Mains- ceito fluido, caracterizado pelo fato de
tream: proteção de mercados, mas sem que há um grau de certeza de que certos
acesso a repasses financeiros. Se, diferen- casos neles se incluem, outros que deles
temente, for a nossa uma Constituição se excluem, além de certo volume que
social, os incentivos devem ser regulados gera dúvida, os quais necessitam de aná-
de modo a propiciar equilíbrios, o que no lise pontual, para que se saiba, de forma
caso cultural vai para além do aspecto definitiva, sobre a inclusão ou a exclusão.
econômico, por causa de outras prescri- Os Tribunais de Contas cotidiana-
ções da Lei Superior atinentes, por e- mente lidam com o conceito de “artista
xemplo, à diversidade cultural. consagrado”, em decorrência do fato de
Após eu ter mencionado a palavra “e- que a lei brasileira de licitações (Lei
quilíbrio”, imagino ser a ocasião propícia 8.666/1993, art. 25, III) reconhece, para
para enfrentar o desafio explícito de “de- eles, duas instâncias de consagração,
finir [artista] ‘consagrado’, respeitando o quais sejam, o público e a crítica; os artis-
principio da isonomia”. Entendo que o tas reconhecidos por essas instâncias
momento é oportuno, exatamente por- podem ser contratados a partir de inexi-
que as palavras “equilíbrio” e “isonomia” gibilidade de licitação, o que farta e fre-
têm forte ligação, num Estado de Direito quentemente ocorre. Vê-se, assim, ser
que almeja “reduzir as desigualdades francamente operacionalizável o con-
sociais e regionais” (art. 3º III), ou seja, ceito, que gera aos "artistas consagrados"
tornar mais equilibrada a situação das o benefício de contratação sem disputa.
diferentes pessoas e dos distintos terri- Por que o mesmo conceito não seria pró-

26
prio, também, para reconhecer a ausên- xemplos, FÁBIO, há os de leis temporárias
cia de necessidade e para a destinação de (cinema) e de leis que deferem incentivo
benefícios aos que não têm tal prerroga- total por período certo (vale-cultura),
tiva? apenas como forma de estímulo inicial.
Imagino ser oportuno, mais uma vez, Por fim, entendo, como você, que há
evocar a isonomia para comentar o outro muitas anomalias na construção inicial e
tópico: a sua defesa de dedução de 100% nas deformações subsequentes e no sis-
(cem por cento) no imposto a recolher, tema operacional da Lei Rouanet, porque
para todo tipo de incentivo. Isonômico ela foge do padrão de valores e princípios
mesmo, como dizem, é tratar diferente- dos direitos culturais, dentre os quais o
mente os diferentes, ou seja, é ver se há que pugna pela “descentralização arti-
razoabilidade para que o incentivo seja culada e pactuada da gestão, dos recur-
total ou parcial. Se, no caso da cultura, o sos e das ações” (art. 216-A, § 1º, XI,
que se almeja é acrescer dinheiro priva- CFFB/1988). Assim sendo, o caso em que
do ao dinheiro público, o incentivo total uma entidade da área de concentração
não faz sentido, principalmente se obser- dos recursos capta, para aplicar em outro
vado que mesmo aqueles que recorrem território, ao invés de abrandar a referi-
ao Fundo Nacional da Cultura, no meio da anomalia, agrava-a, pois exibe pode-
dos quais estão os hipossuficientes, de- res de controle sobre o sistema de fo-
vem dar contrapartida. Por que também mento, ao ponto de reproduzir práticas
não devem dar suas quotas os mais bem que em muito lembram um fluxo coloni-
aquinhoados? Ademais, dentre seus e- al.

27
SEGUNDO DIÁLOGO

INCENTIVOS FISCAIS À CULTURA

com Fábio de Sá Cesnik

28
INCENTIVOS FISCAIS À CULTURA saram a conceder benefícios fiscais àque-
les que demonstrassem uma atitude po-
diálogos com sitiva de investir, com o Governo, na ati-
FÁBIO CESNIK vidade cultural. Daqui surgem as leis de
incentivo à cultura.
FÁBIO Além dos recursos públicos diretos e
- Inicio este segundo diálogo com o tema dos incentivos fiscais, que são integrados
do financiamento. Aproveitei o debate diretamente por recursos de natureza
mais teórico do primeiro, para trazer al- pública, o Estado brasileiro passou a bus-
gumas provocações deste segundo capí- car maneiras de resguardo do investi-
tulo, que se focará no financiamento pú- mento privado. Nesta linha, estabeleceu
blico para atingimento dos objetivos políticas de fundos de investimento cul-
constitucionais tão bem apresentados turais, no intuito de assegurar a iniciativa
pelos nossos colegas. privada, a partir de controle realizado
Quando falamos em mecanismos de pela CVM1, dos recursos que pudessem
financiamento, abre-se um leque com ser definitivamente investidos em cul-
uma série de maneiras para o levanta- tura. Daí a criação do FICART, em 19912.
mento de recursos necessários para o Na mesma direção, mas aqui também
custeio de determinada ação ou projeto com incentivos fiscais, surgem os FUN-
cultural. No Brasil o financiamento pú- CINE, focados na atividade audiovisual.
blico pode vir de um dos três níveis de Buscou ainda criar algumas políticas de
governo, seja ele Gover- estímulo a esse investimento. É o caso da
no Federal, Estadual ou FÁBIO é advogado, bacharel em Direito pela conversão da dívida ex-
universidade de São Paulo (USP), presidente
Municipal. Todos eles da Comissão de Mídia e Entretenimento do
terna para os in-
têm, no geral, pequena Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) vestimentos em cinema,
e membro efetivo da Comissão de Direitos às
parcela do seu orçamen- Artes da OAB-SP que foi utilizado no ini-
to reservada especifica- cio do século XXI como
mente para o custeio de ações e preser- antecipação da aquisição de títulos da
vações culturais. Além disso, a Constitui- dívida pública externa, realizada pelo
ção não define as funções de cada ente Governo Federal, para volumes que se-
federativo em matéria de cultura, estabe- jam aplicados diretamente na atividade
lecendo a todos competência concorren- cultural.
te para atuar em qualquer aspecto da É certo ainda que as leis de incentivo,
vida cultural. de um modo geral, têm na sua justifica-
A falta de recursos para financiar as tiva de criação dois princípios fundamen-
várias atividades impôs ao estado brasi- tais, aqui considerados as razões políti-
leiro diferenciada criatividade para en- cas e jurídicas de sua existência. A pri-
contrar saídas para a questão do financi- meira delas é se criar nas empresas e
amento à atividade cultural. Após 1990 pessoas físicas uma “cultura de investi-
as três esferas de governo, cada qual uti- mento em cultura”. Está presente aqui
lizando os seus tributos – Governo Fede- um interesse do Estado em orientar um
ral (IR – Imposto de Renda), Governo comportamento socialmente responsável
Estadual (ICMS – Imposto sobre circula-
ção de mercadorias e serviços de qual- 1 Comissão de Valores Mobiliários
quer natureza) e Governo Municipal (ISS
2 Os FICARTs são os fundos de investimen-
– Imposto sobre serviço e IPTU – Im-
to cultural e artístico e foram introduzidos
posto Predial e Territorial Urbano), pas- pela Lei nº 8.313/91 (Lei Rouanet).

29
do setor privado, contribuindo por meio dente. Este novo projeto que vem sendo
de benefícios fiscais para ações de inte- discutido pelo Governo Federal, o PRO-
resse público. Em segundo plano a lei CULTURA, corrige essa distorção, ao es-
está calçada numa necessidade de se di- tabelecer percentuais de abatimento
recionar recursos para o setor cultural, maior para empresas de menor fatura-
historicamente carente de recursos que mento.
fomentem sua atividade. A segunda discordância vem do “rol
Para o professor Gilberto Bercovici “o de projetos beneficiados”. Há uma difi-
incentivo fiscal nada mais é do que a ins- culdade muito grande em se estabelecer
trumentalização dos tributos a serviço da quais devem ser os projetos objeto de
política econômica e social [...] o meca- benefício, o que ainda não está muito
nismo [...] canaliza fundos quase públi- claro. Hoje, na Lei Rouanet, a divisão é
cos, pois seriam utilizados no pagamento feita por área de expressão cultural: um
de tributos. [...] Deste modo, os incenti- projeto de música popular não oferece
vos fiscais são instrumento característico abatimento integral, ao passo que a mú-
da utilização extra-fiscal dos tributos. O sica erudita oferece. Considero esta cri-
interesse tributário é submetido a outros tica procedente, apesar de achar que é
interesses, identificados com os objetivos muito difícil equacionar o conjunto de
da política econômica e social [...], sem- critérios. O PROCULTURA propõe alguns
pre de acordo com os fins constitucio- desses critérios para estabelecer faixas
nais. O incentivo fiscal é uma espécie de de beneficio fiscal, tocando no tema.
‘mal menor’, utilizado para alcançar obje- A terceira discordância vem dos 100%
tivos maiores, o que seria justificado pela de beneficio fiscal. Como já comentei no
sua, ao menos teoricamente, excepciona- capítulo anterior, acho nefasta essa dis-
lidade”3. cussão, se isolada. Explico: existem hoje
Existem hoje várias discordâncias vários incentivos à saúde, criança, idoso,
fundamentais, quanto ao funcionamento esporte, audiovisual – todos oferecendo
das leis de incentivo, e que precisam ser 100% de benefício para as empresas.
discutidas com cuidado pela sociedade, Alguns deles são, conforme estiver no rol
para entender como utilizar o benefício de pessoas físicas ou jurídicas, concor-
público fruto desses incentivos. Elenco rentes com os culturais. Só a Lei Rouanet,
abaixo, em números, para facilitar, o co- dentre os mecanismos federais, traz al-
mentário dos demais colegas. gum tipo de abatimento parcial.
A primeira delas está centrada na re- Rediscutir o abatimento integral só na
lação “investidor x benefício fiscal”: exis- Lei Rouanet? Sou contra! Vai criar uma
tem poucos investidores, concentrando desvantagem competitiva para as empre-
um grande volume de benefícios. Como a sas do setor cultural no mercado: empre-
porcentagem de abatimento é uniforme, sas ou pessoas físicas vão optar por redi-
na grande maioria das leis, as grandes recionar seus investimentos para outros
empresas concentram uma possibilidade segmentos e poderão fazer isso facilmen-
de desconto grande no imposto, en- te. Rever o benefício integral para todos
quanto as pequenas ficam impedidas de os mecanismos? Sou a favor! Acho, de
participar. Considero esta crítica proce- fato, que essas leis têm o condão de atrair
mais dinheiro privado para esses setores
e essa medida seria muito efetiva.
3 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regi- A quarta vem da distribuição regional
onais, estado e constituição. São Paulo: Max
Limonad, 2003, páginas 130 e 131.
de incentivos. A Constituição, aqui no seu

30
lado mais social, previu a possibilidade para provocar: se o foco fosse econômico,
de criarem-se incentivos regionais para o Cirque Du Soleil teria sido o melhor in-
estimular o desenvolvimento do conjunto vestimento feito pelo Estado com incen-
do país. O que devemos lembrar, entanto, tivos fiscais – um aporte de incentivos e o
é que a natureza dos incentivos fiscais é projeto retornou aos cofres públicos pra-
PREMIADORA e não SANCIONATÓRIA. ticamente duas vezes o investimento rea-
Isso significa que esses incentivos devem lizado, tudo isso com tributos pagos na
ser desenvolvidos para premiar quem venda de ingressos.
fizer esses investimentos fora do eixo É importante que os mecanismos de
com mais benefícios e não condenar pu- incentivo sejam uma ferramenta da polí-
blicamente os agentes que, apesar do tica de Estado. Somente será possível
beneficio adicional, resolverem continuar pensar em uma proposta clara, para de-
investindo em sua base de atuação ou terminados critérios de funcionamento e
estratégica. concessão de incentivos fiscais, no mo-
O quinto é o debate do artista consa- mento em que o Estado estabelecer sua
grado. Aqui vou me permitir discordar do política de forma clara. Nessa hora, a
HUMBERTO. A lei 8.666/93 (lei de licita- FERRAMENTA do incentivo pode atuar
ções) estabelece no artigo 25, inciso III, o com excelente performance e ser molda-
seguinte: “para contratação de pro- da para fortalecer os instrumentos de
fissional de qualquer setor artístico, dire- política do Estado. Enfim, me alonguei
tamente ou através de empresário exclu- nas provocações, mas acho que esse é o
sivo, desde que consagrado pela crítica objetivo destes diálogos.
especializada ou pela opinião pública.”
Esse entendimento de CONSAGRADO da HUMBERTO
nossa lei de licitações, se aplicado ao in- - Você abre o nosso segundo diálogo de
centivo, excluiria todo e qualquer artista modo que entendi melhor o seu pensa-
profissional de acessar o fomento públi- mento sobre o atual sistema brasileiro de
co. A crítica existente vem apresentada incentivos à cultura, a partir da Lei Rou-
por artistas que têm pouca fama (mas anet. Percebi, desta feita, até mesmo al-
consagrados pela critica, no entendi- gumas aproximações entre nossos pen-
mento da lei 8666/93), que não gosta- samentos; mas acho que o importante
riam que participassem da lei os artistas mesmo é que todas as ideias venham ao
de muita fama (igualmente consagrados público, para que possam ser levadas em
pela critica e/ou pela opinião pública). consideração nos debates e nas decisões
Eu discordo dessa tônica do debate sobre o tema. Por isso, e em nome da
para definir o uso de incentivo. A lei de fluidez da discussão, remeto os leitores
incentivo não existe para distribuir di- para o primeiro diálogo, onde poderão,
nheiro para artista, mas para buscar a- caso queiram, ler ou reler o que penso
tingir uma finalidade pública maior, da sobre o assunto, em termos teóricos.
qual contratar artistas para trabalhar é Apenas uma coisa devo esclarecer:
uma parte. E aqui está o centro do deba- quando falei sobre o tratamento que a lei
te: está obscuro para o setor se o que brasileira de licitações dá aos artistas
deve ser apoiado pela lei de incentivo é a consagrados, quis apenas demonstrar
indústria cultural ou a ação mais social que a definição é juridicamente opera-
da cultura. As leis não deixam claro a que cionalizável, mas, a despeito disso, acho
vieram e permitem de tudo: benefício à importante as advertências por você fei-
cultura é espectro muito genérico. Só tas, que no final das contas lembram que

31
esse é apenas um elemento para definir ordem econômica, como do mencionado
se o ungido por uma instância de consa- artigo 174, a palavra incentivo vai grada-
gração (crítica, público, reconhecimento tivamente assumindo sentido mais es-
dos pares ou outra que venha a ser le- trito. Por exemplo, quando fala em pla-
galmente admitida) detém o perfil jurí- nejamento, fiscalização e incentivos co-
dico para ser beneficiado, sobretudo se mo papeis do Poder Publico na Ordem
for, como deve ser, estabelecido um qua- Econômica, acredito que as aplicações
dro de prioridades. diretas de recurso estariam insertas na
Mas, na verdade, penso que começa- palavra planejamento: cabe ao Estado ge-
mos esse assunto pelo fim, ou seja, pela renciar o fluxo de recursos disponíveis e
operacionalização de uma legislação cuja planejar sua correta aplicação. A regula-
práxis a deformou ainda mais que a sua ção está toda inserida no papel fiscaliza-
concepção original. Imagino que esse tório. Já os incentivos aqui me parecem
debate dará melhor contribuição à socie- ter um contorno mais próximo dos estí-
dade, se pensarmos nos fundamentos mulos fiscais, mas não exclusivamente.
iniciais deste instrumental de fomento. Queria muito te ouvir sobre isso, já que
Com base nessas premissas, gostaria você, dentre nós, é um pensador dos Di-
muito de saber sua opinião sobre as duas reitos Culturais na Constituição.
perguntas que adiante apresento. Sobre sua segunda pergunta: os me-
Primeira pergunta: quando a Consti- canismos de fomento, e não só a Rouanet,
tuição determina que “a lei estabelecerá estruturaram-se com base na tríade
incentivos para a produção e o conheci- “fundo público – incentivos fiscais – me-
mento de bens e valores culturais” (art. canismos privados”. Na prática a primei-
216, § 3º), o adequado para a União, Es- ra a adotar a estrutura foi a Lei Mendon-
tados, Distrito Federal e Municípios são ça, do município de São Paulo (Lei 10.923
os que se baseiam na renúncia fiscal? de 1990). Nela vemos presentes o fundo
Segunda pergunta: qual a razão para público de fomento às artes e o incentivo
que o legislador da Lei Rouanet tenha fiscal. A Lei Rouanet repete a fórmula,
previsto três mecanismos de fomento, acrescentando a modulação de fundos
que são o Fundo Nacional da Cultura, os privados (FICART). Curioso é que os me-
Fundos de Investimento Cultural e Artís- canismos de alteração desses mecanis-
tico e o Mecenato Federal? mos (no caso da Rouanet, o PROCUL-
TURA) não propõem alterar essa estru-
FÁBIO tura: seguem funcionando nesse formato,
- O que é ótimo nestes diálogos é a liber- simplesmente criando uma ou outra dife-
dade de formato e a possibilidade de dis- rença nos percentuais de abatimento fis-
cutirmos livremente sobre os temas, mas cal.
ao mesmo tempo de forma organizada. Uma coisa que você aborda sutilmente
Obrigado novamente pelo convite e por na sua intervenção e que acho muito im-
dividir sua atenção a este nosso segundo portante: mecanismo de financiamento
tema. deve ser estruturador de política pública,
Sobre suas perguntas, respondo à mas a questão fundamental que deve se
primeira: na minha visão, incentivos nes- fazer para começar o debate é: qual o
se comando constitucional abrangem objetivo do fomento público? Enquanto
todas as dimensões do fomento – fundos, não estiverem definidos os critérios de
renúncia fiscal e toda sorte de estímulos forma muito clara, os mecanismos vão
públicos ao setor. Quando adentra na ser muito facilmente criticados.

32
Por isso provoco os demais amigos tem um papel importante na redução dos
para esta questão: para quê deve existir níveis de pobreza e de violência urbana.
fomento publico? Qual o objetivo da Vejamos o caso de Medellin, na Colômbia,
política pública, para fazer com que o que, através de uma política cultural in-
Estado tire dinheiro de uma área co- clusiva, alicerçada na criação de uma re-
mo a saúde, obviamente importante de de bibliotecas públicas bem equipa-
para a sobrevivência das pessoas, e das, conseguiu reverter os índices de vi-
gaste com a cultura? olência.
As leis de incentivo à cultura são im-
MARISA portantes e elas devem existir, mere-
- FÁBIO , eu me senti realmente provocada. cendo que sejam aperfeiçoadas para cor-
Gostaria que, tendo como referência o rigir suas distorções. Entanto, o Poder
caráter interdependente, equivalente e Público não pode se eximir da tarefa de
não hierárquico entre os vários direitos contribuir para o desenvolvimento do
humanos, entre eles os direitos culturais, país e isso passa, necessariamente, por
você explicitasse seu ponto de vista quan- uma política de Estado que valorize, fo-
to a haver deslocamento ou retirada de mente, preserve e crie mecanismos ou-
dinheiro de uma área para outra. Com- tros que favoreçam a diversidade cultu-
preendendo a cultura em um sentido am- ral brasileira e o exercício dos direitos
plo, não só restrita às manifestações artís- culturais a todos os brasileiros.
ticas, é importante ressaltar seu papel
preponderante para a conquista do bem- ELIENE (LN)
estar das pessoas, na sua interação com a - FÁBIO , a sua última provocação (hipó-
saúde, com a educação, com a própria tese de o Estado remanejar dinheiro da
economia etc. área da saúde para a cultural) me levou
Nessa perspectiva, tenho minhas dúvi- para uma fala do professor Neto (Manoel
das sobre o que teria maior ou menor im- Almeida Neto) que, em 2006, durante
portância no universo das necessidades uma aula de Teoria da Cultura (curso de
humanas. A estruturação de uma política Gestão Cultural – Centro Universitário
pública na área cultural não seria muito UNA-BH) disse, em outras palavras, que
mais uma questão de definições de crité- ninguém se predispõe a crer que as do-
rios e de mecanismos melhor estabeleci- enças são reflexos de modos de vida (e
dos, como você mesmo cita no último pa- dos condicionamentos culturais) e que,
rágrafo? portanto, há uma crença de que a biolo-
gia/medicina prevalece à cultura. Exem-
RICAR DO plo disso: o avanço da indústria farma-
- Concordo plenamente com a MARISA, ao cêutica.
dispor sobre uma questão crucial, quan- Pode parecer que essa passagem foge
do se fala em financiamento da cultura, ao debate, mas, sempre que pensamos
tomando-se como referência a realidade sobre alguma temática do campo cultu-
brasileira. Considero que a cultura tem ral, atravessamos o tão mencionado
um papel fundante e até norteador para “campo simbólico”, que ainda nos aponta
outras políticas públicas e que deveria (em especial, na economia da cultura)
haver maior articulação entre a política um difícil processo de mensuração de
cultural e a dos demais segmentos. Acre- dados e valores para que a cultura passe
dito até que a cultura, entendida na sua a ser considerada um dos corações (se-
concepção antropológica mais ampla, não, o coração) da sociedade. Por outro

33
lado, sabemos, a desconstrução de cren- nhando os últimos avanços e retrocessos
ças é fundamental para que os diversos referentes às políticas culturais voltadas
setores pensem (e repensem) melhores aos games, sobretudo no que se refere à
arranjos de investimentos na área cultu- sua inserção nas leis de incentivo à cul-
ral (alguns, menos burocráticos). tura (Rouanet, vale-cultura etc.). Por e-
Tudo isso dialoga com o campo da xemplo, em 2011, tivemos a Portaria 116
formação, do conhecimento. E me cha- que inseriu, expressamente, os jogos ele-
mou a atenção a sua fala sobre a necessi- trônicos como uma das linguagens a se-
dade de se criar uma “cultura de inves- rem contempladas pelo art. 18 da Lei
timento em cultura” nas empresas e pes- Rouanet, mesmo que a Ministra Marta
soas físicas. Tenho a impressão que o Suplicy tenha dito que game não é cul-
conhecimento das Leis de Incentivo Fis- tura.
cal à Cultura ainda está mobilizado nas Minha pergunta é: há, na legislação de
mãos de poucos. incentivo ao setor audiovisual, alguma
Há um desconhecimento, na prática, previsão de fomento aos games, conside-
por parte de diversos atores que lidam rando que estes são também obras audi-
diretamente com projetos culturais via ovisuais?
leis de incentivo fiscal. Talvez a universi-
dade tenha uma relação direta com a te- FÁBIO
mática, porque ela projeta indivíduos - Caros, foi ótimo que demorei um pouco
para a realidade futura. para entrar de volta e já pude receber as
Qual a sua avaliação sobre a organiza- várias intervenções, todas de excelente
ção (e o repasse) do conhecimento das qualidade e que elevam o tom do debate.
Leis de Incentivo à Cultura, de um modo Abaixo comento cada uma delas.
geral (produções bibliográficas; cursos Primeiro a da MARISA, quando fala na
de formação; disciplinas ofertadas em hierarquia dos direitos humanos. Natu-
cursos superiores – Escolas de Direito, ralmente que minha pergunta teve um
Administração de Empresas, Artes e ou- cunho provocativo e considero de fun-
tros)? damental importância os investimentos
Também tenho a impressão que a á- em cultura, juntamente com investimen-
rea de audiovisual tem avançado (quan- tos em educação, saúde e todas as outras
do comparada às outras áreas) no que se áreas. O ideal a ser praticado pelos go-
refere à produção cultural: há uma pro- vernos é o planejamento equilibrado,
dução de conteúdo em movimento nos destinando um quinhão orçamentário
últimos anos, que sinaliza – penso – ser para cada uma das atividades, de modo
um dos reflexos do aprimoramento das que nenhuma fique descoberta. Relem-
leis de incentivo ao audiovisual. Gostaria brando os Titãs "a gente não quer só co-
de ouvi-lo a respeito. Como você avalia a mida... a gente quer comida, diversão,
legislação de incentivo para o setor audi- balé". A maior questão do tema cultural
ovisual? reside na pergunta: "qual é o setor da
cultura que deve ser financiado pelo Po-
MÁRIO der Público?". Duas são as áreas que, na
- Vou aproveitar o gancho das três inter- minha opinião, merecem respaldo públi-
venções anteriores e propor que o CESNIK co em alguma medida, com diferentes
as responda em bloco. A minha questão é programas: i) a cultura que preserva os
bem pontual e pode ir na carona da úl- fazeres culturais, do patrimônio, da pro-
tima pergunta da ELIENE. Estou acompa- dução de novas linguagens etc.; ii) a cul-

34
tura como vetor de desenvolvimento e- tem algumas universidades que têm lan-
conômico. çado programas de cursos livres ou pós
Nos diferentes processos de fomento, graduações, mas o pensar políticas e pro-
devem-se criar programas de fundo e gramas de financiamento para essas á-
incentivo, com critérios focados no atin- reas tem sido um esforço hercúleo de
gimento da finalidade pública de cada poucos. Aliás, meu escritório preparou
política, de modo a criarem-se mecanis- um pequeno livrinho chamado Manual
mos distintos para coisas distintas. do Patrocinador. Ele está disponível gra-
Exemplifico: na lei de incentivo ao es- tuitamente pela internet, aqui. Um dos
porte, por exemplo, existem três tipos de objetivos é tentar disseminar a informa-
desporto que podem ter incentivo públi- ção para fazer com que mais pessoas
co – a atividade de desporto educacional, possam acessar esses mecanismos dis-
participação e rendimento. As duas pri- poníveis.
meiras atividades têm um olhar do Mi- A segunda questão da ELIENE trata do
nistério do Esporte totalmente social: financiamento audiovisual. Sem dúvida a
50% dos alunos do desporto educacional política de fomento ao audiovisual hoje é
têm que ser matriculados na rede pública a mais completa de todos. Existem pro-
de ensino e as atividades de participação gramas de diversos níveis que apoiam o
devem ser prioritariamente realizadas fomento da atividade audiovisual, tanto
em área de vulnerabilidade social. Já no carreando um volume financeiro incrível
desporto de rendimento o olhar é para a para a área (em meio à crise, em junho de
formação de atleta: o projeto forma atleta 2015, foram liberados pelo governo 600
que pode ser negociado lá na frente por milhões de reais para investimentos pelo
um alto valor de mercado pelo clube, mas fundo setorial audiovisual, por exemplo),
o objetivo é formar pessoas que possam como concedendo o maior volume de
performar e ganhar competições. Longe incentivos setoriais já visto em nenhuma
de querer defender esse modelo como outra indústria. O esforço para o merca-
ideal, mas vejam que aparece claro aqui do audiovisual é tentar alterar a mentali-
algo que poderíamos adotar para a área dade, fazendo com que as produtoras
da cultura em termos de definição de passem a se ver como indústria, com di-
uma política pública clara: objetivo da recionamento para geração de lucros a
ação mais social (i) seria a geração de partir de produtos assistidos por muitas
atividades culturais gratuitas que pudes- pessoas.
sem estimular as diversas manifestações Por fim, o comentário do MÁRIO sobre
culturais etc., e da ação mais econômica a questão dos games. Os games hoje são
(ii) seria a geração de emprego e renda e contemplados pela Lei Rouanet (a fala da
pagamento de impostos. Claro que o Es- Marta não descontinuou a vigência da
tado deveria valorar de forma diferente regulamentação, que permite a eles se
uma coisa e outra, em termos de percen- enquadrarem, e vários projetos estão
tual de abatimento também, de modo a sendo aprovados, sendo que um deles já
não supervalorizar uma coisa em detri- captou recursos) e por algumas leis esta-
mento de outra. O que vocês acham duais. A lei de São Paulo (PROAC) permi-
dessa ideia? te, por exemplo, que projetos de games
Sobre a questão da ELIENE, também sejam aprovados. No caso do audiovisual,
muito importante. A primeira é a de que afinal games são, em alguma medida, o-
a política de formação, pelas escolas nes- bras audiovisuais interativas, existem
sa área, é ainda bastante limitada. Exis- algumas linhas do fundo setorial que

35
permitem investimento em desenvolvi- GONZAGA
mento. No último encontro da ABRAGA- - Caros amigos, li com muita atenção a
MÊS, agora em junho, lançamos a propos- provocação inicial do FÁBIO, a resposta
ta de se criar o artigo 3B para os games do H UMBERTO, e todas as demais manifes-
(beneficio fiscal no IR de remessa de ro- tações.
yalties decorrente de venda de jogos ele- Todas muito bem em embasadas. A-
trônicos no Brasil). Esse incentivo permi- prendi muito. Parabéns ao Humberto e a
tiria que a indústria pudesse não só abrir todos por ideia tão produtiva para nossas
as portas para financiar empresas de discussões. Não é um foco direto de mi-
desenvolvimento brasileiras, como tam- nhas pesquisas (Direitos Autorais e Soci-
bém seriam importantes direcionadoras edade da Informação).
dos tipos de produtos que, se produzidos, Parece-me que podemos resumir to-
poderiam funcionar globalmente. das as intervenções até aqui nas discus-
Aos amigos, vocês entendem que GA- sões teóricas (e práticas) de possibilida-
ME é uma espécie de produto audiovisual des de alteração neste estado da arte.
interativo? Vejam o que acham da passa- E um aspecto que merece ser sempre
gem abaixo, que comento a partir da lei- realçado (em qualquer polêmica, e tam-
tura do artigo 1 da MP 2.228 de 2001: bém nesta): nossa Constituição (e com
ela o Estado brasileiro) é do feitio de
“Art. 1º: Para fins desta Medida Provi-
Welfare State, e nele a democracia em
sória entende-se como:
todas as esferas é alfa e ômega do siste-
I - obra audiovisual: produto da fixa-
ma.
ção ou transmissão de imagens, com
Então, é de se indagar se, partindo da
ou sem som, que tenha a finalidade de
Carta Magna até se chegar a todo o res-
criar a impressão de movimento, in-
tante do ordenamento (jurídico e políti-
dependentemente dos processos de cap-
co-administrativo), nós conseguimos dar
tação, do suporte utilizado inicial ou pos-
passos concretos e mais efetivos (e efica-
teriormente para fixá-las ou transmiti-
zes) para a construção mais cristalina de
las, ou dos meios utilizados para sua vei-
uma democracia cultural entre nós.
culação, reprodução, transmissão ou di-
Singela contribuição, da Porto Alegre
fusão”.
fria e chuvosa desta quarta-feira, 08 de
Embora no Brasil, videogame se refira julho.
aos consoles onde os jogos são processa-
dos, os jogos em si, ou videogames, são MÁR IO
aqueles nos quais o jogador interage com - Concordo, sim, CESNIK. Aliás, instinti-
imagens enviadas a um dispositivo que vamente, eu já tinha lançado a ideia de
as exibe, geralmente numa televisão, dis- ser uma obra audiovisual (sem estar
positivo móvel ou um monitor. 100% seguro disso, por isso eu fiz a per-
A partir da definição da Medida Provi- gunta...), mas sem trazer uma definição
sória e do conceito de jogos eletrônicos, jurídica para tal, como você bem fez. Para
pode-se depreender que os jogos eletrô- mim, do ponto de vista jurídico, o que o
nicos são obras audiovisuais interativas, universo dos games tem de fascinante
razão pela qual poderia se criar um bene- tem de complexo e pouco explorado pe-
fício fiscal como um apêndice na lei do los juristas brasileiros.
audiovisual. Vocês concordam com is- As questões jurídicas que envolvem o
so? desenvolvimento dos jogos eletrônicos
vão desde o direito autoral (GONZAGA,

36
tem muita obra autoral incidente!), pas- dos com recursos tributários; b) regular
sando pela lei de software (afinal, pode a composição (mix) dos recursos públi-
ser/é um software também, né?), até as cos e privados para um mesmo projeto
leis de incentivo (à cultura), como você (veja, não estou discutindo diretamente
mencionou. Acredito que a gente poderia, os 100% de dedução, mas critérios ge-
inclusive, fazer um "spin-off" deste livro rais); c) considerar a perenidade, cons-
sobre o assunto, tratando, sob a ótica tância e impacto das atividades fomenta-
jurídica, temas como a tributação exces- das no contexto cultural como critério de
siva, os direitos autorais e conexos, os seleção; d) considerar os impactos eco-
direito de imagem etc. nômicos e mesmo as possibilidades de
retornos econômicos.
FR EDERICO BARBOSA Numa outra linha, também é possível
- Caro CESNIK, contextualizar as questões a construção modelos de financiamento
do financiamento, terreno ideologica- diferentes, a exemplo do Fundo Setorial
mente minado, é algo que demanda tem- do Audiovisual (FSA), baseado em vincu-
po, por isso não o farei. Tentarei ser bre- lações de fontes, retornos de bilheteria e
ve e econômico. em prêmios por resultados, ou de fundos
Em primeiro lugar, devo dizer que sou protegidos de cortes, contingenciamen-
a favor do financiamento cultural indis- tos e permeáveis a doações por parte das
criminado, isto é, sem julgamento de mé- empresas (contra deduções ou não). Te-
rito artístico, estético ou cultural; entre- nho como exemplo aqui o Fundo Amazô-
tanto, acredito que o processo decisório, nia. Nesse caso, o desenho de gestão de
tanto empresarial quanto estatal, em re- recursos exigiria a participação de enti-
lação ao “fundo público”, pode gerar dis- dades financeiras e, talvez, de comitês de
torções e algumas iniquidades, embora gestão, mas não dispensaria os recursos
acredite que na área cultural distorções e públicos. O que acha?
iniquidades, em certo sentido, sejam Outro problema, para o financiamento
bem-vindas (e daí teriam que ser inter- da área cultural, é o da descontinuidade
pretadas em outro vocabulário), a exem- das atividades. Sabemos que o nascimen-
plo do uso de recursos públicos significa- to e a destruição de empresas na área
tivos e de forma contínua pelo mesmo cultural foram da ordem de 23% e 21%,
grupo, desde que seja grupo de referên- respectivamente, no período que vai de
cia e importância cultural, que suas ativi- 1995 a 2002, com variação líquida em
dades gerem desdobramentos econômi- torno de 1,8%, mas muito diferenciadas
cos e enriqueçam a estrutura valorativa anualmente segundo o ciclo econômico, e
da cultura. realocação bruta – criação e destruição
Esse padrão pode ser criticado por total – foi da ordem de 45% no mesmo
captura e seletividade, se considerarmos período.
os recursos limitados e a limitação para Também sabemos que as atividades
que outros grupos de menor visibilidade, culturais são intermitentes. Como con-
mas de igual legitimidade, tenham acesso tornar estes problemas, quais sejam, as
aos recursos. Seja como for, queria saber fragilidades institucionais, especialmente
se você acha razoável imaginar critérios das pequenas empresas, mas também
de regulação dos usos de recursos tanto dos criadores individuais desprotegidos?
dos gastos tributários diretos quanto (desculpem pelos dados, a boca ficou
indiretos. Dou exemplos: a) limitação do torta com o uso do cachimbo, rs)
tamanho dos projetos a serem financia-

37
HUMBERTO que são, como quaisquer direitos, pres-
- Agora que estamos no segundo dos nos- tam-se a fomentar valores e a atingir ob-
sos diálogos, mas já firmei uma convic- jetivos;
ção: precisamos investir na compreensão 3) expressões culturais, mesmo no re-
teórica dos direitos culturais, para ter- corte mais restrito que eu adoto (a da
mos uma base a mais, além da positiva- tríade discutida no primeiro capítulo:
ção normativa, atualmente quase limita- artes, memória coletiva e fluxo de sabe-
da à norma escrita. Estamos vendo que a res) que não promovam os valores e ob-
compreensão dos direitos culturais, pela jetivos constitucionalmente fixados para
complexidade que os cerca e pela multi- os direitos não merecem incentivo, mas
plicidade de núcleos temáticos, com o ao contrário, desestímulos;
complicador adicional de estarem em 4) avaliar essa circunstância é um
constante metamorfose, exige dos intér- múnus do presente, a ser feito órgão plu-
pretes mais que deduções e enquadra- ral e autônomo, o que não exclui, para
mentos que, contudo, não podem ser dis- épocas futuras, a possibilidade de muta-
pensados. ção conceitual dos campos culturais
Acho que estamos conseguindo fazer (Bourdieu);
razoavelmente bem o exercício de par- 5) certos segmentos dos direitos cul-
tirmos dos fundamentos, passarmos pe- turais podem sofrer recortes administra-
los princípios e pelas regras, sem esque- tivos e gerenciais em virtude de peculia-
cer as finalidades. Mas movimento tão ridades que tornem tais recortes aconse-
complexo demanda que estejamos sem- lháveis, seja pela especialidade de trato, a
pre alerta e de alma aberta para constan- situação econômica diferenciada ou me-
te reavaliação. Nos temas que estamos a lhor aderência em outra área da gestão.
discutir, muitas coisas teoricamente pre- Assim, é o que ocorre com o direito cul-
cisam ser aclaradas e, nesse sentido, pen- tural à educação e deveria ocorrer com o
so que as nossas conversas nos impulsi- campo da indústria cultural, cujo fomen-
onarão, bem como aos nossos leitores – to mais recomendável, não raras vezes, é
que certamente também participarão dos o peculiar às indústrias e não à cultura,
debates através das ferramentas que a embora algo do conteúdo trabalhado
internet possibilita –, a futuros desenvol- esteja nos dois campos.
vimentos. A partir desses fundamentos, concor-
No âmbito específico do fomento à do com CESNIK, quando em dado momen-
cultura, penso que entenderemos melhor to de sua fala, após distinguir “cultura
os papéis do Estado, se levarmos em con- como vetor de desenvolvimento econô-
ta muitas premissas gerais, que vão para mico” das outras objetivações que faz, ele
além das normas postas de forma ex- entende “que o Estado deveria valorar de
pressa. Algumas dessas premissas me forma diferente uma coisa e outra”, mas
aventurarei a expor, com todos os riscos acho que deve ir além das diferenças de
disso decorrente: percentual de abatimento, e partir para
1) cultura não é a mesma coisa que di- legislações adequadas a cada uma, mes-
reitos culturais, mas apenas a sua base; mo que não sejam direta ou exclusiva-
2) cultura no sentido antropológico de mente operadas pelo Ministério da Cul-
toda ação humana, a não ser que pense- tura.
mos no ilícito como parte do jurídico Penso também que os fomentos base-
(Kelsen), apenas em parte é base dos ados em renúncia fiscal efetivamente
direitos culturais, pois estes, limitados favoráveis e restritos às pessoas que têm

38
elevada capacidade contributiva são, na Isso só ocorre pois o debate do finan-
origem, viciados, pois só os que manusei- ciamento sedia-se em terreno fortemente
am grandes recursos podem se benefici- contaminado por uma gigante carga i-
ar, o que já foi objeto de análise do CES- deológica. Aliás, encarar as questões de
NIK, que, salvo engano, também partilha desenvolvimento de linguagem e de se
da ideia de que o fortalecimento dos fun- criar ativos econômicos para o mercado
dos culturais pode propiciar uma ferra- são muitas vezes encaradas como trin-
menta enfrentadora dessa que entendo cheiras diametralmente opostas.
ser uma distorção. Desculpem-me os que concordam com
Se assim for, pergunto ao FÁBIO sua esse raciocínio, mas eu acredito que uma
opinião sobre as Propostas de Emendas coisa contribui com a outra, em relação
Constitucionais (PEC) que almejam fazer profundamente simbiótica. E, para que
a vinculação de recursos para a cultura e, essa relação flua bem e adicione, as polí-
na mesma linha, peço uma análise fática ticas culturais construídas precisam ser
e jurídica da faculdade que a Constituição ajustadas. Na prática, não se ajustam os
Federal dá aos Estados e ao Distrito Fe- mecanismos de financiamento, se, antes,
deral de vincularem até meio por cento não se ajustarem de maneira clara quais
de suas receitas líquidas a fundos cultu- os objetivos da política cultural brasilei-
rais. ra.
Defendi esse raciocínio num livrinho
FABIO que publiquei em 2003, chamado "Globa-
- Caros amigos, estava aqui relendo este lização da Cultura". No texto, que procura
diálogo para escrever uma conclusão, e estudar cultura e diversidade, riscos de
confesso que vai dando vontade de abrir homogeneização, indústrias culturais
mais diálogos ou transformar esse diálo- etc., comento de maneira (olhando hoje)
go em presencial. Como faz falta espaço bastante provocativa (me permito aqui
de debate! reproduzir os últimos parágrafos de con-
Antes de responder às questões, no clusão, que dão sentido ao que estou di-
entanto, e finalizar o capítulo, me permi- zendo):
tam um pequeno desabafo. Como tenho
"Ademais, entendemos que, ao mesmo
me dedicado nesses anos a atuar nas
tempo em que contribui com a uniformi-
questões legais atinentes aos mecanis-
zação de algumas ações, a globalização
mos de fomento (tanto fundos como in-
produz também mais diversidade, espe-
centivos), sou frequentemente associado
cialmente quando os índices deste fenô-
como o "defensor das leis de incentivo".
meno dialogam com o espaço local. O
Ora, o fato de militar como advogado na
professor português Alexandre Melo4
área e de escrever sob o tema não me
aponta o assunto de forma muito interes-
subtrai a capacidade crítica e a leitura
sante ao comentar sobre um dos maiores
isenta do processo inteiro! Ocorre que,
símbolos da uniformização cultural, que
por estudar o tema e por ter trabalhado
é a rede de lanchonetes da McDonalds.
duro em compartilhar conhecimento so-
É evidente que se compararmos uma
bre o tema (seja por meio de livros, arti-
hipotética situação em que se só existem
gos ou aulas em diversas instituições), a
lojas McDonalds nos EUA, ou apenas nas
visão rasteira das pessoas em criar "la-
grandes cidades americanas, com uma
dos" dos contras e a favor coloca-me ra-
pidamente num dos lados. 4 MELO, Alexandre. Globalização Cultural.
Lisboa: Quimera, 2002.

