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ISSN 2175-6945

A atuação do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP)


através dos pareceres censórios das telenovelas Um Sonho a Mais
(1985), Mandala (1987) e Vale Tudo (1988).1

Gabriela Silva GALVÃO2

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte/MG

Resumo: O período da reconstrução democrática no Brasil, entre os anos de 1985 e


1988, ainda é muito pouco estudado, principalmente no que se refere às políticas
culturais e às relações entre os agentes culturais e o Estado. Dessa forma, este trabalho
em como objetivo analisar como se deu a censura a três telenovelas da Rede Globo que
possuíam temáticas que iam contra as principais diretrizes do Departamento de Censura
de Diversões Públicas (DCDP), mostrando as relações entre autores, emissora e
censores.

Palavras-chave: Telenovela; censura; Rede Globo; redemocratização.

O presente trabalho visa o estudo da censura no Brasil e das formas de atuação


do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP) no período entre a eleição
indireta de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, marco do início do processo de
redemocratização no Brasil, e outubro de 1988 quando foi promulgada a nova
Constituição brasileira, que extinguiu a censura no país. Para tanto, serão analisados os

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Trabalho apresentado no GT Historiografia da Mídia integrante do 11º Encontro Nacional de História da
Mídia.

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Doutoranda em História e Culturas Políticas na Fafich/UFMG. Bolsista Capes/INTC. Email:
gabisgalvao@gmail.com

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pareceres emitidos pelo órgão a respeito de três telenovelas produzidas e exibidas pela
Rede Globo: Um Sonho a mais (1985), Mandala (1987) e Vale Tudo (1988).

O ano 1985 começou com grade euforia no Brasil. Em 15 de janeiro, Tancredo


Neves tornou-se, ainda que por vias indiretas, o primeiro civil a ser eleito Presidente da
República em quase vinte e um anos. Desde abril de 1964 o país vivia sob uma Ditadura
Militar.

Sobre o processo de transição democrática, Marcos Napolitano afirma:

Nas transições, mesmo aquelas tuteladas pelo regime vigente,


como no Brasil, as regras afrouxam e o jogo político fica
aberto. São momentos em que se buscam novos limites para
valores democráticos, procurando caminhos para o ‘day after’
das ditaduras. Mas é justamente nessa busca, por uma
democracia renovada por parte dos movimentos sociais e
políticos mais à esquerda, (...) que se faz com que liberais
conservadores e moderados negociem com os autoritários no
poder. (Napolitano, 2014, p.)

Ainda segundo Napolitano, a partir de 1983 pequenos motins e manifestações


começaram a ocorrer em São Paulo, sobretudo, na periferia da cidade. O autor entende
que esses movimentos ocorreram principalmente devido aos altos índices de
desemprego agravados por uma crise econômica pela qual o país passava desde, pelo
menos, o final da década de 1970.

A partir desses movimentos populares, foi encaminhada para o Congresso


Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional assinada pelo Deputado Federal
Dante de Oliveira que propunha eleições livres e diretas para presidente e vice-
presidente no Brasil. Com a derrota da emenda das Diretas Já, como ficou conhecida, o
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) lançou Tancredo Neves, então
governador de Minas Gerais, como candidato à presidência para concorrer às eleições
no Colégio Eleitoral. Segundo Heloísa Starling e Lília M. Schwarcz em Brasil: uma

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biografia, embora Neves tenha sempre feito oposição à Ditadura Militar, era tido como
um político moderado e com boas relações com o congresso e suas forças
conservadoras.

Tancredo Neves se elegeu Presidente da República do Brasil em janeiro de 1985,


tendo como vice o maranhense José Sarney. Ao contrário de Tancredo, Sarney era, e
ainda é, um político identificado com as práticas e forças políticas mais conservadoras
do país. A chapa se elegeu com uma proposta de redemocratização que prometia a
realização de eleições diretas para todos os níveis do poder, a convocação de uma
Assembleia Nacional Constituinte e, consequentemente, a promulgação de uma nova
constituição. Tancredo Neves, no entanto, anunciou em carta pública que não faria
quaisquer questionamentos aos militares sobre as ações tomadas durante os anos em que
estiveram no poder (SCHWARCZ; STARLING 2015).

