Você está na página 1de 350

Página 2 de 349

A capa da edição holandesa de 1682


Página 3 de 349

MEMORÁVEL VIAGEM MARÍTIMA E TERRESTRE


Joan Nieuhof (1682), São Paulo / Belo. Horizonte, Edusp / Itatiaia, 1981

Johan Nieuhof (Uelsen, 22 / 07 / 1618 – Madagascar, 08 / 10 / 1672)


Página 4 de 349

NOTAS DE INTRODUÇÃO:

Depois de fracassada tentativa de tomada e ocupação da capitania da Bahia


em 1624, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, invadiu Pernambuco
em 16 de fevereiro de 1630. Bem sucedida a invasão em Pernambuco, à
manutenção da posse requeria manter estrutura administrativa operacional,
que lhe permitisse gerir os negócios e entre os homens que mobilizou para
suprir a necessidade de mão-de-obra para as tarefas administrativas,
encontrava-se Joan Nieuhof (1618-1672).

Joan Nieuhof, alemão da Baixa Saxônia, esteve trabalhando junto a


Companhia Holandesa das Índias Ocidentais em Recife, Pernambuco no Brasil
ao longo de quase 09 anos compreendidos entre 1640-1649. Seus registros,
postumamente publicados por seu irmão H. Nieuhof no ano de 1682 resultaram
em um livro que recebeu o título de Gedenkweerdige Brasiliaense Zee-en Lant-
Reize, que foi traduzido para o Português, por Moacir N Vasconcelos a partir
da edição inglesa. Nieuhof foi privilegiado observador dos acontecimentos e
talvez o mais importante dos cronistas daqueles nove anos. Através de seus
registros forneceu detalhados relatos das principais ocorrências durante aquele
período, sendo de sua autoria as mais fidedignas e autênticas descrições da
revolta luso-brasileira contra os holandeses. Parte do texto de seu livro
compõe-se de transcrições de negociações havidas entre o governo holandês
do Recife com o governo português da Bahia. Seus registros incluem também,
interessantes considerações sobre o país, sua fauna e flora e as relações com
os luso-brasileiros. É por essa razão um dos livros holandeses essenciais
sobre esta revolta dos luso-brasileiros aos invasores e a história do declínio do
domínio holandês no Brasil e ainda sobre: Geografia, História Natural,
Etnografia do país.

Concluído seu período de atividades junto a WIC, Nieuhof, seguiu para Batávia
(Jacarta na Indonésia), passando a atuar junto a VOC (Companhia Holandesa
das Índias Orientais), através da qual efetuou inúmeras viagens, tornando-se a
época a mais autorizada fonte entre os europeus sobre a China. Nieuhof
desapareceu, sem deixar vestígios, durante uma escala de abastecimento de
água no ano de 1672.

Ao compilar o livro de Nieuhof, do site da UFPE/LIBER A Visão Holandesa do


Brasil tive por intenção a continuidade da estruturação de uma Biblioteca Digital
para uso pessoal, sobre as obras que me parecem essenciais sobre o período,
que não só facilitariam minhas pesquisas, como também tive a intenção de
disponibilizá-las aos amigos igualmente interessados no assunto, que em razão
das dimensões continentais de nosso país não dispusessem de bibliotecas
melhor estruturadas em suas proximidades e muito menos livrarias onde
pudessem localizar a literatura básica sobre o período holandês no Brasil, ou
ainda aos estudantes de História das comunidades do ORKUT que participo,
nos quais observei as tradicionais limitações financeiras que lhes limita o
acesso a todas as obras essenciais, devendo por esta razão definir prioridades
nas quais as obras menos famosas, ou de mais difícil localização, são
excluídas.
Página 5 de 349

É, portanto, minha modesta contribuição, fruto, de momentânea ociosidade,


que faço disponível também para o uso dos amigos, lembrando, no entanto que
não me tratando de profissional do mister, optei por efetuar a transcrição da
forma que melhor me foi possível na qual confrontei a cópia obtida no site
supra informado, com a edição da Editora Itatiaia/Belo Horizonte-MG e copiei
colei (desordenadamente, acredito) as gravuras da edição holandesa,
acrescendo outras cópias de gravuras que dispunha em arquivo ou localizei na
INTERNET..

Registrei entre [colchetes], as poucas revisões que se tornaram necessárias

Vittorio Serafin

Distrito do Pecém, Município de São Gonçalo do Amarante, estado do Ceará


aos 05 dias de outubro de 2010.
Página 6 de 349

MEMORÁVEL VIAGEM MARÍTIMA E TERRESTRE DE JOAN NIEUHOF 1 AO BRASIL

11664400

Tendo entrado para o serviço da Companhia das Índias Ocidentais em 1640, já


a 24 de outubro daquele mesmo ano embarcava eu, na qualidade de
comissário, a bordo da nau Roo Hert [ou Roo Herr conforme a edição
holandesa], de 28 canhões e 130 homens, comandada por Klaes Jelles, de
Durkerdam [cidade do norte da Holanda]

Sua partida da Holanda

Ao anoitecer do dia 27 velejamos ao largo de Texel, em companhia de vários


outros navios que rumavam para a França, Espanha e os Estreitos.
Prosseguimos viagem a 28, com vento à feição, pelo canal que separa a
França da Inglaterra.

Violenta tempestade

No dia 29, assaltou-nos violentíssima tormenta que nos obrigou a arriar as


velas grandes e se prolongou desde a manhã até a noite, quando a fúria dos
ventos se foi lentamente aplacando. Verificamos, então, que os danos sofridos
haviam sido insignificantes. Todavia, o mar continuou agitadíssimo durante
toda a noite. No dia seguinte os marinheiros apanharam um pica-pau, um
pombo selvagem e vários outros pássaros arrastados ao oceano pela violência
da tempestade.
A 31, navegamos a 45 graus de latitude norte. Na manhã seguinte, 1° de
novembro, os marujos arpoaram um porco-marinho [golfinho]. Era tão grande
1
Há várias grafias para o nome Joan Nieuhof. Uns escrevem Johan Nieuhof, outros Johan
Nieuhoff e outros, ainda Johann Neuhof. Nós preferimos a grafia que mais freqüentemente
encontramos na edição original holandesa. Realmente, tanto no poema aos 12 meses do ano,
assinado por Nieuhof, como na falsa folha de rosto da Viagem ao Brasil, na folha de rosto da
Viagem às Índias Orientais, no privilégio concedido por Johan de Wit, na introdução assinada
por seu irmão Hendrik Nieuhof, está grafado Joan Nieuhof. Apenas na folha de rosto da
Viagem ao Brasil se escreve Johan Nieuhof.
Não fica, porém, tão somente nisso a variação gráfica do nome do autor da Viagem ao Brasil.
Assim, Theodor Kadletz (XLV, nota, p. XXIII), em livro sobre "As antigas obras de fortificação
de Pernambuco", no capítulo sobre o modo de escrever alguns nomes pessoais, escreve:
"Neuhof. O conhecido autor sob o nome de Johan Nieuhof, da Gedenkwaerdige Brasilianse
Zee en Lant Reize", não é natural da Holanda e sim de Ulsen, em Benthem, no Hanovre.
Temos, portanto, para nos, como original a forma alemã do nome e colocamo-la antes da
holandesa. O fato de que o seu livro traga essa última forma, pouco significa, pois foi
publicado, pela primeira vez, depois de sua morte por seu irmão em Amsterdã".
Não aceitamos a argumentação de Kadletz por várias razões. Em primeiro lugar, não é
novidade, para os leitores de Nieuhof, o que nos diz o citado autor sobre a nacionalidade deste,
pois na Introdução feita pelo seu irmão isso já constava. E à p. 228 da edição holandesa
Nieuhof escreveu que depois de chegar à Holanda partiu para a sua pátria. Em segundo lugar,
não é exato que Benthem pertencesse ao Hanovre, pois na época constituía um condado livre
e independente. Nieuhof escreveu em holandês, trabalhou para a Holanda, cuja importância
era das maiores no século XVII. Portanto, nada justifica que se escolhesse duzentos e
cinqüenta e nove anos depois, uma grafia que seu próprio irmão não adotou ao publicar seus
trabalhos.
Página 7 de 349

que foram necessários quatro homens para içá-lo a bordo e, ainda assim, com
dificuldade. Sua carne não nos pareceu muito agradável; sabia a ranço, razão
pela qual os nossos homens não mais quiseram apanhar esses cetáceos,
conquanto aparecessem em abundância em torno do navio.

Ao pôr do sol, soprando mais forte o vento, distanciamo-nos dos outros navios
que demandavam a Espanha e os Estreitos e que nos haviam acompanhado
até a última tempestade, para rumarmos em direção a sudoeste.

Nos dias 2 e 3 ventou muito com trovões e relâmpagos, o que nos forçou a
colher as velas grandes e bombear energicamente, porque, desde a última
tormenta, o navio passara a fazer água.

Outra violentíssima tempestade

No dia 4 encontrávamo-nos a 40 graus e 30 minutos quando, pela meia-noite, o


vento soprou com impetuosidade. Tal foi, então, a sucessão de relâmpagos
pela noite adentro, que, em torno de nós, a atmosfera parecia
incandescente. Durante essa calamidade percebemos pequenas
chamas ou luzes, fixas ao mastro: fogos pacíficos [*], como os
chamam os marinheiros. Supõe-se que esses fogos sejam
causados por certos vapores sulfúricos que a violência dos ventos
traz da terra para o mar, onde se inflamam pela tremenda agitação do ar e
ficam queimando até se extinguir a substância oleosa que contêm. Os
marinheiros têm-nos como indício de que a tempestade tende a amainar e
parecem ter razão, pois desde aquele instante, a fúria dos ventos foi cedendo.

[*] O fenômeno é também conhecido como fogo-de-santelmo (ou fogo de São Telmo ou ainda
fogo de Santo Elmo) consiste numa descarga eletroluminescente provocada pela ionização do
ar num forte campo elétrico provocado pelas descargas elétricas. Mesmo sendo chamado de
fogo, é na realidade um tipo de plasma provocado por uma enorme diferença de potencial
atmosférica.
Página 8 de 349

O fogo-de-santelmo origina seu nome de São Erasmo (também conhecido como São Elmo ou
São Telmo), o santo padroeiro dos marinheiros, que haviam observado o fenômeno desde a
Antiguidade, e acreditavam que a sua aparição era um sinal propício.

Passagem dos BARRÍS

No dia 5 passávamos os Barris a 39 [**] graus. De acordo com uma velha


usança, todo aquele que por aí ainda não tenha passado, seja qual for sua
condição ou qualidade, é obrigado a se batizar ou a se redimir dessa exigência.
Amarrasse uma corda à cintura do neófito que, a seguir, é guindado ao ponto
mais alto do gurupés e daí atirado ao mar, três vezes consecutivas. Muitos há
que ficam horrivelmente pálidos, nesse momento, mas, também, há os que
prazerosamente se dispõem a fazê-lo e, por uma dose de vinho espanhol, de
bom grado se deixam batizar novamente pelo capitão ou pelo comissário.
Todavia, esse costume foi ultimamente abolido por ordem expressa da
Companhia, a fim de evitar as rusgas e conflitos que quase sempre surgiam
nessas ocasiões.
[**] 39° de latitude Norte refere-se a posição do arquipélago dos Açores

Avistam-se dois navios turcos - Preparativos para o combate

No dia 6, como rumássemos com vento fresco para su-sudoeste, avistamos


dois barcos que navegavam a todo pano em direção a nós, os quais
imaginamos serem de piratas turcos, suposição que mais tarde se verificou
exata. Dispusemo-nos, portanto, a nos defender até o extremo. Deram-se
ordens para que se varresse o tombadilho de tudo quanto nele havia, armando-
se os marinheiros com mosquetes, chuços, lanças e outros petrechos
semelhantes. Logo que todos se puseram a postos, hasteamos a bandeira de
guerra e, ao som dos clarins que soavam a combate, esperamos que o inimigo
se aproximasse. Estando, então, muito mal o capitão do navio, devido a
ferimentos anteriormente recebidos e que por essa época se agravavam, e,
não podendo o comissário François Zweers permanecer no tombadilho em
razão de sua avançada idade, tive eu que assumir o comando da nau,
animando os homens a lutar bravamente por nossas vidas e liberdade e
ordenando-lhes a não abrir fogo de forma alguma antes que o inimigo estivesse
bem dentro do alcance de nossas armas, pois era maior em número que nós.

Combate com dois corsários turcos

Por volta do meio-dia avistamos os turcos que se dirigiam a nós arvorando


bandeiras cor de laranja que logo substituíram pelas de guerra. O navio maior
salvou-nos com dois tiros de peça de seu castelo de proa, os quais não nos
causaram grande dano, mas, ao vigésimo segundo disparo, quase despedaçou
o nosso mastro principal. Nesse momento, como já nos aproximássemos de
outro navio, abrimos um nutrido fogo, que os turcos se apressaram em retribuir.
Pude, então, observar que o navio maior havia recebido um tiro em cheio, à
meia-nau, que o obrigara a se manter à distância, a fim de poder reparar as
avarias. Isso me deu certa folga, que aproveitei para levantar o ânimo da
tripulação não só verbalmente, mas, também, com boa dose de vinho a que os
marujos misturavam pólvora. Fiz o mesmo para estimulá-los.
Página 9 de 349

Os turcos abandonam a luta

Nesse momento o inimigo voltou à carga alvejando-nos com tal fúria, com
canhões e arcabuzes, que arrancaram o teto de nossa cabine grande,
danificando, ainda, a cordoalha. Troquei, então, minha cimitarra por um
mosquete que passei a descarregar continuamente sobre o inimigo. Semanas
depois, ainda sofria eu com um ferimento que me causou, naquela refrega, o
mosquete de um companheiro. A arma lhe fora arrancada das mãos por uma
bala de canhão e viera bater violentamente contra mim, atirando-me sem
sentidos ao tombadilho. Momentos depois consegui, entretanto, tornar ao meu
posto. Percebi, então, que o capitão da maior das naus turcas, de turbante à
cabeça se achava à popa do seu barco instigando a maruja. Prontamente
ordenei aos que estavam ao meu lado, que o visassem com suas armas de
curto alcance, o que imagino tenha sido feito com sucesso, pois, logo a seguir,
já o não vi mais.

Corsário turco

Apesar disso cresceu de ambos os lados o calor da peleja, e, ao prolongado


duelo da artilharia, faziam coro os gritos e lamentações dos feridos. Entretanto,
já os turcos não mais tentavam nos abordar, fosse porque nos supusessem
mais bem equipados do que realmente estávamos ou por temerem que
procurássemos incendiar-lhes as naus, o que realmente havíamos tentado,
atirando-lhes um morrão aceso. Responderam-nos, em holandês que não nos
deixariam naquelas condições. Entretanto, não demorou muito antes que os
Página 10 de 349

víssemos afastar com seus navios atingidos por muitos de nossos tiros. E
assim, com vento forte, pudemos dar todo pano e livrar-nos de tão indesejáveis
companheiros, tomando rumo completamente diferente. Com a vantagem que
nos deram as trevas da noite, já na manhã seguinte estávamos bem longe
deles.
Demos graças a Deus por nos haver salvo do perigo da escravidão 2,
auxiliando-nos na luta contra um inimigo muito mais forte. De fato, o maior dos
navios contrários estava armado com 24 canhões e o outro com 2, enquanto
que nós apenas dispúnhamos de 18 [*], sem levar em conta o fato de terem
eles uma guarnição muito maior que a nossa [ que era como informa no início
de 130 homens]. Depois de vistoriar nosso navio e de verificar que estava em
boas condições, empenhamo-nos em reparar os danos sofridos em combate.

Ocupávamo-nos desse mister quando, no dia 7, forte tempestade nos


surpreendeu, obrigando-nos a baixar todas as velas. Causou-nos isso grande
confusão, mas, por fortuna, a tormenta logo passou. Deu-se, então, ordem para
distribuir, daí por diante, uma ração de três libras e meia de bolacha [biscoito],
por semana, a cada marinheiro, pois o pão que trazíamos a bordo estava
completamente embolorado. No dia 10 achávamo-nos a 39 graus e 30 minutos,
ou seja, cerca de 20 milhas ao largo das Ilhas Canárias. Dessa posição
avistamos o pico de Tenerife [o Pico de Teide era adotado como meridiano de
referência, ou primeiro meridiano, pela cartografia holandesa] de três milhas e meia
de altura 3 [3.718 m ou 12.198 pés], e que passa por ser a mais alta montanha do
mundo. É visível a 60 milhas de terra.

Prosseguimos viagem até o dia 14, sem nenhum incidente digno de nota,
quando então cruzamos o Trópico de Câncer [23° N].

[*] Observar que logo no início do livro Nieuhof, informa que o navio Roo Hert,
ou Roo Herr dispõe de 28 canhões, número esse contraditado acima – deverá
se presumir ou que o número de 28 peças inicialmente informado foi
equivocado, ou então que neste último registro se reduziu aquele número para
valorizar a vitória.

Cerca do meio-dia éramos colhidos por outra tempestade que, por precaução,
nos fez reduzir o pano das grandes velas. Contudo, o tempo logo serenou.

2
O Alcorão proíbe reduzir à escravidão os muçulmanos, mas admite a escravidão dos
idólatras. Durante toda a história turca existiram escravos brancos e negros entre os turcos,
sendo a guerra a fonte de escravidão branca, principalmente na época das Cruzadas. É sabido
que os muçulmanos exerceram a pirataria, roubando habitantes das costas do Mediterrâneo e
vendendo-os como escravos, tráfico este que durou até a metade do século XIX. A ordem da
Mercê foi criada com o fito especial de libertar os cativos.
O exército turco - os célebres janísaros - eram recrutados entre cristãos. Os corsários turcos
exerciam suas atividades especialmente no Mediterrâneo Ocidental, que se tornou um mar
pouco seguro para os cristãos.
Herbert Bloom conta-nos, por exemplo, que um certo judeu Efraim Abensachis libertou, por
essa época, vários cativos de origem holandesa, que foram trazidos à Holanda, onde Efraim
recebeu dinheiro e uma medalha de ouro, mandada cunhar pelo corpo legislativo holandês. (XI,
p. 84).
3
Na edição inglesa está: "duas léguas e meia" (p. 3, 1a coluna 1º §); cf. Edição holandesa,
(p.4, 1ª coluna 4° §).
Página 11 de 349

Esse trecho do mar é denominado pelos holandeses Mar Kroos 4 e pelos


portugueses Mar del Aragaço (ou Largaço, ou ainda, Sargaço) porque nessas
paragens, de 18 a 30 graus, ou como outros pretendem, de 20 a 22 e a 23
graus, de latitude norte, se encontram sargaços em grande quantidade,
arrastados pelas correntes marinhas. Suas folhas são de um verde pálido,
como o dos papagaios, pequenas, finas e recurvas nas pontas. Contêm elas
grãos da mesma cor, quase do tamanho de uma pimenta, mas, inteiramente
ocos, sem nenhuma semente no interior e sem gosto algum. Chegam por
vezes a aglomerar-se em massa tão compacta que pode deter um navio em
plena marcha. Todavia, tivemos a sorte de passar por elas sem muita
dificuldade. Estávamos, então, a 400 milhas da costa da África, onde não se
encontram ilhas nem ancoradouros. Pode-se temperar essa alga com sal e
pimenta para ser servida como alcaparras; passa, ainda, por ser bom remédio
contra cálculos. Geralmente encontram-se sargaços sem raízes, tendo apenas
alguns brotos finos, os quais, ao que se supõe, se vãs agarrar aos bancos de
areia. Outros opinam que são eles transportados das ilhas para o largo pelas
correntes oceânicas.

No dia 18 morreu um membro da tripulação cujo corpo foi lançado ao mar no


dia seguinte. Foi-me, então, dado observar - o que, aliás, já havia ouvido dizer -
que os cadáveres flutuam, no mar, com a cabeça voltada para o Oriente [não
há muita lógica nessa observação macabra].

Travado por que?

No dia 22 fomos colhidos por nova tempestade - a que chamam Travado (*), -
acompanhada de relâmpagos e trovões pavorosos e que surpreende os navios
tão bruscamente que mal lhes dá tempo para reduzir as velas, chegando, o
fenômeno, a se repetir três vezes em uma hora.

(*) Provavelmente refira-se a trovoada

Pesca abundante

Ali apanhamos grande quantidade de peixe, dentre os quais Bonitos 5 de dois


pés 6 de comprimento, Koreten e uma grande lampréia que nos deu que fazer
para trazer a bordo. Desta só aproveitamos os miolos - que passam por ser
excelente remédio contra pedras na bexiga - desprezando a carne, de sabor
oleoso.
A 24, que foi um lindo dia, avistamos grande quantidade de pássaros
sobrevoando o navio. Conseguimos apanhar um, mais ou menos semelhante
ao grou, ainda que bem menor.

No dia 26, a 5 graus e 47 minutos, encontramos tamanha calmaria que nem se


percebia o movimento da nau. Passamos o dia todo entretidos na pesca que foi

4
A palavra Kroos significa lentilha d'água, sargaço, erva do mar. Está entre 18 e 30 graus ao
norte da linha equinocial.
5
Bonitos: Curvata Pinima Brasiliensibus Lusitanis Bointo (sic) LXX, 150 e LXXXVI, 338).
6
Na ed. inglesa está: "dez pés de comprimento" (p. 3, 2ª coluna ); cf. ed. holandesa, (p.5, 1a
coluna, 3° §).
Página 12 de 349

farta; limitamo-nos, por isso, a escolher apenas o que havia de melhor, para
nossa alimentação. Vimos ali um peixe a que chamam peixe rei 7. Como efeito
da insondável profundidade do mar, naquelas paragens, as águas são tão
claras e transparentes, quando o tempo está bom, que se podem ver
perfeitamente os peixes se moverem em grandes cardumes, a dois pés de
profundidade. Basta então um prego recurvo ou qualquer coisa que se pareça
com anzol, preso a uma linha, para se apanhar o peixe que se quiser. A essa
calmaria seguiu-se tremenda borrasca.

Peixe-rei (Elagatis bipinnulata)

A Cavala ('Scomber scombrus')

No dia 30, estávamos a 4 graus e 41 minutos, quando deparamos com o peixe


voador 8 , em grande abundância.

O peixe-voador (Exocoetus volitans)

7
Peixe Rei. "Guarapucu Brasiliensibus, Cavala Lusitanis, Nostratibus Koninghvisch".
(LXX,1789). [talvez tenham ocorrido equívocos]
8
Peixe Voador. Miivipira & Pirabebe Brasilianis, peixe volador [i](sic)[/i] lusitanis. (LXX, 162).
Pirabebe significa peixe que voa. Barlaeus referiu-se ao peixe voador (VII, 140) e Cláudio
Brandão anotou-o à p. 185. Cardim (XIX, 75) também o descreve e Rodolfo Garcia (XIX, 120)
anota-o como sendo da família dos cefalacantídeos.
Página 13 de 349

A 3 de dezembro atingíamos a posição de 1 grau e 30 minutos, onde


encontramos peixes aos milhões. Pescamos quanto nos bastou, salgando uma
parte e preparando o restante com sal e pimenta que esfregávamos na barriga
do pescado para depois pendurá-lo pela cauda e secar ao sol.

Avistamos a Ilha de São Paulo

No dia 4, ao raiar do dia, com tempo claríssimo, avistamos a ilha de Penedos


ou São Paulo 9, como é chamada pelos portugueses. Vista à distância, dá a
impressão de uma grande vela, para depois, à medida que a gente se
aproxima, ir se transformando em cinco altos rochedos. Pelo meio-dia
achávamo-nos a 53 minutos de latitude norte, dirigindo nossa rota cinco milhas
para o poente. Aí, por várias vezes apanhamos algumas gaivotas. Estas aves
se lançam em vôo rápido, como se nos quisessem atacar, para depois
permanecerem imóveis no lugar, até que sejam presas ou mortas.

[*]Observar que pela latitude Nieuhof, refere-se ao arquipélago de São Pedro e São Paulo,
situado na latitude 00° 55.1’ N - 29º20.7’ W. E como poderá ser observado formado de 05
ilhotas. Não seria, como sugere o autor da nota 5, São Paulo de Assunção de Luanda
(coordenadas 8.82º S – 13,23° W)

No dia 5, pelas 11 horas, passávamos a Linha Equinocial e, pela tarde,


estávamos a 5 minutos de latitude sul, onde já não tínhamos mais motivo para
nos queixar de frio. É tal a calmaria que reina nessas paragens que os navios
perdem tempo considerável em atravessá-la.

O calor, aí, é terrível e a grande escassez de água potável - pois que se não
pode contar com a das chuvas, alterada pelo ardor dos raios solares - constitui
a causa principal do escorbuto [Nieuhof naquela época não poderia saber a
causa do escorbuto, cuja cura só veio a ser conhecida no século XVIII - esse
mal que acometia aos navegadores ao redor do 30 dia de viagem decorria da
falta de ingestão de vitamina C] .

9
São Paulo de Assunção de Luanda foi atacada e tomada, em 1641, pelos holandeses. Em
1648, Salvador Correia de Sá e Benevides aniquilou e expulsou os holandeses.
Página 14 de 349

Passamos a linha Equinocial

Cerca de três anos após a minha chegada ao Brasil encontrou-se um navio


português vagando à mercê das ondas, na linha equinocial, sem nenhum ser
vivo em seu bojo. O diário de bordo dizia que seis semanas antes o barco se
havia imobilizado sob o Equador.
Fizemos uma excelente travessia, com pescaria abundante, tendo, então,
conhecido um peixe soprado porque aspira apreciável quantidade de água para
em seguida expeli-la de um jato. Costuma acompanhar as embarcações por
muito tempo.

No dia 8 passávamos pela Ilha Fernando de Noronha, com tempo magnífico.


Avistamos grande quantidade de pássaros e enormes cardumes de peixes
voadores, seguidos de perto pelos Bonito e Koret [refere-se provavelmente as
corvinas].

Bonito Corvina

A Ilha Fernando

A Ilha Fernando de Noronha, situada a 4 graus de latitude sul e cerca de


cinqüenta milhas da costa do Brasil, foi habitada pelos holandeses, por volta de
1630, mas, devido à grande quantidade de ratos que devastou todas as
plantações, fora abandonada pelos batavos alguns anos depois 10. A não ser
isso é uma ilha ferocíssima [creio que há um engano nesse adjetivo, a conferir
na edição inglesa] e o mar em torno dela é tão piscoso que os habitantes do
Recife costumam ir lá pescar, voltando com os barcos abarrotados de peixe.

Pouco tempo depois [em junho de 1644] o Conselho do Brasil despachou para
lá uma leva de negros sob as ordens de um tal Gillis Venant 11, com o objetivo
de cultivar a terra para sua subsistência; e, assim, lá viveram os pretos algum
tempo. Ano e meio depois o Conselho de Justiça desterrava para aquela ilha

10
A quantidade de ratos devastando as plantações é confirmada por outros autores. Assim,
Wätjen (XCVI, p. 128), baseando-se em uma carta de Willem Joosten Glimer a Van Keulen e
Gijsselingh a 9 de fevereiro e a 26 de março de 1634, falamos de que "uma terrível praga de
ratos aniquilou quase todas as culturas". Ayres de Cazal (XXVI, 194) declara, também, que os
"ratos são numerosíssimos". Cf., também, Branner, (XIV, 142).
11
O objetivo era o cultivo do anil. Gillis Venant recebeu 23.000 florins para esse fim. Em junho
de 1644, mandou plantar exemplares que obtivera nas Índias Ocidentais. Wätjen (1938,
pg.442).
Página 15 de 349

diversos malfeitores que também receberam petrechos com que cultivar a terra
e prover seu sustento.

Na noite de 11 estávamos a 7 graus, ao largo de Goiana, situada cerca de 20


milhas ao lado de Olinda. Ao romper do dia avistamos o litoral brasileiro, mas
permanecemos ao largo até que se adiantasse o dia.

No dia 12, como estivesse muito densa a cerração, mantivemos o mesmo rumo
ao longo da costa, e, com bastante vento, pelo meio-dia, chegávamos,
finalmente, à vista do Recife. Logo depois deitávamos ferro a várias toesas
[uma toesa=1,82m] de profundidade, terminando assim uma viagem de sete
semanas e um dia.

Chegada ao Brasil

Depois de render graças a Deus por nos haver livrado dos perigos do mar e da
escravidão pelos turcos, desembarcamos, na mesma noite, o capitão, o
comissário e eu, a fim de dar ciência de nossa feliz viagem e entregar uma
carta ao Conde Maurício, e aos Altos Senhores Conselheiros. Passei aquela
noite em terra, mas no dia seguinte voltei para bordo.
No dia 15 os pilotos conduziam nossa nau para o porto do Recife, onde se
encontravam 28 navios e dois iates ancorados junto ao Castelo do Mar.

Vista de Recife
11664433

Pelos fins de agosto de 1643 recebia eu ordens do Conselho de partir com


destino à Ilha de São Tomé no iate Bruinvisch, carregado de grêda de pisoeiro
[?] a fim de permutá-la com açúcar mascavo, a principal mercadoria que de lá
se pode trazer. Minha viagem resultou bastante feliz, não tendo ocorrido
nenhum acidente funesto, a não ser uma tempestade violenta, com trovoadas,
relâmpagos e forte aguaceiro, que desabou a 9 de setembro quando lá
estávamos ancorados. O nosso carregamento não obteve bom preço. Contudo,
após uma demora de 14 dias, regressamos ao Brasil com um embarque de
açúcar preto, tendo chegado diante do Recife a 3 de outubro, ao cabo de uma
viagem de 3 meses.

São Tomé e Príncipe é um estado insular localizado no Golfo da Guiné, composto por
duas ilhas principais São Tomé e Ilha do Príncipe e por várias ilhotas. A cana-de-
açúcar foi introduzida nas ilhas no século XV, mas a concorrência brasileira e as
Página 16 de 349

constantes rebeliões locais levaram a cultura agrícola ao declínio no século XVI. Assim
sendo, a decadência açucareira tornou as ilhas entrepostos de escravos.

A Ilha de São Tomé

A Ilha de São Tomé tem uma configuração circular, com diâmetro aproximado
de 36 milhas. Altas montanhas, no meio da ilha, têm os seus picos sempre
cobertos de neve, enquanto que as regiões baixas são intoleravelmente
quentes devido à sua situação equatorial. É riquíssima em açúcar mascavo e
gengibre.

Localização de S. Tomé e Príncipe

Os canaviais são continuamente umedecidos pelo desgelo que escorre das


montanhas. Pela época em que lá estive havia cerca de 60 engenhos de cana,
mas, sendo o clima da ilha o mais insalubre do mundo, nenhum forasteiro se
anima a permanecer em terra mais que uma noite sem correr risco de vida,
pois o calor do sol faz levantar do solo evaporações maléficas que os
estrangeiros não suportam. Essas emanações duram até às 10 horas da
manhã, quando então se dissipam, clareando-se o ar. Por isso permanecíamos
a bordo até aquela hora. Sobre o mar não existe essa neblina.

O açúcar chegou a São Tomé, aproximadamente na mesma época em que chegou ao Brasil,
senão até um década antes de haver sido introduzida nas capitanias de S. Vicente,
Pernambuco e outras
A Ilha Madeira posiciona-se nos anais da História universal como a primeira área de ocupação
Atlântica, pioneira na cultura e divulgação do açúcar. A cultura açucareira e a tecnologia do
açúcar de cana passaram do Mediterrâneo, inicialmente para a Ilha da Madeira, onde a
produção açucareira sofreu um grande desenvolvimento. Assim, novos termos e técnicas
açucareiras surgem na ilha e difundem-se a seguir no Atlântico, juntamente com os termos e as
técnicas tradicionais do Mediterrâneo, passando para Canárias, Açores, Cabo Verde, S. Tomé
e Brasil, com as canas e os mestres de açúcar madeirenses.
Página 17 de 349

O ar é, aí, muito quente e úmido durante o ano todo, exceto no verão, pelos
meados de julho 12, quando os ventos de sudeste e sudoeste amenizam
bastante o rigor do clima. Os vapores produzidos pelo sol ocasionam
epidemias de febres intermitentes [malária, paludismo – doença ainda não
erradicada nessa região] que se caracterizam por dores horríveis na cabeça,
sofrimentos indizíveis nas entranhas e vitimam os doentes em poucos dias.

São Tomé e Príncipe tem um clima do tipo equatorial, quente e úmido, com temperaturas
médias anuais que variam entre os 22 C e os 30°C.

Ainda que haja quem atribua esses padecimentos à licenciosidade e ao abuso


do leite de coco [A forma de transmissão da malária só foi descoberta em 1898,
pelo pesquisador Ronald Ross, até então tentava-se adivinhar as possíveis
causas de contaminação], o certo é que de 100 estrangeiros, apenas 10
conseguem sobreviver e ainda estes raramente vão além de 50 anos de idade.
Entretanto, alguns dos nativos, tal como ocorre com os negros - que lá são
todos repugnantes - atingem a idades avançadas. Os primeiros habitantes da
ilha foram judeus banidos de Portugal, gente de aparência muito esquisita 13.

Pelas montanhas vivem os negros em grandes aglomerações, segregados dos


portugueses. Por vezes se aventuram até às portas da cidade de Povoação 14.
Chega a parecer milagre que ainda haja quem possa viver em clima tão
inóspito, não fora certo que a ambição do ganho minora todos os perigos.

A cidade de Povoação, situada nessa ilha, à beira de um pequeno regato,


compreende cerca de 800 ou mais casas e 2 ou 3 igrejas 15. Em 16 de outubro
de 1641 foi ela conquistada, assim como toda a ilha, pelo Almirante Cornelis
Jol 16, após um sítio de 40 dias, sem grandes perdas. Entretanto, o Almirante,
seu ajudante de ordens assim como outros comandantes e muitos marinheiros
foram dizimados pelo clima pestilífero da ilha. De 300 [outras fontes apontam o
número de 200 os índios levados junto a expedição [ provavelmente potiguares, apesar de
algumas fontes mencionarem que esses aliados eram tapuias ] dos brasileiros que tomaram parte
na expedição, nem sequer 60 escaparam com vida.

12
Na ed. inglesa está junho (p. 4, 2ª coluna , 4° §) ; cf. ed. holandesa, (p. 7, 2ª coluna 2º §).
13
D. João, visando compelir à conversão os imigrantes judeus, vindos da Espanha, ou de, pelo
menos, trazer os ainda inocentes à fé cristã, ordenou que todas as crianças de 2 a 16 anos
fossem tiradas aos pais e transportadas para a Ilha de S. Tomé, que havia sido descoberta há
pouco. Referindo-se a essa ilha, diz Samuel Usque que seus moradores eram lagartos,
serpentes e outros muitos peçonhentos bichos, apresentando-se deserta de criaturas racionais.
(Cf. João Lúcio de Azevedo, V, 24).
14
Nieuhof escreve Pavaosa (p. 7, 2ª coluna , 7º § e p. 8, 1ª coluna , 1° §). Adotamos, aqui, a
lição de Naber, que, na edição holandesa, p. 272, escreveu Povoação (Cf. VIII, 272). O Sr.
Cláudio Brandão aceitou, também, essa grafia (Cf. VII, 391).
15
O tradutor inglês escreveu (p. 5, 1ª coluna , 2° §): "800 casas e 3 igrejas"; cf. ed. holandesa
(p. 8, 1ª coluna 1° §).
16
Trata-se de Cornelis Corneliszoon Jol, cognominado o Perna de Pau, que teve grande
influência nas ações navais da época. Sobre suas viagens e expedições, ver Nederlandsche
Raizen, pp. 4269, tomo XIV. E uma coleção de viagens onde se encontram, entre outras, as
"Togten en Verrigtingen van Cornelis Corneliszoon Jol, bijgenaamd Houtenbeen, na in de
Westindien; in de jaaren 1628 tot 1641" - Expedições e Empresas de Cornelis Corneliszoon Jol,
cognominado o Perna de Pau, para e nas Índias Ocidentais, nos anos de 1628 a 1641.
Página 18 de 349

O HISTÓRICO DA EXPEDIÇÃO DE JOL: Uma expedição composta de vinte e um


navios comandada pelo Almirante Cornelis Corneliszoon Jol (1597 – 31 de Outubro de
1641) zarpou de Pernambuco para São Paulo de Luanda capital de Angola aonde
chegou em 21 de Agosto de 1641. O governador da cidade pensando que os mesmos
integrassem uma frota de navios mercantes espanhóis que vinham anualmente buscar
escravos, não ofereceu resistência, com isto as tropas holandesas puderam efetuar o
desembarque das tropas sob o comando do coronel James Henderson que se
apoderarem da estrada real e penetrarem em São Paulo de Luanda antes que os
fortes do porto e as baterias pudessem romper fogo, com isto todas as cidadelas
capitularam antes aos holandeses.