39
situação em que existem lojas McDonalds Quando isso ocorre, em matéria de
em todos os países do mundo, ou em to- cultura, perde-se não só em diversidade,
das as esquinas de todas as cidades e mas em termos de patrimônio cultural
aldeias do mundo, teremos que reconhe- global. Por isso a importância de bem
cer que, segundo uma determinada pers- definidas políticas que dêem possibi-
pectiva, se verifica, neste último caso, um lidade ao Estado de estabelecer os re-
aumento do nível de uniformidade. No equilíbrios necessários, usando pra
entanto, se adotarmos uma outra pers- isso recursos públicos e ferramentas
pectiva de análise, segundo a qual conta- de contrabalanço, como incentivos
bilizemos o grau de diversidade das op- fiscais.
ções alimentares em cada uma das refe- Na cultura esse reequilibrio é ainda
ridas esquinas, aldeias ou cidades antes e mais complexo, por que compõe não só
depois da instalação das lojas McDonalds, setores industriais, mas setores da cultu-
verificaremos que, provavelmente, na ra-tradição que dependem de subsídios
maior parte delas o número de opções diretos para sua existência. Além disso,
aumentou, impondo-se por isso reconhe- tem-se na cultura, com o passar dos anos,
cer que houve um aumento do nível de a necessidade de registro das manifesta-
diversidade. Por isso dizemos que a glo- ções e da preservação do patrimônio his-
balização cultural produz ao mesmo tórico que, se não tiver muito cuidado na
tempo mais uniformidade e mais diver- divisão equânime, utiliza todos os recur-
sidade e que isto não é um paradoxo. sos destinados à cultura pelos governos
[...] O prejuízo para a diversidade sur- (pelo seu alto custo e enorme complexi-
ge, não pela simples presença da indús- dade).
tria em um segmento, mas quando a ocu- [...] O argumento que guia o livro de
pação de mercado por esta indústria vai George Yúdice foi bem expresso por ele e
sendo tão forte a ponto de provocar a nos traz um conceito para a reflexão. Ele
destruição dos elementos anteriormente diz que ‘os intercâmbios materiais locali-
presentes. Outro prejuízo visto é a pro- zam; os intercâmbios políticos interna-
dução em larga escala da banalização dos cionalizam e as trocas simbólicas globali-
elementos singulares. As indústrias cul- zam’ 5.
turais, o turismo, a gastronomia oferece Neste sentido a economia e política se
em larguíssima escala experiências globalizarão sempre e quando se volta-
transculturais que são verdadeiros simu- rem mais para a cultura. Nesse sentido,
lacros e conhecemos o mundo por meio além de saber que a cultura é frontal-
deles. Por um lado, abrem-se as portas mente atingida pela globalização, ela é
para que mais pessoas tenham contato ingrediente vivo para a realização global
com uma determinada prática, como a de todos os fluxos que neste ambiente
yoga (que está muito em moda desde que ocorrem. A cultura é base para se lançar
Madonna e outras artistas confirmaram à troca múltipla de referências e é o índi-
sua adesão), a comida tai, a dança fla- ce em que se nota mais sensivelmente as
menca, e em verdade muito se perde de alterações provocadas com estas rela-
sua filiação local. A experiência de mun- ções. Sempre foi assim, entretanto sem-
do se alarga, mas ela não consegue pre foi fácil reconhecer o exportador de
transpor todos os elementos característi- padrões cultos (França, Inglaterra, Por-
cos que desvendam profundezas de sua tugal, por exemplo). Hoje em dia o pa-
vivência.
5 Yúdice, George. Obra citada, página 45.

40
drão culto depende de um diálogo maior são os únicos à face da Terra a gozar de
das experiências internacionais com os tal privilégio’.
modos locais de experimentação da cul- Outra questão é entender se um pro-
tura. De algum modo os vetores passam duto da indústria global prejudica a ma-
pelas portas do Tio Sam, pelas condições nutenção da diversidade. As canções do
de desenvolvimento de sua indústria cul- Tiririca, cantor popular lançado há uns
tural, como a posse dos grandes canais anos atrás pela indústria, não prejudica-
de distribuição, ou pelas políticas inter- ram o surgimento do talentoso cantor
nacionais de proteção de sua indústria Renato Braz, ou inibiram a criação musi-
cinematográfica, de suas agências de no- cal do já consagrado Caetano Veloso. O
tícias, mas conhecemos mais do mundo. axé na Bahia não colocou de lado os tra-
Outra questão que deve ser objeto de balhos de Roberto Mendes e Vania Abreu
nossa reflexão está ligada à liberdade de e nem impediram o surgimento de novos
acesso a diferentes opções de cada cida- talentos, como a Banda de Boca da Bahia.
dão. Uma pessoa de nível econômico mé- Pelo contrário, os produtos de massa
dio, que tem possibilidade de fazer tu- acendem o processo de discussão da
rismo por vários locais, acha lindo uma própria indústria e da necessidade de se
aldeia produzir um tipo de comida ou reforçar o estímulo a novas manifesta-
ouvir um único estilo musical lá produzi- ções. Quando a prefeita de Olinda, Lucia-
do. Resta-nos refletir se as pessoas resi- na Santos, aplicou a lei que proibia a mú-
dentes nesta aldeia querem somente ter sica eletrônica no centro histórico da
acesso a sua produção local ou se deseja- cidade, medida fundamental para a pre-
riam escolher entre a oferta de outros servação daquele patrimônio cultural da
tipos de comida ou música ou, até quem humanidade, ocorreram dois efeitos si-
sabe, entre propostas apresentadas pelas multâneos: uma medida que protegeu o
grandes cadeias globais. Em poucas pala- carnaval tradicional da cidade, com mú-
vras será que o habitante de uma peque- sica característica, o frevo, e os blocos
na comunidade do interior do Maranhão históricos, mas principalmente o reaque-
não desejaria experimentar um chimar- cimento da discussão em torno de como
rão gaúcho ou, até quem sabe, um ham- celebrar as festas populares, com suporte
búrguer do McDonalds? Sobre esse as- em que tradições ou no apelo que escorre
sunto Arjun Appadurai escreve ‘o que da Bahia para todos os Estados.
para uma pessoa é a comunidade imagi- [...] Por fim, os produtos industriais
nada é para outra a prisão política’6. E o podem ser elementos para o estímulo
professor Alexandre Melo conclui ‘é pro- turístico de uma determinada região ou
vável que os habitantes de cada uma des- país. Todos sabem que o axé vem da Ba-
sas aldeias prefiram escolher entre meia hia e que ele simboliza “gingado” e ale-
dúzia de propostas apresentadas por gria. Sabedores disso, turistas de todo o
lojas de grandes empresas globais em vez mundo querem conhecer a Bahia. Isso se
de terem que se deliciar a vida inteira estende também aos habitantes brasilei-
com o mesmo pitéu, mesmo sabendo que ros, que vêm em Salvador e outros im-
portantes destinos deste Estado, oportu-
nidades de fugirem do seu dia a dia e re-
6 “One man’s imagined community is laxarem. Até o ritmo mais compassado da
another man’s political prison”. (Appadurai, vida do baiano é bem vendida como boa
Arjon. Globalization. Durham e Londres, estratégia de marketing; É o ambiente
2001, Duke University, página 32. Citado por
Alexandre Melo.

41
necessário a todos os que levam a vida nar recursos para esse setor de pesquisa,
agitada dos grandes centros. [...] de formação de platéia e para áreas que
O Brasil está numa rota privilegiada não podem e não devem depender do
para se posicionar dentro do cenário de mercado.
trocas simbólicas, pois é grande gerador Também defendo que os INCENTIVOS
dos seus próprios símbolos e seu merca- sejam estruturados para organizar a ca-
do interno é muito grande. Quando se deia produtiva, gerando emprego e renda
fala que os maiores geradores de conteú- para o setor. Há possibilidades de se re-
do musical para o mundo são Estados estruturar os mecanismos para – mais do
Unidos, Brasil e Cuba, nos damos conta que apoios efêmeros – serem aplicados
da interessante posição no meio destas de forma estruturante. Tudo isso para
sociedades tão diferentes. Nosso país dizer que concordo com as ponderações
dialoga em todos os sentidos e se firma do FREDERICO BARBOSA.
por méritos que escapam à análise socio- Por fim, nosso próximo diálogo será
lógica". sobre "Sistema Nacional de Cultura". A-
cho que teremos boa oportunidade de
Tudo isso é para dizer, respondendo à
pensar, nesse ponto, como poderia se
questão do HUMBERTO, que, claro, preci-
estruturar nossa política cultural e, feito
samos de FUNDOS e precisamos de IN-
isso, podemos voltar à pauta de critérios
CENTIVOS. Para se conseguir fundos de
para concessão de incentivos fiscais. E
maneira substancial e prioritária, defen-
com isso encerramos nosso segundo diá-
do a PEC de vinculação orçamentária que
logo.
direciona recursos para a área da cultura.
Só dessa forma conseguiremos direcio-

42
TERCEIRO DIÁLOGO

SISTEMA NACIONAL DE CULTURA

com Frederico Augusto Barbosa da Silva

43
SISTEMA NACIONAL DE CULTURA PNC, dada a sua abrangência e grande
número de prioridades. Neste sentido,
diálogos com não seria necessário estabelecer um re-
FREDERICO BARBOSA gime de colaboração mais preciso com
conteúdos institucionais mais concretos?
FR EDERICO Sei que o Programa mais Cultura tentou
- Até agora discutimos dois temas que se fazer algo nesse sentido, mas dele não
entrelaçam, direitos e financiamento da restou muito mais do que memórias.
cultura. O Sistema Nacional de Cultura Uma forma simples de se colocar o
(SNC) oferece-se, a meu ver, como con- problema do federalismo cooperativo na
ceito, mas também como instrumento de cultura é indicar a importância de equi-
garantia e realização dos direitos cultu- pamentos (instituições) culturais nos
rais e deveria ser a estrela-guia do finan- Estados e municípios e a necessidade de
ciamento da cultura. que desempenhem suas atividades em
Permitam-me colocar algumas ques- padrões de excelência, tanto no que toca
tões e vão desculpando minhas dificul- a investimento, mas também qualidade.
dades com a precisão e com a elaboração Imagino aqui os teatros, bibliotecas, mu-
de um texto escorreito e funcional gra- seus, cinemas e cineclubes, centros cultu-
maticalmente. Mesmo admitindo a já e- rais etc., mas também os muitos grupos
xistência de um sistema de cultura, tam- em atividade, pouco conhecidos nacio-
bém acredito que sua estrutura é disfun- nalmente em função da ausência de polí-
cional e objeto de ações ticas sistêmicas e das dificuldades de se
que, embora bem inten- FRED é mestre e doutor em Sociologia pela fazer políticas.
Universidade de Brasília (UnB), professor do
cionadas, são contraditó- Mestrado em Direito e Políticas Públicas no
Na área cultural
rias conceitual e estrate- Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e qualquer programa de
pesquisador do Instituto de Pesquisa Eco-
gicamente, algo justifica- nômica Aplicada (IPEA) pequena abrangência,
do no quadro da insufici- baixo nível de articula-
ência de recursos de todo o tipo, especi- ção e acesso ganha o nome de política e,
almente financeiros. sobretudo se ancorada em lei. Ademais,
A meu ver, gostaria de ouvi-los, a Fe- temos aqui o problema de alcance da
deração no Brasil ainda necessita se or- coordenação interfederativa, de sua ca-
ganizar para concretizar os direitos cul- pacidade de negociar e implementar di-
turais. Mas aqui não é suficiente definir retrizes ou objetivos na ausência de re-
os direitos a que temos direito, o HUM- cursos financeiros e de gestão poderosos.
BERTO e RODRIGO VIEIRA o fazem com ma- As comissões (ou os fóruns) de gestores
estria, mas definir objetivos e instrumen- das três esferas de governo foram articu-
tos para alcançá-los em nível federativo. ladas aos órgãos de participação, uma
Temos apenas elementos fragmentários solução parcial em outras áreas (lem-
de um federalismo cooperativo. bremo-nos da Saúde e da Assistência)
Evidentemente a Proposta de emenda para a negociação e mobilização política;
Constitucional – PEC que vincula recur- será que na área cultural elas deveriam
sos estabelece alguns elementos para um ter algum papel e se sim, quais seriam
desenho federativo, mas não podemos suas atribuições, inserção e condições
esperar sua aprovação em curto prazo, institucionais para mediar prioridades e
por razões políticas e econômicas. Tam- decisões?
bém não podemos esperar nada mais A solução mais simples para o país
preciso do Plano Nacional de Cultura – imenso é organizar o federalismo coope-

44
rativo, tentando conciliar gestão local ganhou reforço legal essencial com a edi-
com padrões nacionais. Um bom exemplo ção da Lei Complementar 140, de 2011,
nesse último sentido é o programa Cultu- não ajuda muito para a reflexão sobre o
ra Viva, agora política, mas entram aqui desenvolvimento dos três elementos a-
outros elementos, ou ausências: (i) de pontados por você. No caso do federalis-
sistema nacional de avaliação e de acom- mo ambiental, a situação atual é de risco
panhamento; (ii) de mecanismos redis- para os bens culturais localizados em
tributivos de recursos financeiros, de áreas objeto de licenciamento ambiental
gestão e humanos para regiões mais po- e para os direitos culturais de comunida-
bres; e (iii) de ações abrangentes de a- des indígenas, quilombolas ou tradicio-
poio para instituições e grupos, especi- nais que estejam nos arredores do futuro
almente, mas não apenas, aqueles rela- empreendimento objeto de licenciamen-
cionados à cultura popular. to. E as normas editadas pelos órgãos
Pergunto aos juristas e demais parti- públicos como Iphan e as portarias in-
cipantes, lembrando que a Constituição terministeriais apresentam falhas para
já prevê sistema e plano nacional e, in- proteção efetiva dos direitos e bens cul-
clusive sistema de avaliação, se é possível turais no contexto ambiental.
desenvolver aqueles três elementos, ou Não pretendo mudar de assunto ou
um regime de colaboração, através de Lei trazer a discussão para a seara ambien-
Complementar, ou se seria possível atin- tal. Longe disso! Mas minha colocação
gir parte dos objetivos através de Decre- tem por finalidade trazer a dificuldade da
tos e Portarias Ministeriais. comunicação entre o Sistema Nacional de
Em resumo, minha dúvida é se o de- Cultura e o Sistema Nacional do Meio
senvolvimento daqueles três elementos Ambiente.
dependeria inexoravelmente de mudan- Como poderíamos contribuir acade-
ças constitucionais ou se a escolha estra- micamente na reflexão sobre formas,
tégica por este caminho – a constitucio- para fortalecer os órgãos públicos e a
nalização – é de conveniência política. O participação da sociedade civil na prote-
que acham? ção da cultura? Ao pensar em federalis-
mo cooperativo cultural, devemos consi-
INÊS VIRGÍNIA derar o Sistema Nacional de Cultura de
- A questão posta no final do seu texto é modo autônomo (tendo a pensar assim),
ainda mais instigante para os pesquisa- ou atrelado a outros Sistemas já existen-
dores da área jurídica – “juristas” como tes (na temática ambiental, o Judiciário
você diz! – como eu, que, a partir do es- tende a considerar deste modo)?
tudo do direito ambiental, iniciei minha Enfim, esta minha participação no
aproximação com a temática do direito Diálogo parece não contribuir para escla-
cultural e aprofundei minha pesquisa em recer. Mas tenho aprendido muito com
patrimônio cultural (especificamente em nossas discussões. Por isso, aguardo an-
patrimônio arqueológico, ou seja, cultura siosa sua resposta.
material).
A compreensão do funcionamento do FRED
Sistema Nacional do Meio Ambiente – - Desculpe pelo “jurista”. A vontade de
SISNAMA, uma experiência de federalis- economizar na linguagem é irmã das
mo cooperativo que vem se aperfeiçoan- barbaridades. Infelizmente, ainda corro o
do desde a edição da lei de política na- risco de recair em outras tantas. Por fa-
cional de meio ambiente em 1981 e que vor, paciência!

45
Vejo que você selecionou um ponto tando por aqui). Faço uma escolha que é,
que articula questões da abrangência do a uma só vez, ética e ideológica, mas que
SNC e de suas relações com outros siste- tem uma dimensão profissional. Não vem
mas, especialmente o do Sistema Nacio- ao caso continuar por aqui.
nal do Meio Ambiente. O ponto articula- Seguindo na ideia de articulação dos
dor é o do papel da Lei Complementar. direitos políticos, sociais e ao desenvol-
Uma parte do seu argumento é afir- vimento sustentável (sei que forço a lin-
mar que estabelecida a Lei Complemen- guagem!), portanto, partindo de um todo
tar 140/2011, pouco se fez no sentido de coerente, mas especialmente da ideia de
elaboração de normas apropriadas, espe- vinculação do gestor público ao dever de
cialmente por parte do IPHAN, que fizes- agir de forma imediata e completa, a
se coincidir ação ambiental e preserva- produção normativa e as ações propria-
ção patrimonial em sua estrutura. Outra mente deveriam ser agenciadas de forma
questão associada é a de se saber se um adequada, respeitando a coerência das
sistema específico deve ser apreendido gerações de direitos. Entretanto, temos
como um sistema setorial ou um sistema vários limites estruturais para que tal se
de políticas. dê na prática.
Tento começar pelo último, tateando e A articulação dos direitos e de conjun-
simplificando. Peço a ajuda daqueles que tos normativos não é discursiva – embo-
dominam a linguagem técnico-jurídica. ra esse elemento seja importante – e en-
Em primeiro lugar, tenho trabalhado bas- volve qualificações específicas para a
tante com a ideia de Estado Cultural e produção de normas e de políticas ade-
seus limites, exatamente pensando no quadas. No âmbito das políticas, pouco se
que você está ponderando. O Estado Cul- conhece o que envolve o discurso e a re-
tural, do meu ponto de vista, estaria con- flexão do campo jurídico, sendo a lingua-
textualizado no quadro dos argumentos gem aqui bastante hermética ou com tec-
ajustados à defesa das liberdades políti- nicalidades pouco acessíveis. No âmbito
cas, das igualdades sociais e no direito de do discurso jurídico, pouco se conhece
as gerações futuras herdarem os desen- das especificidades e das exigências teó-
volvimentos – especialmente seus bene- ricas e empíricas da ação.
fícios – alcançados até o momento. No rol O que quero dizer com isso tudo? Que
entram conquistas educacionais, artísti- temos vários abismos estruturais, resul-
cas, estéticas, tecnológicas etc., e também tantes da organização setorial das políti-
o tratamento respeitoso com formas de cas e das dificuldades de interação entre
vida social e pessoal diferenciadas. linguagem jurídica e das políticas públi-
Neste sentido, o Estado Cultural deve- cas.
ria ser poderoso o suficiente para agir de Eu sintetizaria tudo com a afirmação
forma coerente com esses objetivos. Vem geral de que temos dificuldades de plane-
ao caso que o conceito de Estado está jamento racional de políticas setoriais,
indeterminado. Em geral, me refiro à planejamento que piora com políticas
construção institucional do campo da transversais; se deteriora um pouco mais
administração pública, mas concordo que quando se devem associar ações voltadas
este conceito pode ser ampliado para para o desenvolvimento com equidade,
alcançar a força dos mercados restritos igual respeito, garantia de direitos soci-
(campos sociais autonomizados onde se ais, sustentabilidade ambiental. O desen-
jogam tradições específicas) e ampliados volvimento é um conceito exigente em
(com as indústrias culturais se movimen- termos de ações intersetoriais. Como os

46
órgãos setoriais são distribuídos como com um objeto de ação específico, com o
moeda de troca das coalizões parlamen- manuseio de recursos escassos, resistên-
tares, já viu a dificuldade do planejamen- cias da realidade à sua ação, e tem pouco
to. domínio da linguagem técnico-jurídica,
O problema é amplificado, quando é ou de uma visão política global, oferecida
exigido que as ações sejam colocadas na pelas filosofias políticas, em geral tradu-
linguagem do direito. A articulação entre zidas em filosofias jurídicas. O operador
princípios, regras e normas de políticas do direito7 relacionado à ação pública
públicas é um desafio sem igual. Pode- está preocupado com a coerência lógico-
mos falar, por um lado, de colisão de formal e com controles formais da ação.
princípios, necessidade de hierarquizá- O formulador de normas, que serão
los, de regra de otimização da ação, de suporte das políticas, em geral, não dis-
diferimento no tempo e tudo o mais, e põe de recursos para o entendimento do
por outro falar de regras, segurança jurí- que está em jogo em certos enunciados
dica, interpretação convencionalista etc., de política e, então, os enunciados são
mas o problema para mim é termos uma genéricos e pouco claros; ou o formula-
frágil institucionalidade, exatamente pela dor simplesmente aceita algumas de suas
incapacidade de mediação e coordenação premissas, sejam elas relacionadas à sua
da atuação Estatal pelo direito. O direito formação profissional e às suas preocu-
entre nós, a meu ver, tem fraca capacida- pações ideológicas, a exemplo do peso a
de de legitimar a ação pública racional, ser conferido à segurança jurídica, dando
seja na direção do status quo ou da críti- pouca atenção às exigências do contexto
ca. de aplicação, com a aceitação de formula-
Vou dizer uma barbaridade, mas fica ção de conjuntos normativos de baixa
no tom polêmico. Ao invés de ser base densidade política e social. À norma-
organizacional de visões de mundo para quadro (de novo peço venia pela lingua-
organizar a ação, o direito passou a ser gem e argumentação pouco técnica) ou
uma arquitetura de regras, muito mais faltam suportes materiais e sociais ou
preocupado em limitar discricionarieda- seus conteúdos são limitados e impreci-
des (controles realizados de forma sele- sos.
tiva) do que estimuladores da criativida- Então, começo a responder à primeira
de estatal, política e da discussão racio- questão, preparada por mim para res-
nal. pondê-la nos meus próprios termos. Sis-
Mesmo no caso de elaboração de boas tema setorial ou sistema de políticas?
normas de políticas setoriais (leis, decre- Para mim o Estado Cultural deveria ser
tos, portarias etc.), temos outro proble- um Estado ampliado na direção de valo-
ma, qual seja, o da fraca base social e ins- rização da participação política de todos
titucional para movimentar ações ade- os grupos sociais, com distribuições (ou
quadas no território. Ou seja, as normas prestações poderosas), e que permitisse
orientam, oferecem-se como linguagem, ações institucionais de transmissão do
dão certa segurança, delimitam quadros patrimônio e da riqueza simbólica para
gerais, mas têm um excedente de sentido as próximas gerações. Para isso precisa-
em relação ao que é possível fazer. São ríamos de políticas patrimoniais, artísti-
idealizações sem instrumentação concre-
ta.
Trocando em miúdos, o quadro técni-
7 Os “operadores” são muitos e diferente-
mente posicionados, mas ficarei com a asser-
co de um órgão público está preocupado tiva geral.

47
cas, de memória e de reconhecimento processo decisional que permita estabe-
mais fortes, bem como de políticas edu- lecer a mobilização de atores, mas peca
cacionais, urbanas, ambientais, sociais pelo abismo entre as linguagens diferen-
etc. mais amplas e poderosas. Não temos ciadas e da capacidade de tradução ou
sequer um Estado Cultural em sentido agenciamento político mais substantivo
restrito – o que dirá um que responda às das normas. Enfim, é difícil generalizar,
questões propostas pelas políticas de mas, como provocação, tentei enfatizar o
saúde, educação ou ambientais? Relacio- problema de uma democracia de baixa
no esse elemento com uma crise do direi- intensidade, capital humano com forma-
to e de sua incapacidade de oferecer des- ções especializadas (para não dizer pior)
crições e depois formulações complexas e o problema – central dos ajustamentos
sobre o papel do direito na ação social. jurídicos – de uso abusivo de conceitos
Aceito a crítica de que exagero e que indeterminados.
talvez o direito nunca teve e nunca deve-
ria ter tido a pretensão que aponto. Con- HUMBERTO
cordo que não dá para isolar e responsa- - Este diálogo sobre o Sistema Nacional
bilizar o direito completamente, mas sim de Cultura começa muito forte no nível
a nossa capacidade global (e institucio- da reflexão e, portanto, pressupõe o co-
nal) de pensar o mundo politicamente. nhecimento prévio do esboço constitu-
Por fim, pensar em sistema de política cional para ele formulado pela Emenda
não é apenas argumentar, criar o mundo Constitucional nº 71/2012, que acrescen-
na doutrina, mas criar condições institu- tou o Art. 216-A, à Constituição de 1988.
cionais para que tenhamos ações coor- Falo de esboço porque, se fôssemos às
denadas em forma de sistema. Estamos fábulas para explicar a situação, eu diria
longe de almejar algo nesse sentido com que essas normas constitucionais acres-
um sistema de planejamento, avaliação e centadas assemelham-se ao plano dos
participação social fragmentado e pouco ratos de colocar o chocalho na cabeça do
institucionalizado. Tenho pouco a dizer gato, como estratégia de alarde e auto-
de leis que carecem de inúmeras outras proteção. Falta a parte operacional!
leis e complexa rede de interpretações Quem a fará? Como a fará? Quando a fa-
para tornar-lhes operacionais. rá? E o difícil dela – concordo com você –
Bom, sei que fui longe demais e tam- é decorrência da indefinição conceitual
bém que fui um pouco abstrato. Foi o de se saber se as políticas de cultura po-
entusiasmo. dem ser tratadas em um sistema, em vá-
INÊS, espero que esta argumentação rios ou até em todos, hipóteses tão cheias
faça sentido. A Lei Complementar de pressupostos e consequências, que
140/2011 sofre, a meu ver, de alguns dos renderiam, como estão a render, várias
problemas que levantei. Além do que teses acadêmicas.
você apontou em relação ao patrimônio, Todavia, em seu discurso, FRED, há al-
ainda carrega opacidades inúmeras no go que me chama a atenção, muito for-
próprio modus operandi no campo ambi- temente: a responsabilização do Direito
ental, caso da definição de competências pelos males das políticas, quando você
do licenciamento ambiental. O mesmo fala de hermetismo, tecnicalidades, ex-
problema acontece com a Lei Comple- cesso de limitações, generalidades e au-
mentar 141 da saúde. sência de clareza. A esse respeito, venho
Enfim, o papel da Lei Complementar é defendendo uma vitalidade própria do
central, a meu ver, como parte de um direito, mas advertindo que ele é forte-

48
mente configurado pela política, pela disputas. Assim, minha resposta ao seu
cultura e por todos os demais campos questionamento sobre qual a espécie
das relações humanas. Assim, penso que normativa adequada para, em face ao
muitas das culpas que ao Direito são a- SNC, serem feitos acompanhamento, ava-
tribuídas o são pelo simples fato de ele liação, redistribuição de recursos e reali-
ser o mensageiro da política, que tam- zação de ações, não descartaria, no atual
bém produz, por exemplo, decisões con- quadro, todas as hipóteses de normas
traditórias, protelatórias, incoerentes e por você citadas e até outras mais; isso
que, de algum modo, recebem até mesmo porque o excesso normativo tende a ge-
um tratamento corretivo pelo Direito, rar os mesmos efeitos da escassez, den-
por meio da suposta característica da tre os quais a constante substituição da
coerência do ordenamento jurídico. Sim- vontade das leis pela vontade dos ho-
plificando: se formos buscar as origens mens, como já debatia Platão.
dos defeitos apontados por você, chega- Nesse momento em que toquei repe-
remos mais fartamente a fontes diferen- tidamente na palavra excesso, gostaria
tes do próprio Direito, como em dado muito de saber a sua opinião, enquanto
momento você próprio reconhece. pensador e analista de políticas públicas,
Reforçando a argumentação que visa a sobre o texto do art. 216-A da Constitui-
enxergar a justa medida das culpas que ção de 1988, que instituiu o Sistema Na-
tem o Direito, eu pergunto: como imagi- cional de Cultura: ele está na justa medi-
nar uma opção política por uma demo- da, é deficitário ou excessivo?
cracia de imprensa livre, que oferta a
possibilidade de fiscalização do patrimô- FRED
nio público por todos os cidadãos e por - Os desafios propostos nestes diálogos
várias instituições, num ambiente em que são pessoalmente imensos. Tanto para
os governantes em permanente guerra selecionar as questões, que têm inúme-
partidária, e que se sustentam por maio- ros desdobramentos, quanto para encon-
rias artificializadas e, ademais, aparecem trar um ponto e redigir sobre ele sem
degradados na opinião pública, sem que desvios. Esse processo é demorado e não
o Direito seja fortemente limitador de tenho considerado que as formulações
discricionariedades?! Da resposta que que tenho feito sequer toquem com al-
venha a ser dada para esta questão se guma profundidade e precisão os pontos
tira a diferença de ser e estar, porque a propostos, ou melhor, entre aqueles es-
limitação é da natureza do Direito, mas o colhidos dentre tantos passíveis de de-
excesso lhe é apenas circunstancial. senvolvimento. Enfim, preferi manter as
Essas premissas nebulosas da situa- respostas em sua precariedade e provi-
ção política deixam o ambiente com pou- soriedade a reformulá-las, perdendo o
ca visibilidade e, como os fatos que as tempo dos diálogos.
geram ocorrem em mar constantemente A respeito do direito, certamente, pe-
revolto, qualquer tábua que passe à fren- co muito pelo tom e por carregar para a
te dos náufragos parece ser a da salva- reflexão não apenas um conceito, mas um
ção; considerando que a madeira mais contexto profissional com qual dialogo o
abundante em nosso sistema é a das leis, tempo todo, e que é constituído por um
feitas inclusive de forma mágica, como direito técnico e formalista. Costumo
ocorre com as medidas provisórias, o brincar que lido com um direito que diz
direito acaba sendo constantemente le- não, ao invés de estimular a argumenta-
vado à parte mais visível do teatro das ção rigorosa e a resolução criativa de

49
problemas jurídicos. Por isso, só tenho veis. Para muitos, o sentido da linguagem
que me desculpar pelo tom polêmico e a é um referente; não é criar, não tem um
promessa de uma futura reflexão mais sentido modificador, mas é descrever
aprofundada a respeito das relações do algo, seja estados de coisas, ações ou o
direito com a política pública. A minha sentido mesmo da linguagem ou de con-
única justificativa e, ainda aqui, pouco juntos de normas, posto na forma de e-
desenvolvida, é a lembrança de que os nunciados. A linguagem deveria, então,
“operadores” em linguagem jurídica são retratar o estado das coisas e do próprio
muitos, entre o juiz abstrato, o decisor de pensamento. Entretanto, um léxico, uma
primeira ou terceira instância, tribunais frase, um discurso não significa o mesmo
superiores, AG´s, TC´s, Defensores, advo- para atores diferentes, ainda porque são
gados etc.; as diferenças são imensas e realizados de diferentes posições estru-
nem sei se tratamos do mesmo direito. turais. Portanto, a linguagem pode ser
Então, farei uma escolha, tentarei di- percebida por seus usos. Os sentidos são
zer algo a respeito do excesso, que pare- os usos.
ceu uma crítica global ao meu próprio O caráter performático, fazer existir,
discurso, e para isso vou dar uma longa nem sempre o objeto, mas a si mesmo
volta, prometo que volto, mas certamen- como sujeito, mudar o estado das coisas
te não conseguirei responder se o art. por atos de linguagem, ou atos institu-
216-A da Constituição de 1988, “está na cionais são práticas de produção de sen-
justa medida, é deficitário ou excessivo”. tidos. Dizer que um programa existe im-
Imaginemos o direito como uma lin- plica em problemas relacionados ao no-
guagem e que ele se tece como uma rede me próprio, talvez ao nome do pai. O que
de imagens, crenças, ideias, valores, axi- o nome indica? Quais suas relações com
omas e escolhas morais. O trabalho analí- as qualidades constitutivas de um Siste-
tico sobre a linguagem permite a redução ma Nacional de Cultura (SNC), por exem-
dos excessos aproximando de enuncia- plo? Dizer o nome próprio implica em
dos de sentido preciso, mas imaginemos reconhecer, dar sentido, criar laços sim-
que grande parte do trabalho criativo se bólicos, agrega atores em crenças co-
dá em torno do processo analógico e me- muns. Podemos situar o SNC no campo
tafísico, portanto, sempre carregando um das palavras vagas, redes de metáforas
excesso de sentido ou algo de retórico. que o constituem (direitos culturais, ava-
Portanto, leio suas considerações como liação, informações, recursos humanos,
parte do debate platônico contra os sofis- comissão, conselho etc.), mas para além
tas, grupo com o qual me identifico. Uma do caráter performático das falas sobre o
última justificação que este problema SNC, o que são efetivamente os compo-
tem homólogos nas ciências que são ci- nentes constitutivos do programa8?
ências que lidam com conceitos semanti-
camente abertos. Então em frente.
A linguagem expressa o limite do que 8 Uso da analogia entre políticas públicas e
se pode dizer. Dizer com precisão signifi- paradigmas para descrever as relações entre
ca estabelecer sentidos claros, e sobre o os planos mais abstratos e discursivos, suas
opções e operações reais. As políticas públi-
que está além da linguagem há o silêncio.
cas carregam sentidos ideológicos e materiais
Jogos sociais, estratégias, movimentos a um só tempo e, políticas frágeis não são
táticos, a ação irracional baseada em va- capazes de resolver os problemas que entra-
lores últimos são elementos que estão ram no seu quadro de referências e soluções.
Esta analogia vem da sociologia e da análise
nos bastidores, são opacos, não são visí- de política públicas francesa, bastante sensí-

50
Deixa que eu mude um pouco o foco desde a facilitação das prestações de con-
do meu discurso. O artigo 216-A pressu- tas até a gestão de conhecimentos; c)
põe valores e objetivos a serem realiza- Estado como simples transferidor de re-
dos. O SNC é um instrumento para resol- cursos financeiros e acanhado desempe-
ver problemas públicos e, por isso, para nho na avaliação e acompanhamento.
além da entrega de direitos, o Estado Portanto, a direção da coordenação é
deve resolver uma sequência de proble- múltipla. Evidentemente podemos ter
mas, ou deve agir em sequenciamento de sistema com todas estas características.
ações de forma coordenada. Muitas vezes um sistema acomoda con-
Os problemas são hiatos entre uma tradições. Mas, nesse sentido, qualquer
imagem da realidade e o que ela efetiva- conjunto de ações formaria sistema. Qual
mente constitui. A delimitação de pro- seria o uso da palavra, então?
blemas não descarta o caráter subjetivo, Ataquemos um último ponto, o espaço
processual ou simbólico da realidade, do excesso. O problema mais central da
mas remete à possibilidade de coordena- metáfora, desafio para as teorias da lin-
ção das ações, buscando maior efetivida- guagem, é saber como ela difere de enun-
de e, mesmo, eficiência. Se o imaginário ciados ou emissões de sentido literal. A
associado ao SNC não descarta a inten- metáfora aponta para um excedente de
cionalidade, senão a intencionalidade significações de uma emissão literal9.
burocrática do Estado e econômica dos O problema todo é saber o que os fa-
mercados, não descarta as possibilidades lantes (do SNC) tentam comunicar e por
de coordenação dos atores no quadro de que não dizem o que queriam significar.
ações sequenciadas e planejadas. Por que não funciona bem para alguns e
Escolhemos uma metáfora: a dos Sis- funciona bem para outros? A primeira
temas para exemplificar o problema. Dele parte da resposta tem uma inspiração
derivamos uma série de elementos. Em searleana: a metáfora tem um significa-
primeiro lugar, não existe uma forma de do, para o falante, que se distingue do
descentralizar, participar, desenhar con- significado das sentenças e palavras. As
selhos, fundos ou de distribuir recursos, metáforas requerem, para terem sentido,
pois as demandas específicas para cada um conhecimento do contexto de crenças
um dos termos parecem muito diferen- e um compartilhamento de suposições de
tes. As conexões entre os elementos do base entre ouvinte e falante.
sistema parecem frouxos. Os dispositivos Os significados das sentenças são dife-
tecnológicos e instrumentos de políticas rentes das intenções do falante, as sen-
parecem pouco eficazes e pouco estrutu- tenças não têm sentido literal, mas a co-
rados em qualquer sentido, seja nas rela- municação ainda assim acontece. Searle
ções entre Estado-sociedade ou de socie- aponta a ironia e atos de fala indireta
dade-sociedade. O potencial de coorde- como exemplos de ruptura do sentido
nação das ações ainda é pouco explorado. literal em relação às emissões; entretan-
A reconfiguração e a disponibilização to, ainda aqui o que se quer significar
de meios têm múltiplos sentidos: a) po- depende das sentenças.
tencialização das conexões entre atores Evidentemente, quando se diz que o
de forma horizontal; b) gestão estatal de SNC não tem estruturação consolidada,
recursos de informação que poderia ir

9 Não nos esqueçamos de que há outras


vel à produção de sentidos própria da políti- formas de sentença cujo sentido excede os
ca. sentidos literais, a exemplo da ironia.