Para muitos brasileiros, o novo governo que teria início em abril de 1985 traria à
população garantias de liberdades individuais, marcando, o fim da Ditadura Militar e de
muitos dos seus órgãos de repressão como o Serviço Nacional de Informação (SNI) e o
Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP). A morte de Tancredo Neves,
poucos dias antes de assumir o poder, e a posse de José Sarney como Presidente da
República não minaram essas esperanças.

No que tange à censura, a intenção do novo governo de promover algumas


mudanças fica clara na fala do recém-empossado Ministro da Justiça, Fernando Lyra,
indicado por Tancredo Neves. Ao discursar para artistas e intelectuais no Teatro Casa
Grande, no Rio de Janeiro, em julho de 1985, ele exclamou: “Adeus, censura!”. Beatriz
Kushnir, em Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988,
diz que, inicialmente, a proposta do governo de José Sarney previa o fim total da
censura prévia transformando o Departamento de Censura a Diversões Públicas (DCDP)
em um órgão que faria apenas a classificação indicativa dos espetáculos.

Segundo essa proposta, deveria ser criado o Departamento de Classificação de


Espetáculo Público (DECLEP), cujo organograma seria semelhante ao do antigo DCDP.

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A nova divisão, no entanto, estaria diretamente subordinada ao Ministério da Justiça e
passaria a não ter mais qualquer relação com a Polícia Federal, como ocorria até então.
Sendo assim, os antigos agentes de censura deixariam de ser parte do corpo policial e
seriam realocados como analistas de espetáculos.

Para definir as competências do DECLEP foi criada uma comissão de artistas e


intelectuais capitaneada pelo cantor e compositor Chico Buarque e pelo dramaturgo e
telenovelista Dias Gomes. Tal comissão propôs, dentre outras medidas, a revogação das
legislações censórias em vigor e a liberação de todas as produções vetadas ou liberadas
com cortes pelo DCDP. (GARCIA, 2009)

O que seria o novo órgão, no entanto, nunca saiu do papel e até a promulgação
da nova constituição, em outubro de 1988, a censura às diversões públicas se manteve
tal como ocorria durante a Ditadura Militar. Beatriz Kushnir afirma, a título de exemplo
da atuação do DCDP, que entre março de 1985 e formação da Assembleia Nacional
Constituinte, no início do ano de 1987, 261 músicas brasileiras sofreram algum tipo de
corte imposto pelo DCDP, sendo que 25 delas tiveram as execuções inteiramente
vetadas. Além disso, em 1986, ocorreu um novo concurso público para o cargo de
agente de censura, aumentando de 150 para 200 o número de profissionais na ativa.

Desde, pelo menos, o final da década de 1960, a censura atingiu as telenovelas.


Muitos foram os casos, sobretudo durante a década de 1970, de tramas que tiveram seus
rumos alterados por atuação direta do DCDP. Na Rede Globo, os casos mais famosos
são os das novelas Roque Santeiro3 e Despedida de Casado que foram inteiramente
vetadas mesmo após já terem capítulos gravados e suas chamadas já estarem no ar.
Nesses casos, a solução encontrada pela emissora foi veicular novos textos usando o
mesmo elenco e a mesma produção técnica.

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Programada para ir ao ar em 1975, como parte das comemorações do décimo aniversário da Rede
Globo, Roque Santeiro não foi ao ar. No entanto, dez anos mais tarde, a emissora produziu novamente a
telenovela, ainda que com o elenco quase completamente reformulado.