Após esta conquista o Comandante Jol dirigiu-se com parte de sua frota para o Golfo
de Guiné e conquistou a Ilha de São Tomé, rica em açúcar e para assegurar as suas
plantações contra saques, os abastados plantadores firmaram um acordo com o
Comandante Jol de um pagamento de soma em dinheiro e da entrega de vultosa
quantidade de açúcar com isto mantinham o direito de conservar as suas propriedades
rurais sob as ordens da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, porém a fortuna
dos holandeses de permanecerem na Ilha de São Tomé não durou por muito tempo,
pois os soldados desembarcados na Ilha de São Tomé começaram a morrer de febre
e a epidemia se estendeu para os navios holandeses onde em 31 de Outubro o
próprio Jol veio a falecer, porém antes do regresso da expedição o sucessor do
Comandante Jol ocupou a Ilha de Ano Bom. Devido a condição insalubre da Ilha de
São Tomé, o Governador Maurício de Nassau teve muita dificuldade em achar
elementos que quisessem desempenhar qualquer cargo na administração daquela ilha
açucareira e por este motivo, Nassau, viu-se obrigado a transformar a Ilha de São
Tomé em uma colônia presídio, e remetendo todos indivíduos culpados de ter
cometido qualquer delito, e propôs a diretoria da Companhia das Índias Ocidentais a
anexação de Angola, da Ilha de São Tomé e da Ilha de Ano Bom a Nova Holanda, e
sujeitar todos estes territórios a uma administração comum, pois a dependência da
vida econômica pernambucana da importação de grande número de negros impunha
uma estreita ligação entre o norte do Brasil e Angola, e por este motivo sendo estes
territórios administrados através de Recife traria grande economia de recursos e
tempo para a Companhia das Índias Ocidentais e além do mais Pernambuco ficava
próxima das novas conquistas que Amsterdã que igualmente não deveriam esquecer
que Pernambuco fora quem fizera as conquistas dessas colônias, através das tropas
enviadas.

Por mais que parte da Companhia das Índias Ocidentais pudesse se interessar pela
proposta de Nassau, ainda assim existia um receio de que o conde rompesse os laços
com a Companhia das Índias Ocidentais e fundasse um principado independente nos
trópicos e com isso não deram atenção a proposta e se dispuseram a administrar
separadamente os territórios americanos dos africanos. No que pese a Nassau,
aparentemente as conquistas empreendidas em 1641, foram decorrentes de uma
atitude oportunista, aproveitando que a restauração iniciada em Portugal em início de
dezembro de 1840, com a aclamação de D. João IV, pareceria àquela época a alguém
com razoável conhecimento estratégico que a independência de Portugal era um
movimento fadado ao fracasso, em virtude de Portugal ter ficado depauperada como
decorrência da subordinação aos Habsburgos e assim, antes que Portugal viesse a
ser novamente subjugada, decidiu apoderar-se de novas colônias e estender a
extensão das posses holandesas no Brasil anexando o Maranhão por temerem que o
Governador Maurício de Nassau rompesse os laços com a Companhia das Índias
Ocidentais e fundasse um principado independente nos trópicos, porém o governador
nesta época estava apenas querendo tirar proveito da situação para aumentar o
domínio colonial holandês
Página 19 de 349

Antes, porém, que passe a relatar o que de interessante ocorreu no Brasil


desde a revolta dos portugueses bem como durante os oito anos em que lá
vivi, não me parece demais descrever rapidamente o país.

Preço dos escravos

Em 1591 o preço dos animais em Pernambuco era de 30.000 reis para uma junta
de bois, 10 a 12.000 reis para uma vaca, 15 reis para um porco, 3 a 4 reis para um
carneiro, 1 real para um peru e 6 a 7 tostões para uma galinha.O investimento
total dos senhores de engenho e lavradores, poderia atingir 25% em mão de obra
e a cotação dos escravos negros era feita conforme o sexos, a idade, a origem
étnica e aptidões, sendo mais valorizados os crioulos, aqueles nascidos no Brasil,
os ladinos, já aculturados com o modelo do colonizador, e, por último os boçais,
recém chegados da África. A classificação por idade respeitava o seguinte
critério: o velho; com mais de 35 anos, o barbado; entre 25 a 35 anos, a peça;
homem de 15 a 25 anos, molecão ou molecona; entre 8 a 15 anos, moleque ou
moleca; inferior a 8 anos, as crianças de peito eram incluídas no preço das mães.
O Preço era de 22.000 reis para uma peça, 12.000 reis para um velho e para um
moleque ou moleca, 44.000 reis para e molecões ou 3 moleconas.

http://carlosfatorelli27013.blogspot.com/2010_01_01_archive.html

DESCRIÇÃO DO BRASIL

A América (ou Índias Ocidentais) divide-se em América do Norte e América do


Sul. A esta última pertence o Brasil.

A América setentrional limita-se ao norte com a Terra Incógnita, ou antes com


os Estreitos de Hudson; ao sul e a oeste com o Mar do Sul e a leste com os
Estreitos de Panamá, a Baía do México (ou Nova Espanha) e o Mar do Norte.

Abrange as seguintes Províncias:

Estotilandia[*] e Labrador, Nova França, Canadá, Bacalhau [Bacalar ?], Nova


Inglaterra ou Virginia, Florida, Nova Espanha, as Províncias mexicanas denominadas:
Novo México, Tlascalla, Guaxaca, Mechoacana, Zacatula, Colim, Yucatan, Tabasco,
Nova Galicia, Nova Biscaia, Chiametla, Culiaca, Cimalon, Nova Granada, California,
Anian, Quivira ou Nova Albion, Conibas, Guatemala, Soconusco, Chiapa, Vera Paz,
Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Veragua 17.

17
Esses nomes geográficos estão, com raras exceções, corretos. Antes de tudo, convém frisar
que Nieuhof escreve, sempre, com K em vez de C. Há apenas pequenos enganos, conforme
veremos. Em primeiro lugar, Nova Inglaterra não é Virgínia, pois a primeira ficava bem mais ao
norte e, entre elas, existia Nova Amsterdã e Nova Suécia, que não sabemos por que não
figuram entre os Estados citados. Laet não se refere a Estotilândia, Quivira, Bakalaos e Amian
(Cf. L). Mas no Mapa de Ortelius (Cf. LXV), encontra-se a Estotilândia ao norte, no Atlântico,
perto do Labrador, embora já se encontre uma península e cabo desse nome. Quevira demora
no Pacífico, perto do antigo e atual cabo Mendoncinho. Amian está mais ao norte. Quevira
nada tem a ver com Nova-Álbion (Cf. L e LXV), pois essa demorava um pouco abaixo do Cabo
Mendoncinho (Cf. Mapa Americae sive Indiae Occidentalis, Tabula Generalis in L). Colini é
Colima, em Janssonius (Cf. XLIII) e com Zacatula constituíam províncias de Mechoacan (Cf.
XLVIII). Janssonius escreve Cuaxacau, em vez de Guaxaca (Cf. XLIII).
Página 20 de 349

[*] Estotilandia ou Estotiland ou ainda Stotiland, era a denominação de uma


suposta região insular que aparece no chamado Mapa de Zeno, situada a
noroeste do Oceano Atlântico aproximadamente nas zonas que concretamente
corresponden a Península de Labrador

A América do Sul é uma península, em forma de pirâmide, cuja base está


voltada para o norte e o vértice aponta para os estreitos de Magalhães,
situados a 53 graus de latitude sul. Limita-se a leste com o Oceano Atlântico ou
Mar do Norte e a oeste com o Mar do Sul, sendo todo o seu circuito de cerca
de 16.000 milhas italianas ou 4.000 milhas alemãs18. Compreende as
Províncias de Castela e d'Ouro, Terra firme, assim chamada pelos
portugueses, Paria, Cumana, Caribana, Brasil, Chica, para leste e a oeste
Popaian, Perú, Chile, além de outras províncias interiores19.

Descobrimento do Brasil

O Brasil foi descoberto pelo português Pedro Álvares Cabral, pouco tempo
depois de Américo Vespúcio, isto é, no ano de 1500. Foi pelo descobridor
denominado de "Santa-Cruz", nome que posteriormente os portugueses
mudaram para o de Terra do Brasil, devido ao lenho20 assim chamado, que aí
se encontra em grande abundância e que, desde então, passou a ser
importado por toda a Europa, para tinturaria.

Sua situação

O país está situado em plena Zona Tórrida, estendendo-se até o Trópico de


Câncer e a Zona Temperada.

Extensão

Com respeito à sua extensão de norte a sul, não é pequena a discordância


existente entre os geógrafos. Segundo, porém, os melhores cálculos, pode-se
fixar o começo desse país a meio grau 21 de latitude norte, próximo ao rio Pará
e o seu termo a 24 graus e meio de latitude sul, junto ao rio Capibarí 22, duas
léguas acima da cidade de São Vicente. E assim é que, toda a sua extensão,
de norte a sul, compreende 25 graus ou 375 milhas.

Preferem outros situar o Brasil entre o Rio Maranhão e o Rio da Prata. Até hoje
não foi possível precisar a extensão do Brasil de Leste (onde se limita com o

18
Na edição inglesa está escrito: (P. 5, 2a coluna 1° §) "its whole circuit being of about four
thousand Italian or one thousand german miles"; cf. edição holandesa (p. 8, 2a coluna 4.º §).
19
Pária fica na Venezuela (Cf. L, p. 388). Cumana, província da antiga Nova Andaluzia (L, p.
614); Província Chica, perto da atual província de Tucuman, na Argentina (L, p. 463, 469) e
Caribana deve ser a atual Caraíbas; Popaian, atual Colômbia (Cf. mapa Americae sive Indiae
Occidentalis Tabula Generalis in L).
20
Marcgrave escreveu: "Haec regio primo à Lusitanis appellata fuit Santa Cruz, quod nomem
postea mutarunt in Terra do Brasil,..." (Cf. LXX, liv. 8, cap. I, p. 260).
21
O tradutor inglês escreveu: "may be fixed under the second degree anda half of nothern
latitude near the river Para..." (p. 5, 2a coluna últ. §); cf. Edição holandesa (p. 9, 1ª coluna, 1°
§).
22
Cf. Marcgrave (LXX, liv. 8, cap. I, p. 260).
Página 21 de 349

Mar do Norte) a Oeste, por ter sido muito pequeno o número dos que puderam
penetrar tão a fundo pelo interior do país. Assim, sua largura de leste a oeste
pode ser avaliada em 742 milhas.

Há, porém, alguns autores que estendem seus limites mais para leste, e, para
oeste, mais além do Peru ou Guiana, o que representa um acréscimo de 188
milhas. Outros, ainda, situam os limites do Brasil ao norte com o Rio das
Amazonas, ao sul com o Rio da Prata, a leste com o Mar do Norte e a oeste
com as montanhas do Peru ou Guiana.

Sua divisão

Com esses limites, o Brasil é dividido pelos portugueses em 14 distritos, por


eles denominados Capitanias, a saber: Pará, a primeira de todas, bem ao
Norte, Maranhão, Ceará, Potigí ou Rio Grande, Paraíba. Pernambuco,
Itamaracá, Sergipe d'El Rei, Quirimure ou Baía de todos os Santos,
NhoeCombe ou os Ilhéus, Pacata ou Porto-Seguro, Rio de Janeiro ou Niterói,
São Vicente e Espírito-Santo 23.

Enquanto parte do Brasil esteve sob o nosso domínio, conviria melhor dividi-lo
em Brasil Holandês e Brasil Português. Cada uma dessas capitanias é
banhada por alguns rios caudalosos, além de outros de menor importância.
Vários deles apresentam correnteza muito rápida na estação chuvosa e, com
suas águas, inundam as regiões ribeirinhas.

23
Essa divisão do Brasil, Nieuhof tirou-a de Marcgrave, pois os nomes estranhos que aí
encontramos, como Nhoe-Combe e Pacata se encontram, também, na Historia Naturalis
Brasiliae. Assim, escreve Marcgrave (Cf. LXX, p. 261): "Dividitur Brasilia, intra hos limites, in
certas Praefecturas (capitanias appellant vulgo Lusitani) & quidem vulgo in quatuordecim.
Quarum prima versus Boream est Para, sequuntur dehinc ordine Maranhaon, Ciara, Potiyi vel
Rio Grande, Paraíba, Itamaracá, Pernambuco, Quirimure vel Bahia de Todos los Santos, cujus
metropolis S. Salvador, Nhoecombe vel os Ilheos; Pacatâ, vel Porto Seguro; Espiritu Santo;
Nheteroya, vel Rio de Jeneiro, quern Ganabara vulgo vocant Brasilienses; & S. Vicente".
Quirimure, de que fala Nieuhof, foi, também, por outros cronistas, referida. Assim, Soares (Cf.
LXXXVI, p. 223) se refere a Caramurê e Varnhagen, em nota à p. 483, acha que o nome deve
estar certo, porquanto os jesuítas o repetem, escrevendo-o Quigrigmuré. Acha que se trata do
mesmo local a que se referiu Thevet (f. 129), com e nome de Pomte de Crouestimourou. Não
andaria, porém, já neste nome a idéia da residência de Caramurú? pergunta o Visconde de
Porto Seguro. Teodoro Sampaio (Cf. LXXXI, p. 148) afirma que Quimimuras significa gente
silenciosa; e esclarece que é o nome de uma tribo que habitou primitivamente o Recôncavo da
Baia de Todos os Santos. Ayres de Cazal (XXVI, p. 100) escreve: "Aos antigos Quinimuras,
primeiros povoadores memoráveis do contorno da enseada de Todos os Santos, sucederam os
Tapuias, pouco depois expulsos pelos, Tupinás, vindos do Sertão, para onde se retiraram os
segundos, que jamais cessaram de inquietar os seus vencedores". Mais explícito e preciso já
havia sido Cardim (Cf. XIX, p. 179), que diz: "Outros que chamam Quirigmã, estes, foram
senhores das terras da Bahia e por isso se chama a Bahia Quigrigmurê". Batista Caetano, em
nota à p. 234, do trabalho do mesmo cronista, sugere a hipótese acerca da etimologia do
nome.
Restam, ainda, Pacata e NhoeCombe. A primeira, segundo Saint Adolphe (Cf. LXXIX, p. 187),
refere-se a um rio de Porto Seguro.
No Vocabulário da Língua Brasílica publicado por Plínio Ayrosa, (n. 261) S, Paulo, 1938,
registra-se para a Capitania de Ilhéus o nome indígena "Nhueceebê".
Página 22 de 349

O Rio São Francisco

O Rio São Francisco, o mais extenso e o de maior volume daquelas regiões


constitui a linha divisória entre as capitanias de Pernambuco e Baia de Todos
os Santos. É tão largo em alguns pontos que uma peça de seis libras com
dificuldade o atravessaria. Há lugares em que sua profundidade atinge 8, 12 e
por vezes 15 varas. Apesar disso não é navegável para navios de carga, em
vista de estar sempre atulhado de areia o seu estuário.

Acredita-se que tenha origem em certo lago, o qual, grandemente aumentado


pelos riachos que descem das montanhas do Peru, e, especialmente pelo Rio
da Prata e pelo Rio Maranhão, procura expandir-se para o mar. Alguns
companheiros nossos subiram-no numa chalupa cerca de 40 léguas, achando-
o sempre bastante largo e profundo. A darmos credito aos Portugueses,
existem, a 50 milhas do mar, certas cataratas intransponíveis a que chamam
cachoeiras. Para além delas o rio vai para o norte, até que chega à sua
nascente no lago, onde há ilhas amenas habitadas pelos bárbaros que também
povoam suas margens. Encontram-se boas jazidas de ouro em pó nesse lago,
que não são, porém, da melhor qualidade, supondo-se formadas pelos
inúmeros riachos que lavam as rochas auríferas do Peru e que ali deságuam.
Há, também, excelente salitre na região.

O Brasil em finais do século XVI e início XVII


Página 23 de 349

É de se notar que no verão e nos meses de inverno, quando raramente chove,


apresenta-se este rio muito mais caudaloso que na estação chuvosa. A razão
para tanto está na imensa distância das cabeceiras originárias onde a água das
chuvas que caem nas montanhas é absorvida e canalizada pelos inúmeros
riachos. Todos os outros rios próximos do Recife ficam tão vazios durante o
verão, que se tornam inteiramente impraticáveis para a navegação.

As cristas das serras que correm não muito longe do litoral, despejam suas
águas, aqui como no Peru, em direção ao Poente, dividindo-as em duas
bacias: a primeira que corre para o norte e se junta aos grandes e rápidos rios
de Maranhão e das Amazonas; e a outra que demanda os rios São Francisco,
da Prata e de Janeiro. As águas desses rios que se avolumam
consideravelmente com a contribuição de inúmeros afluentes, lançam-se no
oceano com tal impetuosidade que, não raro, os marinheiros encontram água
doce no mar a distâncias consideráveis de terra.

O aumento de volume deste rio, durante a estiagem, talvez possa ser atribuído
ao degelo da grande quantidade de neve das montanhas que chega a fazer
que o rio transborde de seu Jeito natural. Neste particular, é ele bem diferente
dos outros rios que geralmente extravasam no inverno.

O Brasil Holandês

Seis das capitanias acima citadas, conquistadas pelas armas, achavam-se sob
a jurisdição da Companhia das Índias Ocidentais. Eram elas, a começar do Sul,
a Capitania de Sergipe d'El Rei, Pernambuco, Itamaracá - à qual pertence a
Goiana - a de Paraíba, a de Potigí ou Rio Grande e a de Siará ou Ceará. A
Companhia possuía, também, a Capitania de Maranhão, que foi, porém,
abandonada, por diversas razões, no ano de 1644 24 25.

Os portugueses costumavam chamar a esta parte do país de Norte do Brasil e


às demais regiões em seu poder, de Sul do Brasil.

As seis Capitanias Holandesas alinhavam-se todas no litoral, numa extensão


de 160 a 180 milhas de norte a sul. Pois da costa marítima do Rio Grande a
Alagoas, no extremo norte da Capitania de Sergipe d'El Rei a distância é de 100
milhas. As duas outras capitanias, isto é, Ceará ao norte e Sergipe d'El Rei ao sul,
abrangiam o restante26 . A cada uma dessas capitanias correspondem vários outros

24
A tradução inglesa não é bem fiel; pois enquanto no original holandês está escrito: "De
Kompagnie bezat ook de Kapitanie van Maranhaon: maer die wierdt des jaers zestien hondert
vier en veertigh, om zekere redenen, verlaten" (p. 10, 2a coluna 2° §); o tradutor inglês
escreveu: "the Captainship of Maranhaon was 1644, by special command of the Company, left
by the Dutch." (p. 6, 2a coluna 2° §). Ora, por várias razões perdido não é o mesmo que
abandonado por ordem especial da Companhia. Veja as razões da perda mais adiante, nota
172.
25
Sobre o domínio holandês no Maranhão, consulte-se João Francisco Lisboa. (Obras, LIII
Lisboa, 1901), p. 318. Foi conquistado em 25 de Novembro de 1641. O domínio durou 27
meses, dezessete dos quais se haviam passado em guerra incessante. Deixaram o Maranhão
a 28 de fevereiro de 1644 e, possivelmente, porque lhes falecia de Pernambuco todo o socorro.
26
Sobre rios, geografia em geral, localizações de engenhos, nomes, etc., etc., devem-se
consultar os mapas relativos à ocupação holandesa do Brasil, feitos por Vingbooms, no vol. II e
os relativos à exploração do Brasil pela Companhia das Índias Ocidentais no vol. IV (Cf. XCVII).
Página 24 de 349

distritos menores, a que os portugueses chamam freguesias e, entre nós, são


chamadas de freguesien. Assim, por exemplo, em Sergipe d'El Rei havia as de
Ipojuca, Camaragibe, Porto Calvo, Serinhaém e várias outras.

Abrange uma freguesia um certo trato de terra, constituído de diversas aldeias,


rios, colinas e vales, entre as quais comumente se encontra uma faixa de
montanhas estéreis de três a quatro milhas de extensão. A maior parte das
Capitanias Holandesas é escassamente cultivada, em virtude de não terem os
portugueses o hábito de estercar a terra naquelas regiões além de três, quatro
às vezes 5, até mesmo 6 ou, quando muito, sete milhas de distância do mar.

Sergipe d'El Rei

A Capitania de Sergipe d'El Rei, também conhecida por Cirigí - nome de um


pequeno lago - acha-se situada na parte sul do Brasil e estende-se cerca de 32
milhas ao longo do litoral, limitando-se ao norte com o Rio São Francisco, que
a divide de Pernambuco, e ao sul com o Rio Real, que a separa da Baía de
Todos os Santos; Sergipe d'El Rei possui, entre outras, uma certa freguesia
chamada Porto Calvo, situada entre 9 e 10 graus de latitude sul, e que vai
entestar a noroeste com a freguesia de Serinhaém e o pequeno rio de
Persinunga, para se estender ao Sul até o Rio Paripueira, que a divide da
freguesia de Alagoas, compreendendo ao todo cerca de 12 milhas de
comprimento, próximo a costa. Do lado do interior, impenetráveis florestas
demarcam os seus limites.

A aldeia de Bom Sucesso de Porto Calvo

Há nesta freguesia uma aldeia a que os portugueses chamam Vila de Bom


Sucesso de Porto Calvo e que anteriormente se denominava Povoação dos
quatro rios, por se achar situada na confluência de quatro rios: o Maleita, o
Tapamundo, o Comandatuba e o Manguaba. Está edificada sobre uma
eminência, a cerca de quatro milhas do mar e foi guarnecida pelos holandeses
com dois fortes, o maior dos quais - o Bom Sucesso - todo construído de pedra
e rodeado por uma excelente contra-escarpa, possui amplo reservatório de
água potável. O outro forte, denominado por nós Igreja Nova, por ter nascido
das ruínas de uma velha igreja que os portugueses chamavam de Nossa
Senhora da Apresentação. Entre esses dois fortes o Conde Maurício ordenou
que se construísse um terceiro, sobre a margem do rio, o qual, entretanto, por
ficar a um tiro de mosquete distante das montanhas, não foi concluído
satisfatoriamente.

Tem a aldeia duas ruas, sendo que a principal se estende paralelamente ao rio,
de um forte a outro. Chama-se rua de São José e não contém mais do que
umas três casas de um único pavimento e cerca de 35 ou 36 outras cobertas

São, ao todo, 12 mapas. 26] Sobre rios, geografia em geral, localizações de engenhos, nomes,
etc., etc., devem-se consultar os mapas relativos à ocupação holandesa do Brasil, feitos por
Vingbooms, no vol. II e os relativos à exploração do Brasil pela Companhia das Índias
Ocidentais no vol. IV (Cf. XCVII). São, ao todo, 12 mapas.
Página 25 de 349

de sapé, construídas sobre o chão raso 27 . Os portugueses levantaram, do


outro lado do rio, uma igreja em lugar das que foram demolidas quando se
fizeram as fortificações e onde às vezes ouvem missa.

A aldeia é favorecida por um clima ameno e puro e continuamente refrescada


por brisas marítimas que sobre ela sopram livremente, sem montanha alguma
que lhes sirva de anteparo.

À noite o terreal sopra sobre a aldeia os frescos vapores dos rios próximos.

Porto Calvo - 1671 - Arnoldus Montanus

Existiu outrora certa cidade, chamada Sergipe d'El Rei, um pouco mais para
cima do rio Vasa barris em lugar muito desolado, cidade essa de área extensa,
bem construída, com três boas igrejas e um mosteiro de franciscanos, mas
sem fortificações alguma. Mais para cima dessa cidade, pode-se ainda ver uma
capelinha dedicada a São Cristóvão, para onde os católicos romanos se
dirigem em peregrinações.

Foi esta Capitania primeiramente subordinada ao domínio português ou


espanhol por Cristóvão de Barros28 a quem, por tão bons serviços, foram

27
A edição inglesa se refere a 35 casas (p. 7, 1a coluna , últ. §), enquanto que na edição
holandesa consta: 35 ou 36 casas (p. 11, 2a coluna , 5° §).
Página 26 de 349

doadas todas as terras entre o pequeno lago de Sergipe e o São Francisco,


com amplos poderes para colonizá-las, dentro de certo prazo. Isto fez com que
os habitantes da Baía de Todos os Santos para lá se dirigissem e, dentro de
poucos anos, lançada a fundação da cidade, construíram-se quatro engenhos
de cana e ergueram-se cerca de 100 casas, com 400 estábulos para o gado. A
nossa gente, porém, fez com que essa cidade fosse abandonada em 24 de
dezembro de 1637, bem como todas as casas circunjacentes, retirando-se,
então, todos os habitantes para a Baía de Todos os Santos. Deveu-se esse
fato ao general espanhol Bagnoli 29 que antes ocupava a praça com cerca de
2.000 homens que praticavam toda sorte de pilhagens e incêndios e causavam
danos consideráveis às nossas colônias, o que obrigou o Conde Maurício a
desalojá-la daquela posição. Entretanto, como este estivesse atacado de febre
na ocasião, confiou a expedição ao Coronel Schkoppe 30. Para esse fim reuniu-
se um corpo de 2.300 homens, além de 400 brasileiros e 250 marinheiros
procedentes das praças vizinhas, próximas do rio S. Francisco, de Alagoas, do
cabo de Santo Agostinho, das imediações do Recife e Muribeca. Tendo como
auxiliar Joannes van Giselen membro do Grande Conselho, ordenou o Coronel
Schkoppe ao almirante holandês Lichthart que cruzasse com sua frota à altura
da Baía de Todos Santos para atrair o inimigo fora de suas vantajosas
posições fortificadas da costa. Tão depressa teve ciência de que havíamos
atravessado o rio, e, temeroso de ser envolvido a um tempo pelas forças de
terra e mar, o general espanhol retirou-se, com seu exército, para a Torre
Garcia d'Ávila, posição situada a cerca de 14 milhas ao norte da cidade de São
Salvador.

Sabedor desse movimento o general Schkoppe, atacou imediatamente a praça,


que deixou despovoada e regressou com incrível rapidez para a margem sul do
rio São Francisco.

Aí se entrincheirou, com o propósito de hostilizar o inimigo, cortando-o


abastecimento e desbaratando-o gado. Nessa operação foram bem sucedidas
as nossas forças, que conseguiram matar para mais de 3.000 bois, além de
muitos outros que desgarraram para a outra margem do rio. Os que escaparam
aos soldados foram transportados pelos habitantes da região para a Baía de

28
Foi, realmente, Cristóvão de Barros que iniciou a conquista e colonização desse Estado. Era
governador interino da Baía, em 1590, e tivera ordem de ElRei Filipe II "a requerimentos dos
povos d'entre rio Real e Itapicurú, que vivião inquietados pelos indigenas deste paiz, e piratas
franceses, que frequentavão a costa em busca do pau brasil." (Cf. XXVI, 2° tomo, p. 124).
29
O Barão do Rio Branco anexou, no exemplar de F. A. Varnhagen "História das lutas com os
holandeses no Brasil" (1871), que lhe pertencera, uma extensa biografia de Bagnoli, com
documentos que mandara copiar ou copiara na Itália. Por aí se vê que Bagnoli é uma pequena
aldeia nos arredores de Nápoles, sobre a praia do mesmo nome. Aí nasceu o Conde de
Bagnoli, Cujo nome constitui puro dialeto napolitano. Também escreveu sobre Bagnoli o sr.
Francisco Pettinati, que lhe dedicou 156 pp. (Cf. LXVII, pp. 161227).
30
A grafia de Nieuhof é muito flutuante e não parece ser a certa. Nieuhof escreveu tanto Schop
como Schoppe. A grafia correta é Schkoppe, dada por Netscher (Cf. LXIII, p. 182), segundo a
assinatura do coronel e encontrada em um documento oficial do Arquivo Real; seu título de
nobreza era Senhor de Krebsbergen, Grana Cotzen. [30] A grafia de Nieuhof é muito flutuante
e não parece ser a certa. Nieuhof escreveu tanto Schop como Schoppe. A grafia correta é
Schkoppe, dada por Netscher (Cf. LXIII, p. 182), segundo a assinatura do coronel e encontrada
em um documento oficial do Arquivo Real; seu título de nobreza era Senhor de Krebsbergen,
Grana Cotzen.
Página 27 de 349

Todos Santos. Isso dá bem idéia da enorme quantidade de gado que esta
região então produzia.

O Grande Conselho tomou, então, a deliberação de repovoar aquela zona do


país, entendendo-, para esse fim, com Nunno Olferdi, conselheiro de Justiça,
em Recife, que achou meios de para lá encaminhar várias famílias, solução
que a seguir se abandonou por não ter sido aprovada pelo Conselho dos XIX.

Em 1641 o Conde Maurício submeteu essa região à jurisdição da Companhia


das Índias Ocidentais. Lá erigiu um forte e cercou a cidade de Sergipe d'El Rei
com um fosso, entre o S. Francisco e o Real, que pode, na enchente, atingir 14
pés de profundidade. Dentro desta Capitania existe uma montanha
denominada Itabaiana onde se encontraram várias peças de metal precioso
que, remetidas ao Conselho dos XIX, e, devidamente examinadas, provaram
ser de pouco valor.

Recife

A CAPITANIA DE PERNAMBUCO

11 cidades e aldeias de Pernambuco

A Capitania de Pernambuco é das maiores e mais importantes do Brasil


holandês. Estende-se para mais de 60 milhas ao longo da costa, entre o rio S.
Francisco e a Capitania de Itamaracá. A denominação de Pernambuco indica a
entrada do porto, que, devido aos inúmeros rochedos e recifes ocultos sob o
mar, foi pelos portugueses chamado Inferno e Bokko, apelido esse depois
Página 28 de 349

corrompido para Pernambuco, ou seja Boca do Inferno 31. Divide-se ela em 11


distritos pequenos, habitados pelos portugueses a saber: a cidade de Olinda,
Igarassú, Recife, Muribeca, Santo Antonio, Ipojuca, Serinhaém, São Gonçalo
de Una, Porto Calvo, Alagoas do Norte e Alagoas do Sul, dentre as quais
Olinda e Igarassú são as principais.

Mapa da Capitania de Pernambuco de autoria de Geog Margrav inclusa no livro Rerum per
octennium in Brasilia de autoria de Gaspar Van Baerle

Igarassú

A cidade, ou antes, a aldeia de Igarassú, encontra-se a alguma distância da


costa, em frente à ilha de Itamaracá, junto ao rio do mesmo nome e a cerca de
5 milhas de Olinda. Foi primitivamente habitada por artífices portugueses, mas,
desde que a ocupamos, em maio de 1633, várias famílias ricas lá se fixaram.

31
Nieuhof escreve (p. 13, 1a coluna últ. §): van Inferno en bokko, dat eigentlijk helle - mont
ezeit is; "isto é, Inferno e bokko que propriamente é considerado uma embocadura do inferno".
Batista Caetano (Cf. III, p. 205), escreve: "Afinal Paranambuka será rebentação do rio grande,
designando-se pelo nome rio grande paranã o semimar formado pelos rios Capibaribe e
Bybyrybe". Segundo Teodoro Sampaio (Cf. LXXXI, p. 146), a etimologia é "Ant. Paranambuca,
corr. paranã - buc ou paranã - puca, o mar quebra ou o mar arrebenta, isto é, quebra mar em
alusão ao Recife". Alfredo de Carvalho (Cf. XXVI, p. 63) adota a etimologia de Teodoro
Sampaio. Sobre o nome de Pernambuco, nos velhos mapas, consulte-se o estudo de Orville
Derby (Cf. XXVIII).
Página 29 de 349

Muribeca

Muribeca fica mais para o interior e para o sul, a cerca de 5 milhas do Recife.

Santo Antônio

Santo Antônio encontra-se aproximadamente a 7 ou 8 milhas ao sul do Recife,


perto do cabo de Santo Agostinho.

Ipojuca

A cidade de São Miguel de Ipojuca está situada a cerca de 10 milhas para


baixo do Recife, junto ao rio do mesmo nome, que desemboca no mar, do lado
meridional do cabo de Santo Agostinho. Foi anteriormente lugar muito populoso
e chegou a ter 13 engenhos de açúcar.

Serinhaém

A aldeia de Serinhaém, mais ou menos à mesma distância que a anterior, é


lugar muito agradável; tem 12 engenhos de açúcar, produzindo cada um de 6 a
7.000 arrobas. A arroba corresponde a 27 ou 28 libras de peso.

São Gonçalo de Una

A aldeia de São Gonçalo de Una está a 20 milhas do Recife; possui 5


engenhos de cana.

Porto Calvo

A aldeia de Porto Calvo, a 25 milhas do Recife, possui 7 a 8 usinas de açúcar.


Ali se encontra o forte Povoação 32 que só viemos a conquistar sob o governo
do Conde Maurício. As cidades de Alagoas do Norte e Alagoas do Sul estão a
40 milhas do Recife. Na Capitania de Pernambuco há duas florestas, a que os
portugueses chamam Palmares tanto a maior como a menor.

Os dois Palmares

Os Palmares pequenos, que são habitados por 6.000 negros, encontram-se a


20 milhas além de Alagoas, rodeados de matas nas margens do pequeno
Gungouí 33 34, que aflui para o grande rio Paraíba, 6 milhas mais ao norte, e a
cerca de 4 milhas do rio Mondaí, ao sul da Alagoas do Norte, avizinhando-se

32
Nieuhof escreveu (p. 13, 2a coluna , 10º §) : "Castelo Povoaçano". Barlaeus (VII, p. 42)
refere-se a esse forte Povoação e na edição holandesa (VIII, p. 46) está escrito
Povoação. O Sr. Cláudio Brandão assim traduziu, seguindo a lição de Naber. (Cf. VIII, p.
50). Sobre o forte de Porto Calvo, cf. XV, p. 180, Cf. nota 13.
33
(33 e 34) Nieuhof escreveu Gongohubi (p. 14, 1a coluna , 3° §), como, antes, fizera Barlaeus.
O Sr. Cláudio Brandão anotou, muito bem, que a fonte parece ser Marcgrave (LXX, p. 261 e
VII, p. 253 e nota 321). Escreveu o Prof. Cláudio Brandão Gungouí. Segundo J. van Walbeek e
H. Moueheron, o Mondai despeja suas águas, na Alagoa do Norte, pelo lado ocidental (Cf.
XCV, p. 53).
34
Idem nota anterior.
Página 30 de 349

de um ponto dessa região que é comumente conhecido por Jaraguá. Consiste


a aldeia em 3 ruas, cada uma com mais ou menos meia hora 35 de extensão.
As cabanas são de palha trançada, muito rentes umas às outras, com as
plantações aos fundos. Conservam os pretos alguma coisa do culto religioso
dos portugueses, dispondo, porém, de sacerdotes e juizes próprios.

Alagoas do Sul – 1671

Os negros ocupam-se em roubar os escravos dos portugueses, aos quais


mantêm no cativeiro até que se alforriem capturando outros. Contudo os
escravos fugitivos que a eles se vão reunir são tão livres quanto os outros.
Alimentam-se de tâmaras, batatas, feijão, farinha, mandioca, cevada, cana de
açúcar, galinhas - que possuem em abundância - e de peixe que o lago lhes
fornece 36. Duas vezes ao ano procedem à colheita da cevada, finda a qual
entregam-se a festejos durante uma semana inteira. Antes da época da
semeadura acendem grandes fogueiras que duram 14 dias e que se

35
O tradutor inglês escreveu:"each near half a league in lenght"(p. 8, 2a coluna ), enquanto o
original holandês diz: "ieder van een halve uure lang" (p. 14, la coluna , 4° §). Trata-se, pois,
de meia hora e não de meia légua.
36
O tradutor inglês omitiu batatas e mandioca. Compare-se a p. 8, 2a coluna últ. § da ed.
inglesa com a p. 14, 1a coluna , 8° § do original holandês. A tâmara e a cevada não eram
nativas no Brasil. Possivelmente o autor se refere no primeiro caso a certas variedades
de cocos, e no segundo ao milho americano.
Página 31 de 349

Compare-se esta nota com a de número 38, onde mais uma vez se mostra
como Marcgrave foi, sempre, a fonte segura dos autores coevos ou posteriores
avistam a grande distância. O caminho mais curto do Recife para esses
Palmares é ao longo do lago da Alagoas do Norte.