51
podemos dizer que a emissão tem um corretamente descrever como ‘baixa’10”.
sentido literal. Ao dizer que é metafórico, Para Searle, a repetição constante de
queremos dizer algo diferente. Quando uma metáfora implica na tradução de
sugeri que o SNC é uma metáfora, dei um sentido, na repetição em outros termos, e
sentido específico: havia um excedente sempre custa uma perda, mesmo expres-
de significações que precisava ser mais sando boa parte do conjunto de condi-
bem qualificado e, em segundo lugar, o ções e verdade. Não utilizo a metáfora em
conceito não tinha precisão tipológica ou sentido tão delicado, apenas para expres-
descritiva. Para a razão prática (raciocí- sar que a metáfora do SNC tenha usos
nio de entremeio, por definição) esta imprecisos e retóricos. De qualquer for-
questão é irrelevante e basta que a metá- ma, o “significado de uma palavra é o seu
fora produza efeitos simbólicos de crença uso”; a ideia de sistema expressa certas
e ação, para sua efetividade. Entretanto, o afinidades e comunidades de crença, não
que importa na discussão do artigo 216- carecendo de maiores análises.
A, no momento, é que o conjunto de sen- A ideia do SNC passou a se constituir
tenças responda a algumas condições de em metáfora morta11 pelo efeito dos usos
verdade definidas temporal e contextu- rotineiros. Todavia atende a necessida-
almente. Como se diz, “O SNC é composto des semânticas da comunidade de políti-
de conselho, fundo, plano e mais algumas ca estabelecida em torno do SNC. Nas
coisas”. Mas também aqui é opaco o limi- tentativas de precisar seus sentidos evi-
te, ou a ausência de critérios, para saber dencia-se um excedente importante de
se um sistema se constituiu, ou se já está significados em relação ao que está no
constituído pelo texto constitucional. texto constitucional. O significado não
Mesmo estabelecendo um conjunto de está no léxico e também não esta na sen-
condições de verdade, o pano de fundo, tença, mas no falante, no seu contexto e
as suposições de base não estão estrutu- no campo semântico que mobiliza poten-
radas. Em realidade, o sistema é mais um cialmente. Entretanto, se o texto da CF
“termo atributivo”, que define condições tem uma força vinculativa importante
genéricas, mas sem a delimitação do pa- para o Estado, quando se traduzem seus
no de fundo factual sobre que tipo de conceitos em enunciados descritivos,
coisas o falante esta se referindo. Eviden- vemos que estamos em déficit com qual-
temente, podemos afirmar que ele está quer conceito de institucionalização efe-
falando de políticas e instrumentos de tiva do sistema.
políticas culturais garantidas pelo poder
público. MÁR IO
Mas temos que concordar que estes - Compartilho a preocupação da INÊS e
conceitos (ou quase conceitos) não defi- queria seguir na esteira do patrimônio
nem factual nem analiticamente os atri- cultural. Penso que o patrimônio cultural,
butos do Sistema. Também aqui os limi- a reboque da discussão do Sistema Na-
tes não são muito claros. Como afirma cional de Cultura – SNC, também deveria
Searle: “uma mulher pode ser correta- ser objeto de uma pactuação própria (a
mente descrita como ‘alta’, ainda que seja despeito do entendimento majoritário de
mais baixa que uma girafa que se poderia
10 Searle, J.R. Expressão e significado: estudo
da teoria dos atos de fala, São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
11 Searle, J. R. Ob. cit. pp. 133.

52
que é um bem ambiental, a política de Dessa forma, deveria ser objeto de um
patrimônio existe desde a década de 30 processamento técnico-político em sepa-
do século passado), através de um Siste- rado. Este processamento seria uma pac-
ma Nacional de Patrimônio Cultural – tuação dos delineamentos gerais de um
SNPC, com participação dos entes federa- Sistema Nacional de Patrimônio Cultural
tivos e da sociedade civil. Essa é, aliás, a (SNPC) com os entes federativos e socie-
proposta (não é isso, FRED ?): compreen- dade. Outro aspecto problemático é tra-
der o SNPC como um subsistema do SNC? tar o SNPC como um sistema dentro do
Um dos problemas, a meu ver, é como SNC ou como subsistema.
implementar isso. O próprio IPHAN já O quadro geral da reflexão proposta
liderou algumas discussões a esse respei- indica que as duas questões deveriam ser
to, mas não conseguiu avançar. Existem tratadas no quadro de uma reflexão polí-
alguns problemas com relação a esse tica a respeito das conexões do SNPC com
entendimento, que vão justamente no a federação, fazendo refletir as indefini-
ponto que a INÊS tocou. ções do pacto federativo tal como está
Como mencionei, havia uma proposta posto atualmente; ou, alternativamente,
(no meu entender, superficial) de que o definindo outro pacto que melhor deli-
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural neasse competências e, provavelmente,
seria apenas uma reafirmação do pacto fontes e distribuição de recursos.
federativo, mas sem criar atribuições Outra linha da contextualização pro-
e/ou regras de compartilhamento de posta se refere ao reconhecimento da
competências entre os entes, tal como desigual distribuição de capacidades ins-
existe (ainda que de forma problemática) titucionais entre as esferas federativas de
no Sistema do Meio Ambiente. Uma das governo. Esse último fato, por si, indica-
preocupações em se estabelecer um pac- ria não apenas a necessidade em um me-
to federativo mais profundo (que criasse lhor delineamento na distribuição de
regras de compartilhamento) era de que atribuições, mas também na responsabi-
seria extremamente problemática a “de- lização de cada nível de governo, na pro-
legação” de uma competência (como se dução e desenvolvimento daquelas capa-
ela fosse exclusiva) e expertise de mais cidades.
de 70 anos do órgão federal (IPHAN) aos Essas questões são difíceis. Como im-
órgãos estaduais e municipais, que ou plementar um pacto em torno de redefi-
são inexistentes ou não têm, sequer, es- nição de competências e distribuição de
trutura para implementar uma política recursos? Ou como desenhar novas re-
dessa natureza. gras federativas para o patrimônio? Te-
Em resumo, cogitava-se a ideia, inclu- nho algumas hipóteses, todas elas com-
sive, de se editar um decreto para institu- parativas. Em primeiro lugar, vou partir
ir o SNPC, ao invés de uma lei comple- do pressuposto de uma demanda fecha-
mentar. Como você enxerga um “acordo da, isto é, temos direitos ao patrimônio e
de cavalheiros” como esse, FRED? Esse a intervenções mais ou menos sistemáti-
receio é justificável? cas no tempo sobre um conjunto limitado
de bens materiais e imateriais a serem
FR ED objetos de proteção e revitalização. Nes-
- Em primeiro lugar, entendo que seu se caso, conseguimos delinear objetivos
argumento parte de alguns pressupostos. de intervenção: a) estabilizando o que
O primeiro deles é que o patrimônio tem será objeto de intervenção em um tempo
uma tradição institucional e autonomia. dado; e b) estabelecendo montantes es-

53
timados de recursos necessários; c) esta- da primazia temporária de um dos entes
belecendo regras de ampliação do con- governamentais.
junto de objetos e dinamismos que com- Evidentemente, cada questão poderia
põem o patrimônio. Deve ser enfatizado ser objeto de definições mais explícitas e
que todas essas definições são políticas e de distribuições específicas, a exemplo
demandam um nível de articulação e dis- do papel da União em territórios indíge-
cussão focada e de alta intensidade. nas.
Nesse caso, da delimitação adequada Evidentemente, a carga de conflitivi-
de um conjunto de ações a serem priori- dade e os jogos estratégicos continuari-
zadas, podem-se delinear objetivos e am, mas as regras do jogo poderiam estar
prazos a partir de critérios de necessida- mais bem definidas. Entretanto, vejo aqui
des. Um conjunto fechado de bens, locali- um papel muito interessante na técnica
zados do território e passíveis de uma de produção de documentos jurídicos e
avaliação a respeito de recursos necessá- quase-jurídicos para a coordenação dos
rios para a intervenção intencional, per- atores. Não acredito que no agenciamen-
mitem uma pactuação de assertivas ge- to de ações deste tipo, ainda mais em
rais a respeito de responsabilidades e caso de não serem sistêmicos, mas con-
fontes de recursos, inclusive, permite que juntos de ações em forma de projetos,
estratégias diferenciadas sejam postas por exemplo, tenhamos que ter defini-
em marcha para os entes federativos, ções em forma de leis ou decretos, basta-
segundo capacidades diferenciadas em ria acordos escritos, portarias etc. O que
termos institucionais e de recursos. acho importante é o processamento téc-
No segundo caso, o de demandas a- nico-político, e a redação de documentos
bertas e de baixa possibilidade de serem com certa preocupação com a exaustivi-
estimadas e objetivadas em metas e tem- dade.
poralidades, acredito que o discurso dos Voltando à questão do sistema, aqui já
direitos tenha primazia, sem que ações apontando um sentido adicional, qual
estruturantes se desenvolvam. Assim, é seja o de sistema sem arquitetura norma-
possível a pactuação de outro conjunto tiva forte (leis, decretos etc.) acredito
de critérios. mesmo que os processos de agenciamen-
Nesse sentido seria possível o deline- to são fundamentais. A discussão do
amento de níveis de complexidade das SNPC foi objeto, na minha percepção, de
intervenções patrimoniais, assim impli- resistência do campo patrimonial, e os
cando na redefinição de categorias de anais do encontro de Ouro Preto mos-
intervenção patrimoniais, por nível de tram uma estratégia de pulverização e
complexidade e de recursos. Fomento de tratamento localizado de temas que de-
grupos e redes, criação de equipamentos, veriam, a meu ver, serem tratados em
intervenção no patrimônio edificado iso- linguagem técnico-jurídica e política. Os
lado ou em conjuntos, ações e interven- anais retratam um mundo de ações e
ções no contexto urbano, ações de patri- questões heterogêneas quase indicando
mônio imaterial, patrimônio ambiental, que o sistema é fazer cotidiano de ações
arqueológico (em suas formas várias), que formam sistema e não como uma
formação continuadas de técnicos etc. arquitetura formal-racional de atores
poderiam ser objeto de discussões políti- com competências e níveis de atuação
cas e estruturação de processos de des- bem delimitados. Imagino aqui uma opo-
centralização, desconcentração e, mesmo sição entre o método formal-objetivo e
dialético-pessoal.

54
O primeiro neo-tomista, que vai deli- ticas estruturadas. Então, chegamos per-
mitando, totalizando e tramando compe- to da questão central. Como implemen-
tências numa arquitetura de uma casa de tar?
muitos cômodos, e o segundo método, A resposta clássica de quem planeja é
mais experimental, que vai indo no caso a saber escolher entre alternativas. Para
caso. Para a primeira formação é indife- tal, é necessário um processamento ade-
rente ser o patrimônio um sistema autô- quado das opções, a profissionalização da
nomo ou subsistema, desde que as cone- gestão e que os fóruns de participação
xões normativas amarrem as paredes em sejam capazes de fazer sínteses impossí-
uma estrutura única e articulada dinami- veis direcionados às possibilidades práti-
camente. Seja como for, os cômodos se cas. O cenário é promissor, mas os espa-
ligam de formas diferenciadas na escolha ços de pactuação estão longe de serem
entre sistema autônomo e subsistema. capazes de dar respostas claras a estes
No contexto cultural de pulverização e dilemas.
do “é se fazendo coisas de forma pontual Enfim, não respondi diretamente, mas
que se faz sistema” ou do “faz o que dá acredito que os acordos que não têm a
pra fazer”, que representa um ceticismo perspectiva da escala, da abrangência, ou
em relação à ampliação de recursos glo- que sejam ligados a uma frágil institucio-
bais e uma epistemologia pós-moderna, nalização podem ser promissores, mas
qualquer pactuação mais geral é impos- no quadro de uma visão estratégica de
sível. médio e longo prazo.
Então, qual é a estratégia mais ade- Acredito que os prazeres da cultura
quada: ampliar os recursos e depois fazer ainda são proporcionados pelo espetácu-
o sistema, quando os recursos e meios lo proporcionado pela visão imediata das
forem mais transparentes (e aqui imagi- ideias gerais e do “faz o que dá”, mas a
no que se deva esperar a PEC da vincula- maturação e a sedimentação de orienta-
ção), ou discutir os pactos federativos e ções já começaram e ainda é normal o
delimitá-los com maior precisão em leis? tatear pelo terreno de tantas complexi-
Imagino um cenário de entremeio. É dades.
possível que as estratégias mais eficazes
se refiram à formação intensiva de gesto- FÁBIO
res e profissionais para a atuação nos - É impossível não comentar, toda vez
Estados e municípios. Acho que esta foi a que pegamos esta leitura, como elas cor-
linha de atuação do MinC, não tenho cer- rem de forma bacana, instrutiva e des-
teza. Neste caso, acredito na forte centra- comprometida. Adoro este nosso forma-
lização de atribuições para a União, no to!
que se refere aos recursos financeiros e Quero deixar aqui algumas questões, e
técnicos, bem como na formação de ca- não tenho respostas para nosso amigo
pacidades e recursos humanos nos Esta- FREDERICO: caberia alguma divisão de
do e Municípios. competência dos entes federados em
Como apontou HUMBERTO, os jogos po- matéria da cultura? Digo, pois, isso na
líticos continuam e embaralham qual- educação e na saúde isso ficou bem re-
quer tentativa de ordenação da ação. A solvido, mas na cultura a competência é
pulverização de recursos entre inúmeros concorrente pras três esferas, o que gera
projetos e editais é elemento que dificul- anomalias: deveria a União ter um teatro
ta a realização de políticas em médio e de 90 lugares para apresentações? Ou os
longo prazo, ou, mais precisamente, polí- equipamentos culturais deveriam per-

55
tencer aos municípios? Perguntas que deve ser ainda é opaco para a grande
deveriam ser feitas e que ajudariam guiar parte dos gestores públicos. Entretanto,
o Sistema Nacional de Cultura. Concordo você me faz um questionamento que me
com uma das ponderações que nem tudo leva para outro registro argumentativo.
precisa estar regulado, mas também O funcionamento efetivo da cultura se
quando nada está regulado, fica uma a- dá no território, no município que é onde
narquia e falta de propósitos enorme. se desenvolvem as ações concretas de
Outro debate que é espinhoso, mas política, que é onde se situam os equipa-
muito interessante, é sobre o modelo de mentos, as instituições etc. Quais seriam
governança dos equipamentos culturais. os papéis dos níveis federativos na ges-
O Estado de São Paulo adotou, com abso- tão de equipamentos e quais os modelos
luto sucesso, a gestão de seus equipa- de governança mais adequados para eles.
mentos por Organizações Sociais. Isso Não sou nada reticente em nenhuma
tem se mostrado alternativa com enorme área, à participação da sociedade civil na
ganho de eficiência pelas organizações, implementação de ações públicas. Na
ficando o Estado somente no desenho cultura é mais fácil falar disso, pois aqui a
das metas e políticas gerais. Eu acho esse autonomia da sociedade é uma arma ide-
modelo, quando respeitado e bem orga- ológica poderosa, mesmo em situações
nizado, de um resultado enorme em ter- nas quais é usada politicamente ou em
mos de políticas públicas. Seria ele uma casos que é parte do argumento na apro-
solução para as três esferas da federação priação de recursos, inclusive por gru-
de modo a deixar o Estado no controle da pos, vamos dizer assim ligados às “cultu-
política e a gestão operacional na mão da ras populares”.
sociedade? Entretanto, acho que nós concorda-
Por fim, eu particularmente apoio a mos o Estado tem um papel forte no for-
PEC da cultura, claro. De todo modo, me talecimento de “uma cultura da cultura”
parece mais importante ver resolvidas afinal, se os mercados são importantes,
essas diretrizes para, no momento de se seu funcionamento sem regulações pode
ter mais recursos, guiar o formato de significar o aumento de desigualdades e
mais eficiência na aplicação do recurso exclusões e no empobrecimento das con-
publico. dições de desenvolvimento das sociabili-
dades, das possibilidades de exercício de
FR EDERICO prazer estético e fruição cultural.
- As questões anteriores de INÊS, MÁRIO e Por que estou indo por aqui? Porque
HUMBERTO, embora diferentes, estão mui- vejo que os equipamentos culturais ofe-
tos ligadas e, inclusive agora, você coloca recem ocasião para as sociabilidades,
mais uma camada de questões e um tem- sejam essas relacionadas à cultura culta
pero novo. Argumentei em algum ponto ou aos mais simples momento de encon-
antes a respeito de escala e abrangência tro. Não ficaria apenas com a ideia de
da política e também lembrei da necessi- gestão, ou estrutura de governança do
dade de uma forte institucionalização das teatro, mais lembro das praças, espaços
políticas. Enfatizava a característica de abertos, bibliotecas, circos, centros cultu-
base das nossas políticas culturais que é, rais, museus etc.
a meu ver, a de uma frágil institucionali- Entendi a provocação e gosto dela. Eu
zação, não se considera na administração diria que São Paulo encontra respostas
pública que as políticas culturais tenham que podem ser dadas em nenhum outro
forte apelo ou necessidade e o que ela lugar no Brasil. São Paulo faz coisas que

56
só podem ser feitas ali. Os contratos de te exigiria estratégias e ações estruturan-
gestão na área da saúde são um exemplo tes por parte das instituições capazes de
paulista, mas não sei se consolidou como formar público e socializá-los nas formas
modelo; o papel das redes dos pontos de legítimas de cultura;
cultura é outro exemplo peculiar, mas b) O Estado Cultural (segundo senti-
não sei se generalizável para outros luga- do) seria parte de processos de uso da
res. Na área dos museus também se fez cultura como recurso para outros fins e
um movimento similar ao que você apon- não apenas da institucionalização da cul-
ta em termos de governança da socieda- tura como campo com valores específi-
de civil, mas o governo federal manteve cos. Vários são objetivos aqui a exemplo
certa distância reticente. Eu me lembro, da produção de emprego e renda, mobili-
inclusive, de uma pesquisa que coordenei zação política e coesão social. Aqui os
no Instituto Brasileiro de Museus – I- incentivos e o fomento seriam feitos à
BRAM no qual se apontava uma pequena produção de ações mais difusas, tais
abertura da área museológica para as quais, produção criativa de indivíduos
possibilidades que você aponta. (artistas), associações, grupos e coletivos
Sou favorável a toda forma de gestão culturais, cadeias e arranjos produtivos
flexível, desde que garantidos os direitos sem a preocupação de estruturações de
sociais e controles da qualidade dos gas- espaços onde os públicos fariam a comu-
tos públicos e dos seus usos. E não vejo nicação com a produção simbólica.
nenhum problema em gestão por metas Então temos duas formas de Estado
ou resultados, também não vejo proble- Cultural. Um Estado Cultural passivo, no
mas na gestão de instituições culturais sentido de que reconhece e sabe o que é
pela sociedade civil. legítimo e tenta oferecer condições de
Entretanto, sabemos do uso de formas acesso e noutro caso o Estado Cultural é
mais ágeis de gestão na captura de recur- ativo, tentando elaborar ofertas adequa-
sos e com resultados estranhos. E tam- das às ideologias móveis, aos interesses e
bém acredito que nesse nível da argu- desejos de sociabilidade dos indivíduos.
mentação não a modelos universalizá- Não dá para ficar com as duas formas de
veis. Também sei que o debate a respeito Estado como pólos semânticos absolu-
de gestão é objeto de forte preconceito e tamente opostos e tomá-los como opções
ideologização sem sentido, do meu ponto ideológicas excludentes.
de vista. Por exemplo, é razoável que todos os
Acho o seguinte, voltando para minha municípios tenham uma biblioteca pelo
forma habitual de argumentar, o funcio- menos? Em termos típicos, a resposta do
namento do Estado Cultural pode ser Estado passivo seria sim. Fizemos essa
interpretado de diferentes maneiras: discussão por aqui. Defendi que esta
a) O Estado Cultural (primeiro senti- premissa é condicional. Biblioteca sem
do) deveria universalizar a produção de leitor, ou deveríamos ter um tipo de e-
bens e serviços culturais com forte insti- quipamento que estimulasse a leitura em
tucionalização e pressupondo a abran- composição com outros tipos de ativida-
gência territorial e cobertura social; a de. E também defendi que o importante
direção das ações é a de construção insti- era ter “inteligência local” para a gestão
tucional intensiva o bastante para mudar do equipamento.
a situação das desigualdades de acesso; o Portanto defendi universalismo, mas o
Estado Cultural seria parte de políticas Estado Cultural passivo. Para o teatro a
cujo ideário republicano e democratizan- discussão era similar e eu disse que o

57
mais importante era ter grupos teatrais é a ideologia mais adequada para ser de-
sendo fomentados e com acesso a circui- fendida no nosso quadro de carências
tos de apresentação transmunicipais. estruturais e das nossas dificuldades co-
Como o consorciamento de municí- letivas de reflexão.
pios não estava na pauta, propus que Mas também acredito que idealmente
alguns equipamentos não fosse conside- temos que aprender a dar respostas para
rados em termos municipais, mas em cada questão específica. Cada instituição,
termo de micro ou mesmo região. forma de equipamento e cada situação
A meu ver, estava imaginando uma es- social exigirão respostas diversas e darão
trutura de governança federativa dife- soluções diferentes à questão federativa.
rente, porque a demanda vinha de al- Foi assim na saúde e na educação. Na
guém que queria mais Estado passivo, sombra das estratégias globais, os ritmos
mas eu imaginava muito mais que deve- da descentralização, formas de gestão e
ríamos imaginar instituições ou equipa- modalidades de transferência de recur-
mentos culturais multifuncionais, com sos e competências foi muito variado. No
gestão flexível e adequada à presença de SUS, para além da forte centralização
grupos e demandantes específicos. Então, normativa do MS, tivemos uma criativa e
no segundo caso, a cultura seria recurso complexa arquitetura de descentraliza-
para outros fins, envolvendo dizer que a ção da gestão por níveis de complexida-
cultura tem finalidades que não são cul- de, acompanhada de igualmente comple-
turais no sentido do acesso a bens cultu- xa forma de pagamento por procedimen-
rais específicos e de natureza estética ou tos e complementarmente de transferên-
artísticas, mas se relacionam com a ofer- cias fundo a fundo por tipos de ação, ní-
ta de recursos materiais na forma de tra- veis de complexidades etc. Na educação,
balho, salário ou transferências públicas, as mudanças conceituais do FUNDEF pa-
mas muito mais importante, a cultura ra FUNDEB, as compensações, as estraté-
oferece recursos de coesão social. gias mais ou menos centralizadas rela-
Se for o caso é possível afirmar que as cionadas á distribuição do livro didático,
instituições pensam, ou deveriam pensar á merenda, ao transporte etc., também
e que é possível lembrar que elas podem acompanham um plano de voo.
aprender a pensar a partir da heteroge- Tudo pode ser objeto de crítica nessas
neidade dos públicos e da heterogenei- políticas, evidentemente, sobretudo se
dade de estratégias para ajustamento de olhamos a qualidade de alguns dos seus
oferta de bens simbólicos aos desejos dos resultados, mas o mais importante é que
públicos. Assim, a atuação estratégica das com um plano é possível criticar com
instituições culturais significaria mapear, critérios e não de forma retórica, é possí-
conhecer, coordenar ações com os públi- vel ponderar e comparar.
cos e fazer uso criativo do que é ofereci- O que me incomoda na área da cultura
do pelos diferentes grupos sociais e artís- é que parece que estamos na fase da a-
ticos. cumulação primitiva, mas sem acúmulo,
Bom, CESNIK, foi ótimo aceitar sua tudo aqui está sempre começando.
provocação, minha inserção profissional Novamente peço desculpas pela pres-
é complicada e nem sempre posso ou sa da resposta. Gostaria de acumular
tenho paciência para escrever com a li- mais exemplos sobre os equipamentos e
berdade que estou fazendo. Aceito todos sobre as políticas de saúde e educação,
os valores presentes na ideia do Estado mas foi o que consegui neste domingão
Cultural passivo e universalista. Acho que de frio, véspera de viagem.

58
GONZAGA não se dão na lógica do "tudo ou nada"
- Caros colegas, por questões (sempre) daquela que se dá às regras.
ligadas a excesso de trabalho somente Gostei muito, quando FREDERICO se re-
consegui ler estas linhas tão ricas hoje fere a um direito do "não". Nos Direitos
(20 de julho, dia do amigo – um abraço a Autorais se dá exatamente assim: na era
todos) pela manhã. E, se é possível, per- do "sim" (tecnologia e compartilhamen-
mitam-me dizer (chove aqui no Rio to), a regulação continua na velha lógica
Grande do Sul há uma semana, com exce- do século XIX do "meu", ou do "não".
ção de sábado) que me senti um "peixe Finalmente, mais uma vez, se me é
fora d'água" (por não ser tema de refle- permitido, é o Rio Grande do Sul que faz
xão direta minha). Mas este é outro coisas que ninguém faz, e não São Paulo.
grande mérito da proposta liderada pelo Brincadeira mesmo, para descontrair
HUMBERTO. Aprendi mais uma vez muito! numa segunda-feira! Já que falamos em
Gostei muito do tom dado pelo FREDE- (e)Estado, como o nosso está literalmen-
RICO, no sentido de que o Direito é (como te "quebrado" financeiramente, talvez
de fato é) linguagem. Como professor de diminuamos nosso sentimento de "nação
Teoria do Direito (Filosofia, Hermenêuti- gaúcha".
ca), somente ouso discordar, quando ele Parabéns mais uma vez ao HUMBERTO,
fala em "hierarquização de princípios", já ao FREDERICO, e a todos. Maravilhosa a
que sabidamente (Robert Alexy, Ronald proposta e o formato. E as contribuições
Dworkin, entre tantos), a (im)possível todas muito fundamentadas.
resolução os conflitos entre princípios

59
QUARTO DIÁLOGO

DIREITO AO (DO) PATRIMÔNIO CULTURAL

com Inês Virgínia Prado Soares

60
DIREITO AO seria essencial o uso do termo Direito ao
(DO) PATRIMÔNIO CULTURAL Patrimônio Cultural.
A pesquisa apresentada no livro era
diálogos com muito pautada nos dispositivos constitu-
INÊS VIRGINIA PRADO SOARES cionais e seus impactos na legislação in-
fraconstitucional, porém não seria hones-
INÊS VIRGÍNIA to falar de Patrimônio Cultural Constitu-
- Amigos, a escolha do título do meu li- cional ou Constituição Cultural no título,
vro, “Direito ao(do) patrimônio cultural porque o leitor não encontraria subsídios
brasileiro”, foi um capítulo à parte da suficientes para um aprofundamento do
minha pesquisa, que gostaria de compar- conhecimento nessa perspectiva. No má-
tilhar com vocês, como mote para iniciar ximo, aportes incipientes.
nosso diálogo. "Direito ao Patrimônio Cultural Brasi-
Eu queria um título que valorizasse o leiro"; "Direito do Patrimônio Cultural
direito coletivo de acesso a todos os bens Brasileiro"; "Direito aos bens culturais e
culturais que integram o rico patrimônio proteção do patrimônio cultural brasilei-
brasileiro, mas, ao mesmo tempo, tinha ro"; esses títulos me soavam incomple-
ambição de destacar e valorizar a impor- tos. Não me agradavam. A escolha veio
tância desse conjunto de bens materiais e com a junção nada harmônica – concordo
imateriais culturais para as próximas – de "ao/do".
gerações. Para os leigos, a minha explicação da
Pensei em usar o escolha do título é bem mais simples: não
termo sustentabilidade, INÊS é doutora em Direito pela Pontifícia gosto de passar vontade
Universidade Católica de São Paulo (PUC),
no entanto, me pareceu pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisa
e queria dois títulos e a
muito ligado ao direito Arqueologia da Resistência solução foi juntar o
(CNPq/IFCH/UNICAMP) e procuradora da
ambiental. E eu não que- República (MPF) "ao/do". Para a editora,
ria que pairasse qual- eu expliquei que eu ha-
quer dúvida sobre a minha posição de via sonhado com esse título e que seria
que o direito do patrimônio cultural era bom seguir os sonhos.
autônomo e sua aproximação com o di- O que vocês acham? Mimo, sonho, es-
reito ambiental era por necessidade e colha técnica ou tudo junto?
conveniência, nunca por dependência.
A abordagem do livro não era sobre o MAR COS W ACHOWICZ
direito ambiental cultural, termo que - Bem, esta é a minha primeira participa-
sempre me incomodou. E a maior prova ção nos diálogos, que estão indo real-
dessa desvinculação foi a proposta e a- mente muito bem.
presentação de princípios próprios para Com relação ao título, realmente foi a
direcionamento da preservação e prote- melhor solução juntar "ao/do", pois re-
ção dos bens culturais. Esses princípios, força a ideia e a importância do acesso ao
bem como a abordagem dos instrumen- patrimônio cultural. Valorizando o direi-
tos protetivos, somente fariam sentido to coletivo de acesso aos bens culturais,
em um cenário jurídico que acolhesse e tema muitas vezes mitigado pela legisla-
possibilitasse a participação ativa da so- ção de propriedade intelectual.
ciedade na tutela do patrimônio cultural. Em minha opinião ficou bem com a
Nesse aspecto, o livro se afastava estra- junção.
tegicamente da visão de direito adminis- Abraço.
trativo. E minha impressão foi de que

61
INÊS rial e garantam o acesso de todos. E os
- Sua colocação é muito interessante, instrumentos do Registro do bem imate-
porque destaca ao mesmo tempo a insu- rial como Patrimônio Cultural Brasileiro
ficiência de legislações pautadas pela (Decreto 3.551/2000) e o de Indicação
especialização (como é o caso da legisla- de Procedência e de Denominação de
ção de propriedade intelectual ou da le- Origem têm, desde então, se mostrado
gislação sobre patrimônio genético) para relevantes (Resolução INPI nº 075/2000)
o acesso coletivo (direito ao...) e mesmo em muitas situações.
para a preservação do bem cultural (di- Nesse enfoque, sob o olhar do acesso
reito do...). Desde já destaco que não coletivo, notamos no Brasil uma situação
questiono a importância e a necessidade que merece atenção dos que lidam com a
de tais legislações. Apenas entendo que, proteção das formas de expressão e de
muitas vezes, nos casos práticos, estas viver: a combinação dos títulos de patri-
não leis bastam. Parafraseando Ferreira mônio cultural brasileiro (fornecido pelo
Gullar (a arte existe porque a vida não IPHAN por meio do Registro) e do selo de
basta): “a construção doutrinária em di- indicação geográfica (fornecido pelo IN-
reitos culturais existe porque as legisla- PI). A junção desses dois instrumentos é
ções não bastam”. particularmente útil para situações de
Começo com o conhecido exemplo da práticas produtivas, rituais e simbólicas
Viola de Cocho: o reconhecimento da que não tenham origem identificável ou
tecnologia desenvolvida para confecção que estejam presentes em diversas loca-
da viola de cocho (declarada em 2004 lidades ou regiões do país.
como patrimônio cultural brasileiro e São muitos os exemplos dessa dobra-
inscrita no livro de Registro de Saberes dinha “Registro/ Selo de Indicação Geo-
do IPHAN) ocorreu após a tentativa, em gráfica”, no reconhecimento do valor cul-
1996, de registro da marca “Viola de Co- tural e econômico dos ofícios: a) Ofício
cho”, junto ao INPI, por um particular. das Paneleiras de Goiabeiras, registro
Nesse clássico exemplo, a utilização do pelo IPHAN em 2002; e Indicação de Pro-
Registro para tutela das criações tecno- cedência pelo INPI em 2011; b) Modo
lógicas artesanais (que também podem artesanal de fazer queijo de Minas, nas
ser consideradas um bem cultural decor- regiões do Serro, da Serra da Canastra e
rente do exercício dos modos de fazer, do Salitre, registro pelo IPHAN, em 2008;
criar ou viver) veio rechaçar a intenção e Indicação de Procedência pelo INPI em
de apropriação individual de uma tecno- 2012 (para os municípios de Piumhi,
logia, pelo registro de uma marca junto Vargem Bonita, São Roque de Minas, Me-
ao INPI. Preservado assim o direito deiros, Bambui, Tapirai e Delfinópolis);
ao/do patrimônio cultural. c) Modo de fazer Renda Irlandesa de Di-
O inverso também aconteceu na vina Pastora, registrado pelo IPHAN em
mesma época, com a reversão do proces- 2009; e Indicação de Procedência pelo
so de reconhecimento da propriedade INPI em 2012; d) Produção Tradicional e
intelectual. Desde os emblemáticos casos Práticas Socioculturais Associadas à Ca-
do registro da marca Rapadura nos escri- juína no Piauí, registro pelo IPHAN em
tórios de marcas e patentes dos Estados 2014; e Indicação de Procedência pelo
Unidos e da Alemanha e do patenteamen- INPI também em 2014.
to do cupuaçu no Japão, tivemos clara a Esses exemplos ilustram a complexi-
necessidade de diálogo entre instrumen- dade existente no tratamento da propri-
tos que preservem o bem cultural imate- edade coletiva de saberes tradicionais e

62
servem para demonstrar que as situa- tradicional oral, documentado ou regis-
ções de reconhecimento e proteção de trado de outras formas, já é debatida há
bens imateriais coletivos exigem um apa- muito tempo, e que os países asiáticos
rato normativo e administrativo que con- sempre defenderam a posição da neces-
sidere as características peculiares de sidade de repartição dos benefícios de-
cada caso. Em 2005, Marcia Sant'anna já correntes de tal acesso, já que não se po-
apontava a dificuldade que ainda per- de presumir que os conhecimentos tradi-
dura nos dias de hoje sobre a tutela dos cionais que podem ser publicamente a-
bens imateriais coletivos, ressaltando cessados não pertençam a ninguém. A
que; citada ambientalista destaca que:
“O problema da defesa de direitos re- “A questão do acesso ao conhecimento
lacionados à propriedade coletiva de co- tradicional em domínio público continua
nhecimentos, padrões e técnicas tradi- a ser debatida no Comitê Intergoverna-
cionais vem sendo discutido em nível mental sobre Propriedade Intelectual,
internacional de modo sistemático há, Recursos Genéticos, Conhecimento Tra-
pelo menos, 10 anos, tendo como princi- dicional e Folclore da Organização Mun-
pais fóruns a Organização Mundial de dial de Propriedade Intelectual (OMPI).
Propriedade Intelectual – OMPI e a U- Além disto, os países podem incluir em
NESCO. Contudo, uma vez que o tema, suas leis nacionais a obrigação de repar-
especialmente no plano internacional, tição de benefícios nos casos de conhe-
envolve interesses econômicos e acordos cimentos tradicionais em domínio públi-
comerciais importantes entre países, até co ou compartilhados por várias comuni-
o momento não se chegou ao consenso dades, e adotar diferentes soluções para
sobre como tratar essa questão - se por tais situações.
meio da adaptação de instrumentos do Entre as propostas em discussão
sistema existente de proteção à proprie- no referido Comitê da OMPI está a possi-
dade intelectual ou se mediante a criação bilidade de se incluir os conhecimentos
de um sistema jurídico sui generis, adap- tradicionais em um regime de “domínio
tado às características desses bens cultu- público pago” (domaine public payant),
rais e baseado no conceito de proprieda- que já é adotado em alguns países para
de intelectual coletiva”12. proteção de expressões de folclore e de
culturas tradicionais (OMPI, 2010; Ruiz
As divergências e o distanciamento de
Muller, 2013 e Carneiro da Cunha,
consenso são mais fortes, quando se ten-
2001)”13.
ta regrar o acesso e exploração dos cha-
mados conhecimentos tradicionais difu- Falando em leis locais, no Brasil, foi
sos ou de domínio público. Tema desafi- promulgada recentemente a Lei nº
ador, que guarda uma estranha intimida- 13.123/2015, que visa a regular o acesso
de e relação com a propriedade intelec- e a exploração econômica dos recursos
tual, realçando o papel da OMPI para genéticos e conhecimentos tradicionais
formulação dos melhores arranjos. Julia-
na Santilli argumenta que a questão do
acesso ao conhecimento tradicional em
13 SANTILLI, J.; SANTILLI, J. F. R. Patrimônio
genético e conhecimentos tradicionais asso-
domínio público ou ao conhecimento ciados: instrumentos jurídicos nacionais e
internacionais. In: Paul E. Little. (org.). Os
Novos Desafios da Política Ambiental Brasilei-
12Políticas públicas e salvaguarda do patri- ra. Brasília: Mil Folhas do IEB, 2014, v. 1, p.
mônio cultural imaterial, p. 13. 124-176.