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Tratando especificamente das telenovelas abordadas por este trabalho,
começaremos a problematização a partir de Um Sonho a mais exibida às 19 horas pela
Rede Globo entre fevereiro e agosto de 1985. A história, de autoria de Daniel Más e
Lauro César Muniz, é baseada na peça Volpone escrita por Ben Johnson no século XVI
e adaptada ao Brasil da década de 1980, retrata a vida do milionário Antônio Carlos
Volpone, vivido por Ney Latorraca, que abandonara o país cerca de vinte anos antes ao
ser acusado de assassinar o ex-sogro.

Alegando sofrer de uma suposta doença contagiosa e fatal, o protagonista


retorna ao Rio de Janeiro para morrer em sua terra natal. Na verdade, os objetivos de
Volpone são provar sua inocência no episódio da morte do ex-sogro e reconquistar sua
amada, Stella (Sylvia Bandeira). Para cumprir seus propósitos, o milionário assume
diversas identidades: o advogado Augusto Melo Sampaio, o motorista André Silva e, a
mais controversa deles, Anabella Freire, uma secretária. Volpone conta com a ajuda de
alguns cúmplices como Mosca (Marco Nanini) e Lula (Antônio Pedro) que também
assumem personalidades femininas, as irmãs de Anabella, Clarabella e Floribella.

Também baseada em um clássico do teatro - a tragédia grega Édipo Rei de


Sófocles, encenada pela primeira vez por volta do século V a.C. - Mandala foi exibida
em horário nobre, às 20 horas, entre outubro de 1987 e maio de 1988. Escrita por Dias
Gomes, que poucos anos antes contribuíra para uma tentativa de revisão da censura e
sua subsequente transformação em classificação indicativa, Marcílio Moraes e Lauro
César Muniz, a trama contava a história da estudante Jocasta (Giulia Gam/Vera
Fischer), engajada na Campanha da Legalidade que pretendia, em 1961, empossar o
vice-presidente João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. A jovem se descobria
grávida do namorado Laio (Talmaturgo Ferreira/Perry Salles) e ao dar à luz, o filho
Édipo fora sequestrado e dado como desaparecido. A criança fora raptada pelo próprio
pai que, ao consultar seu guru, Argemiro (Marco Antônio Pâmio/ Carlos Augusto
Strazzer), soube que o filho iria odiá-lo e o assassinaria para se casar com a própria mãe.

Vinte e cinco anos mais tarde, Jocasta e Laio estão casados e o homem é um
contraventor ligado ao Jogo do Bicho. Em uma viagem, após uma briga de trânsito, ele

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acaba caindo de um precipício e morre. No entanto, a pessoa com quem Laio se
desentendeu, e que acabou indiretamente envolvido em sua morte, era seu filho Édipo
(Felipe Camargo) que fora criado em Brasília por uma família adotiva. O jovem muda-
se para o Rio de Janeiro e se apaixona por Jocasta sem saber que ela é sua mãe
biológica.

Substituta de Mandala no horário nobre da TV Globo, Vale Tudo foi exibida


entre maio de 1988 e janeiro de 1989. A trama, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo
Silva e Leonor Basseres, tinha como ponto central do desenvolvimento das ações a
pergunta “É possível ser honesto no Brasil?”. Para ilustrar essa contestação e a crítica à
corrupção e à falta de ética em vigor no país, os autores se valeram de uma dicotomia
entre honestidade e desonestidade. A honesta e íntegra Raquel (Regina Duarte) em
contraponto com a filha Maria de Fátima (Glória Pires), capaz de dar um golpe na
família no interior do Paraná e fugir com o dinheiro da venda do único imóvel que
possuíam.

Vale Tudo também falava da corrupção dos grandes empresários brasileiros.


Odete Roitman (Beatriz Segall) e Marco Aurélio (Reginaldo Farias), respectivamente
proprietária e executivo da fictícia companhia aérea TCA, usam a empresa para desviar
dinheiro dos cofres públicos e dar golpes no setor aeroviário. Ao final da novela, Marco
Aurélio foge do país com boa parte do dinheiro roubado e, em uma cena antológica, “dá
uma banana” para o Brasil.