Os Palmares grandes encontram-se entre 20 e 30 milhas para além da aldeia


de Santo Amaro, junto à montanha de Behe 37 e está cercada por uma dupla
estacada. Conta-se que cerca de 5.000 negros 38 habitam os vales contíguos
às montanhas, além de outros muitos que vivem em grupos menores de 50 ou
100, por outros lugares. Suas habitações se acham dispersas. Fazem
sementeiras e colheitas entre as matas e possuem certas cavernas onde
podem se refugiar em caso de necessidade. Preparam os alimentos durante o
dia, e, quando chega a noite, procedem à contagem dos homens para verificar
se falta algum. Estando todos presentes, terminam a noite com danças e ruflar
de tambores que se ouvem a grande distância. Vão, então, dormir até 9 e 10
horas do dia seguinte.

Na estação seca, escalam alguns dentre eles para raptar escravos dos
portugueses. O caminho mais curto para os seus domínios vai de Alagoas
através de Santo Amaro, cruzando as planícies de Nhumahu e Cororipe, rumo
à encosta da montanha de Warracaco, até que atinge o rio Paraíba, que se tem
de transpor para alcançar o monte Behe, de onde se vai diretamente aos vales.

Durante o governo do Conde Maurício, os negros desses Palmares praticaram


danos consideráveis, especialmente aos camponeses nas cercanias de
Alagoas, e, para reprimi-los, foram necessários 300 mosqueteiros, 100
mamelucos e 700 brasileiros.

O RECIFE, A CIDADE MAURÍCIA E ANTÔNIO VAZ

O Recife - Os arrecifes do litoral brasileiro

Dada a sua cômoda e vantajosa situação, o Recife é a praça mais forte do


Brasil. Além disso é fortificada e defendida por várias fortalezas adjacentes.
Entretanto, para dar ao leitor uma impressão mais exata tanto do Recife como
da situação da Cidade Maurícia, é preciso que se diga que toda a costa do
Brasil, de um extremo a outro, é guarnecida por uma longa e espessa franja de
rochedos rasos que, nalguns pontos, chegam a ter de 10 a 20 e, nalguns
lugares, 30 passos de largura 39. Há, contudo, certas passagens nessa
barreira, pelas quais os navios podem se aproximar de terra, e há mesmo
alguns pontos em que ela não se encontra de todo à flor d'água. Assim, a uma
légua do lado de cá do Rio Doce e a duas léguas ao norte da cidade de Olinda,
não se vê traço algum desse recife. Começa, porém, ele a aparecer de novo
perto de Pau-Amarelo ou Poxamardo e estende-se para a ilha de Itamaracá.

37
Este trecho sobre os Palmares é copiado de Marcgrave. (Cf. LXX, Livro VIII, Cap. I, p. 261).
Comparar com Nieuhof, ed. holandesa, p. 214, 2° coluna, os 6 primeiros § §).
38
Nieuhof (p. 14, 2a coluna, 1° §), como mostramos acima, copiou de Marcgrave. O tradutor
inglês, ao invés de 5.000 negros, escreveu 8.000 negros, (p. 8, 2a coluna , 2° §).
39
O tradutor inglês escreveu (p. 9, 2a coluna 1° §): "rocks which in some places is 20, and
in others 30 Paces broad"; cf. ed. holandesa (p. 15, 1a coluna , II. 7, 8 e 9).
Página 32 de 349

Entre essa franja de pedra e o continente pode-se passar de bote na maré alta.
Durante a vazante, a maioria desses rochedos aflora à superfície do mar até
que volte a cheia para cobri-los de novo.

Os rochedos que se acham em frente ao Recife de Pernambuco, de 25 a 30


passos 40 de largura, estão sempre cobertos pelo mar seja qual for a maré. São
muito chatos, sem proeminência alguma e se estendem por uma légua, de sul
a norte. Na extremidade norte, a 500 passos do Recife, há uma abertura pela
qual os navios se aproximam de terra. Todavia, essa passagem é muito
estreita e, mesmo na mais alta maré, sua profundidade jamais excede de 22
pés.

O Recife de Areia

Entre esse colar de rocha e o continente se estende para o sul de Olinda, com
uma légua de comprimento e cerca de 200 passos de largura, uma espécie de
restinga de areia. É comumente denominada pelos portugueses Recife de
Areia, para distinguir do Recife de Pedra.

Sobre a ponta sul dessa ilhota os portugueses edificaram, a uma milha ao largo
de Olinda, uma aldeia a que chamaram de Povoação, que significa Povoado, e
que veio a ser mais tarde o Recife. Foi muito populosa, por longo tempo, até a
fundação da Cidade Maurícia, na ilha de Antônio Vaz. Tendo Olinda sido
posteriormente abandonada por seus habitantes e por nós destruída, muitos
deles, especialmente os comerciantes, estabeleceram-se no Recife ou na
aldeia de Povoação, onde levantaram magníficas construções. Quando foi de
nosso primeiro desembarque, lá encontramos mais de 200 casas. Esse
número, entretanto, logo depois aumentou para mais de 2.000 e entre essas
construções notavam-se edifícios excelentes. Tratamos de cercá-la com
paliçadas do lado do rio Beberibe, que é vadeável na maré baixa, e, para maior
segurança, fortificamo-la com três bastiões, um voltado para Olinda, outro para
o porto e o terceiro para o Rio Salgado, cada um deles aparelhado com uma
boa bateria de três grandes canhões. O Recife fica a 8 graus e 20 minutos de
latitude sul.

A origem da palavra Recife

Alguns derivam a palavra Recife, do latim recipere e receptus, de receber, que


posteriormente se modificou para Recife, 41 em virtude do costume de serem os
navios recebidos entre os recifes de pedra e de areia para carregar e
descarregar suas mercadorias. Antes de se fundar a Cidade Maurícia, lá
mantínhamos as nossas fábricas e todos os negócios de paz como de guerra
eram lá entabulados. No tempo dos portugueses, todos os navios que
40
Na edição inglesa está escrito: 20 a 30 passos de largura (p. 9, 1a coluna , 1.º §). Cf. edição
holandesa (p. 15, 1a coluna , 4° §).
41
Sobre a etimologia dessa palavra, Antenor Nascentes (LX, 679) escreve: "do árabe rasif,
calçada, de origem aramaica e assíria". Dozy (XXXI, 198) explica que foi no sentido de calçada
que a palavra passou para o espanhol; porém, cita um trecho de um autor árabe, no qual a
palavra tem significação de cais, muralha. É claro que, em português, a palavra recife não é
empregado como significando calçada, e eis por que nos parece que a primitiva acepção da
palavra é que explica a sua significação no português do Brasil.
Página 33 de 349

chegavam do mar descarregavam na aldeia de Povoação ou Recife, e as


mercadorias eram de lá transportadas, em barcos e chatas, pelo rio Beberibe
acima, até os subúrbios de Olinda.

Antes de se edificar a Cidade Maurícia, a maior parte dos negócios se fazia no


Recife, onde residiam os principais comerciantes e era de lá que se exportava
o açúcar para a Holanda. Para evitar contrabandos, cercou-se a alfândega com
abatises. Construiu-se um bom hospital para doentes e feridos de tudo
necessitados, e a educação dos órfãos ficou a cargo de quatro diretores e
outras tantas diretoras, que ensinavam a ler e escrever.

Na ponta extrema do recife de pedra, à esquerda de quem entra no porto,


vindo do mar, há um grande e forte castelo, edificado sobre a rocha viva e
cercado de altíssima muralha. O castelo é dotado de artilharia pesada e
mantém sempre boa reserva de provisões. Quando conquistamos a praça,
encontramos no interior dessa fortaleza 9 canhões de bronze e 22 de ferro,
parecendo-nos que seria ela inexpugnável, tanto pela sua construção como
pelas condições naturais, pois dela não se pode aproximar a pé, durante a
maré alta.

Cerca de cinco milhas mais acima, junto a um afluente do grande rio, encontra-
se uma pequena cidade, sem importância, que nossa gente chamava de
Cidade Nova, e, sobre outro afluente do mesmo rio, do lado oposto à primeira,
uma aldeia chamada Atapuepe.

A ILHA ANTÔNIO VAZ E A CIDADE MAURÍCIA

A ilha de Antônio Vaz

Para o sul do Recife, do lado oposto, encontra-se a ilha de Antônio Vaz, que a
nossa gente assim denominou em referência ao seu antigo proprietário. Tem
cerca de meia légua 42 de perímetro, achando-se separada do Recife pelo rio
salgado Beberibe

A Cidade Maurícia

Na face leste desta ilha, o Conde Maurício lançou os fundamentos da cidade


que, em sua homenagem, veio a se chamar Cidade Maurícia. Contribuíram
com materiais para a construção desta cidade as ruínas das igrejas e mosteiros
de Olinda, transportadas para o Recife e daí para Maurícia.

Pelo lado oeste é a cidade cercada de alagadiços e a leste banhada pelo mar,
através do colar de pedras. Além disso está fortificada pelo lado da terra por
uma muralha de taipas, por quatro baluartes e um largo fosso.

42
Pela primeira vez o autor escreveu légua (een halve uure gaens, p. 16, 2a coluna, últ. §). O
tradutor escreveu, também, légua, como antes o fizera sempre, em lugar de milha.
Página 34 de 349

O forte Frederico Henrique

A cidade estendia-se para o lado em que se erguia o forte Ernesto e o casario


ocupava área maior que no Recife. Entretanto, após a revolta dos portugueses
a maioria desses prédios foi demolida e o povoado reduzido a um perímetro
menor para que fosse melhor defensável; esse bairro, porém, foi sempre
densamente habitado por comerciantes e artífices.

A Cidade Maurícia era guarnecida por dois fortes. Do lado do sul via-se o
chamado Frederico Henrique ou forte Quinquangular em virtude de seus cinco
baluartes - cercado por largo fosso, paliçadas e fortificado por duas cornas,
uma grande, outra pequena com 8 peças de metal 43 de modo a dominar toda a
planície que, na maré alta, costumava ser alagada pelo mar.

Forte Ernesto

O segundo forte, Ernesto, assim chamado em homenagem ao irmão do Conde


Maurício, Johannes Ernestus, dispunha de quatro baluartes, com um fosso
muito largo dominando o rio, as planícies e a Cidade Maurícia. Contíguo a esse
forte encontrava-se o jardim do Conde Maurício, ostentando numerosas
espécies vegetais provenientes da Europa e das Índias.

O Forte de Pedra

Sobre a extremidade norte do recife rochoso, do lado oposto ao de areia,


encontrava-se o Forte de Pedra - assim chamado por ser todo construído
desse material - com uma circunferência de cem passos. Era muito bem
guarnecido e artilhado com 20 canhões grandes, mas, com o mau tempo, as
águas do mar o lavavam de lado a lado. Esta fortaleza dominava o porto, o
forte de terra, o forte Bruin e o Recife.

Ponte entre o Recife e a Ilha

Quando a Ilha de Antônio Vaz foi ligada ao continente por uma ponte, viu-se a
necessidade de ligá-la também ao Recife a fim de facilitar o transporte do
açúcar que, até então, só podia ser para ali encaminhado na maré vazante, a
menos que os comerciantes quisessem correr os riscos do transporte marítimo,
em pequenas embarcações. E assim foi que o Grande Conselho, com a
aprovação do Governador, Conde Maurício, autorizou certo arquiteto a
construir a ponte, sobre arcos de pedra, pela soma de 250.000 florins.
Entretanto, depois de já ter o arquiteto gasto prodigiosa quantidade de pedra e
levantado a alvenaria até a altura das margens do rio, verificando que na maré
baixa ainda haveria 11 pés de água, abandonou a construção em meio, por
não se sentir capaz de levá-la a bom termo 44 .

43
A tradução inglesa omitiu certos detalhes, como, por exemplo, a referência às 8 peças de
metal (Comparar: ed. holandesa, p. 17, 1a coluna , 8° § e ed. inglesa p. 11, 1ª coluna 5.º §).
44
O engenheiro que construiu a ponte que ligava o Recife a Maurícia foi um judeu que vivia no
Brasil anteriormente a 1628. Chamava-se Baltasar da Fonseca e, com seu filho e seu neto,
confessou judaísmo, quando os holandeses se estabeleceram no Brasil (Cf. XI, 135). Barlaeus
Página 35 de 349

O Conselho, porem, não desistiu da empresa. Retomou a obra, e, com o


emprego de numerosos troncos de 40 e 50 pés de comprimento, numa altura
de 12 pés de profundidade conseguiu barrar a corrente até que a ponte ficasse
inteiramente concluída, o que levou cerca de dois meses. Estabeleceu-se
então a seguinte tabela de peagem: 2 vinténs para pedestres civis, 1 para
soldados e negros, 4 para cavaleiros e 7 para carros de bois.

O porto

O espaço compreendido entre o recife de areia e o de pedra constituía o porto


propriamente dito. Na maré alta o ancoradouro chegava a ter 13 pés 45 d'água e
os navios podiam aí manobrar com segurança, protegidos das ondas pelo colar
rochoso. A passagem entre o recife de areia e o continente era de água
salgada, enquanto que o Rio Capibaribe era de água doce.

O Rio Capibaribe

O Rio Capibaribe deriva o seu nome de uma espécie de porco do mar ou do rio
que ali se encontra e que os brasileiros denominavam Capibaribe 46. Esse rio
nasce algumas léguas ao Poente, atravessa a Mata, ou Floresta do Brasil,
Masiapí, São Lourenço e Real onde se junta ao Rio Afogados, próximo a outro
do mesmo nome, e, finalmente, vai desembocar no mar, junto ao Recife. O Rio
Capibaribe divide-se em dois ramos: um que se volta para o sul, e, passando
pelo Forte Guilherme, toma o nome de Afogados; outro que corre para o norte,
e, conservando o seu primitivo nome, continua seu curso entre o continente e a
Cidade Maurícia ou a ilha de Antônio Vaz (a qual se pode atingir pela ponte) e
daí para Waerdenburgh, onde se junta ao rio Beberibe, ou rio salgado, para em
seguida se misturarem, ambos, com o mar. Junto ao braço do rio a que
chamam Afogados, há numerosos engenhos de onde os portugueses
costumam embarcar suas caixas de açúcar em barcos, ao longo do rio, ou em
carroças, para Barreta, daí transportando-as em chatas para o Recife e Olinda.

O Forte Príncipe Guilherme

Cerca de uma milha ao sul da Cidade Maurícia, à margem do braço


denominado Afogados, há um forte em quadrilátero, com o mesmo nome,
conhecido também por forte Príncipe Guilherme, do qual se pode passar, por
um dique, ao forte Frederico Henrique, ou à Cidade Maurícia. É uma estrutura
nobre, rodeada de altas e grossas muralhas, abatises, largo fosso e artilhada
com seis canhões de bronze. Defende as estradas até se confundirem com a
planície.

afirma que o Conselho empreitou a construção da ponte por 240.000 florins (Cf. VII, 156).
Calado fala em 90.000 cruzados pelo custo da metade da obra. Essa parte tinha sido feita de
pedras de cantaria (Cf. XVII, 151). Calado escreve que as pessoas brancas pagavam uma
placa, os negros duas, os cavaleiros quatro, e os carros dois reales (id., id.).
45
O tradutor inglês escreveu 13 ou 14 pés; (cf. p. 11, 2a coluna 2° § da ed. inglesa e p. 18, 1a
coluna , 2º § da ed. holandesa).
46
Segundo Teodoro Sampaio (LXXXI, 119), Capibaribe vem de caapinar - y - pe, que se
alterou em capibar - y - be, rio das capivaras.
Página 36 de 349

Forte Príncipe Guilherme - erguido por Maurício de Nassau, nos Afogados

O forte Barreta

A perto de meia milha desse porto e à mesma distância do continente,


encontra-se outro forte, ao qual se deu o nome de Barreta, voltado para o mar
e em posição de dominar todas as vias de comunicação, tanto marítimas como
terrestres, até o Cabo Santo Agostinho e o Recife.

O jardim do Conde Maurício

Na parte da ilha, que fica entre os rios Capibaribe e Beberibe e entre o forte
Ernesto e o forte triangular de Waerdenburgh, encontravam-se os já citados
jardins do Conde Maurício, providos de todas as variedades de plantas, frutas,
flores e verduras que a Europa, a África ou ambas as Índias poderiam
proporcionar. Havia lá cerca de 700 coqueiros de todos os tamanhos; alguns
deles com 30, 40 e 50 pés de altura, que estavam a cerca de 3 e 4 milhas 47,
deram frutos já no primeiro ano. Viam-se anda nesses jardins, cerca de 50
limoeiros, 18 cidreiras, 80 romeiras e 66 figueiras.

47
O tradutor inglês omitiu as "3 e 4 milhas". Comparar a p. 18, 2a coluna , 6° § do original
holandês, com a p. 12, 1a coluna , 4° § da ed. inglesa.
Página 37 de 349

O palácio do Conde

No centro do jardim erguia-se a residência do Conde, chamada Friburgo.


Edifício de aspecto nobre que, ao que se diz, custou 600.000 florins. Oferecia
uma perspectiva admirável, tanto do mar como de terra e suas duas torres
eram tão altas que podiam ser vistas do mar a 5 ou 6 milhas de distância 48,
servindo mesmo de baliza aos marinheiros. Em frente à casa havia uma bateria
de mármore que se elevava do rio, em degraus e sobre a qual estavam
montados 10 canhões para a defesa do estuário. A 2 ou 3 pés da corrente,
viam-se grandes tanques d'água doce no jardim, não obstante a do rio, em
toda a redondeza, ser inteiramente salgada. Além desses, havia diversos
viveiros repletos de todas as qualidades de peixes.

Sua residência de verão

Bem ao pé da ponte que franqueia o rio Capibaribe da Cidade Maurícia ao


continente, o Conde Maurício mandou construir uma agradabilíssima residência
de verão a que os portugueses denominaram "Boa Vista". Era rodeada de
aprazíveis jardins e lagos de peixes que também serviam de baluarte para a
defesa da ilha de Antônio Vaz e da Cidade Maurícia.

Palácio da Boa Vista – Arnold Montanus 1671

48
O tradutor inglês escreveu: 6 a 7 léguas (p. 12, 1a coluna, 5° §); cf. ed. holandesa (p. 19, 1a
coluna , 1° §).[/i]
Página 38 de 349

O Forte da Terra

Junto ao recife de areia, olhando para o mar ou para o Forte do Mar, havia uma
grande fortaleza de pedra a que os portugueses chamavam S. Jorge, e que
nossa gente denominava Forte da Terra, para distingui-lo do primeiro. Esse
forte defende a entrada do porto com 13 peças de ferro.

O Forte do Bruin

A cerca de um tiro de mosquete em direção ao norte, levantava-se sobre o


mesmo recife de areia um pequeno forte com quatro bastiões, chamado Forte
do Bruin, e daí para o norte, a uma distância de mais um tiro de mosquete,
havia um reduto chamado de Madame Bruin, tendo sido construídas pelos
holandeses ambas essas fortificações.

O Forte de Waerdenburgh

Próximo ao continente, não muito longe das salinas, entre o recife de areia e a
Ilha de Antônio Vaz, havia um forte triangular com o nome de Waerdenburgh.
Era a princípio quadrilátero, mas, posteriormente, os holandeses deram-lhe a
forma triangular, à vista da impossibilidade de defender o quarto baluarte, dada
a configuração do terreno. Os três baluartes foram, depois, transformados em
outros tantos redutos armados com canhões de bronze. Por ocasião das marés
altas, o forte ficava inteiramente cercado pelas águas.

A CIDADE DE OLINDA

Olinda

A pequena distância do Recife, ou Cidade Maurícia, em direção ao norte,


encontram-se as ruínas da cidade de Olinda, outrora famosa sob o domínio
português, pois era por aí que o Brasil exportava para a Europa toda a sua
produção. A melhor parte da cidade assentava-se sobre diversas colinas. Ao
sul, do lado do mar, essas colinas eram bastante suaves, descendo até a praia
que se apresentava, por toda a extensão da costa, coberta de uma areia muito
branca. Já para o lado da terra, ou ao norte, os cômoros eram mais escarpados
e íngremes, cheios de espinheiros e entremeados de laranjeiras, aqui e acolá.
Essas colinas constituíam reforço natural da defesa da cidade que, ademais,
era defendida por vários baluartes do lado de terra, embora a grande
diversidade dos acidentes orográficos da região dificultasse a construção de
fortificações regulares. Da parte mais alta da cidade tinha-se uma linda vista,
tanto para o sul como para o norte, quer para o lado do mar como para o de
terra, em virtude da vegetação que circundava a cidade e que se mantinha
sempre verde através das estações. Dali também se avistava a Ilha de Antônio
Vaz e a Cidade Maurícia. A ponta de terra próxima a Olinda era conhecida por
Tipo entre o povo.
Página 39 de 349

Sobre a mais alta colina dessa região existia outrora um convento de jesuítas,
construção magnífica, mandada construir por D. Sebastião, rei de Portugal, que
o dotou de grande patrimônio49. De lá a vista era belíssima e o convento podia
ser visto do mar, a grande distância. Não muito longe deste havia outro
mosteiro pertencente aos capuchinhos, e, próximo à praia, ainda outro dos
frades dominicanos. Além desses havia duas igrejas, uma chamada São
Salvador e outra São Pedro.

A cidade tinha mais de 2.000 habitantes, fora escravos e eclesiásticos; dentre


estes, cerca de duzentos passavam por ser muito ricos50. Ao pé da montanha
sobre a qual a cidade de Olinda fora edificada, levantava-se um forte reduto
que, em 1645, foi, por um sargento subornado, entregue aos portugueses por
traição 51. A cerca de uma milha da cidade, junto ao mar, achavam-se os
subúrbios, densamente povoados e repletos de armazéns, mas faltos de água
potável que a população era forçada a procurar além do rio.
49
Nieuhof escreveu o mesmo que Barlaeus sobre o convento dos jesuítas. (Cf. VII, 40).
50
Encontravam-se no Brasil holandês monges franciscanos, carmelitas e beneditinos. Os
primeiros eram mais numerosos, e os últimos os mais ricos (Cf. XLVI, 197). Realmente, os
franciscanos eram os mais numerosos, pois possuíam 5 conventos, a saber: 1) Frederica, 2)
Igarassú, 3) Olinda, 4) Ipojuca, 5) Serinhaém Todos os conventos eram belos edifícios.
Possuíam, ainda, um pequeno convento no Capibaribe, acima do Massurepe. Viviam de
esmolas, pois não possuíam terras, nem rendas.
Os carmelitas possuíam 2 conventos: um na Paraíba, sem grande importância, e outro em
Olinda. Tinham como patrimônio algumas casas por eles construídas e alugadas ou
construídas por outros, obrigando-se os possuidores a pagarem foros.
Os beneditinos possuíam dois conventos; um na Paraíba, belo e pequeno, e outro em Olinda,
belíssimo. Possuíam um canavial, no engenho das Barreiras, na Paraíba. Em Pernambuco,
esta ordem possuía um bom engenho, denominado Massurepe, com extensas terras. (Cf. XV,
161).
51
Esse sargento foi subornado por Hoogstraeten e o reduto é a guarita de João Albuquerque, a
uma légua do Recife. (Cf. XVII, p. 246). Moreau relata-nos que por 1.000 libras e o cargo de
mestre o Sargento entregou o forte com 14 soldados que o guarneciam (LIX, p. 86). Vide nota
293.
Página 40 de 349

Toda a região de Pernambuco é fértil em frutas e rica em gado. Há excelentes


pastagens pelos vales, e, nas zonas baixas, próximas aos rios, existe grande
quantidade de cana de açúcar, que é muito cultivada nas redondezas. As
montanhas são aí mais ricas em minério 52 que em qualquer outra Capitania.
Durante a estação chuvosa o calor do dia é mais tolerável que o frio à noite.

O camaleão, ou salamandra da índia também conhecida por geco

Este animal - conhecido entre os holandeses pelo nome de Geco 53 devido ao


seu grito peculiar - encontrado também na ilha de Java, Índias Orientais, é mais
propriamente a salamandra indiana. Tem cerca de um pé de comprimento; sua
pele é de coloração verde-mar, pálido, com manchas vermelhas. A cabeça não
difere da de uma tartaruga que tivesse a boca reta. Os olhos são grandes e
protuberantes, com pupilas longas e miúdas. Na cauda vêem-se vários anéis
brancos. Os dentes são tão afiados que chegam a marcar o próprio aço. Cada
uma de suas quatro pernas tem cinco dedos dotados de garras recurvas nas
pontas. Fecha-os lentamente, mas, quando agarram em qualquer coisa,
dificilmente soltam. O animal vive geralmente em árvores podres ou nas ruínas
abandonadas de prédios e igrejas. Aloja-se, às vezes, junto às camas, fazendo
com que os negros removam suas tendas.

O mais forte veneno do mundo

Seu grito habitual é Geco, mas, antes de o começar, produz um ruído


semelhante a um chiado. A mordedura desse animal é de tal forma venenosa
que o ferimento é quase sempre mortal, se não for cauterizado imediatamente
com ferro em brasa ou mesmo cortado. O sangue desse animal é de cor pálida,
semelhante ao próprio veneno. Os javaneses costumam mergulhar a ponta de
suas setas no sangue desse animal. Os que entre eles se dedicam à
manipulação de venenos (arte muito apreciada na ilha de Java, tanto pelos
homens como pelas mulheres) suspendem o animal pela cauda, num cordel
atado ao teto com o que conseguem enraivecê-lo ao máximo, fazendo-o expelir
pela boca um líquido amarelo que colhem em pequenas vasilhas e que, a
seguir, levam ao sol para coagular. Assim procedem por vários meses
seguidos, alimentando diariamente o animal. É este indiscutivelmente o veneno
mais violento do mundo. A urina desse réptil é de natureza tão corrosiva, que
não só cobre de bolhas onde quer que toque a pele, mas a deixa negra e
produz a gangrena. Dizem os habitantes das Índias Orientais que o melhor
antídoto contra esse veneno é a raiz de Curcuma. Apanhamos um Geco, no
interior de uma igreja no Recife, que nos obrigou a abrir grande rombo na
parede, para desalojá-lo.

52
As explorações holandesas foram várias. Todas resultaram infrutíferas. Sobre a história
dessas explorações, consulte-se Alfredo de Carvalho (XXI). Conforme asseverou Pandiá
Calógeras: "as explorações modernas nada confirmam dessas jazidas de metal branco". (XVIII,
2° vol. p. 448).
53
Marcgrave escreve sobre o camaleão: "Senembi Brasiliensibus, nobis iguana, cameliaon
(sic), Lusitanis falso, & falsissime Belgis Leguan" (LXX, 236). Parece tratar-se de nome
onomatopaico. Jacob Bontius foi dos primeiros a observar não só a salamandra da Índia, como
o Geco. (LXXI, 57
Página 41 de 349

Há também diversas qualidades de serpentes54 no Brasil, tais como a cascavel,


a serpente de duas cabeças e outras, das quais os brasileiros enumeram vinte
e três, a saber: Boiguaçú ou gibóia, 55 arabo, 56 boibí, 57 boicininga, 58
boitrapo,59 boicupecanga60, boipeba61, surucucu 62, caninana 63,

54
Esse trecho referente às cobras é totalmente inspirado em Piso, pois até a enumeração é a
mesma (Cf. V, 4070). Piso, naturalmente, observa-as de um ponto de vista médico,
especificando os antídotos. O livro III "De Venenis Eorumque Antidotis" foi que serviu de fonte a
Nieuhof. Marcgrave descreve mais minuciosamente as serpentes que lhe fora dado conhecer.
A sua lista não é, porém, tão longa quanto a de Piso, embora as descrições e desenhos, que
faz, demonstrem o melhor conhecimento de ofiologia.
As diferenças da grafia de Piso e Marcgrave com a de Nieuhof são mínimas. Procuramos,
sempre, anotar as de Piso e Marcgrave, pois são, inquestionavelmente, mais autorizadas.
(Veja-se p. 2224 de Nieuhof e compare-se com Marcgrave (LXX, pp. 239241) e Piso (LXX,
4044).
55
Marcgrave (LXX, 239) escreve: "Boîguacú Brasilianis, cobra de veado Lusitanis", Piso (LXXI,
41) escreve: "Boiguacu, sive Iiboya, cobre de veado, Lusitanis"; Soares (LXXXVI, 304);
Barlaeus (VII, 382), Cardim (XIX, 40) escreve: "Esta cobra que por cá ha, e algumas que se
acham, de 20 pés de comprido; são galantes, mas mais o são em engulir hum veado inteiro".
Rodolfo Garcia (XIX, 101) anota que ela pertence à família dos Boídeos (constrictor constrictor,
L). Batista Caetano (III, 250) explica: "traga cobras, donde o nome mboiçuai, o que traga muitas
cobras, nome dado a uma espécie de gibóia que devora as outras: mboiguaçu, outro nome
dado à gibóia". Artur Neiva (LXII, 334) dedica ao nome gibóia grande número de páginas,
estudando-o demoradamente.
56
Piso (LXX, 42) descreve-a. Marcgrave não a menciona. Teodoro Sampaio (LXXXI, p. III) fala
de araboya, a cobra do ar, a serpente que salta pelos ares. Gabriel Soares (LXXXVI, 306)
escreve sobre a araboya, cobra que se cria nos rios e lagos. Waegler fala de Araramboya (Cf.
XCIV, 45).
57
Nieuhof escreveu Bioby (p. 22, 1ª coluna) e depois Boiobi (p. 24, 1ª coluna). Barlaeus (VII,
138) ; Margrave (LXX, 239) descreve-a como de grande boca, língua preta e venenosa. Piso
(LXX, 34) escreveu: "Boiobi, Brasiliani, cobra verde Lusitanis". O Sr. Cláudio Brandão
equivocou-se ao escrever que é a mesma caninana de Cardim e caninam de Gabriel Soares.
Várias razões demonstram claramente o erro em que laborou. Em primeiro lugar, Nieuhof,
baseado em Piso, distingue bem a Boiobi da Caninana, pois essa está descrita por ambos em
outras passagens de seus trabalhos (Cf. nota 84); em segundo lugar, Piso ao descrever a
Boiobi diz (LXX, 43): "Boiobi Brasiliensibus, Lusitanis cobre verde."; enquanto que para
Caninana diz (LXX, 43): "Caninana serpens, ventre est flavo, dorso autem viridi.". Ora, uma é a
cobra verde, enquanto que a outra tem o ventre amarelo e o dorso é que é verde. Acresce que,
se houvesse lido Soares (LXXXVI, 310) com atenção, teria verificado que este cronista
descreve a Caninana como "cobras meãs na grandura, com a pele preta nas costas e amarela
na barriga" e logo a seguir registra a "Boibu que quer dizer cobra verde, que não são
grandes...". No próprio Nieuhof as duas variedades são bem diferentes. Finalmente, segundo
Batista Caetano (III, 262), mbóyobi significa "cobra azul ou verde ou mboihobi que é cobra azul
ou verde, que por ser mui ligeira podia ser mboí aíbi... " Compare-se com as notas 63 e 81.
58
Barlaeus (VII, 138); Piso (LXX, 41) escreve: Boicininga, à qual os espanhóis chamam
Cascavel ou Tangedor; Marcgrave (LXX, 240) assim a descreve: [i]"Boicininga & Boicinininga &
Boitininga atque etiam Boiquira Brasiliensibus: Ayug, Tapuyis: Lusitanis cascavela, Belgis
Kaetel slange".[/i] Soares (LXXXVI, 308); Laet (L, 488) regista: Boycininga. Varnhagen, em nota
de número 186, p. 476 (LXXXVI) escreve que [i]"Boicininga caíu em desuso, só ficando o de
cascavel."[/i] Cardim (XIX, 42). Para Batista Caetano (III, 250), a palavra é formada de
mboíchinî = mboitinî, isto é, boi tinini em tupí, onomatopaico, para significar cobra tintinante
também aguaí, cobra de guizo ou cascavel (III, 25). Segundo Teodoro Sampaio (LXXXI, 116), a
palavra é composta de mboy - cyninga - cobra ressonante.
59
Piso (LXX, 42) menciona [i]"Boitiapô Brasiliensibus; Lusitanis, cobre de cipo.."[/i] e Marcgrave
(LXX, 241) escreve: [i]"Boitiapo Brasiliensibus; Lusitanis cobra de cipo."[/i] Segundo Waegler e
Spix, Natriz Bicarinata (XCIV, 24).
60
Piso não descreve essa cobra e tão somente a menciona na lista em que enumera as várias
espécies. (Cf. LXX, 40). Laet (L, 488). Cardim (XIX, 41) escreve: [i]"cobra que tem, espinhos
Página 42 de 349

surucacutinga64, guinipaiaguara 65, ibiara66, jacapecoaja67, ibiboboca68, jararaca


69
, manima 70, vona71 , tareibóia72, cacabóia73, e amorepinima74.

Trataremos, em seguida, das que se encontram nas casas e matas de


Pernambuco, deixando de parte as restantes por não nos serem bem
conhecidas. E de notar, porem, que, a despeito de serem algumas serpentes
brasileiras ou americanas de maior porte que as européias, não são, como
estas, tão venenosas.