63
associados à biodiversidade e à agrobio- Fundo Nacional para a Repartição de Be-
diversidade. Essa legislação foi discutida nefícios (art. 31), que deve ser regula-
por muitos anos enquanto vigia a Medida mentado nos próximos anos.
Provisória 2.186-16/01 e é voltada espe- Portanto, MARCOS, há momentos que
cificamente à tutela dos conhecimentos precisamos mergulhar profundamente
das comunidades tradicionais, dos povos nas legislações específicas, para garantir
indígenas e dos agricultores tradicionais. o direito do patrimônio cultural, outra
Aqui cabe mencionar a novidade das vezes realizar uma orquestração de leis e
definições legais de conhecimento tradi- princípios para promover o direito a esse
cional associado (art. 2°, inc. II) e de co- mesmo patrimônio. No outro instante, já
nhecimento tradicional associado de ori- é o contrário: o direito ao... exige um foco
gem não identificável (art. 2°, inc. III), estreito; e o direito do... quer a combina-
que, longe do contexto de acesso a bens ção de muitas normas.
para exploração econômica, podem ser-
vir para subsidiar as ações para garantia HUMBERTO
de continuidade de práticas culturais - Eu também gosto do engenhoso título
tradicionais que se revelam como patri- do seu livro, pois o acréscimo de um mo-
mônio para determinada comunidade. nossílabo conferiu a ele, de fato, dois títu-
Sob o ponto de vista econômico, essa los, ambos muito pertinentes com o con-
nova legislação prevê a obrigação de re- teúdo da obra.
partição de benefícios (art. 17 e seguin- Mas quero aproveitar a oportunidade
tes), que podem ser, conforme art. 19, para fazer perguntas resultantes das mi-
monetários ou não monetários (por e- nhas fortes inquietações e dúvidas que se
xemplo: transferência de tecnologias; agravam, quando estudo e reflito sobre a
disponibilização em domínio público de matéria. Vou começar pelas questões
produto, sem proteção por direito de mais básicas: gostaria de saber se é pos-
propriedade intelectual ou restrição tec- sível identificar, na história da humani-
nológica; licenciamento de produtos livre dade, quando e onde normativamente,
de ônus). Certamente, os estudiosos em em termos jurídicos, surgiram os coman-
conhecimentos tradicionais e em propri- dos para a proteção do patrimônio cultu-
edade intelectual terão muitas reflexões ral, bem como os fundamentos para que
e pontos a ajustar. ela fosse realizada.
Dentre os desafios para os juristas e
pesquisadores, a fórmula equilibrada INÊS
para atender ao dispositivo que prevê a - Essa questão que você coloca é essen-
obrigação de repartição com a União de cial para compreendermos a situação
benefícios auferidos com a exploração atual da proteção jurídica do patrimônio
econômica de produtos tradicionais, ori- cultural no Brasil, especialmente para
undos de comunidades tradicionais não refletirmos como o tratamento jurídico
identificáveis, demandará um grande es- dos bens culturais se expandiu desde as
forço. Tecnicamente, estamos falando de primeiras legislações europeias, e como
exploração econômica de produto aca- soubemos trazer o conceito de patrimô-
bado ou de material reprodutivo oriundo nio cultural para a realidade brasileira.
de acesso a patrimônio genético ou co- Vou fazer dois recortes, para lhe res-
nhecimento tradicional associado de ori- ponder: trabalharei com a proteção jurí-
gem não identificável. Para viabilizar a dica do patrimônio no ocidente; e com a
recepção dos valores, a lei estabelece um proteção jurídica do monumento históri-

64
co, já que este conceito de monumento braram a preservação de antiguidades
histórico é, no dizer de Françoise Choay, nacionais como um dever patriótico –
“uma invenção, bem datada, do Ociden- forma moderna de cultura declarativa,
te”. Tomando emprestadas as palavras da para falar como Jean-Claude Passeron. As
citada historiadora, esse conceito foi ex- destruições de toda espécie foram para-
portado com sucesso e progressivamente lelamente qualificadas, de maneira gené-
se difundiu fora da Europa, a partir da rica, como Vandalismo”17.
segunda metade do século XIX14. A preservação e proteção contra des-
Ainda sobre o conceito de monumento truição não estava voltada, desde o final
histórico, Françoise Choay destaca, com do século XVIII e primeiras décadas do
base em Riegl, a diferença entre monu- século XIX, apenas a bens culturais belos
mento e monumento histórico, sendo o e raros, mas também a toda cultura ma-
primeiro “uma criação deliberada cuja terial que trouxesse o apelo à lembrança
destinação foi pensada a priori, de forma e proporcionasse a compreensão da tra-
imediata, enquanto o monumento histó- jetória da civilização e de sua herança
rico não é, desde o princípio, desejado e (Poutot cita o esforço de François Guizot,
criado como tal; ele é constituído a poste- que viveu entre 1787 a 1874, para colo-
riori pelos olhares convergentes do his- cação dessa visão numa perspectiva his-
toriador e do amante da arte, que o sele- tórica18).
cionam na massa dos edifícios existentes, A experiência do século XIX, na Fran-
dentre os quais os monumentos repre- ça, por exemplo, foi de proteger o patri-
sentam apenas uma pequena parte. Todo mônio depois da Revolução Francesa.
objeto do passado pode ser convertido Nesse momento, já se percebeu a com-
em testemunho histórico sem que para plexidade e a dificuldade de preservação
isso tenha tido, na origem, uma destina- do patrimônio material, tanto das cole-
ção memorial. […]. O monumento históri- ções de bens móveis, que necessitavam
co relaciona-se de forma diferente com a ser inventariados e selecionados, como
memória viva e com a duração”15. da conservação dos bens imóveis, que,
Esse conceito de monumento históri- muitas vezes, precisam ter novos usos.
co entrou nos dicionários franceses na Assim, a partir de 1880, aparecem na
segunda metade do século XIX16, mas já Europa e na América legislações em con-
era usual na França desde a criação do sonância com as urgências protecionistas
cargo de inspetor dos Monumentos His- das sociedades, com construção de um
tóricos, pelo Ministro do Interior, em aparato legal mínimo para preservação
1830. No dizer de Dominique Poutot, a dos vestígios culturais que explicassem a
“França da primeira metade do século civilização (ou para a preservação de
XIX foi, por excelência, o lugar de elabo- monumentos históricos e objetos e vestí-
ração progressiva e muitas vezes confli- gios de valor histórico, artístico, arqueo-
tante dos valores patrimoniais – em opo- lógico ou cultural). Esses bens móveis ou
sição, especificamente, ao direito de pro- imóveis passam a ser vistos como rele-
priedade. Em toda parte da Europa, os vantes para os avanços na educação e na
liberais descobriram e, em seguida, cele- ciência. Como destaca Poulot: “no final do
século XIX, por toda a Europa a literatura

14 Alegoria do Patrimônio, p. 25 17 Uma história do patrimônio no Ocidente, p.


15 ob. Cit., p. 25/26 26.
16 CHOAY, p. 28 18 Ob. Cit, p. 37

65
do patrimônio confundia-se mais ou me- A Constituição brasileira, de 1934, a-
nos com a denúncia das perdas constata- bordou a defesa global do patrimônio
das e com uma tipologia histórica das histórico, reconhecendo sua titularidade
destruições, ou seja, pavor e denúncia. pública23, e contemplou os direitos soci-
Essa mobilização forneceu-lhe seu prin- ais, que passaram a integrar a base teóri-
cípio íntimo de engendramento, ao ritmo ca e positiva do Estado Social brasileiro.
das perdas denunciadas na 'caixa de Em seu art. 10, III, atribuía à União e aos
poupança' do progresso da humanidade Estados a competência para proteger as
(a imagem encontra-se na obra de Char- belezas naturais e os monumentos de
les Péguy)”19. valor histórico ou artístico, cabendo ao
A edição de leis para proteger os mo- Poder Público impedir a evasão de obras
numentos e outros bens culturais mate- de arte. No art. 148, atribuiu à União, aos
riais coincide com a criação do Estado- Estados e aos Municípios o dever de pro-
Nação. E o passo seguinte foi incorporar teger os objetos de interesse histórico e o
essa preocupação com a preservação do patrimônio artístico do país.
patrimônio cultural nas Constituições. Nos dispositivos da Constituição de
Assim, o tratamento constitucional do 1934 e seguintes (de 1937, 1946 e de
patrimônio cultural ocorre no início do 1967 ou na EC 1/69), apesar da menção à
século XX, com realce para as Constitui- tutela das belezas naturais, ainda não há
ções Mexicana, de 1917, Soviética, de qualquer previsão a um direito funda-
1918, e Alemã, de 1919. Esta última teve mental ao acesso e fruição dos bens eco-
influência sobre as Cartas produzidas lógicos ou culturais, ao menos na dimen-
entres as duas grandes Guerras Mundi- são que estes adquirem no Estado demo-
ais20, inclusive na Constituição brasileira, crático de direito, como bens coletivos ou
de 1934. de interesse social/coletivo. Porém, to-
No plano infraconstitucional europeu, das as Cartas brasileiras, antes de 1988,
pode-se mencionar o Decreto de 26 de tratam da obrigação de proteção do pa-
maio de 1911 e o Decreto nº 20.985, de 7 trimônio cultural (bens materiais, geral-
de março de 1932, de Portugal21. E, tam- mente ligados ao patrimônio histórico) e
bém: a Lei nº 185 de 12.06.1902, da Itá- dos recursos naturais pelo Poder Público,
lia; a Lei sobre os Monumentos Históri- o que já gerava para os indivíduos e a
cos, de 31.12.1913, da França; e o Decre- coletividade um direito subjetivo (que a
to-lei de 09.08.1926, da Espanha (Con- partir de 1965 podia ser exercido, por
forme citado por José Eduardo Rodri- exemplo, via Ação Popular).
gues22). A previsão de tutela dos elementos in-
tangíveis do patrimônio cultural também
não está na Constituição de 1934, nem
19 ob. Cit, p.27.
nas Cartas seguintes, até a de 1988. Mas
20 Joseph Ballart Hernández e Jordi Juan i
esse assunto também era presente desde
Tresserras, Gestión del patrimonio cultural, p.
87 a década de 1920, sendo tema de refle-
xão no meio intelectual e político, nas
21 José Casalta Nabais e Suzana Tavares da
Silva, Direito do Património Cultural- discussões para elaboração do Decreto-
legislação, 2. ed. Almedina, 2006, p. 281. Lei 25/37, conhecido como Lei do Tom-
22 O patrimônio Cultural nos Documentos bamento.
Internacionais, in Estudos de Direito do Pa-
trimônio Cultural, José Eduardo Rodrigues e
Marcos Paulo de Souza Miranda (autores), 23 José Afonso da Silva, Ordenação constitu-
Editora Forum, 2012, p. 290. cional da cultura, p. 39.

66
Essas discussões, que antecederam a as décadas de 1930 a 1950, os movimen-
edição do Decreto-Lei nº 25/37, estavam tos políticos, sociais e econômicos nas
sob influência do movimento modernista, diversas regiões do mundo e o surgimen-
em uma conjuntura sociocultural que to de novos atores no quadro mundial
buscava a valorização da identidade bra- trouxeram abordagens mais abrangentes
sileira. A essa conjuntura somaram-se a de cultura e conduziram à busca de ins-
repercussão da crise econômica mundial trumentos efetivos para a salvaguarda
na arena interna e a própria mudança dos recursos naturais e culturais essenci-
socioeconômica, com o fortalecimento da ais para manutenção da qualidade de
elite industrial e comercial, que marcava vida. Este período foi marcado pela con-
nova fase do capitalismo em nosso País. solidação de alguns princípios e diretri-
Como lembra Maria Coeli Simões Pires, zes para a tratativa do patrimônio cultu-
“A história registra que, na década de 30, ral que até hoje são balizadores das polí-
o fortalecimento da elite industrial e co- ticas públicas e da atuação para proteção
mercial marcou nova fase do capitalismo dos bens culturais (e também para os
em nosso País, com repercussão na cul- ecológicos, embora nesse tempo ainda
tura. O enfraquecimento dos laços de não existisse a menção ao direito ambi-
dependência com o exterior, ocasionado ental).
pela grave crise mundial, possibilitou a Pode-se mencionar, como exemplo
revalorização dos elementos constituti- dessa consolidação no âmbito normativo,
vos da identidade cultural nacional. Foi três “Cartas de Atenas” que apresentam
nesse período que o escritor Mário de princípios válidos hoje na defesa dos
Andrade foi convidado pelo então Minis- bens culturais: a de 1931, produzida pelo
tro da Educação, Gustavo Capanema, a Escritório Internacional dos Museus (So-
elaborar anteprojeto de lei que visasse à ciedade das Nações, órgão antecessor da
proteção estatal do patrimônio, consoan- Unesco); a de 1933, originária do Con-
te expusemos em capítulo próprio. E, já gresso Internacional de Arquitetura Mo-
ali, para Mário de Andrade, as manifesta- derna – CIAM; a de 1937, IV CIAM. Vale
ções artísticas não se esgotavam nos ob- citar a menção de José Eduardo Rodri-
jetos e monumentos”24. gues sobre o princípio da precaução (ou
Foi nesse contexto que Mário de An- a semente deste princípio), ao realçar
drade aceitou o convite para redigir um que a Carta de Atenas de 1931 “elenca,
anteprojeto de lei para a proteção do entre seus princípios gerais, item I, a ne-
patrimônio cultural brasileiro (que se cessidade de se evitar reconstituições
transformou, com os ajustes, no Decreto integrais de monumentos, pela manuten-
25/37). Naquele tempo, sua concepção ção regular e permanente dos bens cultu-
de patrimônio já abarcava os bens cultu- rais, numa verdadeira antecipação do
rais imateriais: as várias formas de ex- princípio da precaução hoje consagrado
pressão e manifestação do povo brasilei- no Direito Ambiental Internacional.”25.
ro; os elementos da identidade brasileira, A destruição causada pelas duas
mesmo que sem suporte físico (bens in- grandes guerras mundiais foi sentida nas
tangíveis em sentido estrito); as artes décadas seguintes e serviu para desper-
“não-eruditas”, dentre outros. tar sobre a importância da valorização do
Além da edição da Lei de Tombamen- patrimônio cultural e da inserção dos
to no Brasil, no plano internacional, entre
25 O patrimônio Cultural nos Documentos
24 Da Proteção ao Patrimônio Cultural, p. 85. Internacionais..., Ob. cit, p. 291.

67
direitos culturais no rol dos direitos hu- ção de outros bens culturais (especial-
manos. Maria Cecília Londres Fonseca diz mente bens intangíveis), a proteção na-
que: “a expressão direito cultural surgiu quele momento era voltada ao patrimô-
pela primeira vez na Constituição sovié- nio cultural mais palpáveis/cotidianos,
tica de 1918, mas só foi reconhecida, em com a valorização de bens que poderiam
nível internacional, na Declaração Uni- servir de referência para entender o pas-
versal dos Direitos do Homem, da ONU, sado, viver o presente e lidar com o futu-
em 1948 (art. 22). A formulação dessa ro.
demanda como direito só se tornou pos- As duas décadas seguintes à II Guerra
sível depois que a instrução e a educação representaram, para os direitos e bens
(esta entendida como Bildung como for- culturais, uma etapa de assentamento
mação) passaram a ser consideradas institucional e de progresso no âmbito
bens necessários a todos e não apenas organizativo e profissional. E a percepção
interesse de alguns. Na verdade, foram do patrimônio cultural como merecedor
certas condições específicas do segundo de tutela em face de projetos desenvol-
pós-guerra que levaram à formulação vimentistas ganha consistência, especi-
dos direitos culturais enquanto direitos almente a partir da Carta de Veneza, de
humanos. Por exemplo, a extinção do 1964.
colonialismo e o surgimento de Estados Esta Carta traz uma nova abordagem
independentes em áreas de colonização para patrimônio histórico. Em seu artigo
europeia, que precisavam reconstruir primeiro, alarga a compreensão de mo-
uma cultura própria; o aumento do con- numento histórico para além da criação
sumo de bens culturais, em decorrência arquitetônica isolada, com a abrangência
do maior acesso à educação formal e do do ambiente urbano ou paisagístico que
desenvolvimento dos meios de reprodu- constitua o testemunho de uma civiliza-
ção técnica; a antropologização do con- ção particular, de uma evolução significa-
ceito de cultura, que passou a abranger a tiva ou de um acontecimento histórico.
atividade humana em geral, e as manifes- Essa noção, porém, como fica desta-
tações de qualquer grupo humano, o que cado no próprio dispositivo citado, apli-
levou à consciência da necessidade de ca-se não somente às obras monu-
defender as culturas primitivas, ou de mentais, mas também às obras modestas
minoria, ameaçadas por culturas mais que, com o tempo, tenham adquirido um
poderosas.”26. significado cultural. A conservação e a
Ou seja: os avanços tecnológicos e a restauração desses bens históricos de-
clara necessidade de acomodação dos vem ter como objetivo a proteção não
bens já acumulados e dos produzidos apenas do bem material, da obra de arte,
para atendimento das novas demandas mas também do testemunho histórico, já
refletiram na tutela de bens essenciais que a importância do monumento não
para viver com qualidade. Apesar da pre- está apenas na sua materialidade, mas
visão aos direitos culturais na Declaração naquilo que representa. Por isso, o mo-
Universal dos Direitos do Homem, que numento é inseparável da história de que
daria margem à abertura para incorpora- é testemunho e do meio em que se situa e
o deslocamento de parte dele ou mesmo
de seu todo não deve ser tolerado, exceto
26 Maria Cecilia Londres Fonseca, O Patri- quando a salvaguarda do monumento
mônio em Processo: trajetória da Política Fe- assim o exigir, ou quando o justificarem
deral de Preservação no Brasil. 3. ed. UFRJ,
2009, p. 73.

68
razões de grande interesse nacional ou adequada, pois conseguiu resolver os
internacional. dois aspectos fundamentais de sua abor-
Sob a influência da Carta de Veneza, dagem. Para começarmos o nosso diálo-
no plano latinoamericano, em 1967, na go, gostaria de discutir um tema que é
Reunião sobre a Conservação e Utilização polêmico e instigante, do meu ponto de
de Monumentos e Sítios de Valor Histó- vista. Trata-se dos critérios ou, se melhor
rico e Artístico, em Quito, foi produzido dissermos, dos requisitos que asseguram
documento que afirma a percepção de ou não a um bem cultural o status de pa-
que o bem histórico contribui para o de- trimônio. Ou seja, "a seleção" do que é ou
senvolvimento econômico de toda a re- não patrimônio e o que define ou permite
gião. Nas considerações inaugurais do a um grupo cultural ou ao Estado definir
documento, é afirmado: “Valorizar um o que é ou não importante patrimoniar
bem histórico ou artístico equivale a ha- ou registrar. Conforme destaca o Antro-
bilitá-lo com as condições objetivas e pólogo Manuel Ferreira Lima Filho, em
ambientais que, sem desvirtuar sua natu- uma das webconferências realizadas por
reza, ressaltem suas características e nós, em parceria com o Grupo de Estudos
permitam seu ótimo aproveitamento. e Pesquisas em Direitos Culturais, da U-
Deve-se entender que a valorização se niversidade de Fortaleza (GEPDC – UNI-
realiza em função de um fim transcen- FOR), mesmo com os avanços obtidos
dente, que, no caso, da América Ibérica, com o decreto que normatiza o registro
seria o de contribuir para o desenvolvi- de bens imateriais, o conceito de rele-
mento econômico da região”. vância ainda permanece na atual política
A citação acima traduz o espírito da patrimonial do país. Afinal, quem tem o
época e indica, claramente, a percepção poder de definir se um bem é relevante
de que era preciso compatibilizar o de- ou não para a nossa cultura e, conse-
senvolvimento econômico com a prote- quentemente, de garantir esse direito?
ção dos bens ambientais (ecológicos e Portanto, pergunto, partindo do princípio
culturais). E mais: aponta para a impor- que assegura o direito ao/do patrimônio
tância desses bens como recursos com cultural brasileiro, como você encara
repercussão na seara econômica. esse desafio de encontrar soluções ou
Nesse cenário, as atenções se volta- critérios mais adequados a esse aspecto?
ram para degradação ambiental e para a
destruição dos bens culturais. Era um INÊS
momento em que a concepção do desen- - Agradeço imensamente o seu questio-
volvimento sustentável começava a se namento, que traz, sem dúvida, um dos
consolidar. E as demandas para proteção temas mais polêmicos e interessantes
dos bens ecológicos e culturais geraram a para a proteção jurídica dos bens cultu-
elaboração, pela Unesco, no início dos rais. Afinal, se não houver critérios para
anos 1970, de Convenções sobre meio definição do que é relevante ou não para
ambiente e sobre patrimônio cultural e nossa cultura, fica mais difícil garantir o
natural mundial. Esses diplomas interna- direito ao/do patrimônio cultural. E essa
cionais influenciaram o tratamento des- dificuldade tem acompanhado todos os
ses temas no Brasil. atores que atuam na temática patrimoni-
al, sendo um desafio constante para os
MARISA especialistas em patrimônio, das diversas
- Também acho que a solução encontrada áreas (Arqueologia, Museologia, Direito,
por você em relação ao título foi muito Antropologia, dentre outras).

69
Para os juristas e pesquisadores da cultura) que a técnica jurídica de norma-
área jurídica, este ponto específico é ain- tização não acompanha. Novamente, cito
da mais difícil, porque, num plano ideal, Maria Cecília Londres Fonseca, que expli-
precisaríamos receber esses requisitos já ca que “a expressão referência cultural
definidos (após consenso entre experts tem sido utilizada sobretudo em textos
na matéria cultural), para traduzi-los em que têm como base uma concepção an-
uma linguagem jurídica. Ao mesmo tem- tropológica de cultura, e que enfatizam a
po, enquanto isso não acontece, cabe aos diversidade não só da produção material,
operadores do direito encontrar no sis- mas também dos sentidos e valores atri-
tema jurídico (que não tem uma lei espe- buídos pelos diferentes sujeitos a bens e
cífica para proteção dos bens culturais) práticas sociais. Essa perspectiva plural
as diretrizes que permitam identificar o de algum modo veio ‘descentrar’ os crité-
traço de relevância em determinados rios, considerados objetivos, porque fun-
bens culturais e, por consequência, que dados em saberes considerados legíti-
justifiquem seu reconhecimento oficial. mos, que costumavam nortear as inter-
Cecília Londres Fonseca diz que “pen- pretações e as atuações no campo da
sar a preservação de bens culturais a preservação de bens culturais. [...] Refe-
partir da identificação de referências rências culturais não se constituem, por-
culturais [...] significa adotar uma postu- tanto, em objetos considerados em si
ra antes preventiva que ‘curativa’. Pois mesmos, intrinsecamente valiosos, nem
trata-se de identificar, na dinâmica social apreender referências significa armaze-
em que se inserem bens e práticas cultu- nar bens ou informações. Ao identifica-
rais, sentidos e valores vivos, marcos de rem determinados elementos como par-
vivências e experiências que conformam ticularmente significativos, os grupos
uma cultura para os sujeitos que com ela sociais operam uma ressemantização
se identificam. Valores e sentidos esses desses elementos, relacionando-os a uma
que estão sendo constantemente produ- representação coletiva, a que cada mem-
zidos e reelaborados, e que evidenciam a bro do grupo de algum modo se identifi-
inserção da atividade de preservação de ca”28.
bens culturais no campo das práticas Por isso, em muitas situações, nota-
simbólicas”27. Gosto dessa reflexão, da remos que diretrizes jurídicas mais ge-
Cecilia Fonseca, porque serve como um rais e amplas são a melhor contribuição
sinal de alerta para os operadores do para preservação dos bens culturais. São
direito, para que percebam a linha tênue também uma forma mais segura e aberta
que guia a contribuição jurídica na pre- para tratativa do tema. E, a meu ver, es-
servação de bens culturais, especialmen- sas diretrizes, no cenário brasileiro, se
te no campo das práticas simbólicas. encontram na Constituição.
O que quero dizer é que o Direito tem A referencialidade é trabalhada pela
visíveis limitações nesse campo e que Constituição como pressuposto para o
precisa da expertise de outros profissio- início de qualquer movimento no sentido
nais, principalmente, porque muitas situ- de promover ou proteger os bens cultu-
ações de proteção dos bens culturais exi- rais. Com a adoção do valor de referência,
gem uma composição temporal (rápida o dispositivo constitucional (art. 216)
ou concomitante aos valores vivos da indica que a importância dos significados
dos bens culturais não é exclusividade do
27 FONSECA. Referências culturais: base para
novas políticas de patrimônio, p. 93. 28 ob. cit. p. 86-87.

70
Estado ou de grupos dominantes. Ao mônio cultural brasileiro como o conjunto
mesmo tempo, a Constituição não res- de bens culturais, materiais e imateriais,
tringe a legitimidade ativa para atribui- que sejam referência para os grupos
ção de valor a tais grupos, já que ao Po- formadores da sociedade brasileira. E
der Público cabe a coordenação da atua- aqui começo a tentativa de responder
ção de todos os setores no sentido de esse questionamento, porque creio que
promoção e valorização dos bens cultu- as diretrizes para a seleção dos bens cul-
rais. turais merecedores de uma proteção ofi-
MARISA, claro que as normas infra- cial (ações de patrimonialização) estão
constitucionais têm grande importância na Constituição.
na prática. E você menciona, com bastan- O teor constitucional indica que o tra-
te propriedade, o Decreto que estabelece tamento dos bens e valores culturais de-
o Registro dos bens imateriais, que inau- ve se pautar no respeito à diversidade e à
gura uma linha de proteção cultural inte- liberdade e na busca da igualdade mate-
ressante e que certamente é um marco, rial entre e para os grupos formadores da
no sistema protetivo brasileiro, apesar de sociedade brasileira, especialmente para
deixar em aberto o conceito de relevân- os grupos desfavorecidos histórica, social
cia. E, com isso, também deixa a dúvida, e economicamente; além disso, ainda de
que você coloca muito bem, de quem tem acordo com dispositivo da Constituição, a
legitimidade e poder para definir qual tutela dos bens culturais deve buscar
bem é relevante ou não para o patrimô- sempre a manutenção dos elementos
nio cultural brasileiro. essenciais à vida digna e com qualidade,
Talvez a mudança do tratamento do já que esses bens integram o conceito
patrimônio cultural, iniciada de maneira jurídico de meio ambiente, sendo tam-
sutil e gradual nas primeiras décadas do bém um bem de uso comum do povo que
século XX, com atenção aos bens materi- deve ser fruído tanto pelas presentes
ais e imateriais importantes para a co- como pelas futuras gerações (art. 225).
munidade (bens culturais decorrentes da Os elementos imateriais integram a
produção cotidiana, mesmo que sem ne- definição constitucional de patrimônio
nhum atributo externo especial), tenha cultural, por refletirem os interesses e
gerado a situação atual de carência (e valores sociais, independentemente do
também de necessidade) de crité- prestígio da comunidade que os produz
rios/requisitos para tratar da referencia- ou utiliza. A participação da geração pre-
lidade. Essa mesma referencialidade foi sente nos processos decisórios de sele-
que influenciou, lentamente, a conceitua- ção dos bens culturais materiais e imate-
ção de patrimônio cultural que, de uma riais também tem relevo, bem como a
perspectiva reducionista (ligada a mo- responsabilidade na transmissão para as
numentos e personagens emblemáticos), futuras gerações.
passou à incorporação de dimensões tes- Ainda de acordo com o dispositivo
temunhais e realizações intangíveis dos constitucional, os bens que integram o
bens constituídos. patrimônio cultural brasileiro dispensam
A resposta à valorização da referenci- o componente cronológico (ou de ancia-
alidade foi dada pela expansão da con- nidade) e estão ligados ao valor que lhes
cepção jurídica de patrimônio cultural, é atribuído pelos sujeitos legitimados
tanto nos documentos internacionais (individuais ou coletivos) e em função de
como nas normas locais. No Brasil, nossa determinados critérios e interesses his-
Constituição, no art. 216, indica o patri- toricamente condicionados, ou seja, de

71
acordo com as referências culturais. A afronta ao direito à manifestação cultural
indicação constitucional da não caracte- tem o ônus da fundamentação, no sentido
rização do bem pela sua antiguidade traz de demonstrar que foi cerceado, não em
uma importante consequência: impossi- um comportamento qualquer, mas em
bilidade de legislação infraconstitucional um comportamento justamente relevan-
excluir de tutela jurídica um bem cultural te para o exercício de seus direitos cultu-
que não atenda ao critério de ancianida- rais ligados, relevantes para o acesso e
de ou de conceituar um bem como bem fruição dos bens culturais portadores de
cultural utilizando esse critério. valores de referência ligados à memória,
Por outro lado, vale destacar que é à identidade ou à ação da sociedade bra-
possível que a lei defina uma proteção sileira.
especial a bens de determinados perío- As manifestações culturais expressam
dos históricos ou que lhe indique limita- direitos fundamentais ligados à liberdade
ções ou restrições para seu uso ou sua e à memória e podem sempre ser objeto
disponibilidade, pelos proprietários pú- de ponderação com outros direitos de
blicos ou privados, em razão de sua anti- igual valor e importância para o sistema
guidade. O que deve ser observado, sob jurídico. Mesmo quando abrigadas na
pena de dano irreversível para o patri- diversidade cultural e na garantia do plu-
mônio cultural brasileiro, é que os bens ralismo cultural estabelecido pelo Estado
culturais contemporâneos, produzidos democrático brasileiro, as manifestações
em um passado recente (ou mesmo em podem sofrer restrições. Ou seja: as ma-
produção), têm o mesmo status constitu- nifestações culturais portadoras de valo-
cional dos bens “antigos”, estão alberga- res de referência nem sempre são mere-
dos no mesmo sistema protetivo e po- cedoras de ações para patrimonialização
dem dispor dos instrumentos e meca- ou registro.
nismos estabelecidos. As consequências jurídicas mais im-
Para completar o quadro de desafios portantes dessa diferenciação são: a) que
na reflexão de quem tem poder de definir as manifestações culturais que não guar-
os bens com valor de referência cultural dem ligação com a memória, a identidade
destacado, há ainda a previsão do art. e a ação dos grupos formadores da socie-
215, caput, da Constituição Federal, que dade brasileira estão protegidas pelo
determina que o Estado garantirá a todos sistema jurídico brasileiro, cabendo à
o acesso às fontes da cultura nacional, União, aos Estados e Municípios a sua
apoiando, valorizando e incentivando a tutela no exercício de suas competências
difusão das manifestações culturais. Ou legislativas e administrativas; b) que ca-
seja: ao Estado cabe uma atuação que be ao Poder Judiciário a apreciação de
possibilite que as manifestações culturais ações coletivas ou individuais que visem
nacionais ou estrangeiras se desenvol- à tutela de bens e valores decorrentes
vam no país. das manifestações culturais que não
A previsão do art. 215 (direito à mani- guardem ligação com a memória, a iden-
festação cultural) pode ser entendida em tidade e a ação dos grupos formadores da
dois sentidos: a) como direito à liberdade sociedade brasileira; c) que as comuni-
de expressão (cultural); b) como direito dades ou grupos detentores ou produto-
que dá suporte à proteção dos elementos res dessas manifestações têm direitos
materiais e imateriais constitutivos (exis- individuais e coletivos que lhes assegu-
tentes ou a serem criados) do patrimônio rem a fruição e o acesso aos bens cultu-
cultural brasileiro. Assim, a alegação de rais decorrentes; d) que os bens culturais

72
que não integram o patrimônio cultural O que penso que temos de fazer, por-
brasileiro, embora possuam instrumen- que está ao nosso alcance no âmbito jurí-
tos (administrativos e jurídicos) e meca- dico, é contribuir com práticas e refle-
nismos (inclusive financeiros) para sua xões que contribuam para construção e
tutela, não têm prioridade sobre os bens implementação de políticas públicas: que
culturais brasileiros, que são bens quali- fortaleçam os grupos historicamente in-
ficados pelo sistema jurídico brasileiro e justiçados, as comunidades quilombolas
cujo acesso e fruição são direitos cultu- e tradicionais, os povos indígenas e ou-
rais fundamentais. tros grupos hipossuficientes; que estimu-
Como vemos, todo esse aporte consti- lem a pesquisa acadêmica sobre direitos
tucional não elimina a dificuldade da ati- e bens culturais e as ações culturais vol-
vidade de identificação de referências tadas para valorização desses grupos e
culturais que fundamentam a proteção comunidades; que estabeleçam novas
do bem. As seleções dos bens que inte- formas de investimentos e de financia-
gram o patrimônio cultural brasileiro, mentos para setores da cultura e para
embora se pautem na atualidade e sejam proteção dos bens culturais afetos às co-
desenvolvidas para atender o interesse munidades e grupos culturalmente vul-
da geração presente, não podem deixar neráveis e ou hipossuficientes.
de ter a perspectiva da equidade interge- MARISA, tantas palavras e não tenho
racional. Desse modo, os estudos, a sis- uma resposta para seu instigante questi-
tematização dos dados, a utilização dos onamento. Aliás, a resposta que posso lhe
instrumentos nominados ou não para dar, mas não sei se estou certa, é que não
tutela dos bens e a indicação de valores temos como estabelecer critérios jurídi-
de referência para bens culturais materi- cos muito precisos para definição da re-
ais ou imateriais devem, ao mesmo tem- levância do bem cultural e tampouco te-
po, considerar a fruição imediata e o a- mos pensado em parâmetros para priori-
cesso e uso das gerações futuras. zação de legitimados envolvidos na sele-
Essas seleções não se pautam em cri- ção dos bens culturais materiais e imate-
térios técnicos (ou de saber científico) riais. E o nosso porto mais seguro no âm-
apenas: há também a questão do poder e bito teórico é a Constituição.
do prestígio de um grupo, a partir da E, para complicar ainda mais nossa re-
preservação das marcas de sua identida- flexão, acrescento que uma consequência
de e dos vestígios de sua cultura. E essa do êxito da política patrimonial de reco-
busca de maior poder e prestígio pelo nhecimento oficial de bens culturais ima-
grupo já dominante é que deve ser a- teriais (Registro e Inventários) e do for-
companhada pelo Poder Público, na ten- talecimento de ações para a proteção dos
tativa de buscar um equilíbrio. Mas aí nos bens materiais in situ (o tema do repatri-
deparamos uma contradição: dentro de amento de bens culturais entre Estados
uma concepção de liberdade da produção brasileiros começa a ser discutido) será,
cultural e de dever de preservação de nos próximos anos, uma maior conflituo-
bens culturais, não há mecanismos para sidade entre comunidades detento-
impedir ou desestimular o fortalecimen- ras/produtoras de bens culturais imate-
to de ações culturais nesse sentido. E riais, entre comunidade e Poder Público
pensar em mecanismos que desestimu- (ou empreendedor privado), entre co-
lem produção e ações culturais, mesmo munidade local e pesquisadores (que
para essas situações, seria, a meu ver, estudam o bem e têm um olhar “alheio”,
contraproducente. “de fora”). E os juristas também não es-

73
tão se preparando para apresentar res- cesso de atribuir significado a elas. Em
postas para essas (futuras e prováveis) linha construtivista, democratizar ainda
situações. Se é que essa será uma tarefa mais o(s) sistema(s), no que vamos ser
possível... sincero não fazemos mais nada que o que
aparece cristalino, pois, como já registrei
GONZAGA antes, é da natureza do Welfare State e o
- Prezada INÊS e colegas, muito boa a que determina o constitucionalismo con-
provocação lançada. temporâneo.
Como no diálogo anterior com FREDE- Espero ter "mornado" um pouco a
RICO, registre-se que opções de lingua- discussão, aqui do frio da Grande Porto
gem em Hermenêutica são processos de Alegre.
"atribuição de sentido".
Então, concordo com o dileto MARCOS INÊS
que você foi muito feliz nesta iniciativa. - Sua provocação é um dos dilemas mais
Eu sempre ressalto aos meus alunos – perturbadores para mim, porque ao
exemplificando – que há um D(d)ireito mesmo tempo em que acompanho intei-
do(ao) trabalho. Aqui diferenciando Di- ramente os doutrinadores que defendem
reito Objetivo (com inicial maiúscula) de que os direitos culturais são um ramo
direito subjetivo (minúsculo, facultas autônomo do Direito (Humberto Cunha,
agendi). Lúcia Reisewitz dentre outros), com
No mais, e se a louvável proposta do princípios e instrumentos próprios, per-
HUMBERTO visa de certo modo a "polemi- cebo, em determinados momentos, uma
zar", me permita indagar se esta divisão providencial captura dos direitos cultu-
do Direito em áreas (Administrativo, rais por outros ramos jurídicos.
Ambiental etc.) seria uma "armadilha". Explico: a inserção e tratamento dos
Certa vez um aluno de primeiro semestre direitos culturais sob a lógica e base
de graduação estranhou muito, quando principiológica de outra área do direito
eu disse, em aula, que "não existia o Di- nem sempre é prejudicial (porque é útil),
reito Civil, na verdade existia o embora, a meu ver, enfraqueça (dilua) a
D(d)ireito, quem sabe talvez nem o construção doutrinária ainda em curso
D(d)direito...". Ou seja, em temas tão para o tratamento jurídico dos bens e
complexos, estas dicotomias (ou bipola- valores culturais a partir de suas especi-
ridades), como a famosa publico versus ficidades. E, nesse sentido, tomo empres-
privado do sistema oitocentista, estariam tada a sua menção ao princípio da res-
ou não superadas? ponsabilidade intergeracional, tipica-
Vejam a propósito que o próprio prin- mente do Direito Ambiental. Esse princí-
cípio da responsabilidade intergeracio- pio, quando usado na argumentação para
nal, que – me parece – surge no Direito proteção de bens culturais, tem maior
Ambiental, ganhou asas e se espraiou por força argumentativa, se acompanhado de
todo o sistema (jurídico ou para além). outros aportes de direito ambiental.
Ou seja, temos que necessariamente dei- A leitura combinada dos artigos 215,
xar um mundo melhor para as próximas 216 e 225 da Constituição indica que os
gerações, um Direito Civil melhor, um direitos da coletividade à memória cole-
Direito Autoral melhor... tiva e à identidade cultural devem ser
Como diria o poeta, "palavras são pa- acessíveis à presente geração e, ao mes-
lavras...". O bom mesmo (e aqui aprendo mo tempo, constituem um legado às ge-
cada vez mais com todos vocês) é o pro- rações futuras. Por isso, a justiça ambien-

74
tal refletida no tempo futuro indica o co apenas nas normas ambientais vigen-
dever de respeito e proteção à diversida- tes. Eu acho pouco, muito pouco. Queria
de cultural e biológica. Apesar dos dispo- ler uma jurisprudência repleta de refe-
sitivos de direitos culturais, geralmente a rências aos direitos culturais, seus prin-
discussão do direito ao patrimônio cultu- cípios, valores, instrumentos. Mas nem
ral passa a ser tratada como direito am- tudo é lamento: a captura do caso da
biental cultural e são citados dispositivos “Mansão dos Lage” pelo direito ambiental
de legislação ambiental, assim como o deu certo e a decisão do STJ foi pela legi-
art. 225 da Constituição. Isso é ruim? timidade da Associação de Bairro.
Não. Mas, talvez, uma argumentação pre- Faria mais sentido, nesse julgado do
dominantemente de patrimônio cultural STJ, falar de responsabilidade cultural
que incorporasse o princípio da respon- intergeracional. No comentário que eu e
sabilidade intergeracional proporcionas- o HUMBERTO fizemos, sobre a legitimida-
se o fortalecimento da doutrina e da ju- de ativa da Associação de Bairro, ponde-
risprudência em direito cultural. É isso ramos que “o exercício de proteger bens
que ainda não acontece. É disso que sinto em decorrência dos valores culturais que
falta. portam, além de essencial para a memó-
Eu e HUMBERTO escrevemos dois co- ria coletiva, é relevante para construção
mentários para uma coletânea do STJ, da cidadania, da identidade nacional e da
organizada pelo Ministro Herman Ben- soberania29. Nesse sentido, quanto maior
jamin e pelo Prof. José Rubens Morato for a demanda judicial da comunidade
Leite, dedicada à analise da Jurisprudên- para defesa de valores estéticos, paisagís-
cia da Corte em matéria ambiental (obra ticos, históricos, arquitetônicos sob ale-
inédita): um deles era sobre tombamento gação de ocorrência de poluição e degra-
geral de cidade histórica e direito de dação ambiental, maior será a chance de
propriedade individual e o outro sobre construção jurisprudencial para preser-
legitimidade ativa da AMAJB, uma asso- vação da qualidade de vida”.
ciação de moradores do Jardim Botânico, Concordo com você que a dicotomia
para defesa do patrimônio arquitetônico público/privado esteja superada e seja
“Mansão dos Lage”, localizado neste bair- absolutamente inadequada para reflexão
ro. Vale explicar que a “Mansão dos Lage” sobre os direitos culturais. A interdisci-
abriga atualmente a Escola de Artes Vi- plinaridade do campo cultural já nos
suais e é um bem de uso privado e de poupa de maiores discussões sobre a sua
reconhecido valor cultural, integrante do adequação numa proposta bipolar que
Parque Lage, tombado pelo IPHAN desde foi útil até meados do século XX. E tam-
1957. bém concordo que a divisão em áreas
Neste último julgado (Recurso Espe- (ambiental, administrativo, civil) pode
cial 876.931, relatado pelo Ministro Mau- ser uma “armadilha”. Concordo, mas não
ro Campbell Marques), a ementa indicava vejo caminho melhor atualmente, como
Direito Ambiental e Direito Processual exemplifiquei acima e também na res-
como matérias-chave e não havia sequer posta ao MARCOS. Por isso, penso que,
menção – no recurso e na decisão – de enquanto não nos desvencilhamos dessa
dispositivos relativos à legislação de pa- cilada da especialização das matérias
trimônio cultural. O tema foi tratado com para compreensão jurídica, precisamos
base no direito ambiental, simplesmente. consolidar a percepção de que os direitos
A tentativa de preservação de um con-
junto arquitetônico tinha respaldo jurídi- 29 REISEWITZ, 2004.

