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PROEMIO A apresentacao de um cancioneiro popular em moldes editoriais que visam a mais larga audién- cia possivel pode acarretar suspeitas de manipulagdes de varia ordem, a menos que nao se previna o leitor dos conceitos que informam a obra para nela, de certa maneira, poder intervir criticamente. O que aqui se pretendeu, acaso com certa presungio, foi restituir ao povo portu- gués o que Ihe pertence de uma heranca legitima, nem sempre avaliada justamente como um dos mais preciosos bens do patriménio comum. Neste legado, e por razdes dbvias, houve que ampu- tar parte substancial do que constitui um corpo vivo de tradigdes musicais, complexamente relacionadas com a histéria e a cultura do Pafs. Apostamos, contudo, na virtude inequivoca de uma colectinea que procura reunir debaixo do mesmo tecto as vozes dispersas, longinquas ou familiares, de um povo induzido a considera-las como fantasmas indesejaveis do passado ¢ testemunhos incémodos do presente Assim, coube-nos a ingrata tarefa de seleccionar espécimes, cujas estruturas, estilos, géneros e fungées diversificados delineassem tracos fisionémicos de uma tradigao, em que se reconhece, como caracteristica essencial, um multissecular enraizamento ¢, ao mesmo tempo, um incessan- te rejuvenescimento, a sublinhar a inalterada capacidade criadora do povo portugués. A colectinea apresenta, deste modo, algumas feigdes elementares do canto, por um lado, e, por outro, polifonias de elaborada estruturagao; ritmos a escandir os gestos do trabalho, e expres- ses libertas de quaisquer canones; f6rmulas severas inscritas em ritos remotos e inspiragdes circunstanciais; documentos arquivados em paginas de cancioneiros esquecidos, e imagens re- cénditas na meméria colectiva; gritos isolados clamando na solidéo dos campos, e vozes unidas a reclamar a terra ¢ 0 pio. No plano antolégico, resta dizer que, na vasta documentagio chegada as nossas mos (1) e que foi objecto da nossa cuidadosa andlise, detectémos linhas de forga e caracteres tendenciais per- mitindo, na colectanea, a fixagio de grupos de certa homogeneidade, no tocante a sua insergdo no tecido social. A estes grupos, chamamos passos, no sentido de constituirem eles, para assim dizer, o terreno visivel ou as direcgdes possiveis em que se movem os cantos e se ajustam dialecticamente a vida © suas normas na comunidade rural. Nada autoriza, assim, que se considerem as divisdes arbitrérias, que so estes pasos, como compartimentos estanques a confinar, em categorias isoladas e estranhas & sua autonomia, a realidade totalizante da expresso popular. A gesta inconfundivel do povo, quisemos associar, por simples dever de justiga, aqueles que, de Adelino Anténio das Neves ¢ Melo a Fernando Lopes-Graga, de César das Neves e Gualdino de 5 Campos a Gongalo Sampaio, Rodney Gallop, Virgilio Pereira e tantos outros, auscultaram com infinito amor o canto profundo surgido da propria terra De todos eles é este Cancioneiro amplamente devedor, pelo que desejariamos viesse a ser « ynsi- derado como modesto tributo de merecida homenagem ¢ consideracao. Conhecidos os fundamentos e modos do cancioneiro, o leitor decidiré se deve ou nao trilhar os Passos que seguimos. O que nao poderd, acreditamos, é ficar neutro perante a beleza flagrante dos textos que se Ihe apresentam como vozes, ritmos e gritos de uma tradigio, cujo eco se repercute ao longo do caminho dificil, e por vezes doloroso, do seu povo. (1) Cerca de 7.000 espécimes musicais, dos quais perto de 4.000 provenientes de cancioneiros e obras varias, e 3.000 das nossas préprias recothas

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