A cascavel

pelas costas, he muito grande e grossa, os espinhos são muito peçonhentos e todos se
guardão muito dellas".[/i] Rodolfo Garcia declara achar difícil interpretar esse nome.
61
Nieuhof escreveu Bapeba. Piso (LXX, 40) só a menciona na lista em que enumera as
variedades de serpentes, escrevendo Boipeba. Soares (LXXXVI, 443) escreve Boipeba. Batista
Caetano (III, 250) dá a seguinte etimologia: [i]"mboi péb, cobra chata muito venenosa,
assemelha-se a uma correia no chão".[/i]
62
Nieuhof grafou curucucu. Laet (L, 488) do mesmo modo; Piso (LXX, 42) idem; Marcgrave
(LXX, 241) idem; Soares (LXXXVI, 310), Surucucu; Cardim (XIX, 42), Surucucu, escrevendo:
[i]"esta cobra he espantosa e medonha".[/i] Anotando-a, Rodolfo Garcia (VIII, 103) diz pertencer
ela à família [i]Lachesis mutus,[/i] L. e não ter explicação aceitável o nome indígena.
63
Marcgrave não a menciona. Laet registra-a à p. 488 (L). Piso enumera-a e depois estuda-a
(LXX, 43). Em Cardim, Caninana (XIX, 40). Em Soares (LXXXVI, 310), Caninam; Rodolfo
Garcia considera difícil interpretar o nome indígena. Compare-se com as notas 57 e 81.
64
Nieuhof escreveu Curukacutinga. Piso (LXX, 40) escreve Curucacutinga, enumerando-a na
lista geral.
65
Nieuhof escreveu (p. 22, 1a coluna ) Guinipaiiaguara. Piso (LXX, 40) Guinpaiiaguara. Cardim
(XIX, 40) registrou-a escrevendo guigraupiajoara. Rodolfo Garcia (XIX, 102) explica o nome,
dizendo: "papaovo ou papapinto, da família dos Colubrídeos (Herpeto dryas carinatus, L.) Em
Soares Urapiagarás (LXXXVI, 311).
66
Nieuhof escreveu Ibyara (p. 22, 1a coluna). Piso (LXX, 42) Ibiiaia cobra vega (sic) ou cobra
de duas cabeças. Marcgrave (LXX, 239) escreve: Ibyara Brasiliensibus, Boaty, Tapuijis, Cega
Lusitanis, nostratibus Blind Schleiche. Tanto Piso quanto Marcgrave preocupam-se em afirmar
que é falso dizer que a cobra tem duas cabeças. Batista Caetano (III, 250) explica deste modo
a etimologia: "mboy - íg - cobra curta ou cortada, que dizem ter duas cabeças".
67
Nieuhof escreveu Jakapekoaja (p. 22, 1a coluna ). Piso (LXX, 40) cita-a na lista em que
enumera as variedades de cobras, escrevendo Iacapecoaja.
68
Cardim (XIX, 43) escreve Igbigboboca. Rodolfo Garcia (XIX, 103) escreve: Ibiboboca ou
cobra coral da família dos colubrídeos (Elaps marcgravi, Wied). Ibibobog espécie de cobra, isto
é, mboiibypebabac, cobra enroscada no chão ou cobra coral". Piso (LXX,42), "Ibiboboca ou
cobra de corais". Marcgrave (LXX 240). "Ibiboboca ou cobra de coral". Elaps Venustissinus
segundo Waegler e Spix (XCIV, 6).
69
Piso (LXX, 42) descreve-a; Laet (L, 488) menciona Jararaca e Jararacucu, registrando,
ainda, jaracoaytipinga e jaracopeba; Soares (LXXXVI, 307) escreve gereracas; Cardim (XIX,
42) jararacas e Rodolfo Garcia (XIX, 102) anota: "da família dos Viperídeos (Lachesis
lanceolatus, Lacep.). Para Batista Caetano (III, 573), pode derivar o nome de yarará = yararág,
que envenena a quem agarra. Segundo o mesmo autor (id., 263), davam os índios o nome de
mboy - apiti (cobra que fere com o rabo) à jararaca.
70
Piso (LXX, 40); Cardim (XIX, 88) escreve: "as suas pinturas tomarão os gentios deste Brasil
pintaremse"; Gabriel Soares não a menciona. Rodolfo Garcia (XIX, 125) supõe que se trata da
"amove pinima, que Marcgrave representa". Não nos parece exata a hipótese, porque Piso e
também Nieuhof enumeraram ambas, distinguindo-as. Marcgrave (LXX, 242).
71
Piso (LXX, 40) cita-a na mencionada lista a que tanto nos temos referido.
72
Nieuhof (p. 22, 1a coluna) e Piso (LXX, 40) escrevem Tareiboya; Soares, taraiboia (LXXXVI,
307); Varnhagen anota (LXXXVI, 473) que Abbeville chamou-a Tarehuboy e Baena (Corografia
do Para, p. 114) T'arahiraboia.
73
Nieuhof p. 22, 1a coluna ) escreveu Kakaboya e Piso (LXX, 42) cacaboya.
74
Vide nota 70.
Página 43 de 349

A serpente Boicininga ou Boicinininga, também conhecida por Boiquira, entre


os brasileiros, e Ayug pelos Tapuias, e denominada pelos Portugueses
Cascavel ou Tangedor 75, isto é, matraca, devido ao ruído de sua cauda que se
assemelha ao deste instrumento. Esta cobra, extremamente venenosa é capaz
de se locomover tão rapidamente como se fosse alada, encontra-se pelas
estradas e nos lugares desertos. Pelo meio do corpo, tem a grossura de um
braço humano a altura do cotovelo, mas, vai se adelgaçando gradativamente
para as extremidades. A barriga e a cabeça são achatadas, sendo que esta,
dotada de olhos muito pequenos, tem um dedo e meio, tanto de comprimento
como de largura. Tem quatro dentes de conformação toda especial, mais
compridos que os outros, brancos e aguçados como espinhos, que as vezes se
ocultam sob as gengivas. A pele e coberta de espessas escamas, as do dorso
são um tanto mais compridas que as restantes e de uma coloração amarelo
pálido, pretas nos bordos. As partes laterais são igualmente amareladas e
entremeadas de escamas pretas, já as do ventre são maiores, quadradas e
amarelas. Costuma ter essa cobra 3, 4 e por vezes ate 5 pés de comprimento.
Possui língua arredondada, bipartida e dentes longos e afiados. Constituí-se a
cauda de algumas juntas ósseas, soltas, que produzem o citado ruído
característico, audível a boa distância. Por outras palavras, a ponta da cauda
tem um prolongamento composto, por algumas juntas ligadas umas as outras,
de forma peculiar, que lembra a de uma corrente. Todos os anos nova célula
se vem juntar as outras de modo que e possível saber a idade da cobra pelo
numero de juntas, como se a natureza quisesse favorecer a humanidade,
advertindo-a contra esse animal venenoso, com o seu próprio ruído. Um destes
guisos colocados no anus produz morte imediata; entretanto, já a picada da
cobra tem ação muito mais lenta, pois que no começo a ferida sangra e a
seguir a pele vai se tornando azulada e a ulcera corrói aos poucos o tecido
adjacente.

O melhor remédio que os brasileiros conhecem contra o veneno desta, como


de outras víboras, e a cabeça do próprio réptil 76, reduzida a uma espécie de
pasta, num almofariz, e aplicada sobre a mordedura. Misturam-na
habitualmente com saliva, com a qual também umedecem freqüentemente a
ferida. Se notam que o veneno se vai estendendo as partes vitais do
organismo, ministram a vitima Tipioca77 como cordial e a seguir aplicam fortes
soporíficos. Deixam também o ferimento aberto, aplicando-lhe ventosas para
dele extrair o veneno, ou então queimam-no com ferro em brasa. Se a parte da
75
Compara-se com a nota 58. As descrições especiais de cada cobra são literalmente
copiadas de Piso (LXX, 4144). Daqui em diante o texto e praticamente igual ao de Piso. Uma
ou outra vez confrontaremos os respectivos textos, para melhor esclarecimento. O leitor
curioso, porem, poderá ele próprio fazer qualquer comparação desde que sempre indicamos as
passagens copiadas. 75] Compara-se com a nota 58. As descrições especiais de cada cobra
são literalmente copiadas de Piso (LXX, 4144). Daqui em diante o texto e praticamente igual ao
de Piso. Uma ou outra vez confrontaremos os respectivos textos, para melhor esclarecimento.
O leitor curioso, porem, poderá ele próprio fazer qualquer comparação desde que sempre
indicamos as passagens copiadas.
76
A fonte de Nieuhof continua sendo Piso. Compare-se esse trecho com o que escreveu Piso
(LXX, 41) no capitulo: "Qui agit De Venenis eorumque Antidotus... contra hujus aut
qualiscumque serpentis inorsus restat, est ipsius nocentis caput, ..."
77
Nieuhof escreveu Tiproka (p. 23, 1a coluna 1a §). Piso escreve Tipiocae, que adotamos.
(LXX, 41).
Página 44 de 349

ferida pode ser interceptada surge logo a necessidade de ligá-la; o que se faz
com junco, que os brasileiros chamam jacaré, e no qual confiam
especialmente78 .

Animais do Brasil

Surucucu

A cobra denominada surucucu tem uma cor cinzenta com manchas amarelas e
malhas pretas no dorso, possuindo também escamas como a cascavel.

A Cobra de Veado

A Gauçú ou Gibóia e sem duvida a maior de todas as serpentes, atingindo,


alguns espécimes, 18, 24 e mesmo 30 pés de comprimento e a grossura de um
tronco de homem, ao meio. Os Portugueses chamam-na Cobra de Veado por
ser capaz de engolir um corço inteiro ou mesmo um veado, pois, conquanto a
garganta seja estreita, o ventre e bastante grande. Após ter devorado presa de
tão grandes proporções, a cobra cai num estado letárgico em que facilmente se
deixa capturar. Lembro-me de ter visto uma perto de Paraíba, que media 30
78
A edição inglesa omitiu este trecho referente a, parte ferida a que se administra Jacaré
(comp. p. 23, 1a coluna , 3° § da ed. holandesa, com a p. 15, 1ª coluna Da ed. inglesa). O
curioso e que Nieuhof copiara Piso. Assim, compare-se esse trecho com o seguinte de Piso
(LXX, 41): "Ad remedia extrahentia, vulnus dilatantia, scarificationes, cucurbitulas, & si
pars laesa intercipi possit, ad vincula festinandum, idque junco Iacape, cui remedio
maxime fidunt Brasiliani"...
Página 45 de 349

pés de comprimento e tinha a grossura de um barril. Os negros viram-na


engolir um cabrito. Enviaram-se, então, 13 mosqueteiros que abateram o
monstro e arrancaram-lhe o cabrito do ventre. Essa cobra era de uma cor
cinzenta, conquanto as outras se inclinem mais para o castanho. Essa
variedade ofídica não e tão venenosa como as outras. Os negros, portugueses
e mesmo alguns holandeses alimentam-se de sua carne. Também e certo que
sua picada não e tão infecciosa, pois freqüentemente sara sem remédio.
Nessas condições, não se pode incluir esta serpente entre o numero das
venenosas, como por exemplo a Caninana, a Mam/ma e a Vona 79. Esta e
extraordinariamente voraz, sempre ávida de novas presas, e, saltando entre
sebes e arbustos, Poe-se em pe sobre a cauda para assim atacar homens ou
animais. As vezes atira-se de uma arvore sobre o viajante, em cujo corpo se
enrola, procurando vencê-lo pela asfixia, valendo-se, para isso, da cauda.

Jararaca

A Jararaca e curta, poucas vezes excedendo o comprimento de um braço ate o


cotovelo. Tem, na cabeça, veias salientes como a víbora s emite um silvo mais
forte que esta. Sua pele e coberta de manchas pretas e vermelhas, sobre fundo
cor de terra. A mordedura desta serpente e tão perigosa quanto a das outras e
apresenta idênticos sintomas. Costuma-se dizer que se cozer a cabeça, a
cauda e a pele juntamente com as entranhas, numa infusão de jurupeba, com
sal, endro e outros ingredientes semelhantes, obtém-se um bom remédio.

Boitiapo

A cobra denominada botiapo e conhecida pelos Portugueses pela designação


de cobra cipo, tem cerca de 7 pés de comprimento e a grossura de um braço
humano. Sua cor e oliva, alimenta-se de rãs e sua venenosíssima picada
provoca os mesmos sintomas que a da surucucu; só e curável com ferro em
brasa.

Ibiara

A ibiara a que os Portugueses chamam cobra cega, ou cobra de duas cabeças


por dar a impressão de ter duas cabeças conquanto na realidade não as tenha,
encontra-se em grande quantidade em buracos, sob a terra. Tem de diâmetro o
comprimento de um dedo e mede cerca de pe e meio de um extremo a. outro.
Sua cor e prateada, e, nada mais venenoso que as picadas desse réptil.
Entretanto, e possível curá-las, desde que se possam aplicar a tempo os
citados remédios.

Ibiboboca

Ha, ainda, a serpente que os brasileiros denominam ibiboboca e que os


Portugueses conhecem por cobra de corais. É uma cobra belíssima, de um
branco cor de neve e pontilhado de manchas pretas e vermelhas. Atinge a

79
Mais uma prova evidente do plagio de Nieuhof. Tendo Piso escrito, a p. 40 (LXX), Manima e
Vona, e a p. 2 Mavina e Vocia, Nieuhof, seguindo-o, escreveu a p. 22, 1a coluna Manima e
Vona, e a p. 23, 2a coluna , Mavina e Voeia.
Página 46 de 349

cerca de dois pés de comprimento e sua mordedura e mortal, mas, de ação


retardada.

Boiobi

A boiobi, que os Portugueses chamam cobra verde, tem de comprimento cerca


de uma vara80 e a espessura de um polegar. Sua cor é de um verde brilhante.
Vive dentro de casa e não ataca ninguém a menos que seja provocada. Sua
picada, entretanto, é muito venenosa e dificilmente curável. Certo soldado,
ferido por um desses répteis oculto numa cerca, veio a falecer poucas horas
mais tarde, por falta de medicação adequada. Seu corpo ficou todo intumescido
e azulado.

Caninana

A caninana81 tem o ventre amarelo e o dorso verde. Seu comprimento é de


cerca de 8 palmos e essa cobra passa por ser de todas a menos venenosa.
Alimenta-se de ovos e pássaros; tanto negros como brasileiros comem-lhe a
carne depois de decepadas a cabeça e a cauda.

Ibiracoa

A cobra que os naturais chamam de ibiracoa82, apresenta coloração muito


variada, com manchas pretas, brancas e vermelhas. Sua picada, muito
venenosa, é seguida dos mesmos sintomas que as da surucucú e mata
infalivelmente, se não se aplicarem os remédios adequados. Nos casos em que
o veneno ainda não tenha atingido o coração costuma-se ministrar ao paciente,
juntamente com vinho, a carne da própria cobra cozida com certas raízes.
A tareibóia e a cacabóia83 são variedades anfíbias. A primeira, muito grande,
de cor escura, morde, quando provocada, mas sua picada não é difícil de
tratar. A cacabóia é de cor amarelada, tem 6 palmos de comprimento e
alimenta-se de aves domésticas.

Senembí ou Leguan

Não somente na Capitania de Pernambuco, mas também no resto do Brasil e


por toda a América, bem como na Ilha de Java, Índias Orientais, há uma
variedade de crocodilo terrestre que os brasileiros chamam de senembí e que a
nossa gente conhece por Leguaen. 84 Há os de diversos tamanhos; alguns

80
O tradutor inglês escreveu três quartos de jarda (p. 16, 1 coluna , últ. §). Cf. ed. hol. p. 24, 1a
coluna , 4 §.
81
Mais um exemplo de plágio de Nieuhof. Compare-se a tradução brasileira, fiel ao texto
holandês (p. 24, 1a coluna 6.º §) com a p. 43 de Piso (LXX). Comparem-se, também, com as
notas 57 e 63.
82
Outro pequeno exemplo. Veja-se p. 43 de Piso (LXX).
83
Mais outro exemplo que ilustra a afirmação que fizemos na nota 75. Nieuhof copiou de Piso
(Cf. LXX, p. 43).
84
Marcgrave descreveu o à p. 236 (Cf. LXX). Já nos referimos a ela, na nota 53, que se refere
ao Camaleão. Soares (LXXXVI, 312) registra senembús, referindo-se à sua boa e saborosa
carne. Descreve-o no capitulo 114, onde fala dos lagartos e dos camaleões. Varnhagen
registra em nota (n° 188) à p. 470 Sanambús e Iguana.
Página 47 de 349

atingem a 3 e 4 pés de comprimento, raramente, porém, excedendo de 5. Têm


o corpo coberto de escamas que são relativamente maiores no dorso e nas
pernas e que parecem começar na cauda de preferência a qualquer outro
ponto. O pescoço tem o comprimento aproximado de um dedo e meio, os olhos
são pretos e brilhantes e as narinas se situam na parte posterior da cabeça. As
mandíbulas são fartamente providas de dentes pequenos, negros e curtos. A
língua é muito grossa. Ao longo das costas, do pescoço à cauda, há pequenos
espinhos muito agudos, de cor esverdeada. São pouco maiores no pescoço e
vão diminuindo gradativamente até a cauda. Sob a garganta há também muitas
dessas cerdas. Toda a pele é de um verde desmaiado, pontilhada de manchas
pretas e brancas. Possui ele quatro pernas e pés nos quais tem cinco garras
armadas de unhas afiadíssimas. Pode subsistir dois ou três meses sem
alimento algum. Sua carne, branca como a de coelho, é tão saborosa quanto a
de galinha ou de lebre, quando preparada na manteiga. Na cabeça desse
animal há certas pedras que constituem remédio infalível para dissolver e
expelir cálculos hepáticos, quando ministradas na dosagem de 1/4 de onça por
vez ou trazidas junto ao corpo.

Lagartos

Há, no Brasil, lagartos de todos os tamanhos, grandes e pequenos. Uns são


verdes, outros cinzentos e alguns têm quatro pés de comprimento, com olhos
muito brilhantes. Os negros alimentam-se de alguns deles aos quais matam
com setas despontadas. A seguir assam-no, arrancada a pele, comendo-os
sem o menor receio. De todos os que se encontram entre os espinheiros e as
sarças ou nas ruínas das casas, só há uma variedade venenosa, chamada
víbora 85. Os destes grupo são idênticos aos outros, posto que menores, não
excedendo ao tamanho de um polegar. Têm uma cor acinzentada, mais para o
branco. O corpo e os membros são grossos e túrgidos de veneno, mas, a
cauda é curta e larga. A picada desse animalejo deixa, na ferida, um humor
fétido, a pele, em redor, toma colorido azulado e a vítima sente dores junto ao
coração e nos intestinos.

Escorpião

O escorpião, que os brasileiros chamam de iaaciaiira,86 existe em grande


abundância, assemelhando-se, na forma, ao escorpião europeu, ainda que não
seja tão venenoso quanto este. São, portanto, facilmente curáveis os
ferimentos por eles provocados. Aloja-se dentro de casa, atrás de tamboretes,
bancos e móveis velhos. São tão grandes como de fato maiores não se
encontram em nenhum outro país; alguns atingem a 5 e 6 pés e são
consideravelmente volumosos.

85
Nieuhof escreveu (p. 25, 1a coluna , 7° §) Bibora. Aliás, é essa a grafia de Piso (LXX, 43).
86
Iaaciaiira escreveu Marcgrave (LXX, 25), declarando que assim chamavam os brasileiros ao
animal denominado, pelos lusitanos, de escorpião.
Página 48 de 349

Animais do Brasil

Mil pernas

Há também certos animais conhecidos por mil pernas e centopéia, 87 que os


nativos chamam de ambua e que se contorcem todos ao andar; passam por
ser muito venenosos. O primeiro encontra-se comumente nas casas e o último
vive nas matas e não só infestam o mundo vegetal como, também, atacam
homens e animais.

Formigas

Há, no Brasil, prodigiosa quantidade de formigas, razão pela qual os


portugueses apelidaram esse inseto de "Rei do Brasil" 88. Comem tudo quanto
deparam pelo caminho: frutas, carnes, peixes e insetos, sem que nada lhes
faça mal. Há também uma formiga alada, do comprimento de um dedo, cabeça
triangular e corpo dividido em dois segmentos presos por um tênue fio. Na
cabeça tem ela dois chifres finos e compridos e seus olhos são pequeníssimos.
87
Piso registrou-a (LXX, 44) e Marcgrave escreveu (LXX, 253) Ambua Brasiliensibus,
centopéia Lusitanis. Soares. (LXXXVI, p. 315) escreveu Imbua e Piso (LXX, p\ 44) escreve
Ambua.
88
Marcgrave escreve (LXX, 253): Formicae hic sunt, ut à Lusitanis Rey do Brasil
appellatur. Piso (LXXI, 9) escreve que elas "exerciam perpétua tirania".
Página 49 de 349

Possui, na parte anterior do corpo, 6 pernas, cada uma com 3 juntas; tem
quatro asas finas e transparentes, duas internas e duas externas. A parte
posterior, que é arredondada, tem uma coloração parda e brilhante. Esse
inseto constitui petisco muito apreciado pelos negros. Aloja-se na terra, como a
toupeira e devasta as sementeiras.

Há outra espécie de formigas maiores, 89 que se assemelham a uma mosca de


grande porte. O corpo todo chega a ter o comprimento de metade de um dedo
e é dividido em três partes distintas, a última das quais tem a forma e o
tamanho de uma semente de cevada; a do meio tem conformação oblonga,
com seis pernas de comprimento de meio dedo e cada uma com 4 juntas; a
parte anterior, ou a cabeça, em forma de coração, é muito espessa, tendo dois
chifres e outros tantos dentes recurvos. O branco dos olhos inclina-se para o
preto. Tem-se a impressão de que a cabeça toda se compõe apenas dos dois
olhos, opostos um ao outro e lembrando a figura de coração. As partes
anteriores e internas são de um vermelho brilhante.

Há, ainda, outra espécie de formiga preta, brilhante, de pernas escuras e


ásperas. Tem o comprimento aproximado de um dedo, cabeça grande,
quadrada, olhos pretos, assustados, dentes enormes e dois chifres do tamanho
de metade de um dedo. O corpo é igualmente dividido em três partes: a
dianteira, de conformação oblonga, não muito grossa, com seis pernas do
comprimento de meio dedo cada uma; a do meio, muito pequena e quadrada,
não excedendo às dimensões de um piolho, e, finalmente, a posterior, que é a
maior das três, de forma oval, afilada na extremidade. Essas três partes
acham-se ligadas por um simples fio. Os brasileiros chamam a essa formiga
tapiiai 90. Além dessas, há outra formiga, que os brasileiros chamam cupia 91,
parda cor de castanha; a cabeça é do tamanho da outra formiga inteira. Tem
olhos negros, dois chifres e duas presas no lugar dos dentes. O corpo todo é
coberto de pelos e divide-se em duas partes, das quais a dianteira, com seis
pernas, é um tanto menor que a posterior - a qual, em certas estações do ano,
apresenta-se com quatro asas, sendo as anteriores maiores que as
posteriores. Algum tempo depois essas asas caem.

Porco-espinho

O porco-espinho do Brasil é conhecido entre os naturais pelo nome de cuandú


e entre os portugueses de ouriço-cacheiro92; tem o tamanho de um bugio
89
Marcgrave (LXX, 252) escreveu: Formica itidem magna hic reperitur, muscae majori
aequalis, cujus corpus pene semidigitum longum atque tripartitum.
90
Em Marcgrave (LXX, 252) encontra-se também Tapiiai. Batista Caetano (III, 482) registra
tapííaí, s. nome de uma espécie de formiga; há diversas outras, cujo nome inclui tape caminho,
ou tab povo, e, talvez, tob folha.
91
Nieuhof (p. 26, 1a coluna últ. §) escreveu Kupia. Marcgrave (LXX, 253), cupia. Frei Vicente
Salvador registra o que chama outra casta de formiga, chamada copy (LXXVIII, 44); Soares
(LXXXVI, 324) menciona copi, escrevendo: bichos que são tão prejudiciais como as formigas,
os quais arremedam na feição as formigas, mas são mais curtos, redondos e muito nojentos...
Batista Caetano (III, 76) escreve: copi = cupii, s. nome genérico dos termites ou formigas
brancas (de caa ou co piir).
Esse trecho de Nieuhof é, também, plagiado de Marcgrave (LXX, 253).
92
Cuandú é o nome tupi do ouriço-cacheiro. Marcgrave (LXX, 233) escreve: [i]Cuandu
Brasiliensibus: Ouriço Cachiero Lusitanis: een ysere Dercken Belgis... Sobre o seu grito, refere-
Página 50 de 349

grande e é todo coberto de agudos espinhos de três a quatro dedos de


comprimento, sem nenhum pêlo. Junto ao corpo esses espinhos são
amarelados, mas, a parte restante é preta, exceto as pontas que são
esbranquiçadas e tão afiadas quanto sovelas. Quando irritado, o animal produz
uma contração brusca na pele e projeta esses espinhos com tal violência, que
seus ferimentos, por vezes, chegam a matar homens e animais. Seu corpo
todo, da parte anterior da cabeça ao começo da cauda, mede um pé de
comprimento. O rabo tem um pé e cinco polegadas e também é provido, até
metade, de afiados espinhos; a parte restante é coberta de cerdas como outros
porcos. Os olhos são redondos, medrosos e faiscantes como carbúnculos. Ao
redor da boca e do nariz há pelos de quatro dedos de comprimento,
semelhantes aos dos nossos gatos e lebres. Os pés assemelham-se aos dos
monos, mas com quatro dedos somente, pois no lugar do polegar há um
espaço vazio, como se o houvessem amputado. As pernas dianteiras e as
traseiras são armadas de espinhos, sendo aquelas menores que estas.
Entretanto, nas patas nenhum espinho se vê. Este animal dorme habitualmente
durante o dia e perambula à noite. Respira pelas narinas, é grande apreciador
de galinhas e sobe pelas árvores, embora o faça muito lentamente. Sua carne
não sabe de todo mal e os nativos comem-na assada. Emite um som
característico:

Bicho preguiça

Vejamos outro quadrúpede a que os brasileiros chamam Ai, os portugueses


preguiça e os holandeses luyaert 93 (passo lento), dada a sua locomoção
extremamente vagarosa, pois em quinze dias percorre apenas a distância de
uma pedrada. Tem o tamanho de uma raposa mediana e o comprimento de
pouco mais de um pé, a contar do pescoço (que não excede de três dedos de
comprimento) até a cauda. Os membros dianteiros têm sete dedos de
comprimento até as patas, mas os posteriores têm aproximadamente seis. A
cabeça, arredondada, tem três dedos de diâmetro mais ou menos. A boca, que
está sempre espumando, é redonda e pequena, e seus dentes não são
grandes nem agudos. O focinho é preto, protuberante e liso e os olhos
pequenos, negros e pesados. O corpo é todo coberto de um pêlo cinzento, do
comprimento de dois dedos, que mais se aproxima do branco que do preto. Em
torno do pescoço o pêlo é um pouco mais comprido que no restante do corpo.

se o mesmo autor nestes termos: Vocem editut sus iii. Nieuhof (p. 26, 2a coluna 3° §) escreveu
Kuandu ou Ouriço Kacheiro. Laet (L, 486) regista Coanduguacu e Coandumiri. Soares
(LXXXVI, 303) menciona Coandu e Cardim (XIX, 35) escreve Canduaçu. Rodolfo Garcia, em
nota à p. 99, do mesmo livro (XIX) escreve que com, o aumentativo açú não se conhece esse
animal na nomenclatura vulgar. Coandu é o roedor da família dos Coendídeos, cuja espécie
maioré o Coendu villosus Licht. Com o diminutivo mirim, conforme o registrou Laet, não se
justifica a mesma observação de Rodolfo Garcia.
93
Laet (L, 487) escreve Hay, declarando que Thevet grafara Haü ou Hautchi. Marcgrave (LXX,
221-222) escreve: Ai sive Iguavus - Ai Brasiliensibus, Lusitanis Priguiza, Nostratibus Luyaert, id
est Ignavus. ..; vocem rarissime edit iiiii, fere ut felis júnior. Marcgrave mencionou, também, o
nome que lhe dera Thevet, de Hay e o de Unáu; Soares (LXXXVI, 301); Cardim (XIX, 39). Frei
Vicente do Salvador (LXXVIII, 43). Rodolfo Garcia (XXXVIII, 83). Segundo Rodolfo Garcia, são
ao todo 4 espécies, enquanto que Cláudio Brandão (VII, 381, nota 153) afirma que são
somente duas. Batista Caetano (III, 27) escreveu; Ai, interjeição de dor, ai! onomatopaico de
grito, nome do bicho preguiça (Bradippus) e depois deste dado ao monjolo de socar milho.
Nieuhof escreveu Luyaert (p. 27, 1a coluna ). Hoje, escreve-se Luiaard.
Página 51 de 349

É um animal muito lerdo, incapaz da mais leve fadiga, devido ao fato de suas
pernas serem desconjuntadas pelo meio. Contudo, vive sobre as árvores, mas
caminha, ou antes, se arrasta muito lentamente. Seu alimento são as folhas
das árvores. Nunca toma água e quando chove trata de se esconder. Quando
se agarra a qualquer coisa é difícil removê-lo. Costuma emitir, ainda que
raramente, um miado semelhante ao dos gatos.

Tamanduá

O papa-formigas, assim chamado porque só se alimenta de formigas,


apresenta-se em duas variedades: o grande e o pequeno. Os brasileiros
chamam ao primeiro tamanduá-í e ao último tamanduá-guaçú 94. Trata-se de

94
Marcgrave (LXX, 225) mencionou as duas variedades. Sobre o primeiro, escreveu:
Tamandua-i Brasiliensibus, Belgis Klein Mierenetor Animal vulpeculae Amerieanae
magnituãine, vel paulo major. Sobre o segundo (ibid.) escreveu: Tamandua-Guasu
Brasiliensibus, Congensibus (ubi & frequens est) Vmbulu; Belgae appellanl de Groote
Miereneter. Animal magnitudine canis Lanionwm.. Laet (L, 556). Piso (LXXI, 9) escreveu
Tamendoá. Barlaeus (VII, 138). Em Soares, (LXXXVI, 289) encontra-se Tamandoá. Em Cardim
(XIX, 34) tamanduá. Gandavo (XXXVI, 106). Frei Vicente Salvador (LXXVIII, 41) escreve
Tamandoçú. Em Abbeville (XXXVIII, 47) encontram-se as duas variedades: Tamandouá e
Tamandouáy. Batista Caetano (III, 476) acha difícil admitir-se taei - monduár, caça formigas e
prefere tama - pelos e uguai - cauda, fácil de mudar-se em nduai. Rodolfo Garcia (XIX, 99)
Página 52 de 349

um quadrúpede do tamanho de um cão, cabeça redonda, focinho longo, boca


pequena e desdentada. Sua língua é arredondada, atingindo às vezes 25
polegadas, ou seja, 3 pés 95 e meio de comprimento. Quando quer se
alimentar, estende a língua sobre os monturos, até que as formigas nela se
instalem, para depois engoli-las. Suas orelhas são redondas e a cauda muito
áspera. Esse animal não é esperto e pode ser facilmente agarrado à mão,
pelos campos. O menor, chamado tamanduá-guaçú, é do tamanho de uma
raposa brasileira, com cerca de um pé de comprimento. Nas patas dianteiras
Possui ele quatro garras recurvas, sendo duas grandes ao meio e duas
menores aos lados. Tem a cabeça redonda, afinando para a extremidade e
ligeiramente curva para baixo. A boca é preta e sem dentes. Os olhos são
muito pequenos e as orelhas, do tamanho de um dedo, mantêm-se sempre
eretas. Duas largas listas pretas correm de ambos os lados de seu lombo. Os
pelos da cauda são mais compridos que os do dorso, mas a ponta do rabo é
isenta de cerdas, pois serve para se apoiar nos ramos das árvores. Os pelos
de todo o corpo são amarelo-pálido, duros e brilhantes. A língua é redonda,
atingindo a cerca de oito dedos de comprimento. É um animal muito selvagem,
procura apanhar tudo com as suas garras e se for agredido a cacete, põe-se
ereto como um urso e tenta, com a boca, tomar o pau do agressor. Dorme o dia
inteiro com a cabeça e as patas dianteiras sob o pescoço e vaga durante a
noite. Quando bebe, a água escorre imediatamente pelas narinas.

Há, também, no Brasil, uma variedade de cobra do comprimento de duas


toesas, sem pernas, com a pele de variegadas cores e provida de quatro
dentes. A língua é fendida ao meio, assemelhando-se a duas setas e o veneno
oculta-se numa vesícula situada na cauda.

Porco-couraça

O quadrúpede que os brasileiros chamam de tatu e tatupera, os espanhóis de


armadillo, os portugueses de encoberto e os holandeses de schüt-verken 96
(porco-couraça) por ser protegido com escamas semelhantes às de uma
armadura, lembra, no volume e na forma, os nossos suínos. Há diversas
variedades desse animal. A parte superior do corpo, assim como a cabeça e a
cauda são cobertas por uma couraça óssea, constituída por escamas muito
finas. Sobre o dorso há sete divisões entre as quais aparece a pele, de um
pardo escuro. A cabeça assemelha-se à de um porco, com o focinho pontudo,
com o qual procuram focar tudo quanto encontram pelo chão. Os olhos são
exíguos e profundamente encravados nas órbitas; a língua é pequena e
aguçada; as orelhas, castanho-escuras e curtas, sem nenhum pêlo ou escama.

acha que o primeiro étimo condiz melhor com o modo de viver do animal. São três as espécies
da famílias dos Mirmecofagídeos.
95
O tradutor inglês escreveu dois pés e meio (p. 19, 1a coluna , 2° §); cf. ed. holandesa (p. 28,
1a coluna , 5° §).
96
Marcgrave (LXX, 231) escreve: Tatu & Tatu-Peba Brasiliensibus, Armadillo Hispanis,
Encuberto Lusitanis: Belgae nostri vocant een Schild-Vercken Laet (L, 485); Piso (LXXI, 100)
menciona, também, Tatupeba, Tatu eté, Tatu apara. Barlaeus (VII, 138); Frei Vicente do
Salvador (LXXVIII, 41); Gandavo (XXXVI, 103); Abbeville (XXXVIII, 78) registra Tatou e Tatou
Ouãssou; Gabriel Soares de Souza (LXXXVI, 295); Cardim (XIX, 35). Batista Caetano (III, 490)
explica-nos que significa casca densa; entre os citados por Piso - Tatupeba e Tatu apara - o
mesmo autor esclarece: peb é chato e apara arqueado (esse é o tatú-bola em português).
Página 53 de 349

A cor de todo o corpo tende mais para o vermelho. A cauda tem, no começo,
cerca de quatro dedos de espessura, mas vai se adelgaçando gradativamente,
para se arredondar na ponta, como a dos suínos comuns. O ventre, o peito e
as patas são destituídos de qualquer escama, porém cobertos por uma pele
não muito diferente da do ganso, com pelos esbranquiçados do comprimento
de um dedo. Esse animal é, geralmente, muito gordo; vive de ervas e raízes e
danifica consideravelmente as plantações. Cava buracos no chão, devora
coelhos e pássaros mortos bem como quaisquer outras carcaças. Bebe muito;
vive a maior parte do tempo à superfície da terra, mas gosta de água e dos
lugares pantanosos. Sua carne é comestível. Caça-se o encoberto da mesma
forma que a lebre na Holanda; os cães acuam denunciando sua toca; abre-se
então o buraco e no fundo encontra-se o tatu.

Morcegos

Os morcegos do Brasil, a que os nativos chamam andirica 97, têm o tamanho


de nossas gralhas. São muito bravos e atacam violentamente com seus
aguçados dentes. Costumam construir seus ninhos no oco das árvores e em
buracos.

Gansos selvagens

A ave que os brasileiros chamam de Ipecati apoa e os portugueses de pato98


nada mais é, na verdade, que um ganso, e, por essa razão, os holandeses a
denominam ganso selvagem. Tem o tamanho de um de nossos gansos de oito
a nove meses 99 de idade e a eles se assemelham em todos os aspectos. O
ventre, a parte inferior da cauda, assim como o pescoço, são cobertos de
penas brancas, mas, sobre o dorso, até a nuca, nas asas e na cabeça, as
penas são pretas, entremeadas de algumas verdes. Vêem-se também penas
pretas intercalando as brancas, no pescoço e na barriga. Distingue-se dos
nossos gansos por ser um tanto maior. O bico assemelha-se ao das patas
européias, sendo, porém, preto e revirado na ponta. Sobre este se estende um
pedaço de carne preta, arredondada, com manchas brancas. Esses gansos
são encontradiços nas margens dos rios; têm carne abundante e saborosa.

Tucano ou Bico Grande

O pássaro que os brasileiros chamam tucano100 tem o tamanho aproximado do


pombo silvestre. Possui um papo cor de açafrão, de três a quatro dedos de

97
Marcgrave (LXX, 213) continua sendo a fonte de Nieuhof. Escreve o citado autor Andiriaca.
Batista Caetano (III, 34) registra andirá, morcego, escrevendo que se encontra, também, andira
por atua, que significa topete, cabelo em monte, topetudo (idem, 53).
98
Esta descrição constitui mais um plágio de Nieuhof (cf. com Marcgrave, (LXX, p. 218). Piso
(LXXI, p. 82). Batista Caetano (III, p. 204) registra ipegatiapua, pato de crista ou pato de cousa
sobre a cabeça erguida.
99
Nieuhof, traduzindo Marcgrave, escrevera: ais een gans van acht of negen maenten (p. 29,
2a coluna , 2° §) ; o tradutor inglês escreveu (p. 20, 1a coluna , 2° §) : of one of our geese of
about nine months old.
100
Mais uma vez Nieuhof traduziu para o holandês o texto latino de Marcgrave (Cf. LXX, p.
217): - Barlaeus (VII, p. 139). Cardim, (XIX, p. p. 48) escreve Tucána. Soares (LXXXVI, p. 264).
Abbeville (XXXVIII, p. 81) menciona o Toucan. Segundo Rodolfo Garcia (XXXVIII, p. 81),
Página 54 de 349

diâmetro, em torno do peito, com penas de um vermelho vivo pelos bordos. O


peito é amarelo e o dorso preto, como as demais partes do corpo. Seu bico é
enorme, de quase um palmo de comprimento, sendo externamente amarelo e
vermelho por dentro. Parece incrível que pássaro tão pequeno se possa haver
com bico tão grande, embora seja este muito leve e fino.

O pássaro soco

O pássaro conhecido pelos naturais como soco 101 é uma espécie de grou,
muito bonito de se ver e do porte de uma cegonha. Seu bico, de seis dedos de
comprimento, é reto, aguçado e de uma cor amarelada tocada a verde. O
pescoço tem quinze dedos de comprido, o corpo dez e a cauda cinco. As
pernas são cobertas até ao meio de penas brancas, a outra metade é lisa. O
pescoço e a garganta são brancos e as partes laterais da cabeça são pretas,
mescladas de cinzento. Na parte inferior do pescoço há penas brancas
lindíssimas, leves e finas, que Nieuhof escreve Toukan (p. 30, 1a coluna ). Para
Teodoro Sampaio (LXXXI, p. 154) é a seguinte a etimologia do nome: tu - quã,
bico que sobrepuja, exagerado. servem para plumas. As asas e a cauda são
cor de cinza, intercaladas com penas brancas. Em toda a extensão do dorso
podem se ver penas leves e longas, como as do pescoço, mas acinzentadas. A
carne é ótima e de sabor agradabilíssimo.