75
culturais merecem tratamento e estudo que versa sobre o direito de participar da
autônomo. vida cultural, como um passo importante
Para não me alongar demais, embora para desenvolver o conteúdo dos direitos
esteja tentada a continuar neste diálogo culturais.
páginas a fio, noto uma onda recente na Outra iniciativa relevante no plano
busca de maior atenção aos direitos cul- global foi a adotada pelo Conselho de
turais como matéria que precisa de um Direitos Humanos da ONU, que, também
espaço próprio, tanto no plano local – em 2009, criou o Procedimento Especial
especialmente pela atenção em torno da chamado de Perito Independente na Área
valorização e preservação dos bens cul- dos Direitos Culturais (Resolução 10/23,
turais imateriais e pelas discussões gera- de 26 de março de 2009). A criação desse
das após a lei do Plano Nacional de Cul- Procedimento fortalece os direitos
tura – como no âmbito internacional, culturais como direitos humanos, já que
com diversos documentos da Unesco que o trabalho do Perito visa exatamente a
têm enfoque puramente cultural (diver- compreender e apresentar seu conteúdo
sidade linguística, diversidade e também e alcance nos diversos países,
com um realce dos direitos culturais no identificando as melhores práticas e os
campo dos direitos humanos). possíveis obstáculos na promoção e
Christian Courtis, em prefácio do livro proteção dos direitos culturais a nível
Direitos Culturais e Direitos Humanos, local, nacional, regional e internacional,
obra que deve ser lançada neste segundo apresentando propostas e/ou recomen-
semestre pela Editora do Sesc/SP (que dações ao Conselho para sobre possíveis
coordeno em conjunto com a Sandra Cu- ações que garantam a efetividade dos
reau e da qual participam FREDERICO e direitos culturais. O mandato do Perito
HUMBERTO ), destaca que os direitos Independente na Área dos Direitos
culturais têm sido negligenciados no Culturais da ONU é de três anos. Para
campo dos direitos humanos, embora ocupar essa função, Farida Shaheed foi
sejam parte do conjunto destes direitos nomeada em 2009 e reconduzida em
internacionalmente reconhecidos desde 2012.
a sua adoção pela Declaração Universal No plano local, as iniciativas oficiais
dos Direitos Humanos, em 1948. para valorização e preservação do patri-
Para esse jurista argentino, que mônio imaterial brasileiro apontam para
atualmente integra o Alto Comissariado a necessidade de tratamento da matéria
da ONU, pouca atenção tem sido cultural de maneira autônoma. Retoma-
dispensada à definição, à clarificação rei esse ponto na resposta à MARISA.
conceitual ou ao desenvolvimento de Por enquanto, vale levantar algumas
obrigações e mecanismos para garantia questões. Afinal, onde enquadrar o di-
destes direitos, por organismos reito à diversidade linguística, senão nos
internacionais de direitos humanos, seja direitos culturais? Lembro que em no-
no âmbito universal ou regional. E essa vembro de 2014, o Ministério da Cultura
atenção, quando dada, é frequentemente entregou o título de “Referência Cultural
focada nos direitos culturais das Brasileira” às línguas Talian, Asurini do
minorias, ao invés de considerar os Trocará e Guarani Mbya. Esses falares
componentes universais dos direitos brasileiros inauguram o Inventário Na-
culturais. O jurista cita o Comentário cional sobre Diversidade Linguística –
Geral n° 21 do Comitê de Direitos INDL, criado em 2010, por decreto presi-
Econômicos, Sociais e Culturais, de 2010, dencial. Como tratar de maneira justa o

76
acesso aos conhecimentos tradicionais, tam/compreendem, do ponto de vista
senão com base nos direitos culturais? epistemológico, os estudos jurídicos do
Ou ainda, por que tratar o tema da me- patrimônio cultural. A impressão que
mória dos desaparecidos políticos, espe- tenho é que o manto ambientalista sobre
cialmente o tema da criação de memori- o patrimônio cultural é um fenômeno
ais e projetos de cartografia sobre a dita- tipicamente brasileiro... você sabe dizer
dura (cito o projeto Conexões Cartográfi- se esse viés (ambientalista) é predomi-
cas da Memória do Coletivo Desapareci- nante noutros países também?
dos Políticos de Fortaleza, lançado em
28.07.2015), em outra seara diversa, INÊS
quando esse tema é de direitos culturais? “Se não tem Empório Armani
Deixo esses questionamentos para Não importa vou na Creuza
pensarmos juntos, por puro amor ao de- costureira do oitavo andar...”
bate... - Para responder à sua questão, vou in-
verter o raciocínio que até então temos
GONZAGA usado em nossos diálogos, deixando o
- Sua resposta muito me satisfaz. E, como direito ao/do patrimônio cultural como
disse, sempre aprendo muito com vocês. coadjuvante. Aproveitarei sua expressão
Embora eu talvez não seja de fato "um “manto ambientalista”, que é muitíssimo
peixe fora d´água" na temática, quiçá um adequada para desenvolvimento da re-
"anfíbio". flexão.
Explico: eu fui professor fundador e Esse manto ambientalista sobre o pa-
depois docente por três anos do Mes- trimônio cultural é um fenômeno global,
trado em Memória Social e Bens Cultu- ao menos na perspectiva jurídica ociden-
rais do UNILASALLE (2007/2010). Em- tal. Isso decorreu da inserção, a partir da
bora lá trabalhasse Direitos Autorais (eu metade do século XX (pós-II Guerra
era o único do Direito), tive contato com Mundial), de uma nova tipologia de direi-
todos estes autores (que tenho aqui em tos fundamentais nas Constituições rela-
casa na Biblioteca Eleni Silva Adolfo). cionados à qualidade de vida, aos direitos
Parabéns mais uma vez a você e a to- de natureza transindividual, dentre os
dos pela profundidade do debate. E ao quais os direitos à preservação de valo-
HUMBERTO pela ideia. res culturais e espirituais e à proteção do
Olhem, quando forem publicados to- meio ambiente.
dos estes livros, por favor, nos comuni- A partir de um estudo comparado, An-
quem, para aquisição. tônio Herman Benjamin aponta cinco
Carpe die! pilares comuns no regime de proteção do
meio ambiente nos países que incorpora-
MÁRIO ram a tutela desse bem no plano consti-
- Compartilho da mesma preocupação, tucional: a) a adoção de uma compreen-
concernente à compreensão do patrimô- são sistêmica e legalmente autônoma do
nio cultural como um bem ambiental, meio ambiente, determinando um trata-
logo objeto de estudo do direito ambien- mento jurídico das partes a partir do to-
tal cultural, ignorando-se completamente do; b) um compromisso ético de não em-
os direitos culturais (sem contar a omis- pobrecer a Terra e sua biodiversidade,
são da jurisprudência brasileira com re- com a finalidade de manter opções para
lação a tais direitos). Ainda não consegui as futuras gerações e garantir a so-
mapear como os outros países tra- brevivência das espécies e de seu habitat;

77
c) o direito de propriedade, bem como naturais e culturais são elaboradas sepa-
sua função social, orientado pela susten- radamente. Daí seu questionamento tem
tabilidade ambiental; d) a estruturação todo sentido, MÁRIO.
do devido processo ambiental, caracteri- Seria esta junção uma invenção bra-
zado por processos decisórios abertos, sileira? Eu já respondi que não, que essa
transparentes, bem informados e demo- concepção foi construída no plano inter-
cráticos; e) a busca da implementação nacional. Realmente, a transversalidade
das normas ambientais, com o objetivo tem repercussão ampla e atinge o sis-
de evitar que a norma maior (mas tam- tema jurídico de proteção aos valores e
bém a infraconstitucional) assuma uma bens essenciais para viver com dignidade
feição retórica 30. em um ambiente sadio. Há uma absorção
Note que esses pilares guardam es- de elementos de outros ramos do saber
treita ligação com a tutela dos bens cul- humano e uma forte influência na tutela
turais, principalmente se considerarmos dos bens culturais impactados em razão
a concepção de meio ambiente como ma- das obras e atividades com finalidade
crobem vigente na doutrina e gradual- econômica ou desenvolvimentista.
mente incorporado às normas ambien- Podemos retroceder um pouco e am-
tais de diversos países (estamos nessa pliar a abordagem, para lembrar a neces-
fase de incorporação, por influência da sidade da proteção dos bens culturais
doutrina, precipuamente). inserida num sistema de tutela dos ele-
A concepção de meio ambiente como mentos naturais ou artificiais em situa-
macrobem (abrangendo os elementos ções de destruição (voluntária ou não).
naturais e culturais) foi construída na Essa percepção foi documentada na Con-
segunda metade de século XX, a partir da ferência de Haia em 1954 (Convenção
percepção de que a sobrevivência da para a proteção dos bens culturais em
humanidade na Terra dependia da manu- caso de conflito armado), quando se de-
tenção de elementos materiais e imateri- clara que a perda ou dano de um pa-
ais, essenciais para o desenvolvimento da trimônio cultural de um povo significa
vida e da existência de uma relação equi- uma perda ou dano para toda humani-
librada e harmônica entre as necessida- dade. Desde essa Convenção, a ideia de
des e demandas humanas e seu entorno. que as ameaças ao patrimônio cultural
O meio ambiente passou a ser tratado podem surgir não apenas de conflitos
juridicamente como bem de interesse armados, mas também de desastres na-
público e afeto à coletividade. turais, contaminações, tráfico ilícito de
Mas, ao mesmo tempo em que a teoria bens culturais dentre outros fenômenos.
nos indica a predominância da visão de A visão do patrimônio cultural, como
que somente é possível proteger o meio merecedor de tutela em face de projetos
ambiente das agressões e antecipar me- desenvolvimentistas, ganha maior con-
didas que evitem ou minimizem danos sistência a partir da Carta de Veneza, de
futuros, ainda desconhecidos, por meio 1964. Esta Carta traz uma nova aborda-
da comunicação interdisciplinar e da uti- gem para patrimônio histórico, como já
lização de medidas baseadas nos princí- mencionei na resposta ao HUMBERTO , nes-
pios da prevenção e da precaução, as te quarto diálogo.
normas para proteção dos elementos Dentro dessa mesma perspectiva do
perigo de perecimento dos bens cultu-
rais, são publicados outros documentos
30 O meio ambiente na Constituição Federal
de 1988, p. 365.
pela UNESCO, que tratam em conjunto

78
dos assuntos “cultura e natureza”, posto ambiente. Essa demanda arqueológica é
que ambos têm influência direta na qua- uma novidade das últimas décadas in-
lidade de vida da comunidade. Esse tra- trinsecamente ligada ao controle público
tamento enriquece o conceito de patri- de obras e serviços que destroem ou mo-
mônio cultural, especialmente pela visão dificam o ambiente e seu entorno.
da sua relevância para as gerações pre- Voltando à experiência de outros paí-
sentes e futuras e pela consolidação da ses, Ana Maria Marchesan destaca que
noção de sustentabilidade (mesmo sem o em 2004 o Decreto Legislativo nº 42 uni-
uso desse termo). ficou a tutela da paisagem e a tutela dos
Destaco a Recomendação sobre a pre- bens culturais na Itália. Vale lembrar, no
servação de bens culturais em perigo entanto, que nos anos 1960, a Comissão
pela realização de obras públicas e pri- dirigida pelo professor Franceschini op-
vadas (Conferência de Paris, 1968), pois tou por um conceito amplo de patrimô-
aí já podemos notar o risco das ações nio cultural, incluindo nele também o
desenvolvimentistas, de empreendimen- património natural. Veja, MÁRIO , que essa
tos e serviços, não apenas para o meio comissão italiana tentou inverter o jogo!
ambiente, mas para os bens culturais. E a Mas, apesar do amplo trabalho realizado
Convenção para a Proteção do Patrimô- pela comissão e das muitas recomenda-
nio Cultural e Natural Mundial, de 1972, ções apresentadas, a mais importante
que, em suas argumentações preambula- seguida foi a unificação, em 1975, num
res, constata que “o patrimônio cultural e mesmo ministério, dos dois setores do
o patrimônio natural estão cada vez mais patrimônio (ambiental e cultural). Ao
ameaçados de destruição, não apenas mesmo tempo, a legislação italiana ambi-
pelas causas tradicionais de degradação, ental trata da questão sob quatro enfo-
mas também pela evolução da vida social ques distintos: 1. bens culturais; 2. direi-
e econômica que as grava através de fe- to paisagístico (belezas naturais, centros
nômenos de alteração ou destruição ain- históricos, parques naturais, florifaunísti-
da mais importantes”. cos e as florestas); 3. normas de proteção
Mas a captura da proteção dos bens de elementos ecológicos (ar, água, solo
culturais materiais (e até imateriais, com etc.); e 4. as normas sobre assentamento
menor frequência) pelo direito ambien- territorial.
tal, em situações de impacto, quando haja Já no direito francês, os juristas da á-
empreendimentos submetidos a licenças rea ambiental geralmente resistem à in-
pelo risco que causam aos elementos serção do patrimônio cultural (e seus
presentes no ambiente, é um arranjo re- elementos) no sistema de proteção am-
lativamente exitoso no sistema protetivo biental. Essa mesma posição é defendida
brasileiro. Não falo em exclusividade, já por Jean Lamarque e pelo saudoso Prof.
que no recorte das pesquisas arqueológi- Prieur, que considera como núcleo do
cas (tema que acompanho mais de per- direito ambiental o direito ligado aos
to), é crescente o número de pesquisas recursos ecológicos, a prevenção e res-
dentro da chamada “arqueologia de con- ponsabilização decorrente dos riscos e
trato” em países da América Latina. A das poluições, o direito dos monumentos
arqueologia de contrato é termo usado naturais e da paisagem. Mas é importante
em oposição à Arqueologia acadêmica e lembrar que a França tem consolidada
se refere às pesquisas realizadas por exi- legislação para tutela dos bens culturais.
gência do órgão público que autoriza No direito português, a Constituição
empreendimentos impactantes ao meio de 1976 positiva o direito ao meio ambi-

79
ente como direito fundamental e o meio centa o problema da existência na Espa-
ambiente como um macrobem: todos têm nha de uma limitada abordagem jurídica
direito a um meio ambiente de vida hu- do território, que é compreendido de
mano, sadio e ecologicamente equili- modo desarticulado do campo ambiental.
brado (art. 66). É uma das primeiras Alonso Ibáñez desta forma situa que, no
constituições a estampar essa previsão, plano das relações natureza-cultura, este
seguida da Espanha em 1978. Mas em é um dos pontos obscuros da atual legis-
Portugal, provavelmente por influência lação protecionista espanhola. A Legisla-
de Gomes Canotilho, Vasco Pereira da ção patrimonial e a legislação ambiental
Silva e Casalta Nabais, dentre outros, a não casam como seria desejável, tendo se
doutrina caminhou para proteção con- desenvolvido uma de costas para ou-
junta dos bens ecológicos e culturais. tra”31.
Além da Constituição, Portugal tem a Lei MÁRIO, todas essas menções para lhe
do Património Cultural (LPC) – Lei nº dizer que o patrimônio cultural tem sido
107/2001 e a Lei de Bases do Ambiente protegido em outros países fora do sis-
(LBA), que em seu art. 17 prevê que o tema ambiental e, ao mesmo tempo, as
patrimônio cultural e patrimônio natural normas e ações protetivas são suficien-
integram os componentes ambientais temente fortes para garantir que os bens
humanos. É interessante que os instru- não sofram danos demasiados. E, quando
mentos ambientais sequer são conside- não o são, como no caso espanhol, os
rados como instrumentos protetivos dos doutrinadores realçam a necessidade de
bens culturais portugueses, quando os maior integração com as normas ambien-
doutrinadores estudam esse aspecto. tais. E não é para menos: essas normas
Nesse sentido, ver: Considerações sobre são restritivas, têm um tom de poder de
o quadro jurídico do património cultural polícia administrativa, o que falta muitas
de Portugal, de Casalta Nabais, disponível vezes numa legislação mais ampla sobre
aqui. patrimônio cultural (especialmente se
No direito espanhol, os juristas tam- versar sobre bens imateriais). Ao mesmo
bém resistem e afirmam que o conceito tempo, olhando nosso caso, não temos
constitucional de meio ambiente (1978) uma lei de patrimônio cultural no Brasil e
não abarca as dimensões artificial e cul- por isso creio que o tratamento dos bens
tural (ver Rámon Mateo, Tratado de De- culturais como bem ambiental pode ser
recho Ambiental, editora Trivium, 1991). benéfico em situações de risco em decor-
Os juristas entendem que, no art. 45 da rência de empreendimentos impactantes.
Constituição Espanhola, o elemento nu- Se nosso sistema protetivo dos bens
clear do conceito são os recursos natu- culturais encontrou esse percurso, só
rais (António Cabanilhas Sánchez. La re- vejo vantagens na atual conjuntura. A
paración de los daños al medio ambiente. inserção do patrimônio cultural no con-
Arazandi, 1996). Mas, do mesmo modo ceito de meio ambiente, portanto, teve a
que na França, há uma lei específica para consequência lógica de submeter os ele-
proteção do patrimônio: a Ley del Patri- mentos que o integram (isoladamente ou
monio Histórico Español, lei nº 16 de em conjunto) ao sistema de proteção
1985. E, por lá, os estudiosos do patrimô- ambiental. Embora a afirmação no plano
nio cultural defendem uma maior inte- teórico seja quase redundante, na prá-
gração entre as normas ambientais e pa-
trimoniais. Como dizem Hernández e
31 Gestión del patrimonio cultural, Ariel Pa-
Tresserras, “Alonso Ibáñez (1997) acres- trimonio, 2005, p. 103 (tradução livre)

80
tica, tal entendimento gera uma série de Nova Iorque vai de Madureira”; penso
exigências tanto para o órgão responsá- que, como ainda não temos um sistema
vel diretamente pela proteção do bem, consolidado de proteção dos bens cultu-
como para os empreendedores, que têm rais, estamos usando bem a construção
um catálogo de obrigações mais rígidas. doutrinária que considera o bem ambien-
Assim, o fato do patrimônio cultural tal como macrobem.... Mas vamos conti-
estar inserido em outro sistema prote- nuar lutando para ter os óculos escuros e
tivo e, por isso, contar com princípios a viajar a Nova Iorque...
orientadores e instrumentos estabeleci-
dos na Lei de Política Nacional de Meio FÁBIO
Ambiente é bom e permite uma soma de - Tenho aqui uma questão que talvez
técnicas, procedimentos e normas patri- possa até ser tema de outro diálogo. A
moniais (de patrimônio cultural). Nesse INÊS muito bem discorreu sobre a prote-
esteio, os órgãos e instrumentos de tutela ção do patrimônio cultural e histórico
dos bens culturais são outra vertente da brasileiro, com destaque para o instituto
mesma atuação protetiva do bem ambi- do tombamento dentro do contexto. Em
ental, tanto para defender os bens cultu- 2013, a Presidente da República editou
rais materiais, como para resguardar o decreto (8.124/13) que introduz o ins-
patrimônio imaterial que, quando impac- trumento chamado de declaração de in-
tado, sofre silenciosamente com os danos teresse público.
causados ao meio ambiente. Qual é sua visão sobre esse tipo dife-
Ao mesmo tempo lembro que nem to- rente e alternativo de tombamento e sua
dos os bens culturais que necessitam de efetiva legalidade? Você tem reflexão
proteção se encontram nesse contexto sobre isso?
que lhes garante o uso do licenciamento
ambiental. Pode-se mencionar, hipoteti- INÊS
camente, um acervo de livros raros de - Agradeço pela sua pergunta, especial-
uma Biblioteca Pública, que sofre perigo mente, porque me deu oportunidade de
de destruição pela sua conservação em refletir melhor sobre um instrumento
local inapropriado, excessivamente úmi- protetivo dos bens culturais que pouco
do, e por isso precisaria da adoção de conheço.
uma medida específica para reverter e O instrumento da Declaração de Inte-
estancar esse quadro; ou, num exemplo resse Público de Bens Culturais, previsto
concreto, os manuscritos do compositor no Decreto 8.124/13 (art. 35 a 43), tem
carioca Ernesto Nazareth, que foram re- base na Lei 11.904/09 (especialmente
centemente incluídos na lista de patri- nos art. 5° e 6°) e guarda alguma seme-
mônios culturais da humanidade, inte- lhança com outros instrumentos proteti-
grando a categoria Memória do Mundo, vos dos bens culturais, inclusive com sta-
da Unesco. Em ambas as situações, ocor- tus constitucional, como Tombamento,
re o que a Constituição se refere a outras realçado por você em sua pergunta, prin-
formas de acautelamento e preservação a cipalmente sob o ponto de vista das res-
proteção do patrimônio cultural brasilei- trições ao proprietário da coleção (vide
ro (art. 216 § 1°). art. 40 do Decreto 8.124/13), e com o
MÁRIO, me alonguei nessa resposta. Inventário, veja, por exemplo, a previsão
Talvez para lhe dizer o mesmo que Raul do art. 36, do Decreto 8.124/13, que es-
Seixas: “Quem não tem colírio usa óculos tabelece que “o IBRAM manterá cadastro
escuros”; e Zeca Baleiro: “quem não pode específico dos bens declarados de inte-

81
resse público para fins de documentação, da Lei de Arquivos (já que a Lei dos Mu-
monitoramento, promoção e fiscalização, seus, em seu art. 6° afasta expressamente
que poderá fazer parte de outros instru- sua aplicação às bibliotecas, aos arquivos,
mentos da política nacional de museus.” aos centros de documentação e às cole-
Mas, apesar da previsão dos artigos ções visitáveis) e das restrições legais
40 a 43 do Decreto em comento, que tra- para saída temporária de bens culturais
tam dos efeitos de Declaração, vejo uma previstas no Decreto-lei 25/37 (art.14) e
aproximação muito maior entre o ins- nas Leis 3.924/61 (art.20), 4.845/65
trumento em análise e a Declaração de (arts. 1° a 5°) e 5.471/68 (arts.1° a 3°). O
Bem de Interesse Público prevista na Lei citado conjunto legislativo veda a saída
dos Arquivos (Lei 8.159/91, art. 11 a 16, definitiva do país de bens tombados; de
regulamentado pelo Decreto 4.073/2002, objetos de interesse arqueológico, pré-
art. 22 a 28). histórico, histórico, numismático e artís-
Ainda em comparação com outros ins- tico; obras de arte e de ofícios produzi-
trumentos legais ou administrativos, essa dos no Brasil até o fim do Período Mo-
Declaração é mais consistente legalmente nárquico e de livros antigos e acervos
do que o Inventário (que pode trazer res- documentais.
trições aos proprietários, mas depende E aqui me permitam um parêntese: é
de leis que o criem e definam sua abran- possível ainda que essa Declaração tam-
gência) e mais abrangente que o Tom- bém sirva para abarcar situações não
bamento, já que o parágrafo 1° do artigo previstas na Lei 8.394/91, que dispõe
5° da Lei 11.904/09 define os bens cultu- sobre a preservação, organização e pro-
rais passíveis de musealização como “os teção dos acervos documentais privados
bens móveis e imóveis de interesse pú- dos presidentes da República. Lembro
blico, de natureza material ou imaterial, que a imprensa noticiou recentemente a
tomados individualmente ou em con- instauração de inquérito civil público
junto, portadores de referência ao ambi- pelo Ministério Público Federal (MPF)
ente natural, à identidade, à cultura e à em Brasília, para investigar possível a-
memória dos diferentes grupos formado- propriação pelos Presidentes da Repú-
res da sociedade brasileira”, e o parágra- blica a seu acervo particular de presentes
fo 2° deste mesmo dispositivo ainda afas- recebidos enquanto chefes de Estado. Se
ta critérios temporais, estéticos ou de esses presentes, que não são documen-
reconhecimento oficial para declaração tais, forem considerados bens culturais
da coleção como de interesse público, ao passíveis de musealização, teremos uma
prever que “será declarado como de in- boa solução para a investigação do MPF e
teresse público o acervo dos museus cuja um uso midiático para a Declaração pre-
proteção e valorização, pesquisa e acesso vista na Lei de Museus, ainda pouco co-
à sociedade representar um valor cultu- nhecida.
ral de destacada importância para a Na- Somada a essa percepção de fragili-
ção, respeitada a diversidade cultural, dade na legislação, havia também a per-
regional, étnica e linguística do País”. O cepção da completa ausência de normas
mesmo teor está presente nos dispositi- para regulamentar a circulação de acer-
vos do Decreto 8.124/13. vos culturais na região latinoamericana e
Ouso até arriscar que a Declaração de no mundo, fossem esses acervos dotados
Interesse Público da Lei dos Museus foi de valor econômico ou outro valor (afe-
pensada para suprir as deficiências nota- tivo, histórico etc.).
das com o uso da Declaração decorrente

82
E nesse aspecto, a Lei dos Museus e o Creio que o desenho a partir dessas
Decreto que regra a Declaração de Inte- discussões, por ter forte viés econômico,
resse Público dos Bens Culturais repre- afastará, na prática, o instituto da Decla-
sentam um avanço, já que a partir desse ração (ou o debate sobre seus efeitos)
marco regulatório podemos aprofundar a dos demais instrumentos protetivos dos
discussão para outros pontos essenciais, bens culturais previstos na Constituição,
como o estabelecimento de critérios para como o tombamento e o inventário, por
restrição de circulação (comercializa- exemplo. Não é o cenário ideal para os
ção/empréstimo/trocas) internacional que defendem o patrimônio cultural, mas
de acervos de obras de artes brasileiras; creio que precisamos ficar atentos para
ou mesmo de definição das obras e cole- entrar nesta seara conhecendo os bons
ções que são de interesse público (seus argumentos desenvolvidos pelos setores
componentes precisam ser nacionais ou que defendem o tratamento desse tema
é possível restringir a comercialização ou como assunto do direito econômico e de
circulação de acervo composto por obras propriedade privada. O desafio será tra-
estrangeiras?); ou os limites de discricio- zer a discussão para o traço de interesse
nariedade do Poder Público em comprar público que os bens culturais portam,
obras e coleções que lhe sejam oferecidas independente de seu valor econômico. E
antes da venda ao exterior (direito de tomo a liberdade de trazer as palavras de
preferência, nos termos do art. 63 da Lei Carlos Frederico Marés de Souza Filho,
11.904/09 e art. 20 e art. 40, incisos IV e sempre tão lúcidas:
V do Decreto 8.124/13).
“Todos os bens culturais são gravados
Realço que, apesar da indicação de
de um especial interesse público — seja
certo controle da saída e circulação dos
ele de propriedade particular ou não.
bens culturais afetados pela Declaração
Aliás, isto ocorre não apenas com os bens
pelo IBRAM e do Conselho Consultivo do
culturais, mas também com os am-
Patrimônio Museológico (art. 40 e se-
bientais em geral. Esta nova relação de
guintes do Decreto 8.124/13), a norma
direito entre os bens de interesse cultu-
admite que o bem é um bem passível de
ral ou ambiental com o Estado e os parti-
comercialização. Claro que essa conside-
culares vem dando margem a uma nova
ração também está presente no Tomba-
categoria de bens, os bens de interesse
mento, mas a repercussão mais prejudi-
público que não se reduz apenas a uma
cial para os proprietários dos bens tom-
especial vigilância, controle ou exercício
bados é a impossibilidade de sua modifi-
do poder de polícia da administração
cação, é a sua preservação com as carac-
sobre o bem, mas é algo muito mais pro-
terísticas que suscitaram o reconheci-
fundo e incide diretamente na sua essên-
mento estatal de seu valor como bem
cia jurídica. A limitação imposta aos bens
cultural. Esse ponto é motivo de desvalo-
de interesse público é de qualidade dife-
rização financeira do bem. E tal traço, o
rente da limitação geral imposta pela
da preservação do bem não é, na maioria
subordinação da propriedade privada ao
das situações imagináveis, é um pro-
uso social. As limitações gerais produzem
blema para os bens gravados pela Decla-
obrigações pessoais aos proprietários
ração de Interesse Público dos Bens Cul-
que devem tornar socialmente úteis suas
turais.
propriedades, enquanto as limitações
Acho que o foco das disputas em torno
impostas a estes bens de interesse pú-
dessa Declaração prevista na Lei de Mu-
blico são muito mais profundas porque
seus e seu Decreto será outro.

83
modifica a coisa mesma, passando o Po- exclusivo do titular, numa concepção
der Público a, diretamente, controlar o individualista, mas passa a impor ao pro-
uso, transferência, a modificabilidade e a prietário a utilização do imóvel conso-
conservação da coisa, gerando direitos e ante o interesse social.
obrigações que ultrapassam a pessoa do Partindo-se da premissa de que não
proprietário, atingindo o corpo social, cabe falar em direito de propriedade sem
que passa a ser corresponsável, interes- o respeito à sua função social, dessume-
sado e legitimado para sua proteção, a- se estar o titular de um bem de interesse
lém do próprio Poder Público. sócio-cultural jungido a observar as limi-
Ao mesmo tempo que a cidadania tações derivadas do necessário respeito
passa a ter direitos em relação ao bem ao direito coletivo na respectiva preser-
cultural, como a visualização, a informa- vação.
ção e o direito a exigir da Administração Não se concebe que um bem de reco-
a sua manutenção e conservação, passa a nhecido valor sócio-cultural venha a ser
ter obrigações em relação a ele, que estão demolido, reformado, danificado, mu-
diretamente ligados a sua proteção, cons- tilado, apagado impunemente pelo pro-
tituindo crime qualquer agressão a ele prietário, como se o direito de proprie-
cometida”32. dade ainda existisse no e para o exclusivo
interesse do titular. Tanto é esse o senso
O que quero realçar é que não pode-
comum que o legislador federal houve
mos tratar do tema dos bens culturais
por bem inserir na recente lei que define
portadores de valores de referência para
crimes ambientais diversas condutas le-
a comunidade, sem lembrarmos forte-
sivas ao patrimônio cultural”33.
mente que muitos destes também são
acervos altamente rentáveis do ponto de A teoria transcrita serve para os bens
vista econômico. Ao mesmo tempo, não culturais móveis e imóveis, mas a experi-
podemos deixar que esses bens culturais ência tem nos mostrado que, em relação
sejam tratados como meros recursos e- aos bens culturais móveis e aos bens i-
conômicos. Porque, se assim o for, retro- materiais, estamos mais longe de um cer-
cederemos. Certamente, temos uma dou- to consenso na adoção da função social
trina consolidada no sentido da função da propriedade e na priorização do valor
social da propriedade em relação aos cultural.
bens imóveis de valor cultural e nosso A recente Lei 13.123/2015 (que dis-
desafio é transpor, nos casos concretos, põe sobre o acesso ao patrimônio gené-
essa doutrina para os bens culturais mó- tico, sobre a proteção e o acesso ao co-
veis. E, nesse sentido, transcrevo trecho nhecimento tradicional associado e sobre
da promotora Ana Marchesan, por resu- a repartição de benefícios para conserva-
mir bem os argumentos que prevalecem ção e uso sustentável da biodiversidade),
e guardam certo consenso: conhecida como lei de acesso aos conhe-
cimentos tradicionais, é um bom exemplo
“Não se apregoa a extinção do direito
da dificuldade de compatibilização dos
de propriedade, mas o seu exercício em
interesses econômicos com o acesso e
prol da coletividade. O exercício desse
fruição dos bens culturais imateriais. Isso
direito deixa de ocorrer em benefício
sem mencionar as inúmeras discussões
sobre propriedade intelectual, bem mais
32 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de.
Proteção jurídica dos bens culturais. Revista
dos Tribunais, São Paulo, ano 1, n. 2, 1993, p. 33 Ana Maria Moreira Marchesan. A Proteção
21. Constitucional ao Patrimônio Cultural.

84
antigas, e sem adentrar na seara dos di- mas o impacto no valor venal do bem é
reitos autorais, direitos autorais coleti- menor, assim como as restrições de uso,
vos, liberdade de expressão e indústria apesar de reconhecer que há impacto
cultural, sob pena de abrirmos demais a para os proprietários desses bens grava-
reflexão e esquecermos o instrumento da dos pela Declaração na sua livre circula-
Declaração de Interesse Público dos Bens ção e comercialização.
Culturais previsto na Lei de Museus, que Outra diferença que noto, mas que
ora analisamos. temos de conferir no futuro, é que a dis-
FÁBIO, penso que com essa argumen- cussão judicial sobre o Tombamento se
tação, tentei responder à sua pergunta – pauta em argumentos de direito adminis-
se vejo a Declaração como um tipo dife- trativo, prioritariamente. Ainda não sa-
rente e alternativo de Tombamento. E, bemos como será a discussão judicial
com todas as dificuldades e deficiências sobre a Declaração de Interesse Público
de uma incipiente (ou insipiente) refle- de Bens Culturais, mas minha aposta é
xão, a resposta ao seu questionamento é que provavelmente o leque se abrirá e
não. (Quase) Com certeza, não. abrigará aportes do direito econômico,
No tombamento, o Estado reconhece da livre iniciativa, da propriedade pri-
que o bem é portador de valores cultu- vada e da não aplicação da função social
rais (valor histórico, artístico, paisagís- da propriedade para esses bens. E, por
tico, arqueológico, bibliográfico, cultural pura ironia, talvez descubramos que a-
ou científico), com a finalidade de pre- penas teremos êxito, enquanto defenso-
servá-lo para o futuro e para outras in- res dos bens culturais, se conseguirmos
terpretações. E o proprietário desse bem direcionar o debate sobre a Declaração
tombado, a princípio, passa a ter uma de Interesse Público de Bens Culturais
restrição que pode afetar o valor venal de para o direito administrativo, para um
seu bem e as formas de uso e fruição. No tratamento deste novo instrumento de
caso da Declaração da Lei de Museus, há forma semelhante ao Tombamento, nos-
também o reconhecimento do valor do so velho conhecido.
bem para as gerações presente e futuras,

85
QUINTO DIÁLOGO

DIREITOS CULTURAIS COMO DIREITOS HUMANOS

com Marisa Damas Vieira

86
DIREITOS CULTURAIS cultura e de violações aos direitos cultu-
COMO DIREITOS HUMANOS rais e para (re)construir um futuro pau-
tado em valores democráticos e na equi-
diálogos com librada distribuição dos bens da vida.
MARISA DAMAS VIEIRA Você tem alguma reflexão sobre esse
tema? Quais seriam essas outras formas
INÊS para tratar do passado de omissões e
- Aproveito o tema proposto para nosso avançar na efetividade dos direitos cultu-
quinto diálogo, para lhe perguntar como rais e no direito ao desenvolvimento?
você vê a ligação, no âmbito dos Direitos Essa ligação entre direitos culturais e
Humanos, entre os Direitos Culturais e o direito ao desenvolvimento realmente
Direito ao Desenvolvimento para cons- contribui para reflexão sobre a efetivi-
trução e consolidação da efetividade dos dade dos direitos culturais?
direitos culturais.
Penso que a fluidez na efetividade dos MAR ISA
direitos culturais e a fragilidade dos ins- - Peço licença a você e aos demais colegas
trumentos aptos a tornarem esses direi- para tecer algumas considerações iniciais
tos em “direitos exigíveis” decorre, den- sobre o tema que discutiremos neste ca-
tre outras razões, do padrão de conflituo- pítulo “Direitos Culturais como Direitos
sidade que foge ao delineado no sistema Humanos” e, de certa forma, lançar al-
protetivo de direitos humanos (inter- gumas bases para a posterior resposta às
nacional e local). Assim, suas questões tão instigantes. A primeira
a punição do agente e a MARISA é especialista e mestre em Música dessas considerações
pela Universidade Federal de Goiás (UFG),
responsabilização do coordenadora do Projeto de Extensão “Gru-
refere-se a uma necessá-
Estado, elementos-chave po de Estudos interdisciplinares em Direitos ria reflexão sobre o que
Humanos” e Produtora Cultural da UFG
no arcabouço dos direi- compreendemos como
tos humanos, nem sempre são as melho- direitos humanos e direitos culturais, ou
res respostas às demandas de violações melhor, sob que perspectiva compreen-
aos direitos culturais; tampouco superam demos os denominados direitos culturais
os desafios do direito ao desenvolvi- em sua interação com os demais direitos
mento. humanos. E, a partir daí, ou paralelamen-
Explico mais: a meu ver, há uma ina- te, nos determos em um aspecto que,
dequação (ou inaptidão), tanto no plano para mim, torna-se essencial, quando
local quanto no plano internacional, das falamos sobre quaisquer desses direitos
formas oferecidas para solução dos con- e, de maneira muito intensa, quando nos
flitos que emergem das temáticas dos referimos aos direitos culturais: a inter-
direitos culturais e do direito ao desen- disciplinaridade.
volvimento. Nessas situações, nem sem- Poderíamos falar, ainda, sobre multi-
pre há um agente privado a ser punido e disciplinaridade e sobre transdisciplina-
a responsabilização do Estado é medida ridade, mas não considero necessário,
que, se adotada de forma isolada, se re- visto que o foco de nossa discussão não é
vela insuficiente. estabelecer uma diferenciação entre es-
Por isso, notamos que, na abordagem ses três conceitos, ambíguos e, muitas
dos direitos culturais e do direito ao de- vezes, cambiantes, mas, sim, compreen-
senvolvimento, há uma clara necessidade der como e quando eles são importantes
de pensar em outras formas para lidar e essenciais nesse processo de
com o legado de omissão em relação à (re)conhecimento dos direitos culturais

87
como direitos humanos; ou, ainda, nas Bem, apesar de o direito ao desenvol-
possibilidades de que as formas de apli- vimento não ser uma área com a qual eu
cação ou efetivação dos direitos huma- atue diretamente, compreendo que não
nos, observadas as particularidades e há como desconsiderar sua importância e
especificidades de cada contexto e vistas essa interrelação que ele apresenta com
sob esse prisma, sejam uma construção os direitos culturais, principalmente
cultural e, como tal, também um direito quando o foco é refletirmos sobre a efeti-
cultural. vidade deste último. Portanto, já começo
O que nos cabe, aqui, é chamar a aten- minha resposta dizendo sim para a sua
ção para o fato de que, observadas em última questão e concordando com você
conjunto e simultaneamente, as concep- que as soluções para os conflitos que e-
ções sobre cultura e diversidade cultural, mergem dos direitos culturais e do di-
a compreensão da amplitude de situa- reito ao desenvolvimento não têm sido as
ções que envolvem os direitos culturais, melhores ou as mais adequadas, quando
bem como a busca de uma prática inter- tratamos dessas duas dimensões dos di-
disciplinar que ultrapasse os limites dos reitos humanos. Penso que as peculiari-
discursos acadêmicos, científicos e jurí- dades e particularidades desses dois uni-
dicos, são bases essenciais para a discus- versos, tanto vistos em separado quanto
são que se propõe neste capítulo. vistos em interação um com o outro, mui-
Essas considerações podem parecer tas das vezes não se adéquam ao que o
óbvias inicialmente, mas se tornam bem contexto e a situação exigem.
mais complexas, se lançamos nossos o- O direito ao desenvolvimento, por e-
lhares sobre várias questões que se apre- xemplo, com seu caráter pluridimensio-
sentam cotidianamente e que não conse- nal, deixou evidente que não é possível
guimos encontrar nenhuma obviedade, considerá-lo a partir de uma ideia sim-
ao lidarmos com elas e ao buscarmos plista que inicialmente vigorou, vincu-
respostas aos desafios que se apre- lando-o apenas ao desenvolvimento eco-
sentam. nômico e a uma busca constante por a-
Afinal, esse diálogo e seus desdobra- cumulação material, desconsiderando
mentos podem envolver desde situações questões como os impactos ambientais,
mais localizadas, como discutir o direito culturais e sociais. Compreender o de-
ou não à preservação e à salvaguarda de senvolvimento na complexidade de suas
determinado acervo, até situações mais dimensões sociais, culturais, políticas e
complexas, como o direito de memória humanas é percebê-lo, conforme reforça
cultural negado a determinadas comuni- Sachs, sob a égide do desenvolvimento
dades, quando estas são submetidas, ab- dos homens e das mulheres em lugar da
sorvidas ou simplesmente dizimadas por multiplicação das coisas.
outros padrões culturais, destituídas de É nessa perspectiva que nos aproxi-
sua cidadania ou de suas próprias identi- mamos da discussão dos direitos cultu-
dades culturais. Ou, ainda, na solução de rais, com seu caráter dinâmico, diverso,
conflitos culturais advindos de fatores às vezes contraditório – quando o direito
como o desenvolvimento, ou nas ques- coletivo e o direito individual se contra-
tões que interligam ambos, direitos cul- põem, por exemplo – e, muitas vezes, de-
turais e direito ao desenvolvimento, co- safiador, pois nos leva a pensar soluções
mo bem lembra a colega INÊS em seu locais para questões que se apresentam
questionamento, que buscarei responder universais e vice-versa. As formas de so-
na sequência. lução dos conflitos advindos das viola-

88
ções dos direitos humanos, conforme ou de instrumentos que viabilizem tratar
destacamos aqui, não têm sido as melho- o passado de omissões e avançar na efe-
res respostas para resolvê-los. Isto de- tividade de ambos, direitos culturais e
corre dessas particularidades a que me direito ao desenvolvimento, são um pro-
referi, mas também da condição singular cesso em andamento. Eles derivam de
que ambos – direitos culturais e direito uma construção coletiva a partir de re-
ao desenvolvimento – apresentam. Ao flexões sobre os desafios conceituais e
mesmo tempo, são distintos e comple- aplicáveis nas práticas e ações que de-
mentares, no meu ponto de vista, pois se corram dessas violações e dos instru-
relacionam entre si, mas mantêm suas mentos até então utilizados, à luz das
especificidades. Ambos são, também, características específicas de cada um
duas vertentes que sempre tocam e inte- dos dois. Talvez essa solução aproxime-
ragem com vários pontos dos demais se da hermenêutica diatópica proposta
direitos humanos e que refletem ou são por Boaventura35, ao discorrer sobre
refletidos por questões decorrentes des- uma necessária concepção multicultural
tes em sua enorme diversidade. de direitos humanos. Pode também estar
Por essa complexidade é que os ins- próxima da proposta de reconciliação a
trumentos protetivos até então delinea- partir da ética, como defende Amartya
dos, sejam eles locais ou nacionais, ainda Sen, na abordagem de Garavito. Ele nos
não conseguiram ser eficazes para as traz um conceito de desenvolvimento
demandas do direito ao desenvolvimento que prima pela autonomia, individual e
e não possibilitaram promover uma ver- coletiva. Um “modelo emancipador de
dadeira efetivação dos direitos culturais. desenvolvimento, que não seja imposto
As tensões geradas em situações cul- de fora, mas sim, algo interno às socieda-
turais exigem novas propostas de gestão des que requer informação e profundo
e de solução de conflitos que deem conta debate público”36.
de velhos e novos dilemas. Alguns destes, Portanto, nessa busca de novos ins-
anteriormente resolvidos de forma a difi- trumentos e soluções, INÊS, não vejo ou-
cultar ainda mais a efetivação desses di- tro caminho que não seja por meio de
reitos, tais como as situações em que o iniciativas coletivas e decorrentes de um
modelo de desenvolvimento afeta as i- intenso debate por parte dos que se sen-
dentidades culturais ou, ainda, em que há sibilizam e lutam pelos direitos culturais
uma desconstrução ou uma verdadeira e por parte dos que praticam e fazem da
perda de valores e/ou de cidadania cul- cultura sua lida diária, junto às suas co-
tural, como destaca Hannah Arendt34, ao munidades. Talvez, assim, tenhamos a
abordar como emigrantes, na condição possibilidade de uma efetivação, pois as
de apátridas nesse modelo vigente de reflexões e debates coletivos podem so-
Estados-nação, são destituídos do seu
lugar de fala, da proteção do Estado e da
possibilidade de estabelecerem um lar. 35 SANTOS, Boaventura de Souza. Por Uma
Concepção Multicultural de Direitos Huma-
Portanto, INÊS, para finalizar e tentar
nos. Revista Crítica de Ciências Sociais. Nº 48.
responder a última de suas questões, Junho de 1997, pp 11-32.
posso dizer que outras formas de atuação 36 GARAVITO, César Rodríguez; KWEITEL,
Juana e WAISBICH, Laura Trajber. Desenvol-
vimento e Direitos Humanos: Algumas Ideias
34 ARENDT, Hanna. As Perplexidades dos para Reiniciar o Debate. Revista Internacional
Direitos do Homem. São Paulo: Cia das Letras, de Direitos Humanos. CONECTAS – Direitos
1989, pp. 325-336. Humanos. V.9, n. 17, dez 2012.