Para tratarmos sobre as práticas do DCDP4 durante o período entre 1964 e 1988,
devemos estar atentos a uma polêmica acerca da censura imposta às diversões públicas
que passa pela discussão sobre o seu caráter moral e/ou político. Muitos autores têm,
nos últimos anos, feito um intenso e produtivo debate historiográfico sobre o tema.

Beatriz Kushnir se ampara em uma série de leis brasileiras para expor seus
argumentos. A autora entende que parte da sociedade demandava por um rigor na

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Até 1972 o órgão de censura no Brasil chamava-se Serviço de Censura e Diversões públicas (SCDP).
Optou-se nessa pesquisa, no entanto, por chama-lo de DCDP, uma vez que seu foco principal é o período
entre 1985 e 1988.

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Censura. Ela entende, entretanto, que as supostas vítimas da prática, os jornalistas e
veículos de mídia, em muitos casos cooperavam com os órgãos governamentais de
censura.

Um dos exemplos mais latentes é o da Rede Globo que contratou um antigo


funcionário do DCDP para avaliar os programas de televisão antes que eles fossem
enviados a Brasília. Para Kushnir essa seria uma censura prévia antes da prática oficial.
A autora, dessa forma, acredita que a toda censura é um ato político mesmo quando a
proibição é justificada por questões morais, já que seria uma “repressão à informação
como sinônimo da força desse Estado Autoritário sobre seus cidadãos"5.

Em Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura a livros e


diversões públicas na década de 1970, Douglas Áttila Marcelino vai por outro caminho.
Ele entende que a memória construída pela historiografia acerca da Ditadura Militar
ressalta o caráter político da censura. Isso ocorre, principalmente, porque no momento
da abertura política foi comum usar a censura como uma forma de desqualificar o
Estado autoritário. Ao analisarmos os fichários do DCDP que estão sob posse do
Arquivo Nacional em Brasília pode-se perceber que, numericamente, os temas mais
vetados, de fato, eram aqueles relativos aos costumes.

Havia, desse modo, uma grande preocupação por parte dos setores mais
conservadores da sociedade para que houvesse um maior controle às artes, sobretudo ao
cinema, ao teatro e à televisão. O objetivo seria a não contaminação dos jovens por
ideais que contestassem os valores morais vigentes. Sendo assim, o DCDP seria um
órgão de suma importância nesse combate contra os valores que se opunham, pelo
menos em teoria, à tradicional e conservadora família brasileira.

Ao analisarmos e relacionarmos as falas dos autores e os documentos da


Censura Federal a cerca das telenovelas Um sonho a Mais, Mandala e Vale Tudo

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KUSHNIR, 2004 p.65

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podemos concluir que de fato existia uma predominância das intervenções de caráter
moral. Há, no entanto, que se fazer algumas ponderações.

A preservação de valores conservadores era não só um discurso dos militares


que governaram o Brasil entre 1964 e 1985 uma vez que se tornou também uma política
de Estado, mesmo quando um civil, José Sarney, assumiu o poder em 1985. Apenas a
Constituição de 1988 colocou fim à prática da censura às diversões públicas no país.
Sendo assim, não há como se dissociar a censura moral da censura política uma vez que
elas estão intrinsecamente ligadas. Qualquer tipo de censura é um ato político que
demonstra o poder do conservadorismo da sociedade.

A telenovela Um Sonho a Mais teve sua sinopse encaminhada para análise pelo
DCDP em 1984. Os pareceristas não encontraram qualquer problema na trama que
pudesse acarretar em um veto e ela foi liberada para a exibição às 19 horas. No entanto,
a partir do momento que a telenovela foi ao ar, a partir de 1985, os embates entre o
autor, Daniel Más, a diretoria da Rede Globo, representada pelo seu vice-presidente de
operações, José Bonifácio Oliveira, o Boni, e o DCDP ficaram latentes.