Há outra variedade desses pássaros, um pouco maior que o pato doméstico. O


bico, reto e agudo na ponta, tem o comprimento de quatro dedos e meio e é
guarnecido com uma dupla fileira de dentes, tanto na parte inferior como na
superior. O pescoço que tem um pé de comprimento fazem-no assemelhar-se
ao grou, possuindo, entretanto, olhos pretos envoltos num círculo cor de ouro.
O corpo tem cinco pés e meio 102, e a cauda, que se mantém no nível da
extremidade das asas, quatro dedos apenas. O bico, junto à cabeça, é cor de
cinza, e no restante amarelo, tendendo para o verde. A cabeça e a parte
superior do pescoço são cobertas de penas compridas e amareladas,
entremeadas de outras pretas. No dorso e nas asas vêem-se penas cor de
cinza de um tom amarelado, mas as pernas e os pés são cor de cinza escuro.
A carne dessa ave é passável, assemelhando-se à do grou, em sabor.

Thevet foi o primeiro a descrever a ave e a dar-lhe o nome indígena. Para Batista Caetano (III,
p. 541) lucanà vem de ti - cang - bico ósseo, língua óssea ou ainda túb - cáb - quebra ovos.
101
Nieuhof (p. 30, 1a coluna , 5° §) escreveu Kokoi. Marcgrave (LXX, 209 foi ainda desta vez
furtado. O engano gráfico de Nieuhof vem disso, porque Marcgrave escreveu cocoi. Piso (LXXI,
89). Conforme anota Rodolfo Garcia (XXXIX, 43-44) çocoi - nome específico atribuído à ave
pelos naturalistas antigos, é o equivalente de soco, apenas diferençado pela grafia latina
daqueles escritores, à qual era estranho o ç. Baseado em Batista Caetano (III, 95), Rodolfo
Garcia dá a seguinte etimologia: ço = ir + co = batendo. É da família Ardeidae.
102
O tradutor inglês escreveu: The head and Neck (which is two foot long... (p. 21, 1a coluna
1.o §); cf. ed. holandesa (p. 30, 2a coluna , 4° §). Logo a seguir, o tradutor inglês escreveu: The
body is two foot and a half in lenght; and the Taxi...four fingers (id., id., id.); cf. ed. holandesa
(id., id., id.).
Página 55 de 349

Jabirú-Guaçú

O pássaro que os Petiguaras chamam Jabirú-guaçú, os Tupinambás Nhambú


apoá e os holandeses Schuur vogel 103, tem um bico enorme, com sete pés e
meio de comprimento, cor de cinza, arredondado e recurvo na ponta, mas é
destituído de língua. No topo da cabeça há uma coroa de penas brancas e
verdes. Os olhos são pretos e atrás deles há duas grandes concavidades, em
lugar de orelhas. O pescoço tem o comprimento de dez dedos e metade dele,
assim como a cabeça, não é coberto de penas, mas de uma pele enrugada, cor
de cinza claro. Tem esta ave o tamanho de uma cegonha, com a cauda curta e
negra que se mantém sempre ao nível da extremidade das asas. A outra parte
do pescoço, bem como todo o corpo, é coberta de penas brancas, sendo as do
pescoço muito longas. As asas são igualmente brancas, pontilhadas de
vermelho. Cozida depois de esfolada, sua carne constitui um prato agradável.
É muito branca, posto que um tanto seca. Prolifera no Brasil prodigiosa
quantidade de pássaros silvestres, de todas as espécies, grandes e pequenas,
muitos dos quais vivem nas matas, outros nos rios, mas todos proporcionam ao
homem excelente alimentação. Entre as melhores qualidades destacam-se os
tordos, a que chamam jamdi 104, os faisões de diversos tipos, a que os nativos
denominam macangú, jacú e aracua 105 .

103
Nieuhof escreveu (p. 30, 2a coluna ) : De vogel, by d'onzen Schuurvogelgenoemt, wordt
Jabirú Guaku en Nhandu Apra by de Brasiliaensche volken, en byde Tupinambás Petiguaras
genoemt, o que significa: "o pássaro chamado pelos nossos de schuurvogel, é chamado pelo
povo brasileiro pelos nomes de jabirú guaku e Nhandu Apra e, pelos Tupinambás, Petiguaras".
Na edição inglesa (p. 21, 1a coluna , 2° §) encontra-se omitido Nhandu Apra e pelos
Tupinambás, Petiguaras. Como se vê, Nieuhof equivocou-se, pois só por engano é que poderia
escrever que os Tupinambás denominavam o Jaburu com o nome de tribo. Ainda mais se
considerarmos que o texto de Marcgrave, inteiramente copiado por Nieuhof, está estropiado. O
texto de Marcgrave é o seguinte (LXX, p. 200-201) : Jabirú rruaeu Petiguaribus, Nhandu apoa
Tupinambis: Belgis Scurvogel, Rostrum habet magnwm, septem & Semís dígitos longum, in
extremitate teres. & inferius incurvatum; caret lingua & rostrum inferius canum est. In summitate
capitis mitram osseam coloris albi & cinerei mixti gerit. Oculi nigri & pone eos aurium foramina
ampla. Collum decem dígitos longum, cujus medietas, uti & caput, plumis, et cute squamosa
cinerea est tecta, cujus squamae albicant. Corpore aequat Ciconiam; caudam habet brevem &
nigram, cum qua alae desinunt. .. Alae albae, remiges illarum pennae nigrae, rubini colore
transplendente in nigro... Como se vê, Nieuhof mudou completamente o texto latino, pois
Marcgrave escreveu: jabirú guaçu é o nome dado pelos Petiguaras e Nhandu apoá pelos
Tupinambás". Piso, na edição de 1658 (LXXI, 8), escreveu: quae brasiliensibus quibusdam
jabicu guaçu, alliis mediteraneis Nhandu apoá; nostris scur vogel dieta". Em Soares, (LXXXVI,
269) está Jaború. Rodolfo Garcia (XXXIX, 29) escreve: Convém notar que houve troca, na
Historia Naturalis Brasiliae, entre as figuras do jabirú e do Tuyuyú, o que induziu em erro a
Lineu, cujas descrições específicas se baseiam naquela obra. Etimologia: de y, demonstrativo
(= o que, aquele que), + abirú = farto, repleto, inchado, o que está farto ou repleto - alusão ao
grande papo da ave. Batista Caetano (III, 564) escreve; yabirú ou yaburu,s., nome de
cegonhas; a repleta, a inf atuada, a inchada; abirú (III, 17), farto, cheio, repleto; dão-lhe,
também, o nome de ayayá, pode ser que seja ayapirú, o papo inchado (id., 54) ayayá, o que
tem papo, papudo; nome dado a uma cegonha e, talvez, a outras aves. Teodoro Sampaio
(LXXXI, 134) escreveu: jaburu corruptela de ya-abirú, a que é repleta, ou inchada, alusão ao
grande papo da ave; desse nome, isto é, a papuda, alt.: jabirú.
104
Nieuhof escreveu (p. 31, 1a coluna ) jamdi. O tradutor inglês escreveu [i]bamodi[/i] (p. 21, 2a
coluna , 1° §). lambi registra Piso (LXX, p. 10)
105
Em Gandavo (XXXVI, 111), Macucocaguás. Soares (LXXXVI, 261)escreve Macucagoá;
Abbeville (XXXVIII, 45) escreve como Soares. Staden (LXXXIX,162) Mackukawa; o que não
está de acordo com o que afirmou Varnhagen (LXXXVI,469), em nota n. 153 da obra de
Soares, dizendo ter Staden grafado Mackukaitca; Léry (LII, 135), Mocacouá; Marcgrave
Página 56 de 349

O Muton106 é uma ave do tamanho de um pavão, de penas pretas, carne tenra


e ótima. Como este país é rico em bosque e árvores frutíferas, possui, em
abundância, gaviões e outras aves de rapina a que os portugueses dão o nome
de gavião107 e os brasileiros os de teguata e inage,108 inimigos implacáveis das
galinhas e dos pombos. Dentre as aves agrestes que vivem tanto na água
como em terra, reclamam precedência os patos selvagens. Alguns deles são
menores que os europeus, outros, porém, são bem maiores, quase do tamanho
do ganso. Há, também, uma espécie de perdiz a que chama de jaçana-mirim e
jaçana-guaçú 109 e, além destas, grous, codornas e muitos outros galináceos.
A carne destas variedades é, em geral, aceitável, embora não muito saborosa.
Todas essas aves apreciam o âmbar que o mar, em sua agitação, atira à praia,
ao qual devoram antes que o homem possa colhê-lo.

Periquitos

Há ainda, no Brasil, em grande abundância, papagaios pequenos, chamados


periquitos, que nunca chegam a falar 110. Os papagaios propriamente ditos são,
porém, lindíssimos e grandes; alguns deles conseguem falar tão claramente
quanto o homem. Vi alguns desses papagaios repetir nitidamente quanto
ouviam apregoado pelas ruas. Dentre eles lembro-me de um que, encerrado
numa cesta, conseguia fazer que um cachorro, da mesma casa, fosse sentar-

escreve (LXX, 213) "Macucagua dos Brasileiros, espécie de galinha silvestre". Segundo
Rodolfo Garcia (XXXVIII, 45), Macucagua ou Macagua vem de má por ybá, fruto, e cugiguar
por curinhár que traga, tragador, comedor. Batista Caetano (II, 213) escreve Macagua, Macaua
e acauã, falcão ou mboi-acá-hár, aquele que briga com cobras.
Em Gandavo (XXXVI, 11); Soares (LXXXVI, 262). Segundo Rodolfo Garcia, (XXXIX, 31), jaeú é
composto de y demonstrativo = que, aquele que, a = fruto + eu = comer; o que come grãos.
Lêry (LII, 135), jacú; Abbeville (XXXVIII, 37), iacou; Nieuhof (p. 31, 1a coluna), escreveu jaku.
Batista Caetano (III, 565) escreveu yacu, o que traga ou engole frutos.
Nieuhof escreveu Arakua (p. 31, 1a coluna). Em Abbeville (XXXVIII, 20), Aracouan. Marcgrave
não o menciona. Piso (LXX, 10) registra-o entre o Macucagua e o jacú. Aliás, todo esse trecho,
desde o iambi até a jaçanã guaçú, é tirado de Piso. Segundo Rodolfo Garcia (XXXVIII) é
preferível a seguinte etimologia: ará - alteração de guirá, pássaro e aquã = ligeiro, rápido.[/i]
106
Soares (LXXXVI, 262). Varnhagen (LXXXVI, nota 153, pp. 470-71) diz que mutum é
exatamente o crax rubrirostris de Spix (Av. II, Tab. 67, Cf. XCIV). Abbeville escreve Moyton
(XXXVIII, 52). Rodolfo Garcia anota: nome genéricodos cracidas. De mytun por pytum e
pytuna, noite, escuro, negro por extensão;originalmente, qualificativo, dizendo pássaro negro
ou escuro. - Para alguns é onomatopaico. Laet escreve Mutu ou Mouton (L, 491). Cardim
escreve Mutú (XIX, 49). Nieuhof copiou este trecho de Piso (cf. LXX, p. 10); em Marcgrave
(LXX, p. 194),Mitu ou Mutu; em Léry (LII, p. 135), Muton
107
Nieuhof escreveu guavilon (p. 31, 1° §), seguindo, aliás, conforme dissemos na nota
anterior, Piso (LXX, 10), que escreve guavilaon. Marcgrave (LXX,211) escreveu: Caracara
Brasiliensibus, Gaviaon Lusitanis.
108
Teguata e Inage escreveu Nieuhof. Este trecho foi copiado de Piso (cf. LXX, p. 10), que
registrou Teguato e Inage.
109
Nieuhof (p. 31, 1a coluna ) escreve Jakana-miri e Jakana-guaku. Em Piso, iacana miri &
iacana guacu (LXX, 10)- Em Marcgrave, (LXX, p. 190): Iacana dos brasileiros". Em Batista
Caetano (III, 566) se lê: "yaçana, nome genérico das aves Parras, galinha d'água"; Teodoro
Sampaio (LXXXI, 134) escreve jaçanã, o que grita forte, o que tem grito intenso (parra jaçanã).
Rodolfo Garcia (XXXIX,32) explica deste modo a etimologia: y, demonstrativo = o que, aquele
que: eça =olho -f- ena = alerta; o que está de olho alerta. Batista Caetano (XLVI, 312) registra,
também, nahanâ = yaçanâ, s., nome da ave Parra jaçanã (n - eçá - enâ,o que está de olho
alerta ou erguido".
110
Nieuhof (p. 31, 1a coluna) escreve perkietjes e papegayen. Marcgrave(LXX, 206) dá 7
espécies de papagaios.
Página 57 de 349

se junto a ele. Para isso gritava incessantemente até que o cão obedecesse:
"Sente-se aqui, sente-se aqui, seu sapo imundo." Esse papagaio foi depois
oferecido à rainha da Suécia.

Além desses, há um certo passarinho que, conquanto não exceda o tamanho


de uma falange, faz grande ruído, sendo fácil apanhá-lo, até com as mãos,
enquanto adeja de flor em flor, à cata de alimento. De qualquer lado que se
mire esta avezinha minúscula, suas penas revelam cores novas, variegadas.
Por isso as brasileiras atam-nas com fios de ouro à orelhas, à guisa de brincos.
No Brasil os pássaros jamais sofrem falta de alimento, pois encontram-no
sempre, em abundância, entre as flores e os frutos; lá, as árvores não perdem
as folhas durante o inverno.

Animais do Brasil

Peixes

Os rios e lagos brasileiros, bem como o mar junto à costa, são riquíssimos em
todas as variedades de peixes e estes entram tão largamente no regime
alimentar do povo, que nem mesmo os doentes atacados de febre os
dispensam. As lagoas do litoral, que por vezes secam completamente,
produzem grande quantidade de lagostas, tartarugas, camarões, caranguejos,
ostras e várias outras espécies alimentícias. No Brasil, nota-se grande fartura
de peixe, tanto do mar como de água doce, especialmente na estação
chuvosa, quando a enorme descarga das correntes fluviais atrai para os rios os
peixes marítimos, os quais, retidos pela abundância de algas no leito dos
caudais, não mais voltam para o mar.
Página 58 de 349

Dentre os peixes de água doce, os mais conhecidos são o Duja, a Prajuba e o


Acará-pacú111, assemelhando-se este último à maior das percas européias.

Proliferam ainda, no Brasil, várias espécies de insetos, alguns dos quais


atingem quatro dedos de comprimento e uma polegada de espessura. Também
lá se conhece o bicho da seda ao qual os naturais dão o nome de isocucú. À
seda, propriamente dita, chamam isocure-nimbo112. Há ainda que mencionar as
numerosas espécies de pirilampos, que também se encontram nas índias
Orientais e dos quais nos ocuparemos mais adiante. Citaremos, ainda, as
moscas, os besouros e finalmente as vespas e abelhas, algumas das quais
produzem mel, outras não.

Aranhas

Entre as numerosas variedades de aranhas lá existentes, uma delas se


destaca pelo seu tamanho prodigioso e é freqüentemente encontrada nos
monturos e no oco das árvores. Chamam-na nhanduguaçú 113. Tecem teias
semelhantes às das aranhas comuns, têm a pele áspera e negra e possuem
pinças longas, agudas. Quando provocadas atacam com seu venenoso ferrão,
quase invisível, ocasionando, na vítima, uma tumefação azulada que, se não
for tratada a tempo, se transforma em inflamações seguidas de sintomas
alarmantes, incuráveis.

Ballar ou cabito

Próximo ao rio São Francisco há um inseto que não difere em muito do grilo
europeu114. Sempre tive grande curiosidade de ver um desses bichinhos, para
me capacitar de sua semelhança com os outros de sua espécie. Apesar de seu
trilar forte, parecido com o dos grilos, jamais consegui avistá-lo, pois, logo que
a gente se aproxima, o inseto se cala e não se sabe mais em que direção
procurá-lo. Chega às vezes a cantar um quarto de hora sem interrupção. Na
ilha de Java, índias Orientais, geralmente se ouve o seu trilar nos meses de

111
Em Piso (LXX, 10) Duja e Piajuba. Em Marcgrave (LXX, 145), Acarapucu. Nieuhof (p. 31, 2a
coluna últ. §) escreveu Akarapuku. Etimologia: cara, cascudo, escamoso, (III, 20); acará,
também escamoso, cascudo, nome de grande número de peixes; pucú, longo, comprido,
extenso (id. 427). Cf. III, 68.
112
Nieuhof escreveu Isokuku e Isokurenimbo (p. 32, 1-a coluna, 2° §). Marcgrave escreve
(LXX, 252): Isocucu Bombyx est, unde & Brasilienses sericum vocantIsocurenimbo.
113
Nieuhof escreveu Nhanduguaka (p. 32, 1a coluna). Em Marcgrave (LXX,248) está: Nhamdu
sive variae Araneorum speeies. Batista Caetano explica (XLVI,570): yandú, s., aranha, s.
avestruz. Convém não confundir com a Ema, chamada por Cardim (XIX, 50) Nhandugoaçú e
que Rodolfo Garcia (id. 106) anota como Ema, citando o registro de Marcgrave. Realmente,
Marcgrave escreveu (LXX, 190) Nhandu guaçú Brasiliensibus, Ema Lusitanis, diferenciou a
Ema da Aranha, escrevendo para a primeira Nhandu e para a segunda Nhamdu. Trata-se de
equívoco, pois nada autoriza essa diferença de m e n, visto Batista Caetano registrar
yandútanto como aranha quanto como avestruz. O sufixo guaçú significa, como se
sabe,grande; logo, avestruz ou aranha grande. A razão da confusão não podemos explicar.
Além disso, Batista Caetano registra, também, nandui ou yanduí, s., aranha pequena,aranha
que faz teias nas casas (III, 570).
114
Nieuhof escreveu Kabito. Será a vespa vermelha, significação de cabítâ, registrada por
Batista Caetano (III, 64) ou a branca, cabati (III, 64).
Página 59 de 349

março e abril.115. Finalmente, tive, certo dia, ocasião de tomar nas mãos um
desses insetos, graças a uma chinesa que me havia visto procurá-lo na
Batávia, tanto na cidade como fora dela. Os javaneses organizam lutas desses
insetos e apostam como se costuma fazer nas rinhas de galo.

Felinos

Há em Pernambuco e em todo o Brasil 116 grande abundância de felinos, tais


como tigres, leopardos, etc. Lá os tigres, principalmente, são extremamente
ferozes. Atacam os animais e, não raramente, os homens. Várias foram as
pessoas vitimadas por eles durante a minha estada no país.

Certo português, senhor de um engenho de cana situado em lugar muito


aprazível, achava-se um dia em casa, acompanhado de quatro pessoas de
suas relações, quando se deu uma cena espantosa. Um de seus cães, que se
havia aventurado pelas inatas vizinhas, perseguido por um tigre, saltou a
janela, buscando a proteção de seu dono. O tigre, porém, que o seguia de
perto saltou também a janela para dentro da sala, cuja porta estava fechada, e
despedaçou dois homens antes que os demais pudessem escapar. Depois
dessa façanha, o felino retirou-se calmamente. Há outra espécie de animal,
nessas paragens, ao qual os nossos dão o nome de jan-over-zee (joão-de-
além-mar) que a todos excede em agilidade e ferocidade. Estraçalha tudo
quanto encontra em sua frente.

Gado

Dispõe ainda o Brasil de grande quantidade de gado, mas lá a carne não se


conserva por mais de 24 horas, mesmo depois de preparada. Os batavos
separam a gordura e cortam a carne magra em postas finas para secá-las ao
sol como se faz com peixe. No Brasil não se pode produzir manteiga porque o
leite coalha imediatamente. Esse produto vem da Holanda da mesma maneira
que o azeite.

Porcos

Os suínos brasileiros são negros e pequenos, mas sua carne é muito saborosa
e saudável. Há ainda outra espécie de porcos anfíbios, que os portugueses
chamam capivaras117, quase tão pretos como os outros e de carne igualmente
boa.

115
Na edição inglesa está escrito: fevereiro e junho (p. 23, 1a coluna, 1° §);cf. ed. holandesa (p.
33, 1a coluna , 3° §).
116
No original encontra-se escrito: Men vind in Pernambuko en doorgantsch Brasil... (p. 33, 1a
coluna, 5° §), enquanto que o tradutor inglês escreveu: There are also abundanee of ravenous
wild Beast in Brasil... (p. 23, 1a coluna, 3° §).
117
Nieuhof (p. 33, 2a coluna , 6° §) escreveu Kapiverres. Gandavo (XXXVI,p. 102); em Soares
(LXXXVI, 293), capibaras; em Cardim (XIX, 90), capijuaras; em Frei Vicente Salvador (LXXVIII,
p. 40) capyguaras; em Abbeville (XXXVIII,26), capyyuare; Marcgrave (LXX, 20) escreve Capy-
bara e Piso (LXXI, 16; XX,p. 10) Capiverres. Rodolfo Garcia (XXXVIII, 26) escreve que o nome
é formado decapyi - capim, erva, e guára - particípio do verbo ú comer: o que come capim, o
herbívoro.
Página 60 de 349

Anta

Há ainda um quadrúpede, no Brasil, a que os indígenas dão o nome de


tapereté e os portugueses chamam anta;118 sua carne, semelhante à de vaca,
é ainda um pouco melhor. Tem o tamanho aproximado de um bezerro, mas sua
conformação lembra a dos suínos. Dorme o dia todo no mato e à noite sai em
busca de alimento. Nutre-se principalmente de capim, cana de açúcar, repolho
e outras verduras. Encontra-se, também, no Brasil, grande variedade de
roedores, tais como pacas e cotias 119 além de lebres e coelhos que nada ficam
a dever aos seus similares europeus. Ademais, há uma excelente qualidade de
lagarto que os nativos conhecem por vuana e tejú 120 e que passa por ser
delicioso manjar.

Peixes

O peixe tem, no Brasil, importância igual à do gado, no abastecimento das


nossas fazendas, em sua maioria instaladas no litoral do país. Em
Pernambuco, principalmente, é tal a abundância de pescado que, durante os
quatro ou cinco meses de verão, se chega a apanhar, de um só lanço, dois a
três mil peixes. Na estação das águas, já a pesca diminui. Ao longo da costa,
há certas regiões mais piscosas que as outras; algumas delas pertencem aos
naturais, as restantes à Companhia que reserva certa percentagem anual de
pescado para conserva. Os lagos, bem como as baías, são povoados por uma
multidão incrível de peixes. Aos lagos, chamam os portugueses alagoas e os
melhores peixes que nelas se encontram são a sindia, a queba e a noja 121,
todos eles sem escamas. Ainda que os peixes dos lagos sejam menos
apreciados que os dos rios, nem por isso lhes são inferiores, pois as alagoas
nem sempre são águas paradas; nas mais das vezes comunicam-se com os
rios em diversos pontos. Algumas variedades desses peixes são secas ao sol,
para conservar. Destas, a mais conhecida é a que os brasileiros chamam
curima parati e os holandeses herders. Há também grande fartura de peixes
d'água salgada, de todas as qualidades. O Carapantangele,122 como o chamam

118
Gandavo (XXXVI, 103). Em Cardim (XIX, 32) Tapyretê. Em Soares(LXXXVI, 285), Tapiruçu.
Em Abbeville, Tapyyre-été (XXXVIII, 76). Laet (L,484), Tapirete. Léry (LII, 124), Tapirussú.
Nieuhof escreveu Tapereté ou Antes(p. 33, 2a coluna). Em Marcgrave (LXX, 229) Tapiierete
dos brasileiros e Anta dos lusitanos. Segundo Rodolfo Garcia (XXXVIII, 97), o nome tupi é
susceptível de várias explicações, mas nenhuma satisfatória.
119
Nieuhof escreveu Pakas e Kotias (p. 33, 2a coluna ). Laet (L, 484); Soares (LXXXVI, 296,
297). Marcgrave (LXX, 224), Paca e Aguti ou Acuti. Cardim(XIX, 33), Acuti. Gandavo (XXXVI, p.
103). Em Abbeville, XXXVIII, 62) Pac.Segundo Rodolfo Garcia, (XIX, 98) foi Thevet quem
primeiro descreveu esse animal que chamou Açoutin. Batista Caetano (III, 22) explica que
talvez a palavra venha de a de gente e cúr-tl, modo de comer ou tragar, com as patas
dianteiras. A etimologia de Pac, segundo Rodolfo Garcia (XXXVII, 62), é pag, acordar,
despertar: a esperta, a vívida.
120
Em Piso (LXX, 10), Vnuana & Teju - lagartos. Segundo Batista Caetano (III, 515), Teyú ou
teíu ou teiyú, lagarto; literalmente, significa comida da gentalha, da tropa. Em outro cronista,
como Abbeville (XXXVIII, 79), Teiou ouassou. Soares (LXXXVI, 312) tijuaçu, significando
lagarto grande. Unuana deve ser Iguanas (Cf. nota 53 deste livro e p. 476, nota de Varnhagen
n. 188, (LXXXVI).
121
Nieuhof copiou este trecho de Piso (cf. LXX, p. 11), que registrou: "Sindia, Gueba & Noja".
122
Nieuhof escreveu (p. 34, 1a coluna , 6° e 7° § §) Kurima Parati e Karapantangele. Laet (L,
508) registrou Kurema Parati. Em Piso (LXX, 11), Curima parati (Herders Belgis); e
"Carapantagele é similar a perca". Em Marcgrave (LXX, 381) verifica-se que Piso equivocou-se,
Página 61 de 349

os brasileiros e que não difere em muito da nossa perca, merece especial


referência por ser o mais apreciado pelos nativos. Produzindo os rios um
número infinito de peixes, são estes, no geral, mais gordos e de melhor paladar
que os do mar. Os apanhados pelos pescadores, no litoral, são, geralmente,
salgados e remetidos para os engenhos, no interior, onde é grande a fartura
desse gênero alimentício.

O caranguejo de rio, que abunda nos terrenos ribeirinhos e nos pantanais,


serve de alimento aos brasileiros e negros. Alguns de nossos patrícios também
o apreciam.

Cumpre observar que, havendo grande quantidade de gado fugido dos currais
durante a guerra e se internado nos bosques e florestas situados além das
margens do São Francisco, o Grande Conselho da Companhia no Brasil
resolveu contratar com certas pessoas a captura desse gado para com ele
abastecer a população do Recife. Quando esse contrato se venceu, cogitou-se
da conveniência de renová-lo, mas, supondo-se que não mais havia gado
extraviado nas redondezas, foi o mesmo abandonado. Essa resolução foi
submetida ao Conselho dos XIX. Entretanto, a população das margens do São
Francisco atirou-se com ardor à tarefa de reunir o gado disperso, e foi tão bem
sucedida na empresa que os currais logo se encheram a ponto de poderem
abastecer o Recife e os engenhos do interior onde a carne caiu para três e
quatro vinténs por libra. Além disso podiam fornecer às guarnições reservas de
carne em conserva e farinha para doze meses quando os armazéns do Recife
já estavam esgotados. Não obstante esse movimento, o povo da região ainda
não estava isento de dívidas, conquanto o de Pernambuco e da Paraíba
estivessem pelos cabelos de responsabilidades. Tem-se aí a prova dos
grandes resultados que se podem alcançar com a criação de gado. Se o Brasil
holandês tivesse continuado em paz, essas estâncias poderiam abastecer de
carne fresca todas as guarnições sem desfalcar o rebanho do necessário à
criação. A questão do gado constitui a viga mestra do Estado brasileiro.

Crocodilos

Entretanto, a verdade é que o Brasil holandês não se pode prover de tudo


quanto precisa sem remessas anuais da Europa tanto no que respeita a
comestíveis, como a todos os outros artigos. Isso, pelo menos, foi o que
demonstrou a experiência, com grande prejuízo para a Companhia, quando as
várias expedições empreendidas contra Angola, Maranhão e outras paragens
exauriram completamente os armazéns. Pelos rios e lagos do país encontram-
se também crocodilos, a que os brasileiros dão o nome de jacaré, 123 animais

pois se trata de duas variedades; assim, Marcgrave escreve: "Curema dos brasileiros, espécie
de tainha, maior e mais corpulenta''; enquanto a Parati é a tainha dos lusitanos; e Harder dos
belgas, tendo um pé de comprimento e a figura do corpo como a da Curema. Em Abbeville
XXXVIII, 32) Coureman Ouãssou e Paraty (id. 64). Rodolfo Garcia (XXXVIII, 32) anota que
Curema é um dos nomes da tainha, no que se equivocou, visto a distinção feita por Marcgrave.
123
Nieuhof escreveu Krokodillen e Jakare (p. 35, 1ª coluna ). Em Laet (L, 512). Soares
(LXXXVI, 311). Cardim, (XIX, 89). Em Abbeville (XXXVIII, 86), yacaré. Marcgrave escreveu
(LXX, 242) jacare Brasiliensibus Cayman Aethiopibus in Congo; Crocodilos Latins. Segundo
Teodoro Sampaio (LXXXI, 134), a palavra vem de y - echá - caré, o que olha torto, ou de
banda; ou ya-caré, o que é encurvado ou sinuoso.
Página 62 de 349

esses conhecidos nas Índias Orientais por Caymans. Assemelham-se bastante


aos crocodilos africanos, mas não são tão grandes, pois raramente excedem a
cinco pés de comprimento. Costumam por 20 a 30 ovos maiores que os de
ganso, os quais, da mesma forma que a carne, são consumidos por brasileiros,
portugueses e holandeses.

Nos mares próximos ao litoral brasileiro, encontram-se às vezes grandes


lampreias. Antes da construção da ponte que liga Recife à Cidade Maurícia,
uma delas, de tamanho considerável, instalou-se mesmo na rota dos botes e,
tudo quanto caísse n'água era imediatamente atacado por ela: homens, cães,
que às vezes acompanham os barcos a nado, etc. Um dia, porém, aconteceu
que a maré baixou de repente e a deixou com a maior parte do corpo à tona.
Foi então capturada e trazida para a terra, mas não sem alguma dificuldade.

O território de Pernambuco produz grande variedade de frutas. O mesmo se dá


também com outros pontos do país, dos quais mais adiante nos ocuparemos.

Capitania de Itamaracá

Ao norte da Capitania de Pernambuco, e divisando com ela, estende-se a de


Itamaracá, cujo nome provém de uma ilha, que constitui a porção mais
importante de seu território, conquanto a Capitania tenha 35 milhas de litoral.
Essa ilha fica duas milhas acima de Pau-Amarelo,124 e, separada do continente
pelo rio do mesmo nome, tem sua extremidade meridional a 7o e 58' de latitude
sul. Na direção norte-sul, mede cerca de duas milhas de comprimento e o seu
perímetro é de aproximadamente sete milhas. À jurisdição desta ilha também
pertenciam Goiana, Capibaribe, Terucupa e Abiaí 125, localidades situadas no
continente.

Antigamente era escassa a população da ilha e poucas as suas construções,


posto que lhe fosse ameno o clima e fértil o solo, pois aí se encontravam
cocos, pau-brasil, algodão, cana de açúcar, melões, etc. além de lenha em
abundância e água fresca com que abastecer o Recife. Há, também, na ilha,
madeiras para construções e para a indústria náutica. Entretanto, em certa
época, foi ela grandemente infestada por animais selvagens que depredaram
os canaviais. Foi então que Pieter Bas, diretor da Capitania de Itamaracá,
consultou o Conde Maurício e o Grande Conselho, em 1647, sobre se seria
melhor empreitar a destruição desses animais daninhos ou dar-lhes caça a fim
de servir de alimento às guarnições. O Conselho, entretanto, rejeitou ambas as
alternativas e limitou-se a aconselhar o povo a que não sacrificasse inutilmente
os animais, abatendo apenas os que invadissem as plantações, pois era do
interesse da Companhia preservá-los para uma eventual necessidade. Os
canaviais poderiam ser protegidos por meio de cercas de pau-a-pique, evitando
assim que fossem danificados.

124
Nieuhof escreveu Pomerello (p. 35, 2ª coluna).
125
Nieuhof escreveu Abiay (p. 35, 2a coluna, 5° §).
Página 63 de 349

Itamaracá - 1671 - Arnoldus Montanus

A importância dessa ilha

É tal a importância em que se tem essa ilha, que já se chegou a propor a


transferência para lá, da sede do Brasil holandês. Não concordaram, porém,
com esse alvitre os diretores da Companhia, alegando que a ilha ainda era,
então, deserta, enquanto que no Recife já havia comércio estabelecido e bons
edifícios à sua disposição. Além disso, o lugar era muito mais aprazível, mais
fértil, melhor fortificado e seu porto muito conveniente para a navegação. Por
outro lado, o rio Itamaracá não era navegável senão por embarcações
pequenas, dada a pouca profundidade de seu estuário, já famoso pelos
numerosos naufrágios ali ocorridos. A escassez de água potável, no Recife, no
que a ilha é tão abundante, pode ser remediada pelo rio Beberibe; a propósito,
vários reservatórios já haviam sido instalados no Recife, para seu
abastecimento. Durante a guerra com os portugueses, foi-nos dado apreciar as
grandes vantagens que podíamos tirar dessa ilha, pois, dadas as suas naturais
condições de segurança, ainda aumentadas pelas fortificações ali construídas,
se tornava possível, em qualquer emergência, operar, para lá, uma retirada
estratégica. Ademais, a manutenção da ilha em nosso poder era indispensável
porque era lá que o Recife se abastecia de pescado e toda a sorte de vitualhas.

Sobre a barranca do rio, à entrada meridional do porto, construímos um forte


quadrangular, ao qual demos o nome de Orange. Sua muralha era excelente,
Página 64 de 349

embora o fosso não apresentasse boa profundidade; além disso, mantinha-se


quase sempre seco, motivo pelo qual fomos obrigados a fortificá-lo com
paliçadas. Pelo lado setentrional havia um hornaveque em ruínas. No interior
do forte existia um paiol de pólvora e comodidades para alojamento dos
soldados. Sobre as muralhas instalaram-se várias baterias com seis canhões
de bronze e outros tantos de ferro. Na ilha próxima à desembocadura do rio,
junto a um pântano repleto de espinheiros, estendia-se uma povoação
densamente habitada por militares à qual os portugueses chamavam Nossa
Senhora da Conceição.

Rocha suspensa

Sobre uma rocha suspensa erguia-se um velho reduto, construído pelos


portugueses, que tinha o mesmo nome da povoação, o qual, juntamente com
toda a ilha, foi tomado pelos holandeses sob o comando do coronel Schkoppe.
Depois disso passou o lugar a chamar-se Cidade de Schkoppe. Posteriormente
os holandeses fecharam esse forte pela retaguarda, na direção da igreja, de
modo a servir tanto para a defesa da cidade, como do porto; o fortim, ao norte,
defendia a entrada. Esse forte era artilhado com onze peças. À entrada
setentrional do porto, outro reduto defendia a passagem com três canhões de
ferro. Certo senhor, de nome Dortmont [Balthasar van Dortmont], que fora
governador de Itamaracá, ao perfurar um poço, em 1645 descobriu sob o
citado rochedo uma fonte de água pura, que mais tarde veio a ser de valor
inestimável para a guarnição, visto não poder ser interceptada pelo inimigo.

Um pouco mais acima do rio Itamaracá, acha-se a ilha de Magiope [ Engenho


Monjope ? Talvez haja aqui algum equívoco], onde há grande abundância de
mandioca. Esta ilha - que dispõe de um pequeno porto em cada extremidade,
um ao norte outro ao sul, sendo que este último é o melhor - pode ser
facilmente contornada em bote. Junto ao ancoradouro setentrional há um
banco de areia que apenas deixa um canal navegável com 10 ou 12 pés de
água. O único porto utilizável da região é, portanto, à entrada meridional do rio
que faz de Itamaracá uma ilha, onde podem ingressar navios calando até 14 ou
15 pés, conquanto o ancoradouro não seja lá muito bom. A extremidade em
que o rio volta a se reunir ao mar foi, pelos batavos, denominada Entrada
Norte, e, pelos portugueses, Catuama.

O Engenho Mojope
Página 65 de 349

Os rios Marasarinha [Maria Farinha ?] e Igarassú

Entre Pau Amarelo e o rio Itamaracá, desemboca um curso navegável,


denominado Marasarinha, e, meia milha antes da foz do segundo, outro, de
menor importância, nele lança suas águas: o Igarassú. Daí para o norte
encontram-se vários rios navegáveis por balsas e que são utilizados pelos
engenhos de açúcar da região.