89
mar experiências e identificações do que quando estamos tratando dos direitos
é ou não viável, do que é ou não aplicável culturais como direitos humanos. O pri-
e, principalmente, de quais pontos de meiro deles é o fato de que, conforme
partida poder-se-ia buscar práticas e ins- afirma Bobbio37, e nesse aspecto con-
trumentos protetivos mais adequados ao cordo inicialmente com ele, os direitos
âmbito cultural e ao âmbito do desenvol- humanos são históricos; ou seja, consti-
vimento a partir de um modelo que se tuem-se ou configuram-se como tal a
mostre eficaz ou, pelo menos, melhor partir da complexidade de cada época e
aplicável. das demandas desse tempo histórico es-
pecífico, sejam elas sociais, políticas, eco-
RICAR DO nômicas, entre outras. Por isso, podemos
- Já que o tema é “direitos culturais como observar que cada área dos direitos hu-
direitos humanos”, gostaria de indagar, a manos vai ser contemplada em maior ou
partir de minha própria experiência co- menor grau em determinado tempo ou
mo Consultor Legislativo da área de edu- época.
cação e cultura da Câmara dos Depu- Para alguns autores, seriam as cha-
tados, e por também acompanhar os tra- madas gerações de direitos humanos, as
balhos na Comissão de Direitos Humanos quais nos servem para estabelecer uma
e Minorias, por que a temática dos direi- análise didática, mas que são indivisíveis,
tos culturais não tem sido objeto de mai- pois sabemos que há uma simul-
ores discussões e debates no âmbito dos taneidade e que as várias áreas dos direi-
direitos humanos. tos humanos operam ao mesmo tempo
Há uma falsa ideia generalizada, ao na prática. Ou seja, se falamos em direi-
nível do senso comum, de que os direitos tos civis, não podemos dissociá-los dos
humanos se restringem ao mero alcance direitos políticos; se falamos em direitos
e exercício dos direitos à vida, à integri- políticos, não podemos dissociá-los dos
dade física, ao direito de votar e ser vo- econômicos e dos civis; se falamos em
tado, ou quando muito aos direitos soci- direitos culturais, não podemos dissociá-
ais (direito à educação, à saúde, ao traba- los dos direitos políticos, econômicos e
lho e à assistência social, entre outros). civis, e assim sucessivamente.
Esquece-se, muitas vezes, que os direitos O que difere são os períodos em que
culturais devem ser considerados direi- cada qual foi conquistado ou reconhecido
tos humanos e na nova terminologia ju- enquanto direito humano, pois todos
rídica "direitos fundamentais". advêm, historicamente, de conquistas, de
Pergunto: por que os direitos cultu- lutas, de revoluções, de organizações da
rais são tão negligenciados na formula- sociedade, de momentos em que aquele
ção de uma política pública de valoriza- anseio necessitava fazer-se representado
ção e promoção dos direitos humanos? de uma forma mais estruturada, incisiva
Os direitos culturais podem também e até mesmo positivada. E, ainda, da ne-
ser incluídos no rol dos direitos sociais cessidade ou não de afirmar as liberda-
ou eles seriam melhor tipificados como des por meio do Estado ou por sua ina-
direitos difusos? ção.
Além disso, não podemos esquecer
MARISA que os direitos humanos estão sempre
- Para responder aos seus questionamen-
tos creio que vale a pena recorrer a dois
37 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio
pontos que considero importantíssimos, de Janeiro: Elsevier, 2004.

90
em construção e que, em sua essência, ao lugar que lhe é dedicado ou ao papel e
são um eterno paradoxo, como afirma à compreensão da importância da cultura
Costa Douzinas38. dentro de uma determinada sociedade. E,
Quanto a essa vinculação dos direitos ainda, fundamentalmente, à compreen-
humanos a essa ideia generalizada e ao são de que cultura não é algo estático,
senso comum que vigora, que você des- imutável. Pelo contrário, a dinamicidade
creveu tão bem na introdução de sua é característica marcante da cultura e,
questão, é necessário também considerar por isso, muitas das vezes nos tornamos
cada um desses momentos em que esses reféns da nossa própria (in)capacidade
direitos foram paulatinamente conquis- de acompanhar e de nos apropriarmos
tados e, ainda, associar às questões pró- dessas mudanças para as tomadas de
prias do contexto brasileiro, para com- decisão no que se refere aos aspectos
preendermos por que ela ocorre. culturais.
Essa visão estereotipada não surgiu No decorrer dos tempos a compreen-
por acaso e foi se constituindo gradati- são do que é cultura e sua conceituação
vamente no imaginário da população, a passou e passa por várias perspectivas,
partir de situações históricas, políticas e até mesmo dentro de áreas específicas.
de embates ideológicos específicos, como Os próprios antropólogos, por exemplo,
é possível perceber no período ditatorial, nos remetem a uma infinidade de concei-
por exemplo. Houve e há um direciona- tos de cultura de acordo com a vertente
mento que busca associar o tema a de- com que se identificam melhor e na qual
terminados procedimentos, atitudes e acreditam ser a melhor maneira de expli-
manifestações e a desconsiderar outros, car as relações culturais em sua comple-
fomentando pontos de vista muitas vezes xidade. Isso, sem falar nas várias acep-
tendenciosos sobre o real papel e atua- ções que o termo cultura adquiriu ao
ção dos que se dedicam à luta pelos direi- longo dos tempos, que vão desde a iden-
tos humanos. tificação de cultura com cultivo até a i-
Essas visões são reforçadas, constan- dentificação de cultura com status edu-
temente, à medida que os instrumentos cacional.
de difusão trazem à tona informações É necessário também considerar as
deturpadas ou superficiais sobre o as- inúmeras vezes que, ao falar de cultura,
sunto e sobre os temas e instâncias em muitas pessoas associam basicamente ao
que os direitos humanos operam ou atu- âmbito das artes e, muitas das vezes, a
am. E, ainda, à medida que algumas me- manifestações artísticas específicas,
didas básicas, para uma discussão mais desmerecendo produções e manifesta-
profunda sobre direitos humanos, não ções de determinados grupos e desconsi-
são contempladas de forma efetiva para a derando que cultura envolve uma ampli-
desconstrução desse (pré)conceito, tais tude muito maior. Não é minha intenção
como as políticas públicas voltadas para discorrer aqui sobre essas várias acep-
a educação em/para os direitos humanos ções, até porque considero que há pes-
Mas, para chegarmos especificamente soas muito mais gabaritadas para tal,
aos direitos culturais, há ainda um se- mas o que considero necessária é a per-
gundo ponto, que remete à própria con- cepção de como todo esse processo tor-
cepção de cultura e, consequentemente, na-se crucial para entendermos o “es-
quecimento” ou a “negligência” com as
questões culturais e, consequentemente,
38DOUZINAS, Costa. O Fim dos Direitos Hu-
manos. São Leopoldo: Unisinos, 2009.
com os direitos culturais. Afinal, é dessa

91
concepção de cultura e da compreensão mais efetiva há muito pouco tempo, se
de como ela opera na sociedade, bem considerarmos a longevidade das trans-
como da concepção de direitos humanos formações históricas. No Brasil, são re-
nos seus vários âmbitos, em especial no centes um Ministério da Cultura, um Ins-
dos direitos culturais, que vai derivar tituto Brasileiro de Museus, um Plano
uma valorização, uma promoção e o inte- Nacional de Cultura, uma Secretaria de
resse por estabelecer políticas públicas Direitos Humanos com status de ministé-
de direitos humanos que contemplem rio, um currículo escolar que pelo menos
também os direitos culturais e que con- contemple a possibilidade de inserção
tribuam para sua efetivação. dessa discussão sobre direitos humanos
Na introdução a este diálogo, eu já di- nas escolas; enfim, são todos instrumen-
zia da importância concernente à con- tos recentes e que, se continuados, po-
cepção de cultura, quando estamos discu- dem resultar em uma possível política
tindo direitos culturais. Dizia também de pública de direitos humanos e em uma
outro aspecto fundamental, que se refere política pública específica para os direi-
à diversidade cultural. tos culturais
Se buscarmos os vários documentos Quando nos referimos aos direitos
que versam sobre direitos humanos e, culturais, estamos apenas “engati-
em específico, sobre direitos culturais, nhando”. Na realidade e no contexto em
torna-se evidente como o processo de que convivo, por exemplo, no Estado de
transformação nessas concepções pode Goiás, direitos culturais ainda são semen-
ser observado. Onde antes se falava em tes em germinação. A discussão é inicial
um homem genérico, passou-se a falar no próprio meio acadêmico, e temos ten-
em pluralidade de culturas, de diferenças tado dar esse impulso dentro da UFG,
e de respeito a essas diferenças. Na pró- através do Núcleo Interdisciplinar de
pria constituição brasileira, onde antes se Estudos e Pesquisas em Direitos Huma-
falava apenas em patrimônio cultural nos e, é claro, por meio de parcerias in-
material, passou-se a contemplar os bens ternas com os espaços e âmbitos cultu-
imateriais, atendo-se aos aspectos sim- rais e de parcerias externas, como o Gru-
bólicos e aos significantes e significados po de Estudos e Pesquisas em Direitos
inerentes a esses bens e aos diversos po- Culturais da Unifor.
vos e formas de manifestações coletivas. Os próprios agentes que lidam cotidi-
Sua primeira pergunta, RICARDO, anamente com a cultura, em sua maioria,
questionava o porquê de os direitos cul- não estão totalmente inteirados de que
turais serem tão negligenciados na for- cultura é um direito, de que cultura é
mulação de uma política pública de valo- uma forma de exercício de cidadania, de
rização e promoção dos direitos huma- que as questões culturais tangenciam os
nos. Do meu ponto de vista, diante de vários outros âmbitos dos direitos hu-
tudo o que disse acima e diante das expe- manos e, por isso, mereceriam uma aten-
riências vivenciadas nesses vários anos ção redobrada não só pelos que atuam
de atuação profissional na área cultural, especificamente com cultura, seja no âm-
creio que não há uma resposta específica bito da economia da cultura, dos direitos
e definitiva, mas, sim, indícios que nos autorais, dos direitos à fruição cultural,
levam a perceber que esse é um processo das manifestações artístico-culturais, da
em andamento. participação cultural, entre outros. En-
Afinal, estamos nos atendo às ques- fim, essa necessária aproximação com a
tões de direitos humanos de uma forma cultura e com os direitos culturais deve-

92
ria ser também percebida por todo o sis- reito à personalidade, ao invés de ter o
tema que compõe os direitos humanos, status de um direito cultural novo, ficaria
na perspectiva interdisciplinar ou multi- melhor situado no âmbito do direito à
disciplinar, já citada por mim na introdu- identidade cultural. Afinal, o direito à
ção a este diálogo, a qual remete à pers- subjetividade nada mais é do que a apli-
pectiva intercultural ou multicultural cação, à pessoa humana, daquilo que é
proposta por Boaventura, a que também devido aos povos, ou seja, possuir uma
já me referi. história própria, decidir sobre seu des-
RICARDO, sob essa perspectiva, consi- tino e defender sua autonomia e seus
dero que seriam necessárias algumas valores”39.
poucas considerações da minha parte em
relação à sua segunda pergunta, sobre os
HUMBERTO
direitos culturais estarem incluídos no
- Gosto muito quando você combate a
rol dos direitos sociais ou serem tipifica-
ideia de uma hierarquia de importância
dos como direitos difusos. Voltando a
entre os direitos, na qual os Direitos Cul-
afirmar que a divisão é apenas para fins
turais estariam na parte inferior. Você
classificatórios e analíticos, pois concebo
adere à horizontalidade axiológica de
os direitos humanos como um todo, em
todos os direitos humanos, o que é muito
sua total interdependência, eu os mante-
estratégico, em termos de garantias.
ria exatamente como foram concebidos,
Todavia, eu gostaria de testar algo um
dentro do status específico de direitos
pouco mais ousado: penso, sim, na igual
culturais, como as próprias gerações ou
dignidade dos direitos humanos (per-
dimensões dos direitos humanos esta-
mita-me a prosopopeia), mas acho mes-
beleceram ao longo da história e que são
mo que os objetivos dos seres humanos
consideradas internacionalmente: direi-
são mais atrelados aos direitos culturais,
tos humanos civis, políticos, econômicos,
que a outros direitos os quais geralmente
sociais, culturais e, mais recentemente,
figuram, no pensamento majoritário, na
difusos ou transindividuais. Nestes últi-
pauta dos importantes. Justifico meu
mos estariam inseridos o direito a um
pensamento: tudo o que os seres huma-
meio ambiente saudável, à qualidade de
nos fazem tem por metas entender mais
vida, ao desenvolvimento, à paz interna-
o mundo, aproximar-se do divino, viver
cional e os dos consumidores, além de os
mais confortavelmente, ser mais inteli-
direitos ao reconhecimento da “dife-
gentes, conhecer mais coisas e lugares e
rença, da singularidade e da subjetivi-
coisas do gênero. Não é sem razão que os
dade”, os quais podem ser melhor com-
institutos de estatística demonstram e-
preendidos, se os situamos no processo
xistir mais aparelhos de TV ou celulares
evolutivo dos direitos culturais, como
que objetos estritamente utilitários, des-
reforça Mata-Machado em seu artigo “Di-
tinados a suprir nossas carências emi-
reitos Humanos e Direitos Culturais”. En-
nentemente fisiológicas. A situação pare-
cerro esta nossa etapa do diálogo con-
ce confirmar os versos shakespearianos
cordando com este autor, quando diz
de que somos feitos da mesma matéria
que:
de que são feitos os sonhos. Você concor-
“A fim de evitar uma ‘Inflação’ de di- da com esse pensamento?
reitos culturais, já que não é fácil fazer
respeitar os já existentes, consideramos, 39 MATA-MACHADO, Bernardo Novais da.
após reflexão mais profunda, que o di- Direitos Humanos e Direitos Culturais.
2007, p. 11.

93
Por outro lado, não desconheço que essência “sonhadora” que constitui a nós,
essa nossa dimensão idílica é também o seres humanos, que diferencia o campo
nosso ponto fraco e de manipulação, que da cultura e, por consequência, os direi-
nos leva a ter comportamentos opostos tos culturais, e os torna tão complexos.
aos nossos objetivos. Como eu falei de Nós somos, culturalmente falando, essa
massificação de comportamentos e até mistura entre aspectos ligados ao simbó-
de objetos e objetivos, com base nisso, lico, aos significados, ao etéreo, ao abs-
formulo o meu segundo questionamento: trato e, ao mesmo tempo, aos aspectos
como a indústria cultural interfere na culturais e socialmente produzidos, mais
compreensão e na efetivação dos direitos pragmáticos e palpáveis.
humanos e, notadamente, dos direitos Somos, também, constituídos cultu-
culturais? ralmente e socialmente por dimensões
conscientes e inconscientes que se inter-
MARISA relacionam e constituem o imaginário
- Suas questões muito me agradam. No dos grupos e indivíduos, conforme dis-
que se refere à primeira, comungo dessa cuto em minha dissertação de mestrado
mesma ideia de que os direitos culturais, (2004) ao abordar aspectos relacionados
vistos em sua amplitude e magnitude, são à cultura musical. Os fatores acima desta-
extremamente atrelados a tudo que os cados estão imbricados e são necessários
seres humanos buscam na constituição aos questionamentos que nos direcionem
de sua humanidade e na tentativa de a uma compreensão de como diversida-
compreensão do mundo em que vivem. des, identidades, diferenças, multicultu-
Principalmente, se considerarmos que as ralidade, entre outros fatores, operam na
questões culturais perpassam e são ine- configuração teórica e na efetivação dos
rentes a quaisquer instâncias da vida em direitos culturais.
sociedade e, portanto, a todas as outras Porém, é importante que esse ponto
instâncias dos direitos humanos; se nós, de vista não direcione para uma compre-
humanos, não estivéssemos em busca de ensão equivocada de uma priorização
explicações sobre nossa permanência no dos direitos culturais em detrimento dos
mundo, sempre criando formas de tornar demais, mas, sim, à compreensão de que,
esse lugar mais agradável, criando ma- em função de suas especificidades, os
neiras de suprir nossas carências emo- direitos culturais adquirem certa centra-
cionais e individuais, muitas vezes de lidade, entre os vários direitos humanos.
ordem interna, mas importantes para o Eles tangenciam e tocam, de uma manei-
estabelecimento de laços uns com os ou- ra mais constante e mais próxima, esse
tros, talvez nada fizesse sentido. emaranhado de situações que objetivam
Se não possuíssemos maneiras peculi- a vida humana, das várias ordens, sejam
ares e distintas de expressar essa busca elas abstratas, práticas, fisiológicas, psí-
através das artes, das divindades, da ma- quicas, sobrenaturais etc.
gia, da criatividade, do estético, do so- Creio ser oportuno destacar um co-
brenatural, do científico, do tecnológico, mentário de Patrice Meyer-Bisch, sobre
não conseguiríamos ir além da ordem do essa centralidade dos direitos culturais:
fisiológico, do biológico.
“No interior do sistema dos direitos
Por isso, sua justificativa vem ao en-
humanos, são os direitos culturais que
contro do que penso também, pois é exa-
atualmente estão em primeiro plano,
tamente esse nosso lado subjetivo (na
pois são as ferramentas que permitem
falta de um termo mais adequado), essa

94
garantir o bom uso da diversidade a ser- de terem acontecido mais violações aos
viço da dignidade humana, universal, direitos humanos justamente nos perío-
singularmente presente em cada um e dos em que estes estavam mais evidentes
desenvolvida graças a seus recursos cul- e em discussão e em momentos em que
turais. Recolocar os direitos culturais vários documentos e acordos sobre direi-
dentro do sistema dos direitos humanos tos humanos foram pactuados.
é uma exigência de coesão conforme ao Considero que com os direitos cultu-
princípio da indivisibilidade; é também rais esse paradoxo é bastante evidente,
recolocá-los no centro do político. Tal é o justamente pelas características acima
desafio filosófico, ao mesmo tempo an- discutidas, relacionadas às dimensões
tropológico, jurídico e político que está conscientes e inconscientes que constitu-
em jogo: o desafio da proteção mútua em a cultura, o seu caráter subjetivo e
entre diversidade e direitos culturais, um extremamente dinâmico, que envolve as
fator ainda muito mal conhecido pela várias áreas da vida e torna tão complexa
paz, assim como pelo desenvolvimen- essa lógica cultural. Portanto, configura-
to”40. se uma tarefa delicada e difícil tentar
compreender o(s) comportamento(s)
Volto a destacar, como já afirmei an-
humano(s) diante das questões que se
teriormente, que compreendo os direitos
apresentam na vida cotidiana sócio-
humanos de maneira não hierárquica e
cultural e os seus reflexos nas atitudes,
indivisível e, simultaneamente, em cons-
tomadas de decisão, manifestações cultu-
tante transformação, como o é o ser hu-
rais, definições de gostos e preferências.
mano em interação com outros seres
Enfim, na tentativa de explicar a rela-
humanos; ou seja, em suas relações cole-
ção paradoxal entre a existência de uma
tivas. De outra forma, seguiríamos a lógi-
maior confluência dos objetivos humanos
ca desse mesmo pensamento majoritário
para as questões da cultura e dos direitos
– equivocado, do meu ponto de vista –
culturais e, por outro lado, essa dificul-
que eleva determinados direitos huma-
dade enorme de um reconhecimento dos
nos para a pauta dos mais importantes,
papeis variados e fundamentais da cultu-
desconsiderando outros.
ra na vida humana e nas relações hetero-
Quanto a esse nosso caráter sonhador,
gêneas dos diversos grupos e indivíduos
essa dimensão idílica que você destaca
entre si. Fatores que, sem dúvida, são
como sendo nosso ponto fraco, pois nos
preponderantes e devem ser considera-
leva a ter comportamentos opostos aos
dos amplamente na busca por tornarmos
nossos objetivos, é importante lembrar-
efetivos os direitos culturais.
mos que vários autores ressaltam que
Diversos autores vêm destacando as
uma característica inerente aos direitos
limitações teóricas enfrentadas no decor-
humanos é exatamente essa relação pa-
rer dos tempos, pelos estudiosos dos as-
radoxal. Uma relação em que comporta-
suntos, que permeiam as questões sócio-
mentos, atos e atitudes, correspondem
culturais, bem como as questões ideoló-
inversamente ao que se apregoa em vá-
gicas nelas presentes.
rias situações, como, por exemplo, o fato
No tocante à indústria cultural, por
exemplo, que é o tema da segunda ques-
40 MEYER-BISCH, Patrice A Centralidade dos tão apresentada, entre os vários autores
Direitos Culturais: pontos de contato entre um de que gosto muito é John B. Thomp-
diversidade e direitos humanos. Revista do son. Ele traça uma crítica, fazendo consi-
Observatório Itaú Cultural, São Paulo: Itaú
Cultural, p. 28, v. 11.
derações muito interessantes sobre as

95
limitações dos estudos dos frankfurtia- comunicação de massa e as estratégias
nos, principalmente Horkheimer e Ador- utilizadas pelo marketing, por exemplo.
no e, na sequencia, Habermas, apesar de Mas é preciso muito cuidado para não
reconhecer a grande importância destes cairmos no senso comum e, de maneira
nesses estudos e destacar que eles mes- simplista, considerar que tudo se resume
mos já consideravam que os resultados a isso. Ou seja, uma compreensão que
apresentados deviam ser vistos como não examina, em detalhe, a complexidade
necessariamente provisórios. da organização social e dos próprios in-
Thompson traça essa discussão no li- divíduos em relação aos diversos campos
vro Ideologia e Cultura Moderna com o em que estes se inserem, que não busca
objetivo específico de nos oferecer uma identificar as práticas cotidianas das in-
teoria social rumo à compreensão do dústrias midiáticas, que não estabelece
papel da mídia nas sociedades modernas. as diferenças entre um ramo da mídia e
Também seguirei por esse caminho, dire- outro, que não leva em conta os vários
cionando os argumentos à segunda ques- outros aspectos, inclusive as trocas sim-
tão para os fatores referentes à mídia, já bólicas, as relações de dominação, os sig-
que, do meu ponto de vista, é uma das nificados imanentes a cada produto e a
áreas cruciais da indústria cultural no cada manifestação cultural e a própria
tocante a nossa discussão. ressignificação desses significados por
O tema indústria cultural é extrema- parte das pessoas.
mente amplo e envolve aspectos diver- Enfim, é necessária uma compreensão
sos; poderíamos discorrer longamente que considere a mídia tal como ela é: co-
sobre ele, sob várias perspectivas. Mas, mo parte importante da realidade social
como esta não é a questão central deste e, desta forma, emaranhada nessa teia
nosso diálogo, faz-se necessário delimitar complexa de relações que essa realidade
a partir do que considero relevante pon- apresenta.
tuar e, para mim, o papel midiático é de Tomando novamente como referência
grande importância nessa análise. John B. Thompson, é interessante como
Pois bem, é fato que o desenvolvimen- ele sintetiza essa questão:
to dos meios de comunicação de massa
“[...] não se pode pressupor que as ca-
foi impactante para a cultura e, sem dú-
racterísticas que o analista discerne num
vida, um dos grandes instrumentos a-
produto cultural particular terão um de-
propriados pela indústria cultural. Isso se
terminado efeito quando o mesmo é re-
efetivou ainda mais, com o acelerado de-
cebido e apropriado pelos indivíduos no
senvolvimento tecnológico, pois o pro-
decurso de suas vidas cotidianas. A re-
cesso de difusão cultural está intrinse-
cepção e apropriação de produtos cultu-
camente relacionado ao desenvolvimento
rais é um processo social complexo, que
dos diversos aparatos técnicos de grava-
envolve uma atividade contínua de inter-
ção, digitalização, reprodução, propaga-
pretação e a assimilação do conteúdo
ção da imagem e do som, simultaneidade
significativo pelas características de um
de acesso em tempo real e espaços dife-
passado socialmente estruturado de in-
renciados, as possibilidades do próprio
divíduos e grupos particulares. A tentati-
receptor produzir e difundir sua produ-
va de derivar as consequências dos pro-
ção, e às mudanças sócio-culturais ocasi-
dutos culturais dos próprios produtos
onadas pelo uso dessas tecnologias. En-
significa esquecer essas atividades per-
globa ainda a dinâmica que envolve a
manentes de interpretação e assimilação;
mídia e seus recursos, como os meios de

96
é especular sobre o impacto desses pro- cial para que possa se transformar em
dutos sobre as atitudes e comportamen- um instrumento estratégico na constru-
tos de indivíduos, sem examinar esse ção de uma cultura de respeito aos direi-
impacto de uma maneira sistemática”41 tos humanos, diante de sua grande capa-
(p. 139). cidade de propagar ideias, formar valores
e influenciar nos comportamentos.
Portanto, é necessário refletirmos so-
Conforme destacaram os idealizado-
bre como a indústria da mídia opera,
res, em 2013, do ciclo de formação mí-
compreendermos sua lógica e como o-
dias e educação em direitos humanos, do
corre o processo de circulação e difusão
Coletivo Intervozes:
de ideias e de comportamentos dentro
desses meios, bem como de que forma “A televisão aberta, assistida cotidia-
eles são apropriados pelos grupos e pelos namente por 94% da população brasilei-
indivíduos. ra, segundo recente pesquisa da Funda-
Isso, sem dúvida, exige estudos e pes- ção Perseu Abramo, coleciona programas
quisas sobre os quais não tenho nenhu- campeões de violações. Dois exemplos
ma pretensão de opinar e nem compe- são emblemáticos: os programas de audi-
tência para fazer uma reflexão acadêmica tório que exploram conflitos pessoais e
aprofundada. Não me é possível dizer abusam da exposição das mazelas de
com propriedade como a indústria cultu- pessoas em situação de vulnerabilidade
ral interfere na compreensão e na efeti- psicológica e social; e os programas poli-
vação dos direitos humanos e dos direi- ciais que violam direitos de crianças e
tos culturais, mas é, sim, possível dizer adolescentes, criminalizam a pobreza,
que esse “como” passa também por al- invadem domicílios e desrespeitam, de
gumas constatações relativas às questões todas as formas, a dignidade humana. Em
midiáticas. síntese, a mídia brasileira, de um modo
Um fator primordial que não podemos geral, tem sido criminosa e irresponsável
desconsiderar é que, como ocorre em pela infinidade flagrante de reforços de
todas as áreas, na produção midiática há intolerância e violência”42.
disputas de poder e a seleção do que de-
Ao nos questionamos se a mídia inter-
ve e pode ou não ser veiculado sofre in-
fere na compreensão e na efetivação dos
fluências desse e de outros fatores. En-
direitos humanos, podemos responder,
quanto espaço político, social, ideológico
com certeza, que sim. Isso se evidencia
e, efetivamente, cultural, a comunicação,
no próprio cotidiano, ao ouvir as opini-
através de seus meios midiáticos, tem
ões das pessoas, mesmo nas conversas
desempenhado historicamente um papel
corriqueiras. Aqueles jargões e palavras
de violação dos direitos humanos, repro-
pré-concebidas, largamente difundidos
duzindo e legitimando essas violações.
pelos que têm uma visão restrita e este-
A opressão e o preconceito, na socie-
reotipada de direitos humanos, ainda são
dade, são fortalecidos diariamente, seja
muito utilizados. Em grande parte por
no processo de produção, de difusão ou
comunicadores que não têm ideia de seu
de recepção desses conteúdos. Apesar de
papel, como formadores de opinião, e,
haver, por outro lado, um grande poten-
irresponsavelmente, fazem julgamentos

41 SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma 42 Disponível em:


concepção multicultural de direitos humanos. http://www.cartacapital.com.br/blogs/interv
Revista Crítica de Ciências Sociais. Nº 48. Ju- ozes/midia-e-direitos-humanos-um-debate-
nho de 1997, pp 11-32. necessario-9408.html

97
e emitem opiniões que vão trazer aos exemplo, as matérias mais exibidas re-
cidadãos informações equivocadas. forçam a vinculação dos direitos huma-
É evidente quanto são poucas as opor- nos a apenas determinadas áreas, não
tunidades em que os programas de tele- demonstrando a amplitude de ações e
visão e/ou rádio debatem, de maneira direcionamentos que estes possuem. Um
mais profunda e qualificada, as temáticas desses direcionamentos, praticamente
de direitos humanos. Também são pou- desconhecido pela população em geral, é
cas as situações em que estes sejam efe- justamente o dos direitos culturais.
tivos na realização de campanhas educa- A partir dessa constatação, já pode-
tivas que visem incentivar mudanças mos identificar um dos motivos pelos
comportamentais, a fim de combater atos quais a indústria cultural interfere na
e ações de racismo, de violência, entre compreensão e na efetivação dos direitos
outros aspectos. culturais. Porém, como já ressaltado an-
Enquanto estudiosos dos direitos hu- teriormente, há diversos outros fatores
manos o que percebemos é que, no to- implícitos. Um deles, por exemplo, é a
cante à publicidade, muito do que é vei- concepção que se tem de cultura, a com-
culado reforça preconceitos e valores preensão de sua amplitude e dos vários
discriminatórios. Nas estratégias de âmbitos em que ela se faz presente. Po-
marketing e nas publicidades veiculadas, demos observar que o assunto cultura
são constantes as situações em que mu- nos meios de comunicação é geralmente
lheres são expostas como objetos ou co- pontual, restrito ao entretenimento e às
locadas sob posição de inferioridade, em artes.
situações de assédio. Desta forma, o senso comum que se
No que se refere às mídias virtuais, construiu e que precisa ser revisto, é de
como as redes sociais na internet, por que, quando se refere à cultura, está se
exemplo, há pouco tivemos a defesa de tratando de algo menor, não essencial à
mestrado de um de nossos alunos, no vida humana. Ou, ainda, de que estamos
Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pes- tratando de uma cultura “maior”, descon-
quisas em Direitos Humanos da UFG. Ele siderando uma de “menor” valor.
investigou como se processava a relação Essa é uma discussão que remeteria à
entre a Secretaria Especial de Direitos distinção estabelecida entre cultura eru-
Humanos e a população, através das re- dita, cultura popular, cultura de massas
des sociais. (ou indústria cultural), o que Alfredo Bo-
Entre um dos aspectos verificados, o si43 denomina de faixas culturais. O autor
aluno coletou os conteúdos das mensa- insere também o que poderíamos deno-
gens postadas pelos internautas naquele minar de cultura universitária e cultura
espaço, que se pretende democrático e criadora extra-universitária e diz que a
informativo. Muitas das vezes, são men- linha que separa todas elas é extrema-
sagens com um conteúdo extremamente mente tênue e que a cultura de massa, ao
preconceituoso e, até mesmo, verbalmen- contrário do que muitos idealizam, per-
te violento, contendo xingatórios indig- passa constantemente todas as outras
nados aos que se dedicam à causa dos faixas culturais. Essa distinção, na práti-
direitos humanos. ca, não ocorre de forma estanque e dis-
Exemplos não nos faltariam para au- sociada uma da outra.
mentar essa lista de violações e/ou de
desinformações a respeito dos direitos
43 BOSI, A. Dialética da Colonização. 4. ed.
humanos. No caso do jornalismo, por São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

98
É interessante, nesse ponto, relatar mulação teórica dos direitos culturais,
uma situação ocorrida, quando eu estava dentro dessa perspectiva, ainda está mui-
desenvolvendo minha pesquisa na espe- to ligada à questão identitária.
cialização em música. Meu intuito era Não sei se isso faz parte do momento
investigar as significações culturais con- histórico que você mencionou ou é uma
tidas na programação musical das rádios interpretação equivocada minha, mas
FM de Goiânia. Naquela ocasião, me pro- como você compreende a influência do
pus a entrevistar os diretores artísticos debate sobre identidade na conceituação
dessas rádios, a fim de identificar quais e desenvolvimento dos direitos cultu-
eram os critérios adotados para a defini- rais?
ção do repertório diário da programação
musical de cada uma delas. Ao chegar MAR ISA
numa das entrevistas e expor que eu es- - Concordo plenamente com você, em
tava investigando aspectos culturais, o relação ao fato das questões identitárias
diretor de uma dessas rádios, pessoa ex- estarem muito ligadas à formulação teó-
tremamente conceituada no meio artísti- rica dos direitos culturais. Aliás, eu diria
co e cultural goiano, me fez a seguinte que são de grande importância, ademais
pergunta: se sua intenção é falar sobre nos tempos atuais, pois as transforma-
cultura, o que você busca aqui? O que ções nesse âmbito vão impactar direta-
uma programação musical de uma rádio mente nas reflexões e estudos que dire-
FM tem de cultural? cionem ou apontem para esse fim.
Portanto, para finalizar, vejo que há Afinal, na perspectiva dos estudos cul-
muito a fazer, para que haja uma com- turais esse é um tema bastante debatido,
preensão de cultura num âmbito mais principalmente a partir das várias críti-
adequado ao que a realidade nos apre- cas e reflexões sobre o próprio conceito
senta e, consequentemente, uma com- de identidade tal como estava posto, de
preensão de direitos culturais como algo forma “integral, originária e unificada”,
a ser realmente efetivado. como pontua Stuart Hall.
Para essa efetivação, é preciso que, Vou, portanto, iniciar este diálogo
antes, as pessoas se apropriem da cultura buscando auxílio nesse mesmo autor,
em toda a sua dimensão, se apropriem do para nos situarmos melhor quanto aos
direito de se informar e de ser informado paradigmas essencialistas e não essen-
melhor, culturalmente falando; se apro- cialistas sobre os quais essa discussão
priem do direito a uma educação voltada sobre identidade tem se estabelecido:
também para os direitos culturais.
“O conceito de identidade aqui desen-
Enfim, se apropriem de sua cidadania
volvido não é, portanto um conceito es-
cultural. Para tal, a indústria cultural, via
sencialista, mas um conceito estratégico
mídia, pode ser ou não um instrumento
e posicional.... Essa concepção aceita que
estratégico.
as identidades não são nunca unificadas;
que elas são, na modernidade tardia, ca-
MÁRIO
da vez mais fragmentadas e fraturadas;
- Conforme o seu diálogo travado com o
que elas não são, nunca, singulares, mas
ORIÁ, ficou claro que o tema dos direitos
multiplamente construídas ao longo de
culturais ainda é pouco desenvolvido
discursos, práticas e posições que podem
dentro dos direitos humanos. Contudo,
se cruzar ou ser antagônicos. As identi-
apesar de estarmos engatinhando nessa
dades estão sujeitas a uma historicização
discussão, tenho a impressão que a for-

99
radical, estando constantemente em pro- duzem, simultaneamente, impactos dife-
cesso de mudança e transformação” 44. renciados quanto às identidades. Homo-
geneidade cultural, resistência e reafir-
Por essa perspectiva, é necessário
mação de identidades locais, pluralidades
contextualizarmos o debate sobre as i-
identitárias acompanhadas de grandes
dentidades, na compreensão de que elas
desigualdades, afirmação de novas iden-
são construídas na prática discursiva, por
tidades étnicas, ressurgimento de formas
meio das diferenças e de situações espe-
antigas de identificação étnica, religiosa e
cíficas de poder. Além disso, a construção
nacional e busca renovada de certezas
da identidade é simbólica, é social, e pos-
étnicas, são alguns dos aspectos destaca-
sui uma dimensão psíquica que é tam-
dos por Kathrin Woodward nesse pro-
bém importante, principalmente no que
cesso. A autora destaca que:
concerne às questões de identificação,
outro conceito central quando situamos a “As identidades em conflito estão lo-
identidade no circuito da cultura. calizadas no interior de mudanças soci-
Reforço, ainda, que tanto as identifica- ais, políticas e econômicas, mudanças
ções quanto as diferenças podem sinali- para as quais elas contribuem. As identi-
zar para situações de exclusão e de inclu- dades que são construídas pela cultura
são, com base nas relações de poder que são contestadas sob formas particulares
se estabelecem entre diferentes grupos no mundo contemporâneo – num mundo
ou entre os próprios coletivos e seus su- que se pode chamar de pós-colonial. Este
jeitos. Nesse processo, é preciso estar é um período histórico caracterizado,
ciente dos conflitos, antagonismos, posi- entretanto, pelo colapso das velhas cer-
cionamentos equivocados e, muitas ve- tezas e pela produção de novas formas de
zes, contraditórios. posicionamento... tratando-se de um fe-
Se nos detivermos no momento histó- nômeno que está ocorrendo em uma va-
rico, é possível perceber certa centrali- riedade de diferentes contextos... As cri-
dade nas discussões sobre identidade, ses globais de identidade têm a ver com
exatamente em função das várias altera- aquilo que Ernesto Laclau chamou de
ções propiciadas pelas transformações deslocamento... indica que há muitos e
globais na vida contemporânea. diferentes lugares a partir dos quais no-
A globalização não é um fenômeno re- vas identidades podem emergir e a partir
cente, mas enquanto um processo que dos quais novos sujeitos podem se ex-
envolve fatores econômicos expressivos, pressar”45.
interagindo com aspectos históricos, po-
Stuart Hall destaca que o sujeito fala,
líticos sociais e culturais, seus efeitos e
sempre, a partir de uma posição histórica
seus resultados em relação à identidade
e cultural específica. Há uma fluidez da
podem agora ser percebidos de maneira
identidade, reforça Woodward, e ao rei-
mais impactante. Aponta-se, inclusive
vindicá-la nós reconstruímos a identida-
para uma crise de identidade.
de, sem negar que ela tenha um passado,
A convergência de culturas e de esti-
mas tendo a certeza de que esse passado
los de vida e a intensificação das migra-
sofre uma constante transformação. Por-
ções, por exemplo, são fatores que pro-

45 WOODWARD, Kathryn. Identidade e Dife-


44 HALL, Stuart. Quem Precisa da Identida- rença: uma introdução teórica e conceitual. in
de? in SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e Dife-
e Diferença: a perspectiva dos estudos cultu- rença: a perspectiva dos estudos culturais. 2ª
rais. 2. ed, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 108. edição, Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 25-29.