O ponto principal de conflito até o capítulo 50 foram as personagens travestis6


representadas por atores masculinos. A secretária Anabella Freire, um dos disfarces
usados pelo protagonista Volpone para investigar a morte de seu ex-sogro, em dado
momento da trama, chega a casar-se com o empresário Pedro Ernesto Martins que
acredita que ela é uma mulher cisgênero.

O fato foi completamente repudiado pela censura. Várias foram as cenas


cortadas pelos agentes do DCDP, principalmente após o episódio do casamento em que
os atores chegam a se beijar, naquele que pode ser considerado o primeiro beijo entre
dois homens na teledramaturgia brasileira.

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As irmãs Anabela, Clarabela e Floribela Freire, vividas, respectivamente, por Ney Latorraca, Antônio
Pedro e Marco Nanini são caracterizadas por Fernanda Nascimento da Silva em Bicha (nem tão) má:
representações da homossexualidade na Telenovela Amor à Vida como travestis/camp. Por ser a única
descrição de gênero existente das personagens, optou-se usar essa terminologia como referência, embora
seja sabido que ela pode ser considerada controversa.

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Um ponto interessante nesses cortes é que, diferentemente do que ocorreu com
as outras telenovelas analisadas, não foram emitidos pareceres pelos censores. Os
comentários estavam no corpo dos textos e não existiam assinaturas que nos
demonstrem quais agentes atuaram nos vetos.

Além disso, é importante notarmos que, em cartas enviadas ao DCDP, muitas


delas assinadas por Boni, havia uma concordância da Rede Globo com a ação da
censura. O então vice-presidente de operações na emissora entendia que as personagens
travestis deveriam ser suprimidas da trama. Após várias intervenções e ameaças de
retirada da telenovela do ar por parte da Censura Federal, o autor principal, Daniel Más,
foi substituído por Lauro César Muniz que adequou a história aos parâmetros exigidos
pela Rede Globo e pelo DCDP. No final de Um Sonho a Mais, as irmãs Freire já não
faziam mais parte do enredo.

Desde a submissão à Censura da sinopse de Mandala, no início de 1987, houve


problemas. Os agentes se preocupavam com o conteúdo abordado, principalmente pelo
fato da obra ser uma releitura da tragédia grega Édipo Rei de Sófocles, visto que a
história trata de um romance entre mãe e filho. Além do incesto, a telenovela escrita por
Dias Gomes, também abordava outros temas considerados controversos, tais como o
Jogo do Bicho e o tráfico de drogas, atividades ilegais praticadas por Laio (Perry Sales)
e Tony Carrado (Nuno Leal Maia) e a bissexualidade de Laio que, embora casado com
Jocasta (Vera Fischer) mantinha um romance com seu secretário e guru Argemiro
(Carlos Augusto Strazzer).

Em Mandala destaca-se também uma trama política, vista com ressalva por
alguns censores. Na primeira fase da história, ambientada em agosto de 1961, Dias
Gomes retrata a renúncia do presidente Jânio Quadros e a dificuldade imposta por
correntes conservadoras, como parte das Forças Armadas brasileiras, para a posse de
seu vice, João Goulart. A jovem Jocasta, vivida nesse momento por Giulia Gam, era
filha de um líder do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e neta de um espanhol
anarquista. Dessa forma, a estudante de Ciências Sociais se engajou na Campanha da
Legalidade e lutou para garantir a posse de Jango.

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A sinopse de Mandala não foi aprovada para a veiculação às 20 horas, podendo
ser exibida somente a partir das 22 horas. Esse fato inviabilizaria a trama, uma vez que
no horário imposto pelo DCDP não havia, desde o início da década de 1980, exibição de
telenovelas, apenas séries e minisséries. Dessa forma, a Rede Globo se viu obrigada a
recorrer ao Conselho Superior de Censura, que possuía um membro indicado pelas
emissoras de TV, para que a telenovela fosse liberada. Ela estreou em outubro de 1987,
porém, sofreu vários cortes ao logo da exibição, o que fez com que a trama fosse
severamente prejudicada.