Ponta de Pedras

Cerca de meia milha acima da Entrada Norte de Itamaracá sobressai um


promontório denominado pelos portugueses Ponta de Pedras e rodeado de
recifes, entre os quais só é possível a navegação em barcas e iates. Ainda a
uma milha ao norte desse ponto e três a noroeste de Itamaracá, encontra-se o
riozinho chamado Goiana a 7° e 46', que desemboca na baía, em dois braços.
Em sua foz vê-se um rochedo enorme sobre o qual pousam numerosíssimas
gaivotas. Enorme recife protege-lhe a entrada, mas a grande quantidade de
bancos de areia torna perigosíssima a passagem por ali.

Rio Auiaí

Para além do rio Goiana, a mais ou menos três milhas e meia de distância, há
um grande rio chamado Auiaí,126 cuja foz é de tal forma obstruída por bancos
de areia que apenas permite a passagem de embarcações pequenas. Recebe
esse rio vários afluentes, no interior. À margem de um deles assenta-se a
aldeia de Maurício, na de outro, a de Auiaí.

Porto Francisco

O Porto Francisco está situado numa enseada de três grandes milhas de


comprimento ao norte do rio Auiaí. Cinco milhas a noroeste do mesmo rio
encontra-se o Gramame, não navegável, além de vários outros riachos.

Cabo Paraíba

Cerca de meia milha 127 a noroeste desse rio acha-se o Cabo Branco, e daí a
três milhas, na mesma direção, o Cabo Paraíba que é um grande promontório,
tendo ao lado extensa baía. Toda a costa, de Pau-Amarelo ao cabo de
Paraíba, é pontilhada de recifes ou rochedos que, em sua maioria, se alinham
a cerca de meia milha da praia. Isso faz com que as águas situadas entre eles
e a terra seja muito calma e permita o tráfego marítimo mesmo em época
tempestuosa, quando a navegação se torna quase impossível para fora desses
escolhos, devido à violência da corrente procedente do norte e ao vento Sul
que lá sopra continuamente.

126
O tradutor inglês escreveu duas léguas e meia (p. 26, 1a coluna, 3° §). - Nieuhof escreveu
Auyay (p. 37, 2a coluna, 8° §). Terá relação com o Ay, primitivo nome da foz do rio Igarassú.
(Cf. Alfredo de Carvalho, XXV, 12-13).
127
O tradutor inglês escreveu (p. 26, 1a coluna, 5° §): about a league and ahalf to the north
wesí quando, no original, está escrito (p. 37, 2a coluna, últ. §): Ander halve mijle Noorãe ten
Ooeste.
Página 66 de 349

Cidade de Goiana

Três milhas acima da foz do Goiana, encontra-se a cidade do mesmo nome,


onde está instalada a sede do Tribunal de Justiça desta Capitania. Nas
proximidades de Goiana há cinco ou seis engenhos de açúcar, situados todos
nas margens do rio, para maior facilidade de transporte da produção, até
Pernambuco. A região é também rica em pau-brasil, gengibre, algodão e
castanhas nativas e é habitada pela nação Petiguar. Entretanto, todo o trato de
terra que se estende até o Cabo Branco ê escassamente povoado, contando-
se nele apenas algumas aldeias de brasileiros. A Ilha de Itamaracá dispõe de
diversos pontos de desembarque, dos quais convém notar: Os Marcos [Sitio
dos Marcos - primeiro núcleo de povoamento em Pernambuco – o local passou a
ser conhecido por esse nome, pois ali foram implantados os marcos da Capitania
de Pernambuco que era administrada por Duarte Coelho e também o da Capitania
de Itamaracá Administrada por Pero Lopes de Souza], e Pedreiros, no trecho em
que o rio é mais estreito. Itapissuma 128 e Camboa 129 de Domingos Ribeiro, a
grande Makqueira130 e Camboa de Koenraet Paulii, pelos quais o inimigo
desembarcou na ilha. Há uma passagem entre a Entrada Norte de Tapova 131 e
a ilha Itapessoca, onde um só navio pode impedir o acesso aos rios
Tejucopapo e Maçaranduba, bem como a entrada do mar. Nos demais pontos
o acesso é muito precário visto que as margens do rio são pantanosas e
cobertas de mangueiras. Do lado do mar a praia é muito plana e cheia de
bosques, os quais, juntamente com os bancos de areia existentes no mar,
tornam extremamente perigosa a aproximação de navios por aquele lado.
Antigamente o Tribunal de Justiça da Capitania tinha sua sede nesta ilha, mas,
depois, transferiu-se para as cidades de Goiana e Capibaribe, no continente,
como acima ficou dito, por serem essas paragens mais populosas e contarem
com vários engenhos que aí se instalaram à vista da maior fertilidade de suas
terras em relação às da ilha. No tempo em que lá estive, o Tribunal compunha-
se de cinco escabinos, três dos quais viviam em Goiana e os outros dois na
Ilha de Itamaracá. Entretanto, o Tribunal foi mais tarde transferido também de
Goiana. Em 1641, Pieter Bas dirigia a Capitania de Itamaracá para a
Companhia das índias Ocidentais e o Capitão Sluiter era o comandante em
chefe do exército. Esta Capitania tomou o nome de sua capital que, por sua
vez, o tirou do rio Paraíba, junto ao qual está situada. É uma das Capitanias
mais setentrionais e está apenas a cinco milhas de distância, por via marítima.
Esteve antigamente sob o domínio dos franceses, que de lá foram expulsos em
1585 - assim como de vários outros portos - pelo coronel português Martim
Leitão. 132

128
Nieuhof escreveu (p. 38, 1a coluna, 8° §): Tapasima. Deve ser Itapissuma.(Cf. Alfredo de
Carvalho, XXV, 45). Varnhagen, (LXXII, 58
129
Nieuhof escreveu Kamboa (p. 38, 1a coluna, 8° §). No mapa de Vingbooms (Cf. XCVII), está
escrito Camboa. No mapa de Barlaeus (VIII, entre aspp. 24-25) consta Camboa.
130
No mapa de Vingbooms (XCVII, vol. II, mapa 47), consta uma ilha entre a costa e Itamaracá,
que o autor denomina Macatchtra. O mapa de Vingbooms denomina-se [i]Brazil during the
Dutch occupation seeond the Manuscript Atlas of Johannes Vingbooms, 1665.[/i] .
131
Nieuhof escreveu Tapowa (p. 38, 1a coluna, 9° §).
132
Nieuhof (p. 38, 2a coluna, 7° §) escreveu: o Coronel Martim Leitão. Trata-se de um
equívoco. Martim Leitão era ouvidor-geral de Pernambuco, cargo para o qual fora nomeado em
9 de setembro de 1583. Em 14 de fevereiro de 1585, partia com reforços a fim de assegurar a
Página 67 de 349

A cidade de Paraíba

Subindo o Paraíba, a cinco milhas de sua foz, encontra-se uma cidade fundada
pelos portugueses que, em honra a Filipe, Rei da Espanha, tomou o nome de
Filipéia. É também conhecida por Nossa Senhora das Neves e por Paraíba
dada a sua proximidade do rio. Quando os holandeses conquistaram a
Capitania, em novembro de 1634, 133 mudaram esse nome para o de Cidade
Frederico, em homenagem a Frederico Henrique, Príncipe de Orange. Por essa
época a cidade era de construção recente e ostentava diversos prédios
imponentes, com colunas de mármore, sendo o restante da construção de
pedra comum. Lá estava a sede do Tribunal de Justiça da Capitania. Antes da
rebelião dos portugueses, era esse lugar habitado tanto por portugueses como
por holandeses e largamente freqüentado pelos habitantes de toda a região,
que lá iam escambar açúcar por outras mercadorias, as quais eram depois
transportadas para outros lugares.

Forte Santo Antônio

O forte a que os portugueses deram o nome de Santo Antônio fora construído


sobre uma ilhota separada da Ponta Norte por estreito braço. É este o único
remanescente da série de quatro grandes fortalezas quadrangulares
anteriormente construídas pelos portugueses e que mais tarde foram arrasadas
pelos holandeses sendo as ruínas arrastadas pela correnteza do rio. O Forte
Santo Antônio é cercado de paliçadas e de um fosso abastecido pelo já citado
braço de rio. As muralhas são fortíssimas e, numa bateria, instalaram-se seis
peças de ferro. Pode ser defendido pela artilharia tanto da cidade de Paraíba
como do forte Margarida que lhe fica oposto, do lado meridional, razão pela
qual sempre foi escassamente guarnecido pelos portugueses.

conquista da Paraíba, de onde haviam sido expulsos os franceses por Diogo Flores, espanhol,
e que nessa época se achava assolada pelos índios petiguaras. Ao assumir a direção da tropa,
Martim Leitão foi denominado General. Frei Vicente do Salvador assim relata (LXXVIII, 288) :
"com todo este exército, que foi a mais formosa cousa que nunca Pernambuco viu nem sei se
verá, foi o General Martim Leitão (que assim lhe chamamos nesta jornada), dormir no campo
de Igaraçú. "Em 6 de abril de 1585, volta a Olinda. A luta pela posse definitiva da Paraíba
continuava. Foi organizada a expedição e escolhido o capitão Simão Falcão para dirigi-la.
Tendo este adoecido, escolhe-se João Tavares, escrivão da Câmara e Juiz de Órfãos, o qual,
partindo a 2 de agosto, chegou a 3; e a 5 de agosto de 1585, depois de firmada a paz com
Piragibe, fundou a povoação de Nossa Senhora das Neves. - A cidade chamara-se Filipéia,
nome que lhe dera Frutuoso Barbosa. Varnhagen atribui essa idéia de Frutuoso Barbosa ao
fato de Diogo Florester chamado de S. Filipe, dia de sua partida da Paraíba, a 1° de maio de
1584, ao forte que fizera construir, depois da expulsão dos franceses em 1584, e não 1585,
como escreve Nieuhof. A João Tavares ficou entregue a capitania. Só em agosto de 88
entregou João Tavares a capitania a Frutuoso Barbosa. (Cf. LXXVIII, 287, 288, 299, 301, 303 e
LXXII, tomo I, 490-1, 492, 493 e nota 27 de Capistrano). Sobre Diogo Flores, nota III de
Capistrano (id. id., p. 500).
133
O tradutor inglês cometeu erro de data. Assim, Nieuhof (p. 39, 1ª coluna,1° §) escrevera que
em novembro de 1634 fora conquistada a Capitania, enquanto na tradução está escrito (p. 26,
2a coluna, últ. §): after they had in November 1638.
Página 68 de 349

Paraíba - 1671 - Arnoldus Montanus

O Forte Margarida

Na parte interna da desembocadura do Paraíba havia três fortes de grande


importância. Um deles, situado na Ponta Sul, era chamado pelos portugueses
de Catarina, mas foi posteriormente denominado Margarida pelo Conde
Maurício, em homenagem à sua irmã. Era defendido por cinco bastiões e uma
corna externa.

O terceiro forte

O terceiro forte está situado numa ilha triangular, chamada restinga, não muito
distante do anteriormente descrito, apenas um pouco mais para cima do rio.
Era reforçado com paliçadas e, nas baterias, havia cinco canhões de bronze e
outros tantos de ferro.
Página 69 de 349

Embocadura do rio paraiba

O rio Paraíba

A Capitania de Paraíba é banhada e dividida por dois rios importantes a saber:


o Paraíba e o Mamanguape, também conhecido por S. Domingo. O Paraíba, de
grande volume, situa-se a 6o e 24', quatro milhas acima do Cabo Branco, e
lança-se no mar em dois braços separados por um grande banco de areia. A
um desses ramos chamam Entrada Norte, e ao outro Entrada Sul. Deste último
estende-se uma cadeia de recifes que vai até o Cabo Branco, e, no meio do rio,
há um banco de areia fronteiro ao forte Margarida. Este rio é muito seco no
verão, mas no inverno suas águas sobem e inundam toda a região adjacente,
vitimando, por vezes, homens e animais.

Porto Lucena

Duas milhas além deste rio, em direção ao norte, existe uma baía que oferece
seguro abrigo até aos maiores navios. É conhecida pelos portugueses pela
designação de Porto Lucena e pelos holandeses por Terra Vermelha, 134 por
ser dessa cor o solo da região. Há, aí, um ancoradouro excelente com cinco ou
seis braças de profundidade e toda essa zona é dotada de ótimos mananciais,
motivo pelo qual os navios holandeses que deixam o Recife, rumo à Metrópole,
costumam aí fazer escala para se abastecerem de água fresca.

134
Tanto Nieuhof (p. 39, 2a coluna) como Herckmans (Cf. XLI, 261) falam de Terra Vermelha
na Paraíba (Roolant, Roodelant). Trata-se, segundo a descrição de Herckmans, de uma terra
alta, formando como que um monte que se interrompe do lado do mar, pelo que os nossos
navegantes chamam-na de Terra Vermelha e os Portugueses de os Barreiros de Mirirí, porque
ali desemboca o rio Mirirí; Em Barlaeus (VIII, mapa da Paraíba entre pp. 32-33).
Página 70 de 349
Página 71 de 349

I - Fortaleza de Santa Catarina em foto de 1992

Rio Mamanguape

Meia milha mais ao norte, a 6º 34', acha-se o rio Mamanguape135 que ali
desemboca no oceano. Este curso é muito mais largo em suas cabeceiras que
na foz; suas margens apresentam espessa vegetação de sarças, arbustos e
mangueiras. Pouco antes da foz há um recife e, na própria desembocadura,
dois perigosos bancos de areia. Tem ele três braças de água, na maré baixa.

Cerca de duas pequenas milhas ao norte do rio Mamanguape há uma baía que
os portugueses chamam Baía da Traição e onde, a uma milha de distância da
praia, se tem 11 a 12 braças de água. Cinco milhas para o norte dessa baía
encontra-se o rio Barra Konguon ou Konayo, que apenas dá calado para
pequenos veleiros. Perto de meia milha136 desse ponto, há uma grande baía de
cerca de duas milhas de extensão, chamada Pernambuco, e cinco milhas além,
ao norte, o rio Jan de Sta ou Estau 137.

Os índios da Paraíba habitam cerca de sete aldeamentos, o maior dos quais se


chama Pindaúna, 138 que, em 1634, contava perto de 1.500 habitantes. Os
outros poderiam ter, quando muito, 300 almas, Nenhum desses aldeamentos
contava mais que cinco ou seis construções muito compridas, com uma
infinidade de portas, de tamanho diminuto.

Sua fertilidade

Á produção desta Capitania consiste em: açúcar, pau-brasil, tabaco, peles,


algodão, etc. A cana de açúcar desenvolve-se aí admiravelmente,

135
Nieuhof escreve (p. 40, 1a coluna, 1° §): "Mongoape ou Mongoanwapy".Trata-se do
Mamanguape. Aliás, já Herckmans escrevia, também, Mongougoappi ou Mamanguape. (Cf.
XLI, 261).
136
O tradutor inglês escreveu légua e meia (p. 27, 2a coluna, 3° §). Cf. ed. hol., p. 40, 1°
coluna, 6° §.
137
No mapa 50 de Wieder (XCVII, 2° vol.) existem, realmente, uma Barra e um rio de nome Jan
de Staa; ficam acima da Ponta e Barra de Pernambuco, na Paraíba.
138
Herckmans (Cf. XLI. 258-9) se refere às duas aldeias existentes - Findaúna e Joacaca - no
distrito de Gramame. "Pindaúna era o nome do potiguar que construiu as primeiras casas, onde
está agora a aldeia do mesmo nome". Em língua brasílica significa anzol preto (id. 259).
Teodoro Sampaio (LXXXI, 34) considera bem traduzido por Herckmans o nome indígena. Em
Barlaeus, edição de Naber, (VIII) entre as pp. 24 e 25.
Página 72 de 349

talvez por ter sido plantada em terras descansadas. Enquanto a Paraíba esteve
sob a jurisdição dos batavos, tinha cerca de 21 engenhos de cana em ambas
as margens do rio, sendo que 18 deles exportavam anualmente perto de 4.000
caixas de açúcar. À medida que se aproxima do rio,a região se vai tornando
baixa e plana, mas não muito distante da calha fluvial o solo de novo se enruga
em colinas e vales, oferecendo à vista interessantes paisagens. A parte plana
que também é a mais fértil divide-se em várias zonas, algumas das quais
tomaram os nomes dos riachos que as banham, tais como: Gramame, Tapoa,
Tiberí, Ingeby, Monguape, 139 Inererí, Camaratuba e outros. Todas essas terras
são prodigiosamente férteis em virtude das cheias do rio Paraíba. Seus
produtos são: açúcar, cevada, trigo turco, batatas, ananases, cocos, melões,
laranjas, cidras, bananas, pacovas, maracoani, 140 pepinos e todos os demais
gêneros necessários ao sustento do homem e dos animais. Encontra-se,
também, por aí, uma espécie de pêra silvestre, chamada caju, muito rica em
suco e de sabor agradável. Possui ela uma castanha cuja casca é amarga
embora a polpa seja muito agradável quando assada na cinza. A pêra é
refrigerante, mas o caroço tem efeito contrário.

Pelos fins de novembro de 1634 os holandeses empreenderam uma expedição


contra a Paraíba, embarcando suas forças em 32 navios sob o comando do
coronel Schkoppe e dos seguintes chefes militares: Arciszewski, 141 Hinderson,
Stachouver 142 e Carpentier. A frota foi dividida em duas esquadras, a primeira
compreendendo 21 navios que levavam, ao todo, 1945 homens e a outra 11
iates com 409 soldados. Schkoppe foi o primeiro a desembarcar com 600
homens, avançando contra o inimigo que tratou de se retirar abandonando

139
Em Herckmans, Tapoa ou Itapoa é um pequeno rio que desemboca à margem do rio
Paraíba (XLI, 256). No mapa de Vingbooms, referente à Paraíba, encontra-se, também, Tapoa
(XCVII, vol. II, mapa 46). "Nieuhof escreveu Ingenbye Monguappe (p. 40, 1a coluna, 1° §).
Quanto ao primeiro, nada encontramos; já o segundo apresenta grafia semelhante
(Monguappe - p. 40, 1a coluna, 1° §) a que indicava o Mamanguape (Mongoapa ou
Mongoauwapy (p. 40, 1a coluna, 1° §). Como se trata de ribeiro, não pode ser o Mamanguape,
que é o segundo rio em importância da Paraíba. Em Barlaeus (VIII, mapa da Paraíba, entre pp.
32-33) está delineado todoo curso ao rio Mongaguaba (Mamanguape), não se vendo aí
nenhum riacho com semelhante nome, Marcgrave (LXX, p. 262) registrou o rio Monguape.
140
Marcgrave se refere a Maracoani Brasiliensibus: câncer parvus.. -, (LXX,184). Nieuhof
escreveu Markomas (p. 40, 2a coluna, 2" §). Trata-se do caranguejo.
141
Artisjoski escreveu Nieuhof (p. 40, 2a coluna, 5° §). A grafia correta é Arciszewski, conforme
mostramos em trabalho sobre o mesmo (LXXVI). Aí esboçamos a biografia de Arciszewski tão
ignorada nos bons autores do período holandês, como também mostramos o erro em que
laboraram Netscher e Wätjen, este ao repetir o primeiro, afirmando que fora Arciszewski
exilado da Polônia por questões religiosas, quando o fora por motivo de ato criminoso. Aí
indicamos, igualmente, a bibliografia do coronel polaco, autor de poemas e trabalhos em prosa.
Desde 1892-93, em Petersburgo editava-se "Dzieje Krsyztofa Z Arciszewa Arciszewskiego",
1592-1656, 2 tomos, da autoria de Alexandre Kraushara, Petersburg. Consultar, também: J. C.
M. Warsinck - Christoffel Artiehewsky, Poolsche Krijgsoverste in dienst van de West-Indische
Campagnie in Brazilié. 1630-1639. Proeve tot eerherstel.'s-Grav. 1937.
142
Stachouver tornou-se, depois, negociante, abandonando o Colégio dos Conselheiros
Políticos do qual fazia parte, razão por que, como conselheiro, tomou parte na expedição
contra a Paraíba. (Cf. XV, 159). No Breve Discurso (XV, 158-160), se encontra exposta toda a
organização e membros do referido Colégio na época de Maurício de Nassau.
Página 73 de 349

armas e bagagens. Antônio Albuquerque, o general que os comandava, com


dificuldade conseguiu escapar. 143

Nesse ínterim, tendo o restante da tropa alcançado a terra, três companhias


sob as ordens de Kaspar Ley marcharam diretamente contra o forte Margarida
e entrincheiraram-se junto a ele enquanto Schkoppe se mantinha ao longo da
costa e Arciszewski formava, com sua força, a ala direita à vista da guarnição.
Ao mesmo tempo Lichthart atacava o forte da ilhota Restinga, que tomou de
assalto, passando a guarnição a fio de espada. Por esse tempo Schkoppe
havia assestado uma bateria contra o forte, castigando de tal forma a guarnição
que o comandante Simão de Albuquerque resolveu capitular. A seguir, intimado
a render o forte Santo Antônio, seu comandante, Magalhães,144 pediu três dias
de prazo para entregar a praça. Conseguida a tolerância, Magalhães fugiu
durante a noite, abandonando a Lichthart a posição, que dispunha de cinco
grandes canhões de bronze e 19 de ferro.

Na mesma noite as nossas forças marcharam contra a cidade de Paraíba,


então guarnecida com 1.600 homens, e, transpondo um braço de rio
denominado Tambiá Grande, 145 logo dominaram a cidade, sem oposição. O
general espanhol Bagnoli, tendo evacuado o lugar à frente de 250 homens, foi
forçado a retirar-se para Goiana, não sem primeiro enterrar ou emperrar seus
canhões e deitar fogo a três navios e dois armazéns nos quais foram
destruídas 3.000 caixas de açúcar. À vista do mau estado em que se
encontrava o forte Santa Catarina, determinou o Conde Maurício sua
reconstrução, ampliando-se e aprofundando o fosso e substituindo-se-lhe o
nome pelo de Margarida em homenagem à sua irmã. O forte Santo Antônio foi,
em sua maior parte, arrasado, restando apenas um baluarte para defesa da
ponta norte do rio. Decidiu-se também que o forte Restinga fosse cercado por
novas paliçadas e que o convento da Paraíba fosse fortificado com uma
muralha e outras obras externas. Ficou encarregado do governo da Capitania,
bem como do comando da praça, Elias Herckmans 146.

143
Antônio de Albuquerque era capitão-mor e não general; governador da Paraíba até a
conquista holandesa (Cf. Varnhagen, LXXII, tomo II, 310 e 313).
144
Maglianes escreveu Nieuhof (p. 41, 1a coluna, 4° §). Trata-se do comandante Luiz de
Magalhães, do fortim de Santo Antônio, que resistiu 4 dias a mais depois da entrega do forte de
Cabedelo, que se rendeu a 19 de dezembro. (LXXII, Tomo II, p. 315 e nota 102 e 103 de
Rodolfo Garcia).
145
No mapa 46 de Vingbooms, (Cf. XCVII) está escrito Tabiá. Fica próximo à cidade de
Paraíba. Pelo rio Mandarucú, a que chamam Tambiá Grande,subiram os holandeses para
ocupar a Paraíba (Cf. LIV, 47). Nieuhof escreveu Tambra Grande (p. 41, 1a coluna, 5° §). Em
Herckmans, Rio Tambian (XLI, 242).
146
A primeira tentativa foi frustrada. Realizou-se em fins de fevereiro de 1634, com uma
esquadra composta de 20 navios, com 1500 homens, dirigida pelo Almirante Lichthart,
Schkoppe chefiando as tropas de terra e indo em sua companhia os diretores Johan
Gijsselingh e Servaes Garpentiex. O ataque foi sem resultado e as forças holandesas foram
obrigadas a retroceder. Em novembro de 1634 é que se tentou o novo ataque. Agora,
Arciszewski voltara da Holanda com o título de coronel. Netscher avalia em 29 navios e iates à
disposição de Lichthart, com 2.354 soldados, sob às ordens de Schkoppe e Arciszewski,
acompanhando a expedição Carpentier e Stachouver. (LXIII, 72). Saiu do Recife em 25 de
novembro (LXXII. 312). Servaes Carpentier foi nomeado em 1635 diretor das duas capitanias
da Paraíba e Rio-Grande-do-Norte (Cf. XLI, 244). Foi substituído por Ipo Eysens em 1636, que
faleceu em outubro do mesmo ano. Elias Herckmans foi o terceiro governador da Paraíba sob
o domínio neerlandês, tomando posse em 14 de outubro de 1638. (Cf. XV, 159 e LV). - Foi por
Página 74 de 349

Potigí ou Rio Grande

A Capitania de Potigí, Potingí ou Poteingí, também conhecida pelos


portugueses pela designação de Rio Grande devido ao rio desse nome que a
banha, era conhecida, entre os holandeses, por Brasil Norte, em contraposição
às capitanias do Sul. Potigí limita-se, ao sul, com a Paraíba e, ao norte, com a
Capitania de Ceará, posto que os geógrafos lusos estendam seus limites até a
ilha de Maranhão.

Rio Grande - 1671 - Arnoldus Montanus

essa época que Elias Herckmans escreveu a Descrição Geral da Capitania da Paraíba. O título
do seu trabalho é Beschrijving van der Capitania Paraíba 1639, publicada nas Bijdragen en
Mededeelin-gen van het Historisch Genootschap gevestigd te Utrecht. 2° Tomo. 1879. Foi
traduzida por José Higino e publicada na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano (Vide XLI). Foi, também, autor de um poema sobre a navegação, notável pelos
detalhes sobre as viagens no Novo Mundo. Trata-se de uma narração poética das navegações
holandesas. O livro é procurado pelos bibliófilos, por causa de suas estampas, gravadas a
água-forte, sendo uma delas conhecida sob o nome de "a fortuna contrária", da autoria de
Rembrandt. Tem como título: Der zee vaert lof, handelenãe vande Gedenckvraerdighste
zeevaerãen met de op en onderganghen der voornaemste heerschappijen der gantscher
wereld. Amsterdam. J- Pzn. Wachter, 1634-. Nijhoff há algum tempo, avaliava-a em um conto e
quinhentos mil réis. Herckmans nasceu em Amsterdã em 1596 e morreu no Recife, a 8 de
janeiro de 1644. (Cf. XX. Um poeta aventureiro, pp. 98 e 107).
Página 75 de 349

O mesmo forte dos Reis Magos em foto recente

Os franceses, que se mantiveram na posse dessa Capitania até 1597, foram


daí expulsos pelo comandante espanhol Feliciano Coelho de Car

A Paraíba teve, ainda, mais dois governadores holandeses. Gysbert With, em


1644, e Paulus de Linge, que tomou posse em junho de 1645, ano em que os
holandeses foram expulsos da capitania.

Alfredo de Carvalho publicou um excelente estudo sobre Elias Herckmans,


onde se encontram maiores detalhes sobre sua vida e suas obras. (XX, Um
Poeta Aventureiro, Elias Herckmans, pp. 97-108). Também sobre Herckmans
escreveu J. A. Worp, na Revista Oud Holland, Amsterdam, 1893, vol. XI, pp.
162-178 e no 3° vol. da Nieuwe Biographish Woordenburch. 147 Divide-se ela
em quatro distritos conhecidos pelos nomes dos rios que os banham, a saber:

147
[147] Não é exato o que escreveu Nieuhof, pois os franceses não estavam de posse do Rio
Grande do Norte. Em 1597 é que 13 navios franceses atacaram a Paraíba e logo em seguida o
Rio Grande do Norte (LXXII, tomo II, p. 50-51). Feliciano Coelho de Carvalho, que Nieuhof
chamou de general espanhol e escreveu Feliciano Creça de Karvalasho (p. 41, 2a coluna), era
capitão-mor da Paraíba e auxiliou Manuel de Mascarenhas, capitão-mor de Pernambuco, a
expulsar os franceses do Rio Grande do Norte. Em abril de 1598 é que Feliciano Coelho de
Carvalho pôde, efetivamente, auxiliar com gente da Paraíba a expulsão dos franceses. Sobre a
colonização do Rio-Grande-do-Norte, vide "A colonização do Rio Grande do Norte até a
ocupação holandesa", pelo Dr. A. Tavares de Lira, pp. 1-40, Rev. do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 1914.
Página 76 de 349

Cunhaú, Goiana, Monpebú e Potigí 148. A capitania foi bastante desprezada


pelos portugueses; entretanto produz ela, em abundância, caça e pescado tão
deliciosos, que são geralmente servidos apenas com limão ou vinagre, mas
sem azeite. No lago de Groairas 149, há uma quantidade incrível de peixes e a
região produz farinha em grande escala. Daí vieram os fartos abastecimentos
de carne e peixe para as nossas guarnições da Paraíba e outras partes,
durante a rebelião dos portugueses.

Acima do rio, há uma cidade de pequena importância, denominada Amsterdã.


Seus habitantes vivem da pesca, da produção de farinha e do plantio de fumo.
Mais ao norte vivem alguns camponeses que se ocupam em cultivar a terra;
entretanto, a região que se estende ao norte do Rio Grande é apenas
escassamente habitada. Rio Grande.

Rio Grande

O Rio Grande, assim chamado pelos portugueses devido ao seu considerável


volume, é conhecido entre os naturais pelo nome de Potengí e tem a sua foz a
5º e 42' de latitude sul150, ou seja, três milhas de Ponta Negra, para quem vem
da parte ocidental do continente. Desemboca quatro milhas acima do Forte
Keulen151, conhecido pelos portugueses por Três Reis [Magos], e seu estuário
pode abrigar navios de grande calado.

Já o rio Cunhaú só é navegável por barcas e pequenos navios. As baías que


se encontram nesta Capitania são: Baía Formosa, Ponta Negra, Ponta de
Pipas e a Baía Tijssens. A Baía de Ginepabú152 fica ao norte, além da foz do
Rio Grande, e, depois desta, depara-se com a desembocadura de um rio
denominado Guasiavi, junto à qual se ergue a vila Atape Wappa 153. Ainda um
pouco mais ao norte encontra-se o rio Ceará-Mirim, e perto da aldeia de Natal
e do forte dos Reis passa um rio conhecido por Rio da Cruz que nasce de um

148
[148] Em Vingbooms se escreve Mopabu (XCVII, vol. II, mapa 45), Gonhoa e Goayra.
Verdonck escreve (XCIII, 225): "Cunhaú. Três milhas acima de Camaratuba, existe um
engenho chamado Cunhaú, o qual faz, anualmente, de 6.000 a 7.000 arrobas de açúcar. Ali
moram de 60 a 70 homens, com suas famílias"; e logo adiante: (id. p. 226). "Nesta jurisdição do
Rio-Grande pode haver, ao todo, 5 ou 6 aldeias de brasilienses, que juntos devem contar 750 a
800 flecheiros, e a principal destas aldeias é chamada Moppwbú e está situada a 7 milhas ao
Sul do Rio Grande e a 4 ou 5 para o interior". No Breve discurso sobre as quatro capitanias
conquistadas, escreve que ela está dividida em 4 freguesias, a saber: a de Cunhaú, a de
Guajana (Goiana) a de Potingy e. (branco). Souto Maior escreveu (LXXXVIII, 415 e 416 e 424)
Mipibú, Monpibú, Monpebú. Em Baro, Monpabú (IX, 201).
149
[149] Nieuhof escreveu Goraires (p. 42, 1a coluna, 1° §). Cf. XXVI, p. 190, 2° vol.
150
Na edição inglesa está escrito 50 graus e 42 minutos (p. 29, 1a coluna, 2° §); cf. ed.
holandesa (p. 42, 1a coluna, 7° §).
151
Forte Keulen. Vários tradutores como os Senhores José Higino e Cláudio Brandão, têm
grafado Ceulen. Não aceitamos essa grafia, porquanto o fonema representado pela letra k em
holandês é diferente do expresso pela letra o antes de e ou i em português. Segundo a
ortografia oficial, deve-se escrever uma palavra adotando-se a forma vernácula, quando existe.
Como para essa palavra não existe forma vernácula, só se pode adotar, evidentemente, a
reprodução fiel da grafia estrangeira.
152
Nieuhof escreveu Ginapabo (p. 42, 1a coluna, 12° §). Cf. XXVI, p- 190.
153
Quanto a Guasiavi, Vingbooms menciona Guasjou e no mapa vê-se que Atapewappa
(Tappewappe no Mapa 45) fica junto à nascente do Ceará-Mirim e não junto à desembocadura
do Guasjou (XCVII, mapa 45, vol. II) ou Guasiavi, como escreveu Nieuhof.
Página 77 de 349

pequeno lago no Rio Grande. Em frente ao mesmo forte um riacho aflui para o
Rio Grande, entre dois bancos de terra, e, não muito distante dali, encontra-se
ainda outro rio de água salgada.

O Forte Keulen (ou Ceulen)

O Forte Keulen era um quadrilátero construído sobre rocha, ou melhor, sobre a


ponta de um recife, a alguma distância da praia, defronte à foz do rio Recife.
Inteiramente cercado de água, na preamar, não se podia atingi-lo senão
embarcado. Há, no centro desse forte, uma capelinha, onde, em 1645 ou
1646154, os holandeses descobriram um poço de cerca de meio pé de diâmetro
na boca e três no fundo, aberto na rocha viva, por onde afluía água doce e
fresca todas as marés altas. Nas marés comuns dava cerca de 255 potes de
água potável mas, nas de plenilúnio, chegava a dar 350, suprimento esse mais
que suficiente para consumo da guarnição em caso de sítio. O forte é
construído de blocos de pedra e defendido, do lado da praia, por dois meios
baluartes em forma de corna. Em 1646 sua artilharia constava de 29 peças de
bronze e de ferro. Dispunha também de bom paiol e confortáveis alojamentos
para a soldadesca.

Sua conquista pelos batavos

Este forte foi capturado pelos holandeses sob o comando de Mathias van
Keulen um dos governadores da Companhia, o qual foi auxiliado por vários
capitães de valor, tais como Byma, Kloppenburgh, Lichthart, Garstman e
Mansfelt, Van Keulen 155 para lá se dirigiu à frente de 808 homens embarcados
em 4 navios e 7 iates. Keulen apoderou-se, não apenas do forte, mas, ainda de
toda a Capitania. Foi então que a velha fortaleza de Três Reis passou a
chamar-se forte Keulen, em homenagem ao chefe da expedição.

Era hábito dos Tapuias fazerem uma ou duas incursões anuais, nessa
Capitania, principalmente durante a seca que os privava de água fresca.
Mantinha-se, assim, viva a animosidade entre portugueses e nativos.
154
Em 5 de dezembro de 1633 é que van Keulen partiu do Recife para atacar o Rio-Grande-do-
Norte. Atacaram o Forte dos Reis Magos e o seu Capitão Pedro Mendes de Gouveia capitulou
em 12 de dezembro. Mudaram, então, o nome do Forte para o de Keulen. Sobre as atividades
dos holandeses no Rio Grande do Norte, cf. Alfredo Carvalho, Os Holandeses no Rio-Grande-
do-Norte, Rev. do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1906, Tomo IV, p.
117-139 e 170-198.
O tradutor inglês comete, neste trecho, outro engano grave. Assim é que Nieuhof escreveu (p.
42, 2a coluna ): By dezen Krijgstoght haãden zich verscheide Nederlandtsche Krijghs-oversten
vervoeght, ais Byma, Kloppenburgh, Lichthart, Garstman en Mansfelt. Van Keulen trok....
Enquanto que na edição inglesa (p. 29, 2a coluna ) está escrito: This Fort was in 1633 taken by
the Dutch under the Command of Matthias van Keulen, one of the Governors of the Company,
who being assisted by several noted Captains, viz. Byma, Kloppenburgh, Liehthart, Garstman,
and Mansfeldt van Keulen, sei sail... Como se vê, a ausência do ponto após o nome de
Mansfeldt altera inteiramente o sentido deste trecho.
155
Em 5 de dezembro de 1633 é que van Keulen partiu do Recife para atacar o Rio Grande do
Norte. Atacaram o Forte dos Reis Magos e o seu Capitão Pedro Mendes de Gouveia capitulou
em 12 de dezembro. Mudaram, então, o nome do Forte para o de Keulen. Sobre as atividades
dos holandeses no Rio Grande do Norte, cf. Alfredo Carvalho, Os Holandeses no Rio Grande
do Norte, Rev. do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1906, Tomo IV, p.
117-139 e 170-198.
Página 78 de 349

Informados os Tapuias de que os portugueses pretendiam se revoltar contra os


holandeses, já tendo mesmo iniciado a insurreição em Pernambuco, invadiram
Cunhaú sob a direção de um de seus chefes, Jacob Rabbi, lá trucidando 36
pessoas num engenho de açúcar pertencente a Gonsalvo d'Oliveira. Daí
dirigiram-se para o lugar onde os lusos haviam construído sua linha de defesa,
tomaram-na de assalto e passaram a fio de espada os seus defensores.
Disseram-nos os brasileiros que haviam assim procedido em represália ao que
lhes fizera André Vidal em Serinhaém, depois de já terem sido indultados.
Disso nos ocuparemos de novo mais adiante. Desde então os portugueses
mantiveram deserta essa zona; os batavos pretenderam povoá-la novamente e
reconduzi-la à situação que desfruta sob o domínio português, mas foram
forçados a desistir da empresa, por falta de gente.