100
tanto, “ao ver a identidade como uma LN
questão de ‘tornar-se’, aqueles que rei- - O seu diálogo com INÊS me levou ao do-
vindicam a identidade não se limitariam cumentário MATARAM IRMÃ DOROTY
a ser posicionados pela identidade: eles (2008), dirigido pelo cineasta norte-
seriam capazes de posicionar a si pró- americano Daniel Junge e lançado três
prios e de reconstruir e transformar as anos após o assassinato da missionária
identidades históricas, herdadas de um Doroty Stang, conhecida por "anjo da
suposto passado comum” (p. 28). Amazônia". Um filme que retrata a viola-
ção dos direitos humanos e fundamentais
Penso que o desenvolvimento dos di-
(no universo do tema "desenvolvimen-
reitos culturais e sua própria conceitua-
to"), num recorte histórico brasileiro. Um
ção só podem se configurar e se estabele-
trabalho artístico que apresenta passa-
cer, a partir dos vários atores envolvidos
gens dos julgamentos; depoimentos de
nesse processo, os quais são, também,
moradores, dos advogados de defesa dos
sujeitos identitários.
acusados e registros da própria missio-
A forma desses sujeitos se compreen-
nária. Um verdadeiro documento que
derem nesse processo, o seu posiciona-
leva ao público as vozes (minoritárias)
mento e sua maneira de reivindicar suas
dos lutadores pela eficácia dos direitos
identidades, tendo por premissa que ela
fundamentais em vários cenários de de-
está em constante transformação na di-
senvolvimento econômico de grandes
namicidade que envolve a cultura, é que
riquezas naturais, no caso, a Amazônia.
vão propiciar ou não determinados dire-
Socializo esse exemplo, porque, no últi-
cionamentos para o desenvolvimento e
mo mês de fevereiro, completaram-se
uma consequente efetivação dos direitos
dez anos da passagem da missionária e,
culturais. Por isso, obviamente, isso deve
em 2008, em homenagem póstuma, Irmã
ocorrer de forma heterogênea e diferen-
Doroty recebeu o Prêmio da ONU, em
ciada nos diferentes contextos culturais.
comemoração dos 60 anos da "Declara-
Finalizando, então, caro MÁRIO , com-
ção dos Direitos Universais".
preendo que a influência do debate sobre
Aproveitando carona na segunda per-
identidade na conceituação e desenvol-
gunta do HUMBERTO, gostaria de ouvi-la
vimento dos direitos culturais se dá cons-
sobre a contribuição das artes para a efe-
tantemente e de forma direta. Do meu
tivação dos direitos humanos e culturais:
ponto de vista, apesar de não ser estudi-
você considera que os trabalhos artísti-
osa desta área em específico e, portanto,
cos propiciam apenas um despertar de
falando de maneira despretensiosa, o
consciência ou contribuem de forma efe-
impacto de nossas reflexões e conse-
tiva?
quentes ações no âmbito dos direitos
culturais só ocorre, quando há identifica-
MAR ISA
ção por parte dos vários outros sujeitos,
- O seu questionamento me deixa muito à
e identificação é pressuposto fundamen-
vontade, pois essa é uma vertente de dis-
tal para a construção cultural da identi-
cussão que sempre traz ótimas reflexões
dade.
e remete a vários pontos abordados nas
Essa relação de interdependência é
minhas pesquisas de pós-graduação. A-
que determina o grau de complexidade
pesar de nesses trabalhos eu ter me de-
entre o que se pensa e o que se efetiva na
dicado à música em específico, muitas
prática.
considerações são aplicáveis às diversas

101
artes, mesmo com as especificidades ine- funcional, agrega diversos outros aspec-
rentes a cada qual, é claro. tos que são simbólicos, significativos.
Inicio minha resposta, destacando um Transita, pois, nas dimensões conscientes
aspecto que diversos estudiosos abor- e inconscientes dos grupos sociais, as
dam, que é a difícil tarefa de definir e quais se interrelacionam na composição
tornar claro qual é o “lugar da arte” den- da cultura artística dos indivíduos e de
tro das sociedades. Para tal, autores de suas coletividades.
diferentes áreas do conhecimento desen- Portanto, ELIENE, após expor de qual
volveram estudos enfatizando a necessi- “lugar” eu me posiciono, ou seja, sob que
dade da arte, as funções da arte, o papel ponto de vista eu considero as artes, pos-
da arte em grupos específicos, bem como so dizer que, desde o momento em que é
a diversos temas relacionados a essa concebido, ou criado, o trabalho artístico
questão. De acordo com o antropólogo já está contribuindo para uma melhor
Cliford GEERTZ, uma das principais fun- compreensão e para uma efetivação dos
ções que um discurso sobre arte deve ter direitos culturais.
é o de encontrar seu lugar específico no Ele, ao mesmo tempo, consegue refle-
contexto das diversas outras expressões tir aspectos da sociedade e ser refletido
humanas e dos modos de vida a que es- nesse mesmo espaço, ambiente ou situa-
sas expressões dão sustentação46. ção. Ou seja, traz em sua essência a capa-
Nesse sentido, um primeiro ponto a cidade de chegar a locais onde outras
que me atenho é o de que é necessário, expressões podem não conseguir e, as-
sempre, pensarmos a cultura e os vários sim, não só desperta consciências, mas
elementos que a configuram – no caso, as leva à reflexão e propicia que a pessoa, o
artes – como algo intrínseco ao contexto indivíduo, desde que bem apresentado a
social, algo totalmente relacionado às esse universo, o perceba como algo im-
conexões sociológicas. Isso por que, con- portante e essencial para a sua vida e,
cordando com Antônio CÂNDIDO, “[...] a portanto, como algo a que ele deve ter
arte é social nos dois sentidos: depende direito enquanto cidadão.
da ação de fatores do meio, que se ex- As artes podem propiciar a busca, a
primem na obra em graus diversos de necessidade do indivíduo de exercer esse
sublimação; e produz sobre os indivíduos direito, seja como alguém que pratique,
um efeito prático, modificando a sua que assista ou usufrua; ou seja, podem
conduta e concepção do mundo, ou re- despertar para a tão sonhada cidadania
forçando neles o sentimento dos valores cultural, a qual nós, estudiosos dos direi-
sociais”47. tos culturais, almejamos tanto.
Do meu ponto de vista, concordando Visto sob o olhar dos processos educa-
com diversos autores, a arte é um fenô- tivos, sejam eles formais, não formais ou
meno sócio-cultural. Ela se constitui co- informais, vejo ainda mais clara essa pre-
mo um dos suportes representativos do sença fundamental dos trabalhos artísti-
imaginário das sociedades, justamente cos, no que tange à efetivação dos direi-
porque ultrapassa um papel puramente tos culturais.
Além de ser uma linguagem diferenci-
ada, específica, e que muitas vezes con-
46 GEERTZ, C. O Saber Local: novos ensaios segue dizer mais que as palavras ditas
em antropologia interpretativa. Petrópolis:
Vozes, 1998, p. 45.
em sala de aula, por exemplo, a lingua-
gem artística traz em si múltiplas signifi-
47 CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade. São
Paulo: Nacional, 1985, p. 24.
cações, fazendo com que cada pessoa se

102
aproprie de maneira diferenciada dessas que realmente me incomodava era o fato
“informações” que o trabalho artístico de nem todos poderem ter acesso aos
lhe propicia. estudos musicais. Eu enxergava nisso um
De posse desses conhecimentos, o ser claro desrespeito a um direito que deve-
humano pode (ou não) tomar pra si a ria ser de todos. Acabei buscando uma
tarefa ou a missão de buscar nas artes aproximação com a cultura por outras
um instrumento de luta visando ao cum- vias, pois sempre foi uma área que me
primento do que preconizam os direitos agradou muito. Porém, tenho pra mim
culturais. A efetivação, o cumprimento, a que, de uma forma torta, eu me aproxi-
naturalização dos direitos culturais em mei dos direitos culturais muito mais em
nossas práticas, creio eu, só é possível a decorrência desse “não direito” do que
partir dessas lutas; que elas sejam coleti- simplesmente por uma inclinação natu-
vas e cada vez mais abrangentes, envol- ral. Ao nos depararmos com as questões
vendo grupos diversos tanto nas áreas que nos incomodam, às vezes ignoramos
artísticas quanto nas outras áreas da cul- e seguimos em frente, mas, muitas vezes,
tura. reagimos tentando encontrar soluções.
As nossas experiências pessoais são Essa nossa preocupação com a efeti-
sempre importantes e muito ilustrativas vação dos direitos culturais é forte tam-
para expormos com clareza o que pre- bém nas outras instâncias dos direitos
tendemos dizer. Vou me utilizar da mi- humanos, pois entre suas características
nha história de vida para explicitar essa marcantes está, justamente, esse desafio
questão dos dois parágrafos acima. de conciliar contradições em um mundo
Quando criança, sempre tive muito in- onde estas são constantes e estão sempre
teresse por música, principalmente pelo em transformação. Porém, no caso dos
piano. Via a filha de um amigo da família direitos culturais, as particularidades que
tocar, pois ela era professora de piano, e compõem a cultura, já discutidas nas
me encantava com suas mãos tirando questões anteriores deste diálogo, e sua
sons tão lindos. Porém, várias questões interação imediata com todos os outros
me impediram de ter uma educação mu- campos e âmbitos da vida humana, sua
sical adequada; entre elas, o fato de não centralidade, também já abordada aqui,
existirem aulas de música nas escolas fazem com que esse processo seja ainda
públicas naquela época. Isso, por um mais desafiante.
tempo, me afastou da música e outras Encerro este diálogo, agradecendo a
atividades passaram a ser prioridade, todos que contribuíram, trazendo seus
mas eu nunca deixei de me perguntar o questionamentos. Foi ótimo esse exercí-
porquê de eu não ter podido aprender cio de refletir, a partir dos anseios de
algo que me era tão caro, tão próximo e, cada um, pois me possibilitou novas idei-
ao mesmo tempo, tão distante. as e, ao mesmo tempo, me motivou ainda
Quando adulta, busquei aprender um mais, pois é a partir do fortalecimento de
pouco de música e tive a oportunidade de nossas convicções, agregadas a outras
me envolver mais com a área. Mas a mi- vozes, que engrossamos o coro em prol
nha questão nunca ficou resolvida, pois o de objetivos comuns.

103
SEXTO DIÁLOGO

DIREITO E ARTE

com Eliene Rodrigues de Oliveira

104
DIREITO E ARTE vertentes: o valor das artes para a perpe-
tuidade da memória social; documentos
diálogos com jurídicos (e/ou histórias jurídicas) como
ELIENE R OLIVEIRA (LN) fonte criativa artística; trabalhos artísti-
cos enquanto instrumentos pedagógicos
ELIENE (LLN) nas escolas de Direito; teorias jurídicas
- Um feliz setembro a todos! Agradeço, contemporâneas que buscam resgatar o
mais uma vez, por este pre- humanismo jurídico, notadamente, o
sente/oportunidade: é um privilégio (e Romance em Cadeia de Dworkin.
alegria) participar de tão rico projeto De lá para cá, tenho tentado mapear
junto de pesquisadores/lidadores jurídi- iniciativas junto aos diversos espaços
cos que tanto admiro. Para mim, é um jurídicos (e artísticos) que abordam a
desafio sagrado, porque, além de ser o temática de interseção entre as áreas.
primeiro processo de escrita de livro que Em linhas gerais, no contexto de in-
integro, conheci HUMBERTO em 2006, por vestigações jurídicas contemporâneas,
meio de um de seus livros. Os seus escri- “Direito e Arte”48 é uma área de estudos
tos foram fios dourados que abriram no- que ganhou importância acadêmica, a
vos horizontes para as minhas buscas partir da década de 1960, por meio do
acadêmicas e profissionais e me conduzi- movimento norte-americano “Direito e
ram até o Encontro Internacional de Di- Literatura”, que busca a/na interseção
reitos Culturais da UNIFOR. entre ambos os saberes para/o despertar
E aqui estou, num de uma humanização jurídica face ao rí-
(re)encontro mágico: a LN é mestre em Artes, especialista em Inter- gido formalismo.
pretação Teatral e em Direito Constitucional
leitora da REFERÊNCIA pela Universidade Federal de Uberlândia
No Brasil, iniciativas
DOURADA em direitos (UFU-MG), parecerista de projetos culturais esparsas sobre “Direito e
incentivados pelo Ministério da Cultura
culturais no Brasil estre- (MinC) e membro efetivo da Rede Brasileira Arte” despontaram em
Direito e Literatura (RDL) várias instituições jurí-
ando no mundo da escri-
ta de um livro, guiada pelo próprio autor. dicas, a partir do início deste século, e
Gratidão infinita! Ciente de que esse de- originaram (estão originando) notáveis
safio é, para mim, uma oportunidade ím- trabalhos, a exemplo do próprio grupo de
par de aprendizado, iniciemos o sexto estudos ‘anfitrião’ deste trabalho – o
diálogo. Grupo de Estudos e Pesquisas em Direi-
Pensando sobre os inúmeros cami- tos Culturais da UNIFOR – que, segundo
nhos que a temática “Direito e Arte” con- nota do portal do grupo
duz, situo o meu universo de pesquisa (www.direitosculturais.com.br), nasceu
iniciada. De 2001 até 2006, busquei in- de um evento com tema “Direito, Arte e
vestigar a relação entre “Direito e Tea- Cultura”, em 2004 49.
tro”, com o interesse de fazer um estudo
sobre a contribuição do teatro para a
48 É sabido que desde a antiguidade, há uma
formação jurídica e com o sonho de dis-
ligação entre Direito e Arte, a exemplo da
seminar o teatro dentro das Escolas de literatura teatral mundial que apresenta tex-
Direito. tos inspirados a partir de documentos jurídi-
De 2011 até 2013, tendo por objeto de cos e/ou criados para denunciar realidades
jurídicas.
pesquisa o clássico erro jurídico de Ara-
guari-MG (O Caso dos Irmãos Naves), o
49 É importante esclarecer que detenho-me,
nessa introdução, ao recorte de tempo pro-
meu foco de pesquisa se ampliou para o posto neste projeto no contexto de uma gera-
campo “Direito e Arte”, pelas seguintes ção de maioridade eleitoral sob as batutas

105
Nesse contexto, vale destacar o Pro- E por aí, um número significativo de ini-
jeto “Teatro na Justiça”, idealizado por ciativas inovadoras e inéditas se es-
Sílvia Monte junto à Escola de Magistra- praiam em diversas escolas de Direito e
tura do Rio de Janeiro (EMERJ), que, do estão consolidando belíssimos trabalhos
seu nascedouro (meados do ano 2000) de “Direito e Cinema”; “Direito e Litera-
até os 08 (oito) primeiros anos, levou aos tura”; “Direito e Música” e “Direito e Tea-
palcos leituras dramatizadas (com temá- tro”, e possibilitando novas vivências e
tica jurídica), interpretadas por juízes. experiências no campo do saber sensível,
Dos desdobramentos do projeto surgiu o com despertares que contribuem para a
Centro Cultural do Palácio da Justiça formação humana e, portanto, para a
(CCPJ-RJ), que ampliou o repertório e evolução do homem em sociedade.
oferece um trabalho belíssimo de memó- A bibliografia sobre o assunto, no Bra-
ria social, que é o “Por Dentro do Palá- sil, é tímida, mas alguns nomes se dedi-
cio”: uma visita lúdica, por meio do tea- cam no despertar (e fortalecimento) des-
tro, em que os personagens Rui Barbosa sa área que lida com a criatividade, ele-
e Thêmis conduzem o público ao espaço mento ainda "estranho" para os moldes
interno do antigo Palácio da Justiça. Ou- conservadores do mundo jurídico.
tra instituição que inova em ousadia é o E o termo "criatividade" FREDERICO
curso de Direito da Fundação Armando BARBOSA trouxe no terceiro diálogo deste
Álvares Penteado (FAAP), que, desde trabalho, por meio de uma provocação
2004, oferece disciplinas sobre “criativi- que é pontual para o campo de estudos
dade” e “teatro”, em caráter obrigatório. sobre "Direito e Arte": ele diz que o di-
reito passou a ser uma arquitetura de
regras mais preocupada com controles
dos últimos governos. Não estou querendo
negar iniciativas importantes que ocorreram, do que estimuladores da criatividade
no Brasil, antes da legitimação das teorias estatal, política e da discussão racional.
norte-americanas sobre “Direito e Literatura” Depois, em diálogo com HUMBERTO, ele
(1960), a exemplo do legado de Ariano Suas-
suna no âmbito da Universidade Federal do
diz que tem atuado (dialogado) num con-
Pernambuco (na década de 1940); da produ- texto profissional com um direito técnico
ção literária de Monteiro Lobato (em 1930), e formalista, nas suas palavras: “um di-
fonte de pesquisa de Godoy Sampaio que nos reito que diz não, ao invés de estimular a
brinda com um dos estudos pioneiros de
Direito e Literatura no Brasil (sobre Monteiro argumentação rigorosa e a resolução
Lobato e a sua desilusão com o Direito). criativa dos problemas jurídicos”.
Também, nos próprios autos processuais do Essa angústia (se assim posso dizer),
Caso dos Irmãos Naves, há um trecho de peti- traduzida na palavra "criatividade", em
ção (também na década de 1930) em que o
advogado João Alamy Filho (também em con- contraposição ao tecnicismo jurídico, é a
flito com o Direito) diz, em outras palavras, mola propulsora para os estudos dessa
que os autos processuais não passavam de área, notadamente pelo já citado movi-
mera literatura. E, posteriormente, em 1960,
mento norte-americano “Direito e Litera-
ele publica um livro sobre o “Caso”, exemplo
rico de “Direito e Literatura”. Se mergulhar- tura” (que é considerado a matriz para os
mos nesse universo, penso, a primeira provo- outros estudos contemporâneos que
cação será: se encontramos vestígios de artis- propõem a interseção do Direito com
tas brasileiros (com formação jurídica) que já
outras linguagens artísticas).
pensavam sobre a interseção entre Direito e
Artes (porém não legitimaram teorias) por E foi muito importante ouvi-lo, FREDE-
que tivemos que aguardar consolidarem teo- RICO, porque sua fala advém da sua vi-
rias estrangeiras para fortalecermos, no mo- vência (que rompe o campo teórico) e
mento presente, iniciativas de “Direito e Ar-
te” junto às Escolas jurídicas?

106
contribui enormemente para inúmeras pectiva de "Direito e Arte". Sob censura
reflexões. dos colegas (e, como verão, com forte in-
Pensando sobre o incômodo/desejo fluência "humbertiana"), apresento-lhes
de MARISA, descrito no fim do quinto diá- singela resenha: aqui.
logo, de que todos tivessem/tenham a- Ouso acrescentar o Projeto muito vi-
cesso aos estudos musicais, volto ao pri- sível liderado pelos Professores Lênio
meiro capítulo deste trabalho, e para- Luiz Streck e André Karam Trindade.
fraseando HUMBERTO, que disse: “a cultu- Na PUC/RS, a Professora Clarice
ra também é produto do direito”, propo- Sohngen tem produção de muita valia na
nho iniciarmos o diálogo (que já está vi- área.
rando um monólogo) a partir do seguinte Na UFSC, o Professor Luis C. Cancellier
pensamento: “a(s) arte(s) também é(são) de Olivo.
produto(s) do direito”. Agora fico na expectativa da resposta
à provocação do HUMBERTO , para novas
HUMBERTO despretensiosas contribuições.
- Que palavras gentis as dirigidas a mim,
ao Grupo do qual participo e aos demais LN
colegas deste diálogo. Creio realmente na - HUMBERTO, suas perguntas me levaram
sentença bíblica asseguradora de que a para um labirinto, porque a história nos
boca fala aquilo de que o coração está apresenta várias definições de arte. Para
cheio; o seu, LN, está repleto de ouro, o mim, é uma conceituação incerta (ou em
mais valioso deles, o das palavras, por constante construção?) de criações hu-
isso fiz questão de me referir aos átomos manas que acrescentam novos sentidos
que as constituem – as letras – no lugar para a sociedade. Criações sensíveis
do seu nome por extenso, pois, brincando sempre atreladas ao tempo (também sem
de malabares com elas, podemos fazer conceituação definida), seja no momento
novas construções e dar asas à criativi- do processo criativo ou da recepção por
dade – ao que parece – tão cara a você. parte do público. Refiro-me ao elemento
Alimentada, sem qualquer pudor, essa "tempo", no embalo de Jorge Andrade50
troca sincera de gentilezas e admirações, (1978), que, em "Labirinto", apresenta
gostaria de pedir, neste início de diálogo uma curiosa passagem sobre o tema:
sobre direito e arte, que você definisse
"Acho que se a arte não registra o ho-
arte; também desejaria saber se você en-
mem, no tempo e no espaço, para mim
tende existir uma específica definição de
não é arte, não é literatura, não é nada.
arte para o mundo jurídico.
Penso que esse é o principal, essencial da
arte [...]."
GONZAGA
- Aqui no Rio Grande do Sul chove, há O caminho das conceituações de arte –
duas semanas, neste setembro muito pe- que não se restringe nas manifestações
culiar (algo histórico entre nós, já que
falamos em bens culturais, no meio po- 50 Brasileiro (natural de Barretos-SP) que,
pular é a dita "enchente de São Miguel" por meio dos seus escritos teatrais na década
de 1960, nos incentiva a pensar sobre memó-
cíclica no início da Primavera, comemo-
rias individuais (no processo criativo da es-
rado por INÊS no nosso grupo de what- crita) que passam a revelar reminiscências de
sapp hoje pela manhã). memórias coletivas. É considerado um dos
Fiquei muito feliz em ler a provocação dramaturgos que mais escreveu (e teve seus
escritos encenados), no Brasil, na segunda
inicial. Eu também trabalho nesta pers- metade do século XX.

107
da expressão humana – traz a figura de
quem a compõe: o artista. Nessa noção de
criador e obra, penso, as ideias de De-
leuze são oportunas. No texto "Perfecto,
Afecto e Conceito" o autor afirma que a
arte "é a única coisa no mundo que se
conserva [...] A obra de arte é um ser de
sensação, e nada mais: ela existe em si"
(2004, p. 2013). O artista, acredita De-
leuze, é um visionário que cria em blocos
de perceptos e afectos51 (por meio de di-
versos métodos criativos) monumentos
que vibram sensações e acrescentam
inovações ao mundo. É a linguagem de
sensações, ele explica, "que faz entrar nas
palavras, nas cores, nos sons ou nas pe-
dras. A arte não tem opinião" 52 (p. 228).

51 Para o autor, os afectos são os devires não


humanos do homem e os perceptos são as
paisagens não humanas da natureza. (p. 220).
Explica: “que estranhos devires desencadei-
am a música através de suas “paisagens me-
lódicas" e seus "personagens rítmicos", como
diz Messiaen, compondo, num mesmo ser de
sensação, o molecular e o cósmico, as estre-
las, os átomos e os pássaros? Que terror in-
vade a cabeça de Van Gogh, tomada num de-
vir girassol? Sempre é preciso o estilo - a
sintaxe de um escritor, os modos e ritmos de
um músico, os traços e as cores de um pintor
- para se elevar das percepções vividas ao
percepto, de afecções vividas ao afecto.
[...] ideia de monumentos apontada por Deleuze
que dialoga com essa reflexão sobre ‘memó-
Como tornar um momento do mundo durável
ria social’, visto que alguns trabalhos artísti-
ou fazê-lo existir por si? Virginia Woolf dá
cos são verdadeiros aparatos de memória. 3 –
uma resposta que vale para a pintura ou a
pela expressão “linguagem de sensações”
música tanto quanto para a escrita: "Saturar
também trazido por Deleuze. Estudos cultu-
cada átomo", "Eliminar tudo o que é resto,
rais vêm desenvolvendo ideias e apresentan-
morte e superfluidade", tudo o que gruda em
do iniciativas experimentais sobres sensa-
nossas percepções correntes e vividas [...]"
ções e afetos e seus reflexos no desenvolvi-
(p.220 - 224)
mento de uma sociedade mais justa, a exem-
52 Estas definições de arte (por Jorge Andra- plo do “Museu da Empatia”, em Londres, que
de e Deleuze) me interessam para o mundo RICARDO ORIÁ socializou em redes sociais dias
jurídico, na linha de pesquisa sobre “Direito e atrás. Também, é esse universo de “lingua-
Arte” já mencionada, pelos seguintes moti- gem de sensações” o mote para o uso de tra-
vos: 1 – pelo próprio verbo "registrar" (tão balhos artísticos no âmbito das Escolas de
usual no campo jurídico) definidor do que formação em Direito, como ferramentas pe-
Jorge Andrade considera arte. Embutido na dagógicas. Tudo isso, penso, aproxima o
sua conceituação, penso, o dramaturgo apre- campo artístico com o jurídico, no âmbito
senta uma das funções sociais da arte, qual prático: das vivências e experiências (no sen-
seja: os registros de memória social; 2 – pela tido larrosiano).

108
SÉTIMO DIÁLOGO

PATRIMÔNIO CULTURAL MATERIAL

com Mário Ferreira de Pragmácio Telles

109
PATRIMÔNIO CULTURAL ser conduzido pelo RODRIGO53), mas achei
MATERIAL importante pontuar isso para evidenciar
que essa divisão proposta neste diálogo
diálogos com não é meramente para fins didáticos e
MARIO PRAGMÁCIO operacionais; existe, sim, uma “forquilha”
nessa temática. Então, sempre que neces-
INÊS sário, quando tiver que falar das políticas
- Inauguro este diálogo com um questio- voltadas a uma dessas dimensões, utili-
namento mais amplo, porém que ainda zarei a sigla PCM ou PCI.
me desperta muitas dúvidas: como você Bem, os desafios da política de pre-
vê os atuais desafios na proteção jurídica servação são muitos; e, sim, velhos co-
do patrimônio cultural material? Você nhecidos da gente (orçamento minguado,
considera que temos avançado nesses falta de corpo técnico especializado, pro-
últimos trinta anos, após a edição da blemas na gestão dos bens protegidos,
Constituição e das outras normas infra- pressões políticas e econômicas, etc.).
constitucionais? Mas sua pergunta foi específica com rela-
Enfim, os atuais desafios são novos ou ção aos desafios na proteção jurídica do
se repetem com nova roupagem? PCM.
Antes de apontar alguns desses pro-
MÁRIO blemas, queria comentar a questão do
- Antes de encarar a sua pergunta, queria avanço ou não da tutela jurídica do PCM,
fazer uma ressalva premente e prelimi- numa perspectiva mais geral. Seguindo
nar, para esclarecer o con- sua dica, tomando a
teúdo deste diálogo (não só
MÁRIO é Advogado, doutorando em Teoria do CF/88 como marco
Estado e Direito Constitucional pela PUC-
de sua questão, INÊS), que é RIO, mestre em Museologia e Patrimônio inicial de análise, con-
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro sidero que avançamos
especificamente sobre Pa- (UNIRIO), mediador e árbitro credenciado
trimônio Cultural Material pelo Ministério da Cultura para atuar na área pouco com relação ao
dos Direitos Autorais, professor do Mestrado
(PCM). Do ponto de vista Profissional do IPHAN (PEP/MP) e atual
PCM. Mas não com
teórico, a dicotomia entre presidente do Instituto Brasileiro de Direitos relação ao patrimônio
Culturais (IBDCult)
patrimônio cultural materi- cultural amplamente
al (PCM) e patrimônio cultural imaterial compreendido.
(PCI) não existe. Explico: é que as políticas de preser-
A literatura especializada no campo vação do patrimônio cultural investiram
do patrimônio cultural é bastante enfáti- pesado na consolidação de uma política
ca em dizer que não existe essa separa- voltada aos bens de natureza imaterial
ção – e não vou aprofundar muito nisso – (que antes, era empreendida de forma
mas, do ponto de vista prático, ela existe, esparsa e juridicamente frágil, até porque
sim, inclusive pode ser percebida não não tinha respaldo constitucional para
apenas nas políticas culturais voltadas à tanto), avançando-se significativamente
preservação do patrimônio cultural, mas com relação à proteção jurídica do PCI,
também nos próprios instrumentos jurí- valendo-se, por certo, do alargamento da
dicos que foram criados e são aplicados definição de patrimônio cultural brasilei-
para uma ou para outra dimensão do ro, a partir da previsão expressa (e pio-
patrimônio cultural. neira) dos bens de natureza imaterial no
Podemos voltar a debater isso mais a art. 216 da CF/88.
frente (ou no diálogo sobre PCI, que vai
53 Vide nota do editor.

110
O investimento em novos conceitos, âmbito da proteção jurídica do patrimô-
metodologias, instrumentos, procedi- nio cultural, uma vez que os sítios e arte-
mentos e de “uma nova visão” de patri- fatos arqueológicos estão sucumbindo
mônio se deu nesse sentido, tentando aos ditames desenvolvimentistas.
compensar os mais de sessenta anos de Existem outros, mas queria concluir
políticas voltadas ao PCM (pejorativa- essa minha primeira resposta com aquele
mente denominada de “pedra e cal”). desafio (que pode ser considerado, de
Mas, retomando aos desafios atuais – certa maneira, novo) que mais me intriga
se novos, ou velhos com nova roupagem no momento: a participação popular nas
– no meu entender, são velhos conheci- políticas do PCM. Algo que pode ser con-
dos, ou melhor, são “velhinhos em folha”. siderado desprezível, por exemplo, em
Vou citar alguns: a preocupação com o comparação com as políticas do PCI, as
tráfico ilícito de bens culturais móveis quais, antes mesmo do acréscimo trazido
(que são PCM, é bom esclarecer) advém pelo art. 216-A, §1º, X, da CF/88 (emen-
desde a década de 20 do século passado, dado pela EC 71/2012), já prezava, em
antes mesmo do anteprojeto de Mário de observância ao conceito de “referência
Andrade de 1936, sobretudo através da cultural”, pela inserção dos sujeitos de-
preocupação dos intelectuais com a pi- tentores/produtores dos bens de nature-
lhagem das obras de artes sacras das i- za imaterial nos processos decisórios de
grejas mineiras. O problema da proteção conhecimento, reconhecimento e salva-
jurídica dos bens móveis, passados tan- guarda.
tos anos, ainda é um gargalo. No meu entender, ainda temos que
Esse tema é tão “velho conhecido” da garantir a participação popular nos pro-
gente que, recentemente, um instrumen- cessos decisórios de PCM, a começar pela
to criado pelo Estatuto dos Museus, a reconfiguração do Conselho Consultivo
declaração de relevante interesse públi- do IPHAN, que ainda possui resquícios da
co, ainda causa espanto aos proprietários época em que era um conselho de notá-
de obras de arte, que alegam sua incons- veis e patrimônio cultural era um tema
titucionalidade, não raro baseado na a- somente para iniciados. Os tempos são
fronta ao direito de propriedade, como outros agora.
outrora se deu com o famigerado caso do
Arco do Telles de 1942. INÊS
Outro velho problema, este, sim, com - Obrigada por sua rica resposta. Gostei
uma roupagem moderna, é a proteção bastante, pois você conseguiu de forma
dos sítios arqueológicos, que assim como sucinta, objetiva e profunda inaugurar a
os bens móveis, integram o conceito de discussão do tema do PCM, nos deixando
patrimônio cultural brasileiro e a nossa com vontade de continuar a ler e refletir
categoria de PCM. Não se trata mais da-
quela preocupação preservacionista da HUMBERTO
“lei dos sambaquis”, como era denomi- - Se me permite, gostaria de ir a um pon-
nada a Lei 3.924/61. to teórico matricial dessa questão. En-
O fator novo, INÊS, como você bem sa- tendo que o Direito tem sempre natureza
be, pois escreveu duas obras de referên- limitadora ou, como diria Kelsen, a de
cia sobre o tema, está imbuído sob as construir molduras normativas (modulá-
vestes da chamada “arqueologia de con- veis, é bem verdade, mas molduras), para
trato”, gerando um dos mais graves pro- as categorias do permitido, do proibido e
blemas da atualidade, especialmente no do obrigatório, relativas a um dado orde-

111
namento jurídico. Observando a forma intrínseco. Ele, o valor, é extrínseco e
como o caput do artigo 216 da Constitui- sempre atribuído à coisa pelos sujeitos.
ção Brasileira especifica os bens que Não é possível, portanto, afirmar que
constituem o patrimônio cultural brasi- o patrimônio cultural preexiste à atribui-
leiro, aparenta que essa ideia de limite ção de valor; ou que ele já é patrimônio
some. cultural – sempre foi – como se o valor
Qualquer coisa que esteja ao alcance fosse algo inerente à coisa. Não há res-
do ordenamento jurídico brasileiro, seja paldo teórico para isso.
material ou imaterial, ao menos potenci- Mas pensar quais são os “limites do
almente constitui patrimônio cultural do patrimônio cultural”, diante do inflacio-
país? Há limites? Como você interpreta namento dessa categoria, sobretudo tra-
operativamente esse dispositivo? zido pela expansão da noção de patrimô-
nio cultural imaterial que narrei na res-
MÁRIO posta da INÊS, é extremamente necessário
- Essa questão também me aflige. Inclusi- e já vem sendo encarado por alguns teó-
ve lembro, se não me falha a memória, ricos brasileiros, como o antropólogo
que você já disse que essa definição é tão José Reginaldo dos Santos Gonçalves.
ampla que pode ser confundida com o Talvez seja importante mesmo, como
próprio conceito de cultura. Por trás des- você propôs, pensarmos nessas molduras
sa indagação, subjaz aquele dilema: se normativas.
tudo é patrimônio, nada é patrimônio. Por falar nisso, entendo que o art. 216
Na prática preservacionista, as institu- da CF/88 não traz um conceito fechado
ições e os técnicos que trabalham com de patrimônio cultural. Essa ressalva
patrimônio cultural, sabedores dessa pode parecer elementar, mas tem muito
condição, entendem que selecionar o que jurista que, quando indagado sobre tal
vem a ser patrimônio cultural é, portan- conceito, remonta à leitura do caput do
to, sua atividade precípua, sendo ampla- referido artigo, como se fosse algo óbvio,
mente conhecida nesse campo a máxima dado. Longe disso!
de que toda seleção do que é patrimônio Esse conceito é, por demais, complexo
cultural, considerado como um ato de e não se encerra na sua interpretação
memória, produz, por outro lado, um literal. Aliás, o campo do patrimônio cul-
inevitável esquecimento, uma vez que tural, tradicionalmente interdisciplinar,
não podemos lembrar de tudo, tal como vem tratando desse tema há décadas e
Funes, o memorioso, do conto de Borges. não é o Direito, através da aplicação des-
São os ossos do ofício. se dispositivo constitucional, que vai re-
Note que falei que a atividade precí- solver essa questão.
pua é a seleção daquilo que venha a ser É muito comum, ao se analisar esse
patrimônio cultural. Do ponto de vista dispositivo, como eu mesmo o fiz na
teórico, como eu já mencionei, isso signi- questão da INÊS, mencionar o alargamen-
fica dizer que nem tudo é patrimônio to da definição de patrimônio cultural
cultural. Os patrimônios, é bom ressaltar, brasileiro, uma vez que, pela primeira
são constituídos não somente por institu- vez, se reconheceu que os bens de natu-
ições e técnicos, mas também por pesso- reza imaterial também constituem o pa-
as, grupos e, claro, pelo próprio Estado. trimônio cultural brasileiro. Mas reto-
A premissa desse raciocínio é a se- mando a pergunta do HUMBERTO: não há
guinte: as coisas não possuem um valor limites para essa expansão?

112
Penso que a parte aberta dessa defini- utilizar-se de mecanismos de participa-
ção jurídica, no meu entender, diz respei- ção popular para declará-la como tal e,
to à referência “à identidade, à ação, à portanto, imune às tentativas de demoli-
memória dos diferentes grupos formado- ção ou alteração?
res da sociedade brasileira” (os “diferen- Ou, fugindo um pouco das possibili-
tes grupos formadores da sociedade bra- dades de radicalização da democracia
sileira” até consigo imaginar quais sejam, cultural, essa mesma comunidade (aqui
mas fico me perguntando: o que o consti- compreenda como os tecnicamente legi-
tuinte quis dizer com “ação”?). timados processualmente para ingressar
A referência a essas subcategorias (i- com ações) pode se valer de garantias
dentidade, ação, memória dos diferentes constitucionais, como a ação popular ou a
grupos), no meu entender, é que abre a ação civil pública, para obter do Poder
possibilidade de muita coisa, pelo menos Judiciário o reconhecimento de um bem
potencialmente, fazer parte do conceito de referência como de valor (cultural)?
de patrimônio, desde que seja – repito – Por fim, sei que me estendi, na sua o-
portador dessa referência. pinião, as metodologias do inventário do
Com isso, conseguimos fugir daquele PC são por si uma forma de acautelamen-
dilema inicial e operacionalizar, mini- to ou uma técnica de identificação de
mamente, essa categoria. bens culturais, ou a lei precisa definir em
Mas, confesso, diante dessa abertura que caso são e não são? Peço que tome
que mostrei, não consigo ver outro modo como ponto de partida o INRC (Inventá-
de emoldurar esse complexo cenário. rio Nacional de Referências Culturais).