Vale Tudo foi oficialmente considerada a última telenovela da Rede Globo


exibida na faixa das 20 horas a sofrer ações por parte da censura. Isso ocorreu porque a
Constituição de 1988, promulgada em outubro, extinguiu o órgão e acabou oficialmente
com a censura no país. Nesse momento, a trama estava caminhando para o seu final. O
capítulo 122 foi o último a receber um parecer do DCDP.

A trama tratava da corrupção dos grandes empresários brasileiros representados


por Marco Aurélio (Reginaldo Faria), diretor da companhia aérea TCA. O empresário
aplicava golpes em licitações do governo para enriquecer. Ele tinha o apoio de sua ex-
sogra Odete Roitman, proprietária da empresa. Ao analisarmos os pareceres vemos que
essa trama, embora em alguns momentos seja citada pelos agentes do DCDP, não foi
alvo direto da censura.

Em Vale Tudo prevaleceram questionamentos em relação às cenas de sexo, ao


consumo de drogas por parte do personagem César (Carlos Alberto Riccelli) e,
principalmente, ao romance entre Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala
Deheinzelin). Sobre as personagens Gilberto Braga, autor da trama, afirma em
entrevista ao Jornal O Globo:

Em “Vale tudo” (1988) há um folclore. É o caso das lésbicas


(personagens vividas por Cristina Prochaska e Lala Deheinzelin, que
morre na trama). A história que eu contei é exatamente igual à que
queria contar. Não houve censura. Não houve alterações. Quando criei

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a personagem de Lala, sabia que ela morreria. Isso eu sempre
planejei.(Jornal O Globo 23/03/2014)

Embora o próprio afirme que não houve intervenções do DCDP, o que se vê ao


analisarmos os pareceres não segue exatamente esse caminho. De fato, não houve
nenhuma imposição para a morte de Cecília que já estava presente desde a sinopse. A
intenção de Gilberto Braga e sua equipe era discutir o direito de herança no caso de
morte de um elemento de um casal homoafetivo. Cecília era irmã de Marco Aurélio e
dona, tendo Laís como sócia, de uma pousada em Búzios. O vilão passaria então a
disputar com a cunhada a propriedade da empresa.

Mesmo o DCDP não tendo impedido essa trama de ir ao ar, houve vários cortes
em diálogos que deixavam claro a orientação sexual das personagens. Isso demonstra
que, mesmo a poucos dias do seu fim, a censura ainda era atuante nas telenovelas
brasileiras.

Esta pesquisa se encontra ainda em fase inicial. No entanto, já é possível


percebermos alguns pontos chave para a discussão da censura televisiva no Brasil
durante o período entre 1964 e 1988. O primeiro aspecto a ser observado é a inserção da
censura em uma Cultura Política conservadora no Brasil. Ainda que houvesse uma
demanda nas ruas em favor da democracia e das liberdades individuais, fica claro que
há por parte de alguns setores da sociedade, inclusive os mais intelectualizados, uma
ideia de que haveria uma necessidade de controle por parte do Estado do que deveria ou
não ser visto na televisão.

Outro ponto importante a ser observado passa pelas relações entre autores de
telenovelas, a Rede Globo e o DCDP. Embora os dois primeiros aleguem terem sido
combativos em relação ao cerceamento de ideias, podemos ver que, no caso das tramas
estudadas, houve uma certa acomodação e até mesmo colaboração com o órgão estatal.
Dessa forma, podemos entender que ao censura às telenovelas no início da Nova
República contribui para o estudo sobre o período, mostrando como foram os avanços e
retrocessos na construção de um país, em tese, mais democrático.

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