Ceará

A Capitania de Ceará 156 compreende uma das regiões mais setentrionais do


Brasil, limitando-se, ao norte, com o Maranhão, do qual a separa o rio Ceará.
Não é grande seu território, pois abrange apenas de 10 a 12 milhas.

O rio Ceará

O rio Ceará, que nasce no âmago do continente, desemboca a sete milhas e


meia ao norte da baía de Mucuripe, a 3º e 40' de latitude sul.

De acordo com o relato dos que os viram diversas vezes, os brasileiros ou


moradores dessa Capitania têm estatura avantajada, traços feios, cabelos
longos e tez escura, exceto entre os olhos e a boca. Costumam furar as
orelhas que lhes pendem até os ombros; também furam os lábios e alguns o
nariz e introduzem pedras nesses orifícios, como enfeite. Alimentam-se de
farinha, aves silvestres, peixes e frutas. Bebem, habitualmente, água, mas
também fabricam um certo licor, de farinha, e, ultimamente, começaram a se
habituar com a aguardente de cana que, entretanto, não se lhes permite levar
para suas aldeias, a fim de não abusarem das bebidas alcoólicas. A região
produz cana de açúcar, cristal, algodão, pérolas, sal e vários outros gêneros.
Em suas praias também se encontra âmbar cinzento.

Em 1630, o interior da região era governado por um rei nativo conhecido por
Algodão, sujeito, até certo ponto, aos portugueses, que lhe construíram um
forte no rio Ceará e dominaram toda a zona litorânea adjacente. Entretanto,
lusos e silvícolas viveram sempre em contínua discórdia até 1638, época em

156
Esse trecho sobre o Ceará já foi traduzido por Pedro Souto Maior, e publicado na Revista da
Academia Cearense, tomo XII, 1907, Ceará, Fortaleza.
Em fins de 1633, fora o seu litoral explorado pelo iate Nieuw Nederlandt, do capitão Joost
Coolster. A 14 de outubro de 1637, partiam do Recife os iates De Brack e De Hemp Haen,
conduzindo 126 soldados sob o mando do major Garstman. A 25 fundeavam na Baía de
Mucuripe. A 26 marchavam, com Algodão, em direção ao forte comandado pelo capitão
Domingos da Veiga Cabral. Aí ficou o Tenente Hendrik Ham, voltando Garstman para o Recife.
Em carta datada de 15 de janeiro de 1638, o Supremo Conselho do Brasil comunicava ao
Conselho dos XIX: "Agora que o Syará foi conquistado não resta em poder dos portugueses
mais nenhuma praça até o Maranhão".
Página 79 de 349

que o forte e toda a região foram conquistados pelos holandeses da maneira


que passamos a relatar.

Ceará - 1671 - Arnoldus Montanus -

O Ceará conquistado pelos holandeses

Os nativos dessa zona solicitaram ao Conde Maurício e ao Conselho que


tomassem o forte português lá existente a fim de libertá-los da opressão em
que viviam. Para tanto ofereciam sua aliança, dando, como penhor de
fidelidade, dois jovens de suas melhores famílias. Os batavos decidiram-se a
realizar a expedição. Confiou-se a Joris Garstman o comando das tropas
destacadas para a operação. Esse homem era de indiscutível valor militar;
entretanto a empresa, como mais tarde se verificou, não oferecia grande
dificuldade, à vista da cooperação dos nativos que, além de nutrirem ódio de
morte aos portugueses, estavam bem informados sobre a força da guarnição e
conheciam perfeitamente as condições locais.

Garstman abasteceu-se de navios, homens, munições e tudo o mais


necessário para a campanha e rumou para o rio Ceará. Lá chegando,
desembarcou suas forças, e, recebendo o rei Algodão que se aproximara com
bandeiras brancas, em sinal de paz, incorporou à tropa os 200 nativos que
acompanhavam este último. A força, assim constituída, marchou diretamente
contra o forte que foi capturado após valorosa resistência dos portugueses,
alguns dos quais perderam a vida.
Página 80 de 349

Grande parte da guarnição, na qual se encontravam militares de valor, caiu


prisioneira dos holandeses. Foram capturados, também, três canhões e boa
quantidade de munição. Depois disso, construíram os nossos um pequeno forte
junto ao rio Ceará, ao qual denominaram de Ceará, cuja guarnição era
composta de apenas 30 ou 40 homens e tendo como finalidade precípua antes
cultivar as boas relações com os brasileiros, muito numerosos naquelas
paragens, e, portanto, capazes de nos prestar excelentes serviços em tempo
de guerra, - que assegurar a defesa da região. Com esse propósito em vista, o
Grande Conselho sempre recomendou aos oficiais do forte que incentivassem
a amizade dos silvícolas, enviando-lhes, freqüentemente, pequenos presentes.

Contudo essa política não deu os resultados que dela se esperavam, pois, em
1644, vários dos nossos foram massacrados pelos nativos em Camocim, a
cerca de 20 ou 30 milhas 157 de Ceará, como mais adiante veremos.

Em 1640, 158 a população aborígine de Ceará aumentou consideravelmente.


Foi, de fato, tão grande esse aumento que as aldeias não podiam suportá-lo
sem graves inconvenientes. Por outro lado, o Rio Grande se achava quase
deserto e, portanto, incapaz de fazer face a um eventual inimigo.

Assim, André Vlijfs propôs ao Grande Conselho fundar uma aldeia no Rio
Grande para lá se instalarem os habitantes de Ceará que o desejassem fazer,
tornando-se ele o chefe da povoação. Inteirados, o Conde Maurício e o Grande
Conselho, das aspirações de alguns habitantes de Ceará, desejosos de se
estabelecerem no Rio Grande, sua terra natal, e, tendo em vista os benefícios
que para a Companhia poderiam resultar da migração desses brasileiros para
ponto tão próximo, atenderam a sugestão de Vlijfs. Concederam-lhe ainda
autorização para que trouxesse para a nova aldeia - da qual seria ele o chefe,
ou capitão - o número de brasileiros que julgasse conveniente. Tomadas essas
providências, escolheram-se, com a aprovação dos diretores da Companhia,
certos chefes ou cabeças das mais antigas famílias de cada distrito, chamados
Regedores pelos portugueses, bem como alguns juizes. Assim é que de
Goiana veio Domingos Fernandes Carapeba, da Paraíba Pedro Potí, e do Rio
Grande Antônio Paraupaba159. Entretanto, a despeito de tudo isso, os

157
O tradutor inglês escreveu: "cerca de 30 léguas", (cf. p. 44, 2a coluna,1a § da edição
holandesa e p. 30, 2a coluna, 2° § da tradução inglesa)
158
O tradutor inglês escreveu 1641 (cf. p. 44, 2a coluna, 1° § da ed. holandesa e p. 30, 2a
coluna, 3° § da trad. inglesa).
159
A bibliografia sobre estes índios é curiosa, embora pouco extensa. Pedro Potí foi à Holanda
em 1625, na esquadra de Hendrikson e lá ficou até 1630. Voltou em 1631, provavelmente com
Lonck; em 1645, foi eleito regedor dos índios da Paraíba. Na segunda batalha de Guararapes,
a 19 de fevereiro de 1649, foi preso. Morreu em 1652, a bordo do navio que o levava para
Portugal.
Antônio Paraupaba foi, em 1633, intermediário entre Janduí e Arciszewski e Stachouver. Em
1645, foi igualmente eleito regedor dos índios do Rio-Grande. A 6 de agosto de 1654, foi
enviado à Holanda, morrendo em 1656 ou 1657.
Sobre esses dois índios, consultem-se os seguintes trabalhos: Dr. Guilherme Studart,
Dicionário Bibliográfico do Ceará, 1913; Fortaleza, vol. II, pp. 16 e 17 - Pedro Souto Maior, Dois
índios notáveis e parentes próximos. Revista Trimensal do Inst. do Ceará tomo XXVI, 1912, p.
61-71. - Pedro Souto Maior, A missão de Antônio Paraupaba ante o Governo Holandês, Rev.
Trimensal do Inst. do Ceará, tomo XXVI, 1912, p. 72-82.
Página 81 de 349

brasileiros de Ceará se rebelaram contra os holandeses, em 1644, atacaram de


surpresa a guarnição do forte, a qual foi inteiramente trucidada em companhia
de seu comandante, Gideon Morris160, arrasaram as fortificações e

Antônio Paraupaba, quando esteve na Holanda, apresentou ao Governo Holandês dois


Memoriais e uma Súplica:
1) Twee Verscheyden I Bemonstrantien I ofte Vertogen, / Overgegeven / Aen hare Ho: Mo: de
Heeren Staten I Generael der Vereenighde Neâerlanden. I Door Anthonio Paraupaba, / In zyn
leven geweest Regidoor vande Brazilianen I inde-Capitania van Rio Grande: Ende met het
laetste onge- / luekigh verlies van Brazyl, vande gantsche Braziliansche I Natie afgefonden; aen
hare Ho: Mo: om derselver Natie I erbermelijcken en jammerlijcken toestant to vertonen, / ende
met eenen hulpe ende bystant te versoecken. /Vs [i]Graven-Hage, I Gedruckt by Etenricus Hon-
dius, woonende inde Hosftraet, inde nieuwe Kunst en-Boeck-Druckery. 1657. - Tradução: "Dois
protestos ou Memoriais entregues aos Altos e Poderosos Estados Gerais por Antônio
Paraupaba, Regedor dos Brasileiros na Capitania do Rio Grande, junto com a última e infeliz
perda do Brasil; enviado por toda a nação brasileira aos Altos Poderes para mostrar o estado
miserável e digno de piedade daquela nação e requerer, ao mesmo tempo, ajuda e
assistência." 20 pp.
Seeckere I Remonstrantie / Aen hare hoogh Moghende de Heeren Staten Gewrael der
Vereenighde I Nederlanãen I overgegeven I Door / de gesainentlijeke aen-wesende
gedeputeerdens / uyt Brazyl I Genderende tot behoudenisze van die Glo j rieiise Konincklijcke
Conquesten. / Ams. MDCLVII. - Tradução: "Súplica aos Altos Poderes os Estados Gerais das
Províncias Unidas; entregue por todos os deputados brasileiros presentes, considerando a
guarda dessa gloriosa e real conquista." 8 pp.
Sobre a viagem de Pedro Potí à Holanda, consulte-se a Declaration de Gaspar Paraoupaba, de
Siara, âgé de 50 ans, d'Andreus Francisco, de Siara, âge de 32 ans, de Pieter Poty, de la baie
de Traiçaon, á"Antony Guirawassauay, d'Antony Francisco et Lauys Caspar, tons de Ia baie
Traiçaon, un desquels de La nation des Tiguars de La cote septentrionale du Brésil. Notée par
le sieur Kilian de Resenlaer le 20' mars de Van 1628, à Amsterdam, p. 9. Publicada nos Anais
da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1907 e também na Revista Trimensal do Instituto
do Ceará, 1912, tomo XXVI, Fortaleza, p. 9-14.
Sobre cartas trocadas entre alguns índios, como A. F. Camarão, Diogo da Costa, Diogo
Pinheiro Camarão e a resposta de Pedro Potí, consultem-se: As cartas tupis dos Camarões, de
Teodoro Sampaio, vol. XII, n. 68, p. 287, onde são traduzidas para o português duas cartas; a
primeira, de Diogo Pinheiro Camarão e a segunda de Diogo da Costa, ambas dirigidas a Pedro
Potí. Foram escritas em 1645 e já haviam sido traduzidas para o holandês pelo padre
reformado Johannes Edwards. Souto Maior, no referido trabalho sobre "Dois índios notáveis e
parentes próximos", traduziu do holandês uma carta de Pedro Potí, dirigida ao Capitão Antônio
Filipe Camarão e outra de Filipe Camarão aos índios aliados dos holandeses.
160
[160] Gideon Morritz ou Morris de Jonge como escreveu Barlaeus (VII, 249 e 369), e como
consta nas cartas e relatórios assinados, foi um aventureiro flamengo, prisioneiro no
Amazonas, detido oito anos no Maranhão. O papel que representou na história da colonização
do Ceará e a influência que exerceu, junto aos Diretores da Companhia das índias Ocidentais,
para a conquista do Maranhão, tornaram-no a figura central do movimento expansionista
holandês no norte do Brasil. A importância da conquista do Maranhão que asseguraria pelo
lado norte a posse das capitanias já conquistadas, pleiteada e defendida por Gideon Morris de
Jonge, demonstra sua visão e perspicácia política e econômica. A 22 de outubro de 1637
apresentava, em Middelburg, o primeiro relatório sobre o Maranhão e sua conquista. O
segundo foi apresentado em 3 de fevereiro de 1640, com a colaboração de Johan Maxwell,
que, prisioneiro no Maranhão, atendera a um mineiro espanhol que adoecera após a viagem de
Quito ao Amazonas, gozando, por isso, de grande reputação e, assim, podendo obter
excelentes informes sobre as minas do Peru. Esse segundo relatório é o mais longo, pois nele
referem-se às peripécias da viagem de Quito ao Amazonas, e a possibilidade de se
alcançarem as ricas minas de Potosí. A 23 de novembro de 1640, partia do Recife para o
Ceará, como "commandeur" de índios, enquanto Johan Maxwell, a 21 de janeiro de 1642, era
indicado para "commandeur" de índios no Maranhão. Em abril de 1642, escrevia Gideon Morris
de Jonge explicando as razões por que a conquista do Maranhão não correspondera à
expectativa dele. Em carta de 12 de junho de 1643, o Supremo Conselho expunha aos
diretores da Companhia a situação do Maranhão, declarando que confiara a Gideon Morris o
posto de subdiretor, com o encargo do trato com os índios. Realmente, em 20 de julho de
Página 82 de 349

assassinaram os operários das salinas próximas do rio Upanema que foram


igualmente depredadas, pelos bárbaros. O comandante de um navio, seu
capitão, tenente e alguns soldados, que, ignorando a traição, desembarcaram
em busca de provisões, foram igualmente assassinados, salvando-se apenas
alguns marinheiros que tiveram a boa sorte de conseguir se homiziar nas
matas.

Alguns atribuem a causa dessa revolta aos portugueses e brasileiros do


Maranhão, instalados na região limítrofe, entre ambas as Capitanias.
Entretanto, se buscarmos a verdadeira explicação desse desastre, encontra-la-
emos nos desmandos dos nossos oficiais que, por seus abusos e
arbitrariedades, forçaram os moradores da região a reagir contra as injúrias
recebidas.

A excelência do Brasil

O que acima ficou dito sobre as Capitanias do Brasil Holandês, parece


suficiente. A seguir passaremos a relatar os memoráveis acontecimentos que
se desenrolaram entre portugueses e holandeses, durante nossa estada
naquele país. Antes, porém, diremos das excelentes condições que desfruta a
região, bem como de sua situação religiosa.

O Brasil é uma região magnificamente prendada pela natureza, para a


produção de tudo quanto se encontra nas índias Ocidentais, em climas iguais
ou afins, à exceção de ouro e prata, dos quais até hoje se não encontraram
minas importantes161. Entretanto, aparte esses metais preciosos, o açúcar
apresenta-se, aí, como a principal produção do país. Entre todos os portos e
regiões das índias Ocidentais nem um só existe que se possa comparar ao
Brasil, quer na produção de açúcar, quer nas facilidades que oferece para o
seu transporte. Todo o litoral brasileiro está literalmente tarjado de pequenos
cursos d'água que se vêm lançar ao mar após terem banhado extensos vales.
Por isso os engenhos de cana erigidos nas regiões ribeirinhas desfrutam
grande economia tanto no transporte como na mão-de-obra. Além de
moverem, esses rios, os engenhos instalados em suas margens, servem eles
para o transporte do açúcar e constituem via fácil para o abastecimento das
usinas. Condições assim tão vantajosas, não se encontram em nenhum outro
país das índias Ocidentais, e, por isso, neles não se poderia cuidar com lucro
da cultura da cana. Também a exportação do açúcar do Brasil para a Europa e
para a África faz-se com mais facilidade que de qualquer outro ponto das índias
Ocidentais, graças à posição geográfica do Brasil (situado na parte mais
ocidental da América). E tais vantagens, no que respeita ao transporte de

1643, Bas deixava o Maranhão entregue a Wiltschut e Gideon Morris. Foi ao Ceará e, em fins
de 1643, lá se encontrava, sendo, pouco depois, vítima de uma invasão de bárbaros que
igualmente arrasaram as obras feitas nas salinas vizinhas de Upanema, por ele descobertas.
Foi, realmente, uma curiosa figura de aventureiro, e, de certo modo, pode-se afirmar que foi
muito perspicaz na seleção geográfica dos terrenos onde exercer domínio político; pois era
mais inteligente, parece-nos, a expansão para o Norte do que para o Sul, tentada por Brouwer.
Sobre suas cartas e relatórios, ver XXXII, 237-319; I, 127-8, p. 430, nota IV de Rodolfo Garcia e
LXXVII, 120, 121, 122.
161
Consulte-se a nota 52.
Página 83 de 349

mercadoria tão necessária e útil a todas as nações do mundo, como é o


açúcar, não as pode ultrapassar nem a natureza nem o engenho humano.

Tomando em linha de conta essas condições e ainda sua vasta extensão


territorial, é fora de dúvida que, se bem povoado, o Brasil poderia dominar tanto
os mares do norte como os da Etiópia e irradiar seu comércio para todos os
países do globo. Poderia, ainda, estender seu domínio para o Poente como
para o Levante, ou pelo menos aí estabelecer entrepostos que facilitassem seu
tráfico marítimo, pois, tanto os navios que vão para as índias Orientais como os
que de lá regressam são obrigados a passar à altura da costa brasileira. Nada
mais cômodo, portanto, para a navegação que ter aí instalados postos de
abastecimento, já que freqüentemente são os navios forçados a fazer escala
em seus portos, em busca- de provisões. Pode-se ir do Brasil às ilhas Caraíbas
em 14 dias, e, no mesmo tempo, ou pouco mais, à Serra Leoa, na costa da
Guiné. É impossível aventurar-se além do Mar do Sul, - onde grande parte do
globo terrestre ainda está por ser descoberta, - sem levar do Brasil provisões
frescas e lenha, a menos que se queiram enfrentar os riscos da longa
travessia, tão vivamente descritos nos diários de bordo de Olivier Van Noord,
Spilbergen, Le Maire e Jacques L'Heremite162.

162
Olivier van Noord foi o primeiro navegador holandês que fez a volta ao mundo. Nasceu em
Utrecht. Partiu de Roterdã em 13 de setembro de 1591. Tentou apoderar-se do Rio, mas não
conseguindo o seu intento, continuou viagem pelo estreito de Magalhães, costeou o Pacífico,
seguiu para as Filipinas, as Molucas, voltando pelo Cabo da Boa Esperança, e chegou a
Roterdã a 26 de agosto de 1601. A relação foi publicada em holandês sob o título: Beschrijving
van de Schipvaerd by Hollanders Ghedaen onder Olivier van Noord, door de straet van
Magallam.es en3e\ voorts de gantsche Kloot des aertbodems om. (Amst., 1616). Com 25
estampas. Essa viagem foi publicada, depois, na coleção de viagens holandesas
"NederlandscheRaizen", 2 tomos, MDCCLXXXIV, sob o título: Togt rondom den Aardkloot, âoor
Olivier van Noord, Geduurende Welken zy verscheiden woeste en oubewoonde eilanden
ountdekken, en, noa eene afweezigheid van drie jaaren, den 26 Augusti 1601, te Rotterdam
iveder behouden aanlanden. Te Amsterdam, by Petrus Conradi, Te Halingen. By V. van der
Plaats; ocupando da p. 147 à 253. A mesma viagem foi editada, também, em francês:
Desoription du penible Voyage fait autoivr de Vunivers ou globe terrestre, par Sr. Olivier Du
Nort, d'Utrecht, general de quatre na-vires... Amsterdam, chez la Veuve de Cornille Nicolas,
1610, 22 pp. e uma folha não numerada.
Spilbergen empreendeu a primeira viagem em 1601, 1602, 1603 e 1604; o relato da expedição
foi publicado em holandês, editado na citada coleção "Nederlandsche Raizen", tomo III,
MDCCLXXXIV, pp. 150-224, sob o título: Eeerste Togt van Joris Spübergen, na de Oostindiên,
in de Jaaren 1601, 1603 en 1604, pp. 150-224.
Mais tarde realizou Spilbergen outra viagem com Jacob le Maire e W. Shouten, entre os anos
de 1614 a 1618; foi também publicada em holandês sob o título: Oost ende West-Indische
Spiegel der 2 leste navigatien, ghedaen... 16H-18, daer in vertoont wort, in ivat gestalt Joris van
Spilbergen door de Magallanes de werelt rondom geseylt heeft.... Met de Australische
navigatien, van Jacob Le Maire. Leyden, N. van Geelkereken, 1619. Foi traduzida para o latim:
Speculum Orientalis Occiden-talisque Indiae navigationum; quarum una Georgij à Spilbergen
classis cum potes-tate praefecti, altera Jacobi Le Maire auspiciis imperioque directa, annis
1614-18; Lugduni Batavorum, N. à Geelkereken, 1619. Em 1621, foi traduzida para o francês:
Miroir Oost en West Indicai, auquel sont deseriptes les deux dernieres navigations, faictes
1616-18... p. J. Spilbergen. Amst. J. Jansz, 1621. Foi, ainda, publicada na "Nederlandsche
Raizen", tomo 8°, MDCCLXXXV, p. 1-51- O estreito descoberto entre a Terra do Fogo e uma
ilha foi chamado Estreito Le Maire.

Jacques L'Heremite ou Jakob Heremijt foi outro célebre viajante holandês. Começou como
companheiro de viagem de Steven van der Hagen, na segunda expedição por este realizada às
Índias Orientais em 1603 (LVI, Tomo IV, p. 163, 164, 165) e mais tarde em 1623-1624
Página 84 de 349

Por outro lado, a experiência nos ensinou, desde a viagem de Brouwer ao


Chile163, quão fácil é a passagem entre o Brasil e o Mar do Sul, pois esse
senhor não perdeu um só dos quatro navios que levou e muito poucos de seus
homens pereceram na travessia.

A salubridade do clima brasileiro

Dispõe ainda o Brasil de clima salubérrimo. Posto que situado entre a linha
equinocial e o Trópico de Capricórnio, sujeito, portanto, à canícula abrasadora
dessas latitudes, o calor é aí consideravelmente amenizado pelos ventos de
Leste, que sopram do mar e não encontram, em seu caminho, montanhas ou
ilhas que os barrem. Por isso, talvez, raramente se encontram, no Brasil, as
moléstias que freqüentemente assolam Angola, Guiné, São Tome e vários
outros lugares aos quais as brisas levantinas não podem proporcionar idênticas
vantagens.

As epidemias são desconhecidas no Brasil - que nisso se avantaja a qualquer


outro país. Entretanto, não está isento de febres pútridas164, causadas pelo
calor e pela umidade bem como pela excessiva ingestão de frutas cruas.

empreendeu outra viagem ao redor do mundo. Na coleção "Nederlandsche Raizen", tomo 8°,
MDCCLXXXV, p. 235-176, encontra-se a Togt rondom den Aardkloot, door Jakob Heremiet,
Gedaan in de jaare 1623 tot 1626, pp. 135-176.
Sobre essas viagens em geral, a melhor autoridade é P. A. Tiele. Para os dois melhores
trabalhos deste autor, vide: XC, XCI.
163
Brouwer publicou: Journael eende historis verheal van de reyce gedaen by Oosten de Straet
Le Maire, naer de custen van Chili onder het beleyt van den heer Generael Hendrick Brouwer in
de jare 1643 voor gevallen etc. Amst., Broer Jansz, 1646, 4°.

Essa obra foi reimpressa em várias coleções, como as de Hulsius, Churchill, 1746, a
"Nederlandsche Raizen", etc. Tiele (XCI, 226-8) trata dessas várias reimpressões. A obra de
Brouwer foi traduzida para o alemão em 1649 (LVII, 50). A edição de Osborne e Lintot
(consulte-se a bibliografia de Nieuhof, onde essa coleção é indicada) publica, no 1° vol., a
Viagem de Brouwer e a relação de Elias Herckmans. Thevenot, no II tomo, dá, também, uma
tradução dessa viagem.
Sobre sua expedição existe um folheto (n. 185 de Asher), que noticia a expedição do General
aos Mares do Sul. Intitula-se: Tydingh uyt Brasil aende Heeren Bewinthebberen van de West-
Indische Compagnie, van wegen den tocht by den Generael Brouwer nae de Zuyd-Zee
gedaen... Amst., by François Lieshout. 1644. A excelente edição de Barlaeus de 1923 publica
dois mapas dos mais importantes para o estudo das expedições de H. Brouwer. São os
seguintes: 1°) uma reprodução do mapa em mss., representando o mar que rodeia a Ilha dos
Estados, navegado pela primeira vez por Brouwer, em 1643; esse mapa encontra-se
depositado no Arquivo Geral do Reino, em Haia, e nunca fora reproduzido; 2°) uma reprodução
do terreno de operações de Brouwer no Chile, conforme um mapa em mss. por E. Herckmans.
O original encontra-se na mesma coleção que o anterior (Cf. VIII, p. 5 dos Aditamentos e
Explicações de S. P. L'Honoré Naber).

A expedição de Hendrick Brouwer, antigo governador das índias- Orientais, que trouxera da
Holanda a incumbência de conquistar o Chile, partiu do Recife a 15 de janeiro de 1643,
levando a bordo Elias Herckmans, a quem seria entregue o governo da nova conquista.
Hendrick Brouwer faleceu quando, depois de fracassado na marcha por terra, prosseguia, por
mar, a conquista da costa. (Cf. Alfredo de Carvalho, XX, artigo Um poeta aventureiro, Elias
Herckmans, p. 97-108, especialmente, p. 104-5).
Sobre a biografia de H. Brouwer, v. Moniteur des Indes, 3 p. 294.
164
Sobre moléstias, febres, etc, no Brasil Néerlandes, cf. Piso, (LXX, 15-38, cap. I, do livro II).
Página 85 de 349

Os que demandam a costa brasileira precisam prestar atenção especial à


estação do ano, que regula a direção dos ventos e das correntes marítimas
dessas paragens. Além disso é necessário muito cuidado para não ultrapassar
o porto a que se destinam, pois, se o fizerem, terão de esperar pela reversão
dos ventos e das correntes. No litoral brasileiro observa-se que as correntes
acompanham a costa na direção norte desde o mês de março até o de junho.
Nessa época não se pode navegar ao longo da costa do Brasil do Norte para o
Sul. Entretanto, passados esses meses de março a junho, deste mês até o de
agosto, finda a corrente nordeste. A partir do dia 1° de setembro ou pelo
começo desse mês até o fim de novembro, a corrente se dirige para o Sul com
a mesma velocidade; por essa razão, nessa época tem-se a mesma dificuldade
de ir do Sul para o Norte quanto, naquela outra, de ir do Norte para o Sul. Lá,
os ventos mudam de acordo com as correntes marinhas. Em princípios de
março sopram nas direções sul e sudeste. E, como só de junho a setembro as
correntes mudam de direção, os ventos continuam a soprar de leste e até
aquele mês de setembro quando passam a vir de leste-sudeste. É de se notar
que dois são os ventos dominantes nessas costas, pelos quais os mareantes
devem orientar suas rotas: o sudeste e o noroeste165.

Situação religiosa do Brasil

No tempo em que lá estivemos era a seguinte a situação eclesiástica do Brasil


Holandês. Antes da insurreição dos portugueses, havia, ao sul do Recife, cinco
igrejas protestantes, a saber: no Rio São Francisco, em Porto Calvo, em

165
Na edição holandesa está escrito (p. 46, 2a coluna, 1° §): Want de Stroomen gaen daer
langs de knsten, van Lente tot Zomermaent, geheel Noortwaerts.Dan kan men de kust van
Brasil, varít Noorde na't Zuide, niet bezeilen. Maerzoo dra de maenden van Lente-maent tot aen
Ooghstmaent voorby zijn, dan is de Noorder-stroom van Zomer-tot Ooghstmaent heel gedaen.
Daerna gaet de stroom,met den eersten of aenvang van Herstmaent tot den laesten van
Slachtmaent evenzoo snel na de Zuid; dies men dan daer even zoo quaet van't Zuide na't
Noorde, aisvan het Noorde na't Zuide kan komen. De winãen voegen zich altijt na den
stroom,en waeien, op âfaenkomste van Maert, Zuid-zuid-oost en Zuid-oost. En gelijk
destroomen van Zomer-tot Herfstmaent (sic), zoo vertrekken de winden ãan na het Ooste, en
waein tot in Herfstmaent (sic) Oost-zuid-oost- Te weten, twee winden,de Zuid-ooste en Noord-
ooste windt, heerschen by beurte langs deze gantsche kust,en maken en stellen het
onderscheit in de regei van de schipvaert. Enquanto que na edição inglesa o tradutor escreveu
(p. 32, 1a coluna 1° §): For it is observable, that on the coast of Brasil, the stream runs from
February till past July, constantly Northerly, during which time there is no passing from the North
to the South; but after those Months are past the stream turns, and throuw the beginning of
September to the latter end of November, runs as violently to the South as it did to the North
before, and consequently there is no sailling from the North to the South, no more than before
from the South to the North. The Winds here turn with the Stream; and at the beginning of
March blow South, South-East, and South-East. And like the Stream changes its Current till
September, so the Winds continue in the East, and blow till that time out of the East South-East.
For there are but two Winds that reign along this Coast, viz. the South-East and North-East
Winds;according to which Ships must regulate their Course here.
Como se pode verificar, o tradutor inglês, além de não ser fiel, traduziu erradamente os
respectivos meses em holandês.
Onde escrevemos junho grifado estava, no original holandês, agosto, por evidente equívoco,
parece-nos de Nieuhof; de vez que logo a seguir ele diz que nos meses de junho até agosto
finda a corrente; logo, a corrente nordeste só acompanha a costa de março a junho, exclusive.
Escrevendo junho torna-se compreensível a variação das correntes.
Página 86 de 349

Serinhaém, no Cabo Santo Agostinho e no cabo Santo Antônio, conquanto


raramente dispusessem todas elas de ministros, pois sempre havia um que
deveria regressar à Holanda, por já haver decorrido o tempo pelo qual deveria
servir. Na ilha de Itamaracá e no forte de Orange servia, por essa época, o
ministro Johannes Offringo [Johannes Oosterdagh], que anteriormente vivera na
cidade de Schkoppe. Esse mesmo ministro pregava também na igreja de
Igarassu, a cerca de 2 horas166, posteriormente abandonada pelos batavos e
ocupada pelos portugueses. No Rio Grande, pregava o ministro Johannes
Theodorus Polhemius [1598 – 09/09/1676]. Na Paraíba, havia antigamente dois
ministros, enquanto a cidade de Frederica esteve sob a jurisdição holandesa,
mas, depois da revolta dos lusos, o lugar foi abandonado pelo povo e Henrikus
Harmannius passou a ser o único ministro da região. No Recife, na Cidade
Maurícia e nos fortes circunvizinhos, abrangendo quatrocentos protestantes
holandeses, franceses e ingleses, havia três ministros que pregavam em língua
holandesa: Nikolaus Vogelius, Petrus Ongena e Petrus Gribius. Além destes
havia outro, de nome Joducus a Stetten que fora outrora ministro no Cabo
Santo Agostinho e que então servia tanto a bordo de nossa frota como nas
expedições terrestres. Após a partida de Joachim Soler, ficou a igreja francesa
sem ministro e, assim, seus fiéis tinham que se contentar com a leitura de
trechos bíblicos e orações, aos domingos, pela manhã. O ministro inglês era o
senhor Samuel Batchelaer que, em 1646, também regressava à Inglaterra.
Todavia, por essa época já o Brasil Holandês dispunha de sete ministros
nossos compatriotas167.
166
Na edição inglesa não se faz referência às duas horas de distância.(Cf. edição holandesa, p.
46, 2a coluna, últ. § e ed. inglesa, p. 32, 1a coluna, 2° §).
167
Sobre os mencionados ministros, o documento mais importante é o encontrado e traduzido
por Souto Maior (LXXXVII). Nele encontramos algumas referências, que coligimos. D.
Johannes Offringo começou o serviço religioso em Goiana e em 1641 trocou com o predicante
de Itamaracá o lugar de ministro da Igreja de Goiana. Em 1644 continuava em Itamaracá D.
Theodoro Polhemhis. Já servia por volta de 1636, sendo, a princípio, na igreja do Cabo de
Santo Agostinho. Foi indicado na reunião da primeira classe, realizada a 16 de dezembro de
1636. Em sessão de Igreja de 3 de janeiro de 1638 foi removido para Itamaracá, no lugar de
Joducus a Stetten e, mais tarde, em 1641, trocou de lugar com Offringo, passando para
Goiana.
As atas da Igreja não falam em Polhemius a serviço no Rio Grande do Norte. Nelas nada
encontramos sobre Henrikus Harmanius. Nikolaus Volegius era, em 1640, predicante de Índios;
em 17 de outubro de 1641 pregava na igreja de Porto Calvo e, finalmente, em 1644, era eleito
predicante efetivo no Recife. Petrus Onzena, em 18 de julho de 1644, servia na Igreja de S.
Antônio do Cabo e era eleito, nessa mesma reunião, escriba da Diretoria da Assembléia
Sindical. Petrus Gribius não aparece nas atas. Sobre Joducus a Stetten, além das referências
feitas nas atas, muitas outras se encontram, que podem fornecer-nos dados sobre sua singular
personalidade. Alfredo de Carvalho, em dois de seus interessantes trabalhos (XX e XXIII),
resume as aventuras em que Stetten se envolveu Era não só predicante como explorador de
minas. Veio para o Brasil nos primeiros tempos da invasão, como reverendo calvinista. Servia
na Igreja de Itamaracá e não na da Paraíba, como afirma Alfredo de Carvalho (LXXXVII, 710),
tendo sido, na sessão de 16 de dezembro de 1636, eleito escriba. Em 1637 É não em 1639,
como afirmou, também, Alfredo de Carvalho, foi exonerado do serviço religioso e convidado a
se retirar dentro de cinco ou seis meses do país, tendo, em janeiro de 1638, deixado o cargo
de Itamaracá (LXXXVII, 718 e 724). Em 1638, na sessão de 29 de outubro de 1638,
comparecia à reunião e desculpava-se do seu procedimento, pleiteando sua readmissão. A 25
de março de 1639, resolvia a Igreja reformada readmiti-lo, sendo, em 20 de abril de 1640,
indicado para a Igreja do Cabo de S. Agostinho. A última referência que encontramos é a da
reunião de 21 de novembro de 1640, a que compareceu (LXXXVII, 752). Cf. nota 271. Por essa
ocasião é que deve ter iniciado a sua atividade como explorador de minas. Alfredo de Carvalho
afirma, baseado em documentos, que em 1645, apresentou Stetten um relatório dos resultados
Página 87 de 349

O nosso culto religioso, tanto no que respeita à doutrina como à prática, era
estritamente regulado pelas prescrições do Sínodo Nacional de Dordrecht,
dispensando-se especial atenção à instrução das crianças, às quais todos os
domingos à tarde se explicava o catecismo tanto no Recife como na Cidade
Maurícia. Quatro vezes ao ano administrava-se o Santíssimo Sacramento aos
que aspirassem recebê-lo, devendo, para tanto, confessarem-se perante o
Conselho da Igreja ou aos Ministros os que inscreviam seus nomes em um
livro. Procediam-se do estrangeiro, registravam seus nomes na Congregação.
A disciplina da Igreja era escrupulosamente observada em todos os seus
pormenores.

Conselho Eclesiástico

O Conselho Eclesiástico compunha-se de seis zeladores, além do ministro.


Reunia-se regularmente uma vez por semana, e, se tivesse que tomar alguma
decisão importante, como por exemplo, escolher um novo ministro, convocava
os diáconos, também em número de seis. Dentre estes, destacavam-se
mensalmente dois que, além de suas obrigações ordinárias, deveriam visitar os
doentes e feridos, auxiliando-os naquilo de que tivessem necessidade.
Cuidavam igualmente dos órfãos aos quais ensinavam as primeiras letras. As
outras igrejas conduziam-se de maneira idêntica: apenas o número de

de suas pesquisas. Nesse relatório, pleiteava sua nomeação para superintendente geral de
minas, como também, o que é curioso, obras de filósofos que escreveram sobre minas, desde
Teofrates, Salomão e Avicebromis (XX, 118-121).
Nieuhof afirma que Stetten servia, também, nas expedições terrestres. É possível que
conciliasse os dois serviços; daí o não falar Nieuhof em suas atividades de aventureiro. Nas
atas se escreve J. a Stetten e Nieuhof Astetten (p. 47, 3° §).
D. Joachim Soler era, em 31 de março de 1637, indicado para elaborar um pequeno e
resumido catecismo na língua espanhola, com algumas orações, para servir na catequese dos
índios. Foi, dos ministros holandeses, o que melhor se distinguiu nesse trabalho, pois várias
são as referências que se encontram a respeito. Falava português, tendo, mesmo, pregado na
nossa língua, a fim de converter os portugueses. O catecismo de que fora incumbido foi
enviado à Holanda, mas não voltou impresso, tendo Soler novamente composto, ajudado,
agora, por Doorenslaer, um "breve, sólido e claro compêndio da religião cristã". Em 1644,
deixava o Brasil. Joachinus Soler se encontra em Nieuhof e nas Atas da Religião Cristã
Reformada; Calado falou-nos (XVII, p. 128) de um "predicante francês Vicête Soler, valenciano
de nação, o qual havendo sido frade augustinho, tinha fugido da Religião e passando à França
se fez, ali, Calvinista e se casou e se fez predicante da seita de Calvino e, com este título,
assistia em Pernambuco"; Nieuhof afirma que quando Soler abandonou o Brasil a igreja
francesa ficou sem ministro; donde se pode supor que ele fosse realmente francês. Calado,
Nieuhof e as atas mostram que assistia no Recife. Terá Calado se equivocado ao escrever
Vicête, tratando-se do mesmo Soler? Se assim for, é preciso não esquecer que Soler,
predicante, Vicente ou Joaquim, escreveu o seguinte trabalho: Cort ende sonderlingh I Verhael
/ van eenen Brief van Monsieur Soler, I Bedienger des H. Euangelij inde Gherofor- I meerde
Kercke van Brasilien. / Inde vvelcke hij aen eenighe syne vrienden, I daer hy aen schrijft,
verhaelt verschey-den singula / riteyten van 't Landt. / Uyt de Francoysehe in onse
Nederlantsehe tale overgeset. I Tot Amsterdam / Voor Boudevvyn de Preys, Broeckvercooper
wo- / nende op de hoeck van de Vygenãam inde Faem. Anno 1639".
Quanto a Samuel Batchelaer ou Samuel Batiler, como se grafa nas atas, foi, em 16 de
dezembro de 1636, examinado e "admitido por voto unânime, como proponente na língua
inglesa, devendo servir no acampamento de Serinhaém". Foi desde essa sessão eleito
Assessor da Assembléia do Sínodo. Em 3 de março de 1637 servia no Forte, na Paraíba, e, em
17 de outubro de 1641, "a igreja do Recife expõe que ela havia nomeado para a igreja inglesa,
em Maurícia, D. Samuel Batiler, assaz conhecido na classe, como predicante pio e devoto"
(LXXXVII, 771). Vide nota 50.
Página 88 de 349

diáconos e zeladores era menor em proporção ao número de suas respectivas


congregações. Isso quanto à situação religiosa do Brasil Holandês.

Abelhas

Além dos seres que já descrevemos, há, no Brasil, diversas qualidades de


abelhas, chamadas Eiruca que se instalam nas árvores das mais
surpreendentes maneiras. Conquanto um pouco menores, não diferem muito
das nossas, mas, costumam enxamear principalmente entre as árvores. Os
brasileiros classificam-nas em doze espécies diferentes, a saber: Amanacaí-
Mirim, Amanacaí-neu, Aibu, Mombuca, Pixuna, Uru -Abelhas, tuetra, Tubuna,
Tuiuba, Eirucu, Eichú, Cubiara e Curupireira168, sendo que os naturais não
apreciam esta última.

As abelhas denominadas Eirucu são, de todas, as maiores e produzem


excelente mel que, entretanto, não é muito usado. Constroem seus favos no
oco das árvores, de onde os silvícolas os extraem com canudinhos. As abelhas
conhecidas por Eichú e Copí são menores e de cor escura. Perfuram a casca
das árvores e, no interior, fabricam favos de cera inteiramente branca. Seu mel
é tido como dos melhores, mas não é encontrado em tão grande quantidade,
como os outros; além disso, as abelhas que o produzem picam furiosamente.
As Mombucas são também pequenas, de cor amarelada, fazem seus favos no
topo das árvores mais altas e produzem excelente mel, que é exportado em
quantidade para a Europa onde alcança muito pouco dinheiro. É ligeiramente
inferior, em qualidade, ao mel europeu, mas de boa consistência, transparente
e de aroma agradável. Passa por ser balsâmico, corrige as infecções intestinais
agudas, bem como as renais, estimulando ainda a secreção da urina. Serve
também para a fabricação de um hidromel fortíssimo que se conserva por
longo tempo. Com esse mel pode-se também preparar licor, sem levá-lo ao
fogo; apenas misturando-o com água de fonte e deixando-o ao relento.

Bálsamo

O Brasil produz, ainda, diversas qualidades de bálsamos, ao melhor dos quais


chamam os nativos Copaíba169, nome da árvore da qual é extraído. Trata-se de

168
Nieuhof escreveu Eiruka e Piso Eiruba. Esse trecho referente às abelhas é literalmente
copiado de Piso (LXX, 55-6). Nieuhof escreveu Amanakay-Miri, Amanakay-veu, Aibu,
Mumbuka, Pixuna, Urutuetra, Tubuna, Tuiuba, Eiruku, Eixu, Kubiara e Kurupireira (p\ 47, 2a
coluna 7° §). É preciso indicar que a numeração da obra está com grandes falhas, pois após o
número 47 vem o número 40 e daí segue até 50. A p. 47, que citamos, é a primeira que traz
esse número).
Em Soares (LXXXVI, 279) heru. Segundo Batista Caetano (III, 115) eichú é formado de ei -f
hub = busca mel, ou pai do mel, abelha mestra, uma espécie de abelha negra. Segundo ainda
o mesmo autor, [i]eir,[/i] substantivo, significa abelha e dele provém numerosos compostos,
com os quais se designam várias abelhas e diversas qualidades de mel. Segundo Teodoro
Sampaio (XXV, 124), exú é corr. de eichú ou eira-chú, abelha negra, que faz um ninho rugoso,
áspero; assim como eira é a abelha, a mãe do mel. Para Batista Caetano, Tubuna (III, 540).
Tubuna é uma espécie de abelha, negra, de tub- abelha mestra e ü- pretas. R. von Ihering
regista enchú ou inchú; a pronúncia caipira ichú e também Mombuca. (Dicionário dos Animais
do Brasil, S. Paulo, 1940, pp. 318 e 520).
169
Em Soares, copaíba. (LXXXVI, 227). Em Marcgrave (LXX, 130),copaiba.
Página 89 de 349

árvore nativa, de grande porte e casca cor de cinza, que se ramifica, no alto,
em numerosos galhos. Tem folhas de meio pé de comprido, colocadas umas
opostas às outras, no meio dos galhos; no mais assemelham-se a qualquer
outra. Na ponta dos galhos mais longos há um sem número de pequenos
brotos, repletos de folhas, dentre os quais surgem as flores e a seguir os frutos,
semelhantes a bagas, de loureiro. Estes, a princípio verdes, tornam-se negros
e doces à medida que amadurecem. Em seu interior há um caroço redondo e
duro, cujo âmago é farinhento, mas impróprio para consumo. Os frutos
amadurecem em junho e os brasileiros extraem-lhe o suco, desprezando a
polpa e o caroço. Os macacos apreciam-nos bastante.

O bálsamo oleoso e aromático de que esta árvore é tão rica flui todas as luas
cheias desde que se procedam, em sua casca, incisões suficientemente
profundas para atingir o lenho. Tal é a quantidade de bálsamo que, em três
horas, se podem colher cerca de doze mingelen170. Se não escorrer
imediatamente, obtura-se com cera a incisão e pode-se ter a certeza de que,
duas semanas após, o bálsamo correrá em abundância. Não se encontra esta
árvore em Pernambuco com a mesma profusão com que prolifera na ilha de
Maranhão, de onde o bálsamo é exportado para a Europa. Esse bálsamo é
quente no segundo grau e compõe-no uma substância oleaginosa espessa e
resinosa. É estomacal e muito bom para dores provenientes de resfriados,
casos em que é aplicado externamente, sobre a parte afetada. Algumas gotas,
ingeridas, fortificam os intestinos, estancam as hemorragias das mulheres bem
como as diarréias ou gonorréias dos homens. Para esses distúrbios pode ser o
bálsamo aplicado tanto na forma de clisteres no ânus como na de irrigações
por seringa com açúcar e suco de tanchagem no pênis171.

Novos diretores enviados ao Brasil

Isso no que respeita apenas o Brasil Holandês. Prosseguiremos, agora, a


relatar quanto se passou durante a nossa permanência no país.
Em 1640, os senhores Hendrik Hamel - um dos diretores da Companhia das
índias Ocidentais pela Câmara de Amsterdã - e Dirk Kodde van der Burgh,
ambos dotados de excelentes qualidades para dirigir a colônia e senhores de

Frei Vicente do Salvador (LXXXVIII, 30-31), copaiba. Em Gandavo (XXXVI, 99), copahiba;
Barlaeus (VII, 141). Em Cardim (XIX, 55), cupaigba; em Piso (LXX, 56), copaiba; Piso (LXXI,
pp. 10 e 118), copaliba ou copaiba. Léry (LII, 157) copay. Segundo Rodolfo Garcia, (XIX, p.
108, nota) foi este cronista quem primeiro a descreveu, dando-lhe o nome indígena, cujo étimo
é incerto. Rodolfo Garcia afirma que Soares escreveu copiuba e Marcgrave copiiba. Cláudio
Brandão (VII, p. 385, nota 183) escreveu, também, que Soares grafara copiúba. A edição que
possuímos de Soares não confirma tal asserção. Ele grafou copaíba. Quanto a Marcgrave,
consultamos cuidadosamente a edição de 1648 e lá encontramos copaiba. Trata-se,
evidentemente, de equívoco. Esse trecho é, como sempre, tirado de Piso (LXX, 56).
170
Mengel é medida de leite, valendo mais ou menos um litro. Na linguagem popular, mingel -
mingelen. (XLVIII).
171
Nieuhof escreveu (p. 40 bis, 2a coluna, 7° §): "emissão de sêmen" e o tradutor inglês:
emissão involuntária de sêmen", sendo, além disso, pouco fiel nesse trecho, pois omitiu o
processo de aplicação do remédio (p. 33, 2a coluna, 2° §). O mesmo trecho, que foi tão mal
traduzido para o inglês, encontra-se em Piso (LXX, 56) e dele se depreende tratar-se de
gonorréia e não de emissão de sêmen.
Quanto à Tanchagem, já Soares (LXXXVI, 185) a havia descrito. Trata-se de planta medicinal
da família das Plantagináceas. Vide nota 411.
Página 90 de 349

notável experiência comercial, foram enviados ao Brasil por solicitação do


Conselho dos XIX. Lá chegaram a 8 de agosto, quando seus antecessores os
conselheiros e diretores Mathias Van Keulen e Johan Gijsselingh resignaram
seus cargos em favor deles, transmitindo assim a direção suprema do Brasil
Holandês, sob o governo João Maurício, Conde de Nassau.

Brasil Holandês

Por essa época achavam-se sob a jurisdição dos Estados Gerais as seguintes
Capitanias: Pernambuco, Itamaracá (à qual pertence Goiana),
Paraíba, Rio Grande e Ceará, que constituem a parte setentrional do Brasil. A
parte sul, compreendendo as Capitanias de Baía, Ilhéus, Porto Seguro, Espírito
Santo, Rio de Janeiro e São Vicente, permanecia sob o domínio dos
portugueses, que povoavam o país até o Rio da Prata. Alguns meses mais
tarde, a ilha de Maranhão foi anexada ao Brasil Holandês, mas, não sendo
compensada a despesa que tínhamos para defendê-la dos portugueses,
dispôs-se a Companhia a abandoná-la, o que de fato fez em 1644, ou melhor,
para confessar a verdade, foi forçada a abandoná-la em virtude da aliança
entre os portugueses e os naturais do Grão-Pará172.

Os holandeses falharam em seu assalto à frota espanhola

Antes da chegada dos novos diretores, expediu-se uma frota à Baía para lá
desembarcar alguns homens com a missão de tudo destruir a ferro e fogo.
Executada a tarefa, regressaram ao Recife. A mesma esquadra, sob o
comando do Almirante Jol, aliás, Perna de Pau, e de Jan Cornelisz Lichthart, foi
enviada às índias Ocidentais, por ordem expressa do Conselho dos XIX, da
Holanda, a fim de aguardar os galeões espanhóis carregados de prata,
procedentes de Terra-Firme e Nova Espanha. Em dezembro de 1640,
regressou, entretanto, sem nada ter conseguido. Pelo contrário, a armada
perdeu quatro ou cinco navios nessa aventura. Mais ou menos pela mesma
época, despachou-se o Coronel Koin, com um contingente de infantaria, para a
Capitania do Rio Real, a fim de conter os portugueses, operando uma diversão
em seus próprios territórios. Não recebendo, porém, a tropa, com regularidade,
os suprimentos necessários em país inimigo, e, forçada a suportar enormes
fadigas, seus homens ficaram de tal sorte debilitados que se julgou
conveniente recolhê-los ao Rio Real, onde ficariam aquartelados para
descanso. O major Van den Brande sofreu ainda maior revés, pois, enviado à

172
A 25 de dezembro de 1641 assomava à barra a esquadra do Almirante Jol, composta de 18
navios, com 2.000 homens. A 31 de dezembro retirava-se a mesma, deixando um governador
com 500 homens e 4 navios. Um ano após a conquista, começaram as guerrilhas, contra os
dominadores. A 28 de fevereiro de 1644, embarcaram os holandeses. O auxílio que os do
Grão-Pará prestaram aos restauradores do Maranhão foi diminuto. A primeira ajuda foi
praticamente nula, pois antes de chegarem ao Maranhão os holandeses receberam socorro de
Pernambuco.
João Velho do Vale e Pedro Maciel, pouco depois, desertaram para o Pará, com o pouco
auxílio que haviam trazido. Mais tarde é que chegou o capitão Antônio de Deus, vindo do Pará,
com algumas arrobas de pólvora, murrão e bala em proporção. (LIII, pp. 308-319). Comparar
com a nota 24.
Página 91 de 349

frente de uma coluna incumbida de apresar uma ponta de gado, foi derrotado e
aprisionado173.

Nessa ocasião, toda a nossa esquadra estava à espreita da frota espanhola da


prata, em águas americanas. Não estávamos, portanto, em condições de
empreender expedição alguma por via marítima. Tinham, por isso, razão os
nossos diretores em recear que os lusos se valessem dessa oportunidade para
se vingarem das perdas que sofreram, destruindo nossos engenhos de cana.
Esse temor os levou a redobrar seus cuidados no sentido de preservar o Brasil
Holandês e seus habitantes das tentativas do inimigo. Considerando-se que
grande parte de nossa segurança dependia da boa vontade dos portugueses
que viviam entre nós, julgou-se de bom aviso convocar uma reunião dos mais
notáveis chefes portugueses das três Capitanias - Pernambuco, Itamaracá e
Paraíba - a realizar-se nos últimos dias de agosto, a fim de se combinarem
medidas que assegurassem a defesa de seus engenhos e canaviais, contra as
incursões do inimigo.

As providências mais eficazes adotadas pela assembléia consistiram em


guarnecer bem os fortes das fronteiras e disseminar magotes de soldados
pelas cercanias dos engenhos e dos canaviais, a fim de os guardar. Assim
realmente se fez e os oficiais levavam ordens terminantes de observar
atentamente os menores movimentos dos portugueses. Tais providências,
entretanto, não produziram o efeito visado, porque os portugueses que
moravam longe de nós, mas junto às fronteiras do inimigo não nos deram
aviso, em tempo, de sua aproximação. Tomados de ódio contra os batavos,
muitos deles facilitavam as freqüentes sortidas dos bandos que incendiavam
canaviais e saqueavam engenhos; às vezes serviam-lhes de guias e
compartilhavam da pilhagem. Tudo isso nos obrigava a uma vigilância
constante a fim de preservar nossos haveres contra os ataques de surpresa.
Não demorou muito para que tais incursões atingissem o nosso território
propriamente dito. Em novembro, o Marquês de Montai vão174 [nota 174]

173
A capitania do Rio Real é o Sergipe. Reforçadas as tropas que Barbalho deixara no Rio-
Real às ordens do Capitão Magalhães e de Camarão, com tropas dirigidas por João Lopez
Barbalho, pelo General D. Francisco de Moura e pelos do próprio mestre de campo D. João de
Sousa, desalojaram os holandeses acampados no Rio-Real, e talvez em 1° de agosto, data de
uma das vitórias conseguidas pelos nossos, é que van den Brande tenha sido feito prisioneiro.
(Cf. Porto Seguro, LXXIII, 212). Sobre Koia, seu elogio e suas ações, cf. Barlaeus (VII, 126,
187). Koin foi promovido ao posto de tenente-coronel no lugar de Arciszewski, depois da
disputa deste com Nassau e de sua ida para a Holanda (Barlaeus, VII, 125)
174
[174] A 21 de junho de 1640, chegava à Baía D. Jorge de Mascarenhas, primeiro Marquês
de Montalvão, como vice-rei e capitão-geral de mar e terra do Estado do Brasil e da
Restauração de Pernambuco, (cf. nota 46 de Rodolfo Garcia, LXXII, p. 39, tomo II e o Barão do
Rio Branco, (LXXV, 375). Promoveu negociações e tréguas com Maurício de Nassau. A 2 de
março escreveu a Maurício de Nassau uma carta, participando-lhe a aclamação de D. João IV.
A resposta a essa carta é datada de 12 do mesmo mês. Escreveu, ainda, uma segunda carta a
Maurício de Nassau, datada de 12 de março. As folhas de rosto das referidas cartas estão
descritas em J. Carlos Rodrigues, Bibliografia Brasiliense, n. 1681 e 1682) e no Catálogo da
Brasiliana de Maggs Bros; são dois folhetos, um de 8 pp. e outro de 7 pp. A segunda carta foi
publicada por Varnhagen (LXXII, 228-230) e por Barlaeus (VII, 246), o qual publicou a primeira
em resumo (VII, 208). Quanto à carta escrita a fim de comunicar a El-Rei D. João IV a
aclamação de seu nome no Brasil e levada por seu filho D. Fernando em companhia dos
padres Simão de Vasconcelos e Antônio Vieira, foi impressa juntamente com a comunicação a
Nassau, da aclamação de D. João IV. Publicou-a, também, Gregório de Almeida na
Página 92 de 349

mandou duas embarcações repletas de soldados para incendiarem os nossos


canaviais da planície, missão essa de que se desempenharam prontamente.
Entretanto, não se aventuraram mais além, nem tentaram atear fogo aos
nossos engenhos, receosos talvez de encontrar tropas alojadas pelas
redondezas. Contudo, não se pode evitar que destruíssem os canaviais, pois
agiam sempre à noite. Os mais prejudicados por essas depredações foram os
holandeses, não só porque era maior a sua parte nos engenhos e canaviais,
mas, também, porque os portugueses procuravam poupar as propriedades de
seus patrícios.

Esquadra holandesa comandado por Hendrick Corneliszoon Lonck, na invasão a


Pernambuco em 1630

Com isso sofreu o comércio rude golpe, pois toda gente receava aventurar-se
em negócios nos quais podiam perder todos seus haveres numa só noite, e
até, possivelmente, pelas mãos de um único homem. As rendas da Companhia
caíram pesadamente e suas despesas subiram, forçada que foi a manter de
vinte a trinta soldados na defesa de cada plantação ou engenho de

"Restauração de Portugal Prodigiosa", Lisboa, Antônio Álvarez, 1643. Dele disse D. Francisco
Manuel de Melo: "Seguiu-se o governo do Marquês de Montalvão. de cujo espírito se
esperavam grandes feitos, em ordem a recuperação de Pernambuco; mas foi tão breve sua
assistência no Brasil, que só teve tempo para se dar a respeitar aos amigos como prudente e
temei aos inimigos como industrioso". Preso no período da aclamação e levado para Portugal,
aí chegou a 25 de agosto. (Cf. Rodolfo Garcia, nota 57, LXXII, p. 394) e o Conde de Campo
Belo (D. Henrique) "Governadores Gerais e Vice Reis do Brasil," ed. oficial e comemorativa,
1940, Porto, p. 65-67).
Página 93 de 349

importância. Isso também a impedia de organizar uma tropa regular com que
enfrentar o inimigo. Tal era a situação do Brasil Holandês no fim do ano de
1640.

Navios holandeses enviados à Bahia

A 22 de dezembro do mesmo ano, Adriaen van Bullestrate chegava ao Recife,


procedente de Middelburgh, na qualidade de Alto Comissário, de modo que,
completo o Grande Conselho, julgou-se de bom alvitre apelar para a esquadra
a fim de pôr termo àquelas dificuldades. À vista dessa resolução enviamos à
Baía todos os nossos navios para que o inimigo se certificasse de que
estávamos em condições iguais às dele, com isso visando facilitar as
negociações que então se processavam, para a cessação das queimadas, de
ambos os lados. O Conselho dos XIX transmitira ordens expressas para que
alguns de nossos navios fizessem um cruzeiro ao largo do Rio de Janeiro, de
onde as naves espanholas costumavam partir de regresso à Espanha, durante
os meses de abril e maio175. Por esse motivo, vários dos nossos maiores
navios foram escalados para a missão de procurar interceptar a frota,
estacionando os demais nas proximidades da Bahia.

Enquanto os nossos emissários parlamentavam com o Vice-Rei sobre a


cessação dos incêndios e pilhagens, certo português de nome Paulo da Cunha
cometeu atrocidades incríveis, assassinando, saqueando e incendiando
plantações, o que fez com que o Conde Maurício dirigisse a seguinte carta ao
Vice-Rei.

CARTA DO CONDE MAURÍCIO AO VICE-REI

Carta do Conde Maurício ao Vice-Rei.

As atrocidades ultimamente cometidas por Paulo da Cunha,


assassinando, pilhando e incendiando, em campo aberto, fazem-
me, com razão, imaginar que sua última e atenciosa carta me
tivesse sido dirigida por mera cortesia, sem corresponder à
realidade dos fatos. A confiança que depositei na sinceridade de V.
Excia., levou-me a ordenar o regresso de nossos navios e de
nossas forças, de seus territórios, a fim de se eliminarem todo os
motivos de ressentimento. Entretanto, a longa demora dos nossos
delegados justifica a suspeita de que a intenção de V. Excia., seja
simplesmente de contemporizar, e isso me obrigou a despachar um
navio levando aos nossos emissários ordem de regressar
imediatamente, caso não se conclua o tratado, pois é nosso desejo
que tais negociações não se prolonguem por mais tempo. Poderá,
pois, V. Excia. dispensá-los, juntamente com os nossos dois reféns,
visto como estamos resolvidos a restituir-lhe Martim Ferreira que V.
Excia. deixou entre nós, na mesma qualidade, já que seu
companheiro faleceu recentemente.

175
O tradutor inglês escreveu: maio ou junho (p. 35, 1a coluna, 2° §). Cf. ed. hol., p. 43, 1a
coluna, 2° §).
Página 94 de 349

Nesse ínterim, pela mediação do clero que vivia entre nós, mas
principalmente devido ao infatigável zelo de Dirk Kodde van der
Burgh, que para lá fora enviado, com essa missão, conseguiu-se
finalmente levar a bom termo o tratado, em março de 164-1 176.
Conseqüentemente, deviam cessar logo as depredações e os
saques, de ambas as partes. Para isso publicaram-se
proclamações, pedindo aos portugueses que abandonassem
nossas terras. Passamos então a desfrutar a vantagem de podei
concentrar nossas forças onde mais se fizessem necessárias.

Concluído o tratado contra incêndios

Em junho de 1641, o Conde Maurício e o Grande Conselho foram informados


da conclusão de uma trégua de dez anos entre os Estados da Holanda e o Rei
de Portugal, bem como de todas as cláusulas a ela pertinentes. Os termos
desse tratado foram divulgados em todas as nossas Capitanias, por meio de
proclamações, cessando, assim, as hostilidades de ambas as partes.
Passaram, então, os holandeses a viver em boas relações com os moradores
da Baía, oferecendo-lhes amplas demonstrações de amizade, suficientes para
convencer os portugueses de que jamais teriam motivo para temer, de nossa
parte, qualquer infração da trégua pactuada.

Desejoso de aproveitar este interregno de paz para o desenvolvimento do


comércio, em benefício da Companhia, o Grande Conselho estimulou a
agricultura de todas as maneiras possíveis. Daí resultou que logo os senhores
de engenho começaram a reconstruir suas usinas e os lavradores lançaram-se
com avidez à cultura dos canaviais, ante a perspectiva de lucros certos que
compensariam fartamente os compromissos assumidos. Realmente assim
sucederia em pouco tempo, se, pela traição dos portugueses, tais esperanças
não tivessem malogrado. A providência imediata, que a seguir se tomou, foi a
promulgação de leis protetoras do comércio, tanto no Recife como em outros
lugares, visando a ampliação dos domínios e das rendas da Companhia,
durante o período da trégua

Seguiu-se, então, um rápido desenvolvimento comercial; tão brusco, de fato,


que, pouco tempo após a conclusão do tratado de trégua, o comércio passou a
fazer movimento em escala nunca dantes atingida. Concluíram-se transações
de muitos milhões, em curto espaço de tempo, dando-se por satisfeitos,
corretores e comerciantes, com apenas parte do pagamento em dinheiro,
conquanto não faltassem compradores dispostos a pagar à vista.

A situação florescente do Brasil

Era tão próspero o estado das finanças da Companhia, no Brasil, dada a


invulgar competência demonstrada pelo Grande Conselho que, em 1640 e
1641, o Governo adquiriu, por conta do erário público, grandes partidas de
açúcar para serem enviadas à Holanda. No Recife e na Cidade Maurícia,
176
O tradutor inglês escreveu [i]fevereiro, (cf.[/i] p. 43, 2a coluna, 2° holandesa e p. 35, 2a
coluna, 1° §, da edição inglesa).da ed.
Página 95 de 349

construíram-se casas magníficas. Havia luxo e abastança, pois toda a gente


considerava-se acobertada, com relação ao seu passivo, à vista das
promissoras perspectivas de aumentar suas fortunas, em face da situação
florescente do comércio e do reerguimento da lavoura.

Seu declínio

Infelizmente, porém, não durou muito essa situação de prosperidade, pois já


em fins de 1642 e começos de 1643 177 as coisas se apresentavam de maneira
diversa. Esgotados os celeiros da Companhia nas várias expedições levadas a
efeito contra Angola etc, e, à míngua de novos abastecimentos provenientes da
Metrópole, viu-se o Grande Conselho obrigado a lançar mão das importâncias
devidas à Companhia, a fim de atender ao pagamento das guarnições e dos
funcionários, exigindo, portanto, de seus devedores pagamento pronto.

De fato, ao iniciar-se a gestão dos novos diretores, possuía a Companhia


importantes forças navais nas costas brasileiras, achando-se os seus
armazéns fartamente sortidos de provisões e munições, pelo que era fácil aos
batavos manter grande número de homens em armas. Sentindo-se forte,
decidiu o Grande Conselho, com o consentimento do Conde Maurício de
Nassau, em 1840,178 armar várias frotas para com elas atacar o Espírito-Santo,
Rio de Janeiro, a ilha de Maranhão, Angola, São Tome e lugares
circunjacentes, empresa essa que produziu os resultados esperados.
Entretanto, tais expedições exauriram os celeiros da Companhia. Além disso,
os comerciantes da Metrópole, passaram a exigir de seus representantes e.
comissários, no Brasil, importantes somas, em pagamento do que lhes haviam
fornecido.

Obrigados a remeter às suas matrizes, na Holanda, todo o dinheiro de que


podiam dispor, os negociantes locais passaram a experimentar grande
escassez de numerário, o que certamente haveria de afetar de maneira
profunda o movimento geral. Tendo-se repetido, periodicamente, essa
situação, verificou-se, finalmente, tamanha premência de dinheiro como
dificilmente se poderá fazer idéia. Muitos dos senhores de engenho, faltos de
recursos com que satisfazer seus débitos nos respectivos vencimentos, viram-
se na contingência de tomar dinheiro a juros de 3 e 4 por cento ao mês para
saldá-los. Isso reduziu a maioria deles a tal penúria que, em pouco tempo, se
acharam em situação de não poder pagar nem capital nem juros.

O motivo

Logo que chegaram ao Recife, em 1640, os três novos diretores, ou membros


do Grande Conselho - Hendrik Hamel, Kodde e Bullestrate - verificaram que
muita gente, principalmente os portugueses do Brasil Holandês, havia
assumido compromissos excessivos para a aquisição de engenhos, canaviais,
escravos e outras utilidades. De fato, chegaram a comprar negros à razão de

177
O tradutor inglês escreveu: "no princípio de 1643" (cf. p. 44, 2aeol., 4° § da ed. holandesa e
p. 36, 1a coluna, 2° § da trad. inglesa).
178
O tradutor inglês escreveu 1641 (cf. p. 44, 2a coluna, 7° § da ed. holandesa e p. 36, 1a
coluna, últ. § da trad. inglesa).
Página 96 de 349

300 e mais peças de oitavo 179 e a pagar preços os mais absurdos, por
qualquer mercadoria de que tivessem necessidade. Compravam armazéns
inteiros sem se dar conta de como poderiam pagá-los. Assim agiam os
portugueses na esperança de vitórias decisivas das grandes armadas que
sabiam estar sendo aprestadas na Espanha para reduzir o Brasil à obediência,
com o que imaginavam libertar-se de suas dívidas. Ignorando os comissários
tais intenções e cegos ante a perspectiva de gordos lucros, continuaram a
vender aos portugueses sem restrições. Entretanto, desfeitas como fumo as
esperanças dos lusos, viram-se estes ante a necessidade de honrar seus
compromissos. Contudo, novos sortimentos chegavam da Holanda e novas
compras faziam os portugueses, amontoando dívidas sobre dívidas até que,
devido à impontualidade dos pagamentos, sentiram estes seu crédito
escassear também com os comerciantes, que passaram a exigir a liquidação
de seus débitos. O comércio do interior, premido pelos comissários e
atacadistas que recebiam tais mercadorias de suas matrizes na Holanda, foi
forçado a solicitar um acerto de contas dos portugueses aos quais havia
vendido a crédito. Por outro lado, como os lusos só haviam feito tais compras
com a intenção de as não pagar, o comércio do interior, obrigado a saldar suas
contas com o do Recife, era obrigado a cerrar as portas, já que nada recebia
dos portugueses.

Grande confusão comercial

Assim, devido à imprudência e à inépcia de tais comissários, aos quais os


exportadores da Metrópole haviam confiado seus haveres, grande foi a
confusão resultante e enormes os riscos para os segundos. Quase todas as
transações da época passaram para os tribunais e para as bancas dos
advogados, o que ainda mais concorria para agravar a derrocada geral, dado o
elevado custo do processo judicial, no Brasil. Depois, quando já se tinha
sentença e mandado de execução contra os devedores, o difícil era descobrir
onde e como cumpri-lo, pois a maioria dos portugueses reclamava a proteção
real. Não conseguindo obtê-la, passavam os lusos a viver incógnitos,
principalmente os que não possuíam terras ou bens. Mesmo quando tinham
propriedades não era fácil descobrir seus paradeiros. Ademais, se os credores
executavam e recebiam propriedades agrícolas, viam-se na contingência de as
arrematar eles próprios e mudarem-se para o interior a fim de administrá-las,
circunstância essa altamente inconveniente para os comerciantes cujas
atividades exigiam sua presença constante no Recife. Quando os devedores
eram presos, ficavam no cárcere por conta dos credores, e, com o correr do
tempo, tais despesas montavam a somas tais que os credores eram os
primeiros a solicitar o livramento dos prisioneiros e com eles fazer o melhor
arranjo possível.

Mortalidade entre os negros

Como se não bastassem esses contratempos, vários outros vieram a eles se


reunir, haja vista a grande mortalidade entre negros e brasileiros, vítimas de

179
O tradutor inglês escreveu: "300 peças de oitavo" (cf. p. 45, 1a coluna, 8° § da ed.
holandesa e p. 36, 2a coluna 1° § da trad. inglesa).
Página 97 de 349

uma moléstia infecciosa, endêmica entre os nativos, chamada bexiga e


semelhante à varíola européia. Esses escravos, em sua maioria, eram
adquiridos à razão de 200 ou 300 peças de oitavo 180, e, conseqüentemente,
sua perda acarretava a ruína dos lavradores que ainda tinham que se haver
com as pragas e inundações freqüentes causadoras de consideráveis danos
aos canaviais. Essa confusão comercial provocou não raros incidentes entre os
homens de negócio que, por falta de pagamento, atiravam-se uns aos outros
nas prisões, sem contemplação alguma, tratando cada um de garantir seus
créditos em primeiro lugar, por meios clandestinos e com prejuízo para os
outros. Chegavam a oferecer abatimentos consideráveis e vantagens aos que
se prestassem a sonegar mercadorias ou transferir ilicitamente seus bens. Tais
imoralidades foram largamente fomentadas por indivíduos de má fé, em
detrimento do governo. Muitos foram os que, por imprudência ou incapacidade,
perderam seus haveres, atirando a culpa sobre a Regência ou as Cortes de
Justiça, na esperança vã de que aquilo que haviam perdido por imprevidência e
desídia lhes fosse restituído pelo Tesouro. E, quando acontecia de uma pessoa
dever ao mesmo tempo à Companhia e a particulares, surgia grande celeuma
quanto à preferência na liquidação.

Também as dívidas da Companhia cresciam diariamente, tendo, nos últimos


tempos, atingido a vários milhões. Isso se deu porque os diretores que antes
de 1640 dirigiam os negócios no Brasil venderam a crédito a maior parte das
propriedades confiscadas, engenhos de cana, mercadorias e até negros
comprados na África por conta da Companhia, de modo que seus livros
estavam repletos de débitos de terceiros, mas, a Caixa, vazia de dinheiro. Os
novos membros do Grande Conselho, Senhores Hamel, Bullestrate e Kodde
não descansaram enquanto não corrigiram esse sistema, passando as
mercadorias a serem vendidas à vista ou em troca de açúcar de forma a
auxiliar a Companhia nas grandes despesas que era forçada a fazer para
custear suas numerosas expedições. É certo que daí por diante -- em 1640,
1641 e 1642 - puderam eles remeter vultosos carregamentos de açúcar para a
Holanda, como tão grandes se não haviam ainda visto no Brasil. Todavia,
apesar de tudo, dada a grande quantidade de negros importados após a nossa
conquista de Angola, foi crescendo dia a dia o passivo da Companhia, devido à
impontualidade de seus devedores. Para remediar tal situação, baixou o
Conselho dos XIX ordens expressas no sentido de que os negros só fossem
vendidos à vista ou mediante pagamento em açúcar, o que aliás era
impraticável, porque não havia quem os quisesse comprar em tais condições.
Com isso, o preço dos escravos caía rapidamente, e, constituindo eles pesado
encargo para a Companhia, por estarem sujeitos a doenças e a elevada
mortalidade, foi preciso que se revogasse tal ordem a fim de evitar que o tráfico
negreiro desaparecesse completamente. Na verdade, os que dispunham de
numerário empregavam-no todo nos engenhos, canaviais e escravos, de sorte
que, não podendo pagar suas compras em dinheiro contado, eram forçados a