RODRIGO VIEIR A MÁR IO


- Aproveitando o gancho dos âmbitos - Foi ótima essa pergunta, porque a gente
formais e reais do PC, pergunto, na sua pode começar a amadurecer essa ideia
avaliação, se a Constituição abriga a pos- que, certa vez, ouvi de HUMBERTO, em
sibilidade de a própria comunidade re- algum debate do nosso grupo de pesqui-
conhecer um bem ou expressão como sa de direitos culturais: a de se pensar
algo pertencente ao seu acervo cultural. num instrumento de preservação do pa-
Nesse sentido, você acha que o Estado trimônio cultural, que prescindisse da
brasileiro é uma grande autoridade certi- chancela oficial do Poder Público. Com
ficadora? Por exemplo, não pode uma isso, seria possível que a própria comu-
comunidade indígena socorrer-se do nidade reconhecesse e constituísse
mesmo Estado, quando uma expressão seu(s) patrimônio(s) cultural(is), com o
cultural sua é ameaçada ou violada, mas fito de protegê-lo(s).
não foi declarada PC? Primeiramente, cabe dizer que, sim, o
Vou mais perto, citando caso badalado parágrafo primeiro do art. 216 da CF/88
em Fortaleza, diante da ameaça de des- permite o surgimento de um instrumento
truição da Praça Portugal pelo Poder Pú- dessa natureza, ao abrir a possibilidade
blico Municipal, e da recusa das instân- de criação de outras formas de acautela-
cias federadas responsáveis pela prote- mento e preservação.
ção do PC em reconhecê-la como bem Além do mais, nesse mesmo dispositi-
que mereça esta especial atenção; ou vo, a Carta Magna compartilhou com a
mesmo em casos de omissão deliberada comunidade o poder-dever do Poder Pú-
para que esse reconhecimento não acon- blico de preservar o patrimônio cultural,
teça, pode a comunidade local, ou o povo, de sorte que é extremamente pertinente

113
se pensar em instrumentos que permi- pode ocorrer, também, quando a comu-
tam não somente o empoderamento da nidade se socorre ao Poder Judiciário,
comunidade, dentro daquela premissa da através de instrumentos judiciais de tute-
democracia cultural que RODRIGO men- la do patrimônio, tal como a Ação Popu-
cionou, mas que, inclusive, possam ser lar e a Ação Civil Pública. Porém, não é
invocados em face do Poder Público. raro que o próprio Poder Judiciário –
A finalidade protetiva é de suma im- quer por desconhecimento da matéria,
portância, pois diz respeito aos efeitos quer por interesses escusos – também
que tal instrumento produziria na práti- negue tal reconhecimento e, por conse-
ca. guinte, a proteção.
E não estou falando de efeitos políti- Ou pode acontecer pior, como recen-
cos, socais e econômicos que uma decla- temente foi decidido no Tribunal de Jus-
ração dessa natureza traria – e trazem tiça do Rio de Janeiro, onde o “pó de ar-
mesmo! Estou me referindo, claro, àque- roz”, utilizado pela torcida do Fluminen-
les efeitos jurídicos, sobretudo direitos e se para saudar a entrada do time em
obrigações decorrentes da aplicação des- campo, foi reconhecido como patrimônio
se mecanismo. cultural pelo TJRJ.
Aliás, esse é um ponto medular da Esse é um típico exemplo de falta de
questão – quais efeitos seriam produzi- competência técnica à atribuição de va-
dos – pois é disso que se trata, conside- lor, considerando que, na essência de tal
rando que a comunidade não precisaria manifestação cultural da torcida tricolor
desse poder declaratório para constituir das laranjeiras, está o reconhecimento
seus patrimônios; estes são – e sempre oficial de uma cultura racista, pois, em
foram – formados a partir da atribuição sua origem, o pó de arroz era usado para
de valor dos indivíduos, grupos e comu- esconder a cor de jogadores negros de
nidades, independente de reconhecimen- outrora (aliás, o racismo no futebol con-
to oficial. tinua; é um tema ainda não superado).
A questão aqui é outra: como efetiva- Nesse sentido, a proteção do patrimô-
mente proteger os bens que seriam (au- nio cultural, que não é exclusividade do
to)constituídos como patrimônio cultural Poder Público, poderia ser efetivada, in-
das ameaças de desaparecimento, tal dependente da atuação do Estado, (via
como está acontecendo com a Praça Por- judicial ou administrativa), em caso de
tugal, considerando que o próprio Esta- omissão ou quando o próprio Estado,
do, que tem o poder-dever de preservar, contrariando o mandamento constitu-
se nega à reconhecê-lo como um bem cional, atenta contra a sua preservação.
passível de proteção, atuando, parado- Seria uma espécie de autodeclaração e
xalmente, como agente degradador? reconhecimento do patrimônio cultural
Como é sabido, na prática, o Estado com efeitos protetivos. Algo desse tipo.
pode impedir o reconhecimento de certo Mas, RODRIGO, não acredito que o Es-
bem como patrimônio cultural, influenci- tado brasileiro seja uma entidade certifi-
ando os respectivos conselhos consulti- cadora, até porque não estou convencido
vos ou até mesmo pela negativa de aber- de que os órgãos de preservação apenas
tura de processo de tombamento ou re- declaram o que é patrimônio; acredito
gistro (como no caso da Praça Portugal). que eles constituem também, atribuindo
Isso é muito comum, quando se trata dos valor através de seus instrumentos jurí-
instrumentos administrativos de preser- dicos, e mais: acredito que os órgãos de
vação ao patrimônio cultural. No entanto, preservação, que são os responsáveis por

114
implementar as políticas culturais de Mas, independente dessa discussão,
preservação (inclusive, certificar), vão no meu entender, o IPHAN, mesmo sem
muito além de suas competências, a fim consenso sobre o tema, já regulamentou
de cumprir o mandamento constitucio- dois tipos específicos de inventários, a
nal. saber: o INRC e o INDL. Mesmo que se
Com relação ao inventário, ainda vejo afirme, no texto normativo, que se trata
um impasse. Há instituições, sobretudo o apenas de ferramentas de conhecimento,
Ministério Público, que entendem que o não poderíamos considerar uma regula-
inventário, previsto exemplificativamen- mentação do inventário previsto na
te no mencionado parágrafo primeiro do CF/88? O impasse continua.
art. 216 da CF/88, não precisa de regu-
lamentação para ser considerado um RICARDO
instrumento de acautelamento, ou seja, já - A partir do Decreto 3.551/00, muitos
poderia ser aplicável diretamente da Car- entes federativos passaram a contar com
ta Magna. Um dos efeitos práticos desse legislação similar para a proteção dos
entendimento é que aos bens inventaria- bens culturais imateriais. No caso especí-
dos poderia se aplicar o previsto no inci- fico da cidade do Rio de Janeiro, tem-se
so I do art. 62 da Lei de Crimes Ambien- escolhido os bens imateriais como patri-
tais, pois seria um bem especialmente mônio cultural Carioca, por intermédio
protegido. de atos do poder legislativo.
Por outro lado, há outras instituições, Há uma avalanche de iniciativas par-
por exemplo, o IPHAN (com divergências lamentares a esse respeito e isso tem
internas), que entendem que o inventário chegado à esfera do Legislativo Federal,
não é instrumento de acautelamento, contrariando as orientações do próprio
conforme previsto na CF/88, mas tão Decreto. Qual a sua posição sobre isso?
somente uma ferramenta de conheci-
mento ou, até mesmo, uma metodologia MÁR IO
de investigação, considerando que é ne- - Vou responder sua questão, atendo-me
cessário conhecer para preservar. ao aspecto da competência em matéria
Os que pensam o inventário como de preservação do patrimônio cultural,
uma ferramenta de conhecimento argu- tentando não entrar muito no mérito
mentam que, caso se consolide o enten- relativo à constituição do patrimônio
dimento de que, ao contrário, seja um cultural imaterial, que será tratado pelo
instrumento de acautelamento, isso po- RODRIGO VIEIRA no próximo diálogo, acre-
deria inviabilizar os estudos futuros, pois dito54. Mas você tem razão, com relação à
a simples abertura de um processo de avalanche de iniciativas parlamentares:
inventário já o acautelaria e colocaria o ela não cessa.
bem em análise sob o manto protetivo da Na cidade do Rio de Janeiro, sobretu-
Lei de Crimes Ambientais. do a partir de 2003, uma série de bens
E esse acautelamento, além de não culturais de natureza imaterial foi sele-
preceder de um rito, de um procedimen- cionada pela municipalidade e reconhe-
to claro, tal como o tombamento e o re- cida como patrimônio cultural carioca,
gistro, não seria constitutivo, pois seria via executivo, seguindo uma tendência
perfeitamente possível que, ao final, se estabelecida nacional e internacional-
conclua pela ausência de valor do bem mente, sobretudo a partir dos anos 2000,
estudado para fins de preservação.
54 Vide nota do editor

115
como você mencionou, que visa ao reco- para o Rodrigo55, retomamos ao aspecto
nhecimento e valorização de tais bens, da competência: a CMRJ não é competen-
superando a noção tradicional de patri- te para declarar bens culturais como pa-
mônio – estritamente material – vincula- trimônio cultural. Essa é uma prerrogati-
da, desde o século XVIII, à preservação de va do Poder Executivo.
monumentos e feitos históricos notáveis, O processo de patrimonialização de
que prevaleceu, no mundo ocidental, até bens culturais – seja através de tomba-
a década de oitenta do século passado. mento ou registro – exige um procedi-
Em âmbito municipal, são mais de 26 mento administrativo próprio e não pode
(vinte e seis) bens de natureza imaterial se valer da lei, pois esta traz um caráter
reconhecidos como patrimônio cultural de generalidade e abstração, que são in-
carioca, através do órgão municipal de compatíveis com a individualização ne-
preservação do patrimônio cultural cari- cessária na atribuição de valor aos bens
oca, vinculado ao Poder Executivo muni- culturais. Por isso, o veto do prefeito é
cipal. sempre esperado.
Entretanto, este quantitativo não in- Além disso, por mais que hoje se com-
clui a quase centena de bens imateriais preenda que tal processo de patrimonia-
reconhecidos como patrimônio cultural lização seja, no final das contas, político
imaterial (PCI) pela Câmara Municipal do (e afetivo), pois traz consigo uma disputa
Rio de Janeiro – CMRJ. em torno da memória, é necessário, mi-
Um exemplo que pode ilustrar o de- nimamente, estabelecer critérios técnico-
sastre dessa avalanche é o “sotaque cari- científicos para estribar tal declaração.
oca”, considerando que, segundo noticiou Entretanto, pelo trecho que transcre-
a Revista Época, em 30.06.2015, a Câma- vi, já é possível perceber a completa au-
ra Municipal do Rio de Janeiro – CMRJ sência de respaldo técnico-científico nes-
declarou “como patrimônio cultural de sa seleção, que se utiliza de argumentos
natureza imaterial da Cidade do Rio de superficiais para motivar o ato, ou seja,
Janeiro, a pronúncia da língua portugue- há incompetência técnica também, meu
sa que é característica do Rio de Janeiro, caro ORIÁ.
conhecida como sotaque carioca”.
Conforme consta na justificativa do FABIO
Projeto de Lei, que foi aprovado pela - Essa discussão do patrimônio – material
CMRJ (e posteriormente vetado pelo pre- e imaterial – vai fluindo muito gostosa,
feito Eduardo Paes), “sem dúvida alguma, mas vou cuidar pra guardar os argumen-
com o passar dos anos, com o desenvol- tos de debate de patrimônio imaterial
vimento do turismo e com as constantes para o diálogo com RODRIGO56.
transmissões televisivas dos programas Tentando ficar no tema do patrimônio
realizados pelos canais de televisão sedi- material, pergunto para o MÁRIO a leitura
ados na Cidade do Rio, a pronúncia dos dele sobre o Estatuto dos Museus na par-
habitantes do Rio de Janeiro se tornou te que cria a declaração de interesse pú-
conhecida em todo o país e em todo o blico, uma espécie de tombamento que
mundo”. gerou polemica no mercado de arte.
Sem entrar no mérito acerca da frágil
justificativa que embasa a atribuição de
valor do bem em questão, que vou deixar
55 Vide nota do editor
56 Vide nota do editor

116
preferência, proibição de saída do país,
MÁRIO dever de preservar e de solicitar autori-
- Em 2009 (Lei nº 11.904), foi editado o zação para intervir no bem, dentre ou-
Estatuto dos Museus – novo marco regu- tros, os quais lembram – não podemos
latório dos museus brasileiros – trazendo negar – os efeitos do tombamento de
inovações para a política museológica, bens móveis (inclusive a insatisfação dos
conjuntamente com a criação, noutra lei proprietários lembra os primórdios da
(Lei nº 11.906/09), de uma recém criada edição do Decreto-Lei 25/37, os quais
autarquia federal para tocar essa política invocavam tal direito como se fosse abso-
– o Instituto Brasileiro de Museus – que luto. Vide o caso do Arco do Telles, no Rio
adveio do extinto Departamento de Mu- de Janeiro).
seus do IPHAN. O problema é que a lei que criou o Es-
O Estatuto criou a figura da Declara- tatuto menciona o instrumento da DIP,
ção de Interesse Público – DIP, dispondo mas não traz previsões quanto aos seus
que “será declarado como de interesse efeitos, o que só foi explicitado no decre-
público o acervo dos museus cuja prote- to regulamentador, gerando questiona-
ção e valorização, pesquisa e acesso à mentos acerca de sua constitucionalida-
sociedade representar um valor cultural de, pois foram criados direitos e obriga-
de destacada importância para a Nação, ções por Decreto, e não por Lei em senti-
respeitada a diversidade cultural, regio- do estrito, segundo argumentam os ques-
nal, étnica e linguística do País”, causan- tionadores da DIP.
do, sobretudo após a edição do decreto Respaldo constitucional para criação
que o regulamentou, um rebuliço, no de instrumentos dessa natureza há, sem
mercado de arte, que acabou ofuscando a dúvida, conforme descrito no §1º do art.
investigação de outros instrumentos que 216 da CF/88 (outras formas de acaute-
também são originários do Estatuto de lamento e preservação), mas concordo
Museus (Inventário Nacional dos Bens que o Estatuto deveria, sim, ter trazido
Culturais Musealizados, o Registro de em seu bojo, de forma clara, os efeitos
Museus e o Cadastro Nacional de Bens desse instrumento e não delegar tal in-
Musealizados Desaparecidos). cumbência à norma infralegal, que deve-
Acredito que isso atrapalhou não só a ria apenas pormenorizar os direitos e
investigação desses mecanismos, mas a obrigações originariamente previstos na
premente análise jurídica do próprio Es- Lei.
tatuto, uma vez que o debate se concen- Mesmo assim, CESNIK, inobstante essa
trou apenas nessa polêmica da DIP. discussão, tenho sérias dúvidas quanto à
Por falar nisso, um dos poucos traba- aplicabilidade do Estatuto dos Museus
lhos que li sobre o Estatuto em si, sob o para todo o mercado de arte.
viés jurídico, foi o do nosso querido RI- É que o Estatuto não se aplica às insti-
CARDO ORIÁ, que se debruçou a analisar tuições que tenham intuito de lucro. Soa
esse marco legal (ORIÁ, acredito que você estranho, sim, mas é o que o art. 1º do
possa contribuir nessa questão...). Estatuto dispõe, restringindo sua aplica-
A controvérsia era basicamente saber ção aos museus, que são “instituições
se o instrumento tinha respaldo consti- sem fins lucrativos que conservam, in-
tucional ou se maculava o direito de pro- vestigam, comunicam, interpretam e ex-
priedade, sobretudo dos colecionadores põem, para fins de preservação, estudo,
privados e galeristas, pois criava uma pesquisa, educação, contemplação e tu-
série de restrições, tais como o direito de rismo, conjuntos e coleções de valor his-

117
tórico, artístico, científico, técnico ou de ro: os bens arquivísticos, assim como os
qualquer outra natureza cultural, abertas bens musealizados (expressão que está
ao público, a serviço da sociedade e de prevista no Estatuto e que tem uma am-
seu desenvolvimento”. plitude oceânica), também integram a
Ora, não é novidade que o mercado de definição de patrimônio cultural, tal qual
arte, como todo mercado, visa ao lucro. debatemos anteriormente, mas pouco se
Uma galeria, portanto, que possui hialino tem de literatura jurídica a esse respeito.
intuito de lucro, estaria, segundo esse Posso afirmar que o nosso recorte de
entendimento, automaticamente, fora do patrimônio cultural acaba excluindo, de
alcance dessa lei, pois não se enquadra certa maneira, as bibliotecas e os arqui-
na definição legal de museu. A Declara- vos, como se o patrimônio cultural fosse
ção de Interesse Público, portanto, não unicamente aquele abarcado pela política
alcançaria o seu acervo. conduzida pelo IPHAN (e agora IBRAM).
E quanto aos colecionadores priva- Tanto é verdade que a política de ar-
dos? quivos possui um arcabouço normativo e
Há uma segunda ressalva, que gosta- institucional para a proteção do patri-
ria de destacar. O próprio Estatuto exclu- mônio dito arquivístico, do qual pouco se
iu de sua abrangência os arquivos, as tem conhecimento. Nesse arcabouço, por
bibliotecas e as “coleções visitáveis”, es- exemplo, podemos encontrar um institu-
tas últimas entendidas como “os conjun- to anterior e bastante semelhante ao DIP,
tos de bens culturais conservados por objeto da questão do CESNIK.
uma pessoa física ou jurídica, que não O site do IBRAM informa que, na Lei
apresentem as características previstas de Arquivos, foi instituída “a Declaração
no art. 1º desta Lei, e que sejam abertos à de Interesse Público e Social, através do
visitação, ainda que esporadicamente”, Decreto nº 4.073 (3 de janeiro de 2002),
ou seja, se um colecionador não tiver o que regulamentou a lei nº 8.159, (8 de
ímpeto de negociar suas obras – embora janeiro de 1991).
muitos o tenham – poderiam, desde que Como consequência do Decreto nº
abertos à visitação, mesmo que de forma 4.073/02, arquivos privados podem ser
esporádica, ser consideradas como cole- declarados de interesse público, desde
ções visitáveis, nos termos da lei, e, por- que sejam portadores de referência à
tanto, permanecer fora do alcance do história social, econômica, técnica ou
Estatuto dos Museus. cultural do país, incidindo sobre eles tan-
Essas duas redomas excluiriam, no to o monitoramento quanto a restrição
meu entendimento, parcela significativa de saída do país”, ou seja, não se trata de
do mercado de arte do âmbito do Estatu- um mecanismo novo no nosso sistema
to dos Museus. protetivo; há um precedente.
Nesse sentido, malgrado o questiona- Aliás, a preocupação com a evasão de
mento de constitucionalidade (que pre- obras de arte do país é recorrente e re-
cede qualquer outro), com exceção das monta aos anteprojetos que deram ori-
mencionadas coleções visitáveis e das gem ao Decreto-Lei 25/37.
instituições museológicas que tenham E não estou falando do anteprojeto de
intuito de lucro, o Estatuto dos Museus Mário de Andrade, não (que também
recai, sim, sobre as coleções privadas. previa tal assunto, em 1936); estou me
Vale ressaltar que o nosso ordena- referindo ao anteprojeto de Luis Cedro,
mento jurídico já instituiu algo seme- na década de vinte do século passado.
lhante, mas voltado aos arquivos. Reite-

118
Lá é possível encontrar, expressamen- bém, a evasão de obras significativas pa-
te, a preocupação com a pilhagem das ra a história da arte brasileira, que são
obras de arte sacra das igrejas mineiras, (re)movidas pelas próprias leis do mer-
algo que se mantém bastante atual. cado.
E não são apenas os saques o que se Acho que ainda não conseguimos su-
quer evitar; procura-se proteger, tam- perar o trauma do Abaporu...

119
OITAVO DIÁLOGO

FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE AUTOR

com Luiz Gonzaga Silva Adolfo

120
FUNÇÃO SOCIAL Em sua interpretação tradicional, fun-
DO DIREITO DE AUTOR ção tem a ver com uma tarefa que uma
parte deve cumprir em relação ao todo.
diálogos com Atualmente, “em ciências sociais enten-
GONZAGA ADOLFO de-se por função um problema de relação
(ou ponto de vista relacional) ao qual são
atribuídas várias ações diferentes fun-
HUMBER TO
- Gostaria de começar este diálogo pelo cionalmente equivalentes”. A expressão
vem do latim functio, que significa ‘cum-
que há de mais básico, com o objetivo de
primento’, ‘execução’, ‘aquilo que cum-
padronizarmos a compreensão termino-
lógica que usaremos doravante: fale-nos, primos’, ‘o que nos ocupa’. Em outras
línguas aparece como funktion (alemão),
por favor, das terminologias usadas para
función (espanhol), function (inglês), fun-
os direitos de autor, destacando o que
você considera mais adequado e mais zione (italiano) e fonction (francês). Em
inadequado. comum toda ideia de função parte de
uma relação assimétrica. “A significação
histórica e o alcance da noção de função
GONZAGA
- Para minha alegria, respondo à provo- podem, se bem que não de modo decisi-
vo, resultar do fato de que elas são possí-
cação em um dia duplamente comemora-
veis de assumir uma função em contextos
tivo. Hoje – 26 de abril de 2016 – se co-
memora o Dia Mundial da Propriedade históricos bastante diversos e também
Intelectual. Sugiro que leiam na página sobreviver a uma mudança de paradig-
ma”.
da Organização Mundial da
GONZAGA é doutor em Direito pela Universi- Embora possa ter
Propriedade Intelectual a dade do Vale do Rio dos Sinos (UNISSINOS),
mensagem de seu Diretor professor da Universidade de Santa Cruz do uma significação dife-
Sul (UNISC) e da Universidade Luterana do rente em cada área, na
Geral. E é dia de meus 50 Brasil (ULBRA), membro da Associação
Portuguesa de Direito Intelectual (APDI), da interpretação teleoló-
anos de vida. Associação Brasileira de Direito Autoral
Vamos à proposta. Inici- (ABDA) e da Comissão Especial de Proprie-
gica funcional (os au-
dade Intelectual da OAB-RS tores sustentam que
arei falando do tema DIREI-
não podem ser sepa-
TO AUTORAL E SUA RELAÇÃO COM A FUNÇÃO
SOCIAL DO DIREITO.
radas), a noção de “função” tem como
Este tema é central na proposição ao exercício primeiro a resolução desse pa-
radoxo, isto é, a de formular uma relação
demonstrar o nó górdio do Direito Auto-
entre as partes e o todo, de tal forma que
ral na contemporaneidade, forjado sob
base excessivamente patrimonialista, a auto-referência do todo diferenciado
possa ser tratada como uma diferença
com uma visão que entende que suas
(no diferenciado). Na Teoria do Direito e
limitações são numerus clausus e as en-
xerga somente em sua dimensão interna, em metodologia jurídica, não estabele-
sem possibilidade de ampliar-se e esten- cendo diferenciação clara entre interpre-
tação teleológica e interpretação funcio-
der-se sua interpretação para uma di-
nal, essa visão é ainda atual, embora não
mensão externa, onde há contato deste
ramo do Direito com outras áreas, ramos, o seja em Ciências Sociais.
É claro, quando se fala em função so-
institutos e direitos subjetivos, como a
cial da propriedade, logo vertem ao diá-
liberdade de expressão e o direito à cul-
tura, à educação e à informação, para logo questões em torno da propriedade
imobiliária, mormente a rural, em decor-
ficar somente nestes.
rência de sua importância social, a partir

121
da produção de elementos essenciais à inserção, na Carta Política, do inciso XXIII
sobrevivência de milhões de pessoas e em seu artigo 5º, prevendo que a propri-
porque ninguém desconhece nem nega edade atenderá sua função social, imedi-
os vergonhosos dados históricos e esta- atamente após aquele garantidor do di-
tísticos em torno da lamentável má- reito de propriedade.
distribuição de terras no Brasil, fruto da Também a função social da proprie-
ideia, sustentada por muitos séculos, de dade é destacada no artigo 182, caput, e §
que o domínio seria o princípio de direito 2º da Carta Magna. No artigo 156 encon-
divino, o qual se exerceria como se fosse tra-se a indicação de um imposto – o IP-
Deus, e onde se vê, também nos tantos TU – para as propriedades prediais e ter-
dados disponíveis, que a exclusão social ritoriais urbanas, podendo ser progressi-
tem início muitas vezes na migração de vo a fim de assegurar o cumprimento da
homens que não conseguem produzir em função social da propriedade. Assim, o
suas terras por falta de condições, e aca- IPTU seria um significativo instrumento
bam virando escravos da sociedade, sem para a concretização da função social da
direitos e bens. propriedade.
Os novos tempos, porém, e a constru- Além dos critérios atinentes à produ-
ção teórica historicamente conquistada a tividade, em decorrência dos dispostos
partir dos interesses sociais geram uma incisos II e III do artigo 186 da Constitui-
remodelação de estrutura do direito de ção atual, entende-se que o cumprimento
propriedade, que passa a ser visto não da função social da propriedade rural
mais como direito absoluto ou “poder efetivamente supõe a utilização adequa-
inviolável e sagrado” do proprietário, da dos recursos naturais e a preservação
mas como situação jurídica subjetiva do meio ambiente, bem assim a obser-
complexa em que se inserem direitos, vância das disposições que regulam as
deveres, ônus e obrigações. relações de trabalho, e que a contratação
Neste circundar, a própria prática ju- de trabalhadores com afronta ao enten-
risprudencial mostra os reflexos do con- dimento jurisprudencial cristalizado no
flito entre a ultrapassada concepção in- Enunciado 256 do Tribunal Superior do
dividualista da propriedade e a atual fun- Trabalho e a prática de queimadas e
cionalização a interesses sociais, como desmatamentos sem a devida autoriza-
resultado de uma visão mais solidária e ção do Instituto Brasileiro do Meio Am-
menos excludente. biente e Recursos Naturais Renováveis
A função social consolidou-se como efetivamente caracterizam o não-
elemento interno do domínio, por meio cumprimento da função social da propri-
de árduos esforços da doutrina italiana, edade rural.
alterando a estrutura do instituto jurídi- Pode-se, assim, afirmar que a função
co. social da propriedade rural tem, no
A palavra ‘função’, dentro do princípio mesmo modo, seu núcleo na pessoa hu-
jurídico da “função social da proprieda- mana, preocupando-se com seu bem-
de”, deve ser compreendida como ‘con- estar, na produtividade e na proteção
teúdo’, pois determina o conteúdo ao ambiental.
social da relação de propriedade. A função ética da propriedade imobi-
No Brasil, em que pese algumas dis- liária é tratada no novo Código Civil no
cussões doutrinárias precedentes, a fun- artigo 1228, § 1º, onde o direito de pro-
ção social da propriedade erigiu-se como priedade deve ser exercido com a função
direito constitucionalizado, a partir da

122
social e econômica que lhe é natural e ção social do contrato e a função social da
com deveres de preservação. posse, vislumbrando, assim, que, como
É bem verdade que, antes mesmo da princípio, a função social se estende por
Constituição em vigor e do atual Código todo o ordenamento jurídico, adaptando
Civil, já se via, mesmo que isoladamente as relações patrimoniais, em atendimen-
e não como principiologia emanada das to aos valores essenciais, pode-se então
disposições constitucionais, previsões seguramente falar que, se ocorreu evolu-
legislativas em torno de uma função so- ção “da propriedade às propriedades”, de
cial, como se vê na Lei nº 6.404, de 1976 igual modo se concretizou a evolução da
– Lei das Sociedades das Ações, em seu função social “da função às funções” e,
artigo 154, ao determinar que o adminis- neste particular, “da propriedade ao Di-
trador (diretor ou membro do Conselho reito”, este visto em sua maior amplitude
de Administração) deve exercer as atri- possível.
buições que a lei e o estatuto lhe confe- O que equivale a dizer que o Direito
rem, para lograr os fins e no interesse da em si, em sua totalidade, tem e deve ob-
companhia, satisfeitas as exigências do servar sua função social, não ficando esta
bem público e da função social da empre- restrita à propriedade ou a outros insti-
sa. tutos, em uma visão estreitada a partir da
O artigo 116, parágrafo único, da positivação.
mesma Lei, dispõe que “o acionista con- Na área em comento, esta constatação
trolador deve usar o poder com o fim de – de uma evolução da função social da
fazer a companhia realizar seu objeto e propriedade ao Direito – é relevante,
cumprir sua função social, e tem deveres pois, se filiados às correntes que enten-
e responsabilidades para com os demais dem o Direito Autoral não como proprie-
acionistas da empresa, os que nela traba- dade, como José de Oliveira Ascensão, e
lham e para com a comunidade em que parece ter sido o caminho adotado pela
atua, cujos direitos e interesses deve le- Constituição Federal ao referir-se a pro-
almente respeitar e atender”. priedade somente com relação às mar-
Nesse mesmo veio, prevendo clara- cas, mesmo assim pode ser efetivada esta
mente em seu bojo várias regras com fim sustentação teórica.
claramente colimado na concretização do No Direito Autoral tem aparecido ul-
instituto, o Estatuto da Cidade, que ante- timamente alguma produção escrita em
cedeu o Código Civil de 2002. torno do tema função social; a maioria,
O que se vê não é mais “a proprieda- entretanto, vista de uma forma “interna”,
de”, mas “as propriedades”, ou seja, que o ou seja, como se a função social do Direi-
instituto envolve uma noção plural, o que to Autoral estivesse na tutela das obras
obrigatoriamente leva à superação do consideradas em si, e aí residiria a gran-
conceito unitário de “propriedade” ali- de razão desta proteção e da conclusão
nhavado pelo processo codificatório do de sua função social, vale dizer, na função
século XIX, para finalmente vislumbrá-lo, claramente transformadora da sociedade
na luz dos novos tempos, como um con- e visivelmente social das obras objeto de
ceito multifacetário. proteção autoral.
Fica clara uma superação da função Esta visão deve ser superada, pois é
social como elemento meramente vincu- preciso ir além e evoluir, sempre. E, afi-
lado à propriedade, pois, se no vigente nal, também no Direito Autoral, não se
Código Civil, além dela, se consagrou em trata de somente uma forma de concreti-
outros institutos relevantes, como a fun- zação da função social, mas de várias. As

123
limitações, seguramente são uma delas. De fato, as limitações que permitem
No entanto, como também se alerta nesta paródias e paráfrases podem ser consi-
pesquisa desde o início, e igualmente se deradas bastante interessantes. Elas têm
afirmou na abertura deste ponto, e este é o objetivo principal da crítica e, no caso
um fio condutor da reflexão, as limita- das paródias, também do humor em mui-
ções, na forma como concebidas pela tos instantes. Ou seja, a partir de criações
doutrina autoralista tradicional, não têm intelectuais existentes se criam novas
servido de forma clara à concretização da produções autorais (parodiando-se ou
função social do Direito Autoral: a um, parafraseando-se as já existentes).
por sua interpretação equivocada como As paráfrases são muito comuns no
numerus clausus; a dois, por terem sido mundo acadêmico, na produção de traba-
consagradas em sua feição negativa de lhos científicos utilizando-se o sistema
terceiros em relação ao titular (eles não autor-data, por exemplo. Na citação indi-
podem...), enquanto pode ser um direito reta geralmente os alunos parafraseiam
(subjetivo) destes, impondo ao titular um os autores referidos.
dever positivo (eles podem, este deve No entanto, diga-se que estas limita-
sofrer...), como de resto já se consagrou ções podem ser tidas como internas (es-
em sede de propriedade “geral”. tão no rol que a LDA elenca). E constam,
É claro, uma ampliação das limitações, antes, em tratados internacionais que o
com uma vinculação maior do Direito Brasil adotou.
Autoral à principiologia constitucional, Como referi antes, possivelmente o
com ênfase na dignidade da pessoa hu- grande problema das limitações na atua-
mana, por meio da concretização da li- lidade resida no âmbito externo, vale
berdade de expressão, do direito à in- dizer, nos possíveis conflitos de direitos
formação, à cultura e à educação, são fundamentais que não sejam necessari-
algumas das tantas possibilidades que se amente abarcados de modos concreto na
descortinam para este intento. Mas é o legislação autoral. Antes, estão na esfera
caminho escolhido, que – espero – se tri- do constitucionalismo, como no direito à
lhará na sequência de nossos debates educação, direito à cultura, direito à in-
aqui. formação. Apenas exemplificando, já que
o feixe de direitos fundamentais sabida-
MÁRIO mente é muito amplo.
- Primeiramente, parabéns atrasado!
Muita paz e saúde para você. MAR ISA
Continuando o diálogo... queria regis- - Na minha condição de quase leiga no
trar que o art. 47 da LDA, que libera as assunto e com base nesse necessário re-
paráfrases e paródias, sempre me fasci- dimensionamento da doutrina autoralis-
nou; principalmente os casos relativos às ta tradicional que você evidencia, em sua
paródias (os de paráfrase eu mal os co- primeira resposta, como um fator pre-
nheço). Superando a ideia de que seriam ponderante para que se superem as limi-
limitações simplesmente, em que medida tações às funções sociais, gostaria de um
tais manifestações se coadunam com a auxílio seu para que me seja possível a
Função Social do Direito de Autor? melhor compreensão do tema.
Do seu ponto de vista, é possível e-
GONZAGA quacionar e trazer maior equilíbrio à
- Obrigado pela sua contribuição, e pelos dimensão social dos direitos autorais
votos! face aos direitos fundamentais, tendo em

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vista a perspectiva da diversidade cultu- b) em diários ou periódicos, de dis-
ral, das questões de alteridade e, princi- cursos pronunciados em reuniões públi-
palmente, dos direitos autorais dos gru- cas de qualquer natureza;
pos e etnias considerados minoritários? c) de retratos, ou de outra forma de
E, ainda, isso poderia ser melhor resolvi- representação da imagem, feitos sob en-
do, se o enfoque passasse do posiciona- comenda, quando realizada pelo proprie-
mento protetivista e individualista para tário do objeto encomendado, não ha-
um enfoque coletivista, ou trata-se de vendo a oposição da pessoa neles repre-
uma discussão ainda maior? sentada ou de seus herdeiros;
d) de obras literárias, artísticas ou ci-
FABIO entíficas, para uso exclusivo de deficien-
- Muito interessante esta abordagem. tes visuais, sempre que a reprodução,
Meu colega de escritório, Guilherme Car- sem fins comerciais, seja feita mediante o
boni, tem um livro exatamente sobre esse sistema Braille ou outro procedimento
tema e realmente é um assunto fascinan- em qualquer suporte para esses destina-
te. O artigo 5º da Constituição Federal foi tários;
decisivo em incluir a proteção do direito II - a reprodução, em um só exemplar
autoral no rol de garantias fundamentais, de pequenos trechos, para uso privado
buscando, com isso, criar a justa perspec- do copista, desde que feita por este, sem
tiva de renda ao autor que quer viver de intuito de lucro;
sua criação intelectual. Diz o artigo "XX- III - a citação em livros, jornais, revis-
VII – aos autores pertence o direito exclu- tas ou qualquer outro meio de comunica-
sivo de utilização, publicação ou reprodu- ção, de passagens de qualquer obra, para
ção de suas obras, transmissível aos her- fins de estudo, crítica ou polêmica, na
deiros pelo tempo que a lei fixar;". medida justificada para o fim a atingir,
Combinando a interpretação desse in- indicando-se o nome do autor e a origem
ciso com aquele que fala da função social da obra;
da propriedade, igualmente uma impor- IV - o apanhado de lições em estabele-
tante garantia constitucional, seriam as cimentos de ensino por aqueles a quem
limitações previstas na Lei 9.610/98 – elas se dirigem, vedada sua publicação,
artigos 46 a 48 – as únicas situações em integral ou parcial, sem autorização pré-
que se poderia apontar a "função social" via e expressa de quem as ministrou;
ou você vê outras situações possíveis no V - a utilização de obras literárias, ar-
equilíbrio dessas duas garantias consti- tísticas ou científicas, fonogramas e
tucionais? transmissão de rádio e televisão em es-
Abaixo reproduzo para os colegas que tabelecimentos comerciais, exclusiva-
já conhecem, mas o conjunto de limita- mente para demonstração à clientela,
ções previsto na lei autoral: desde que esses estabelecimentos co-
mercializem os suportes ou equipamen-
“Art. 46. Não constitui ofensa aos di-
tos que permitam a sua utilização;
reitos autorais:
VI - a representação teatral e a execu-
I - a reprodução:
ção musical, quando realizadas no reces-
a) na imprensa diária ou periódica, de
so familiar ou, para fins exclusivamente
notícia ou de artigo informativo, publica-
didáticos, nos estabelecimentos de ensi-
do em diários ou periódicos, com a men-
no, não havendo em qualquer caso intui-
ção do nome do autor, se assinados, e da
to de lucro;
publicação de onde foram transcritos;

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VII - a utilização de obras literárias, engravatado chegou até determinada
artísticas ou científicas para produzir aldeia indígena na Amazônia e propôs ao
prova judiciária ou administrativa; cacique que assinasse a cessão de deter-
VIII - a reprodução, em quaisquer o- minada dança daquele grupo. Este inda-
bras, de pequenos trechos de obras pree- gou: como posso ceder o que não é meu,
xistentes, de qualquer natureza, ou de mas sim de todos?
obra integral, quando de artes plásticas, Vale a reflexão. Particularmente na es-
sempre que a reprodução em si não seja fera do HUMBERTO, dos direitos culturais.
o objetivo principal da obra nova e que FÁBIO, de fato o Carboni (e também o
não prejudique a exploração normal da Allan Rocha, ambos respeitados autora-
obra reproduzida nem cause um prejuízo listas e diletos amigos meus e do MARCO
injustificado aos legítimos interesses dos WACHOWICZ) tem interessantíssima pro-
autores. dução intelectual na linha da denomina-
Art. 47. São livres as paráfrases e pa- da função social dos direitos autorais.
ródias que não forem verdadeiras repro- Eu me filio à corrente liderada pelo
duções da obra originária nem lhe impli- Prof. José de Oliveira Ascensão, que não
carem descrédito. compreende os direitos autorais como
Art. 48. As obras situadas permanen- direito de propriedade. De qualquer sor-
temente em logradouros públicos podem te a função social neles se configura na
ser representadas livremente, por meio função social do Direito.
de pinturas, desenhos, fotografias e pro- Respondendo objetivamente sua per-
cedimentos audiovisuais”. gunta, estas limitações previstas em lei, a
partir do artigo 46 ao artigo 48 da LDA,
GONZAGA não são suficientes frente ao fantástico
- Muito boas ambas as provocações. MA- arcabouço de possibilidades tecnológicas
RISA, de fato esta preocupação que envol- da Sociedade da Informação. Em absolu-
ve os direitos autorais de determinados to! Tanto que elas foram construídas em
grupos que trabalham com os denomina- sua grande maioria em período "do ana-
dos conhecimentos tradicionais e com o lógico" (séculos XIX e XX).
folclore são particularmente muito caros Portanto, as limitações que se dão na
a quem trabalha na área. Há muitas ações esfera "externa" (que o Prof. Ascensão
pela ampliação deste debate e da prote- denomina extrínsecas) são bem mais
ção, na esfera da Organização Mundial da complexas e de difícil resolução que e-
Propriedade Intelectual – OMPI e do Mi- ventuais no âmbito interno (intrínseco)
nistério da Cultura – MinC (até semana do sistema. Como nos eventuais conflitos
passada, Ministério). de direitos patrimoniais de autor com o
De fato, como você enfatiza, a linha de direito à educação, o direito à cultura, o
visão de quem labora nesta área – e você direito à informação. Para mencionar
certamente domina isso bem melhor que somente três.
eu – é de uma construção muito menos Como você disse, se dão na dimensão
patrimonialista (proprietarista) e muito de colisão de direitos fundamentais. E aí
mais coletiva. Como li certa vez em um Robert Alexy pode ser um bom caminho.
livro, cujo título não recordo: um senhor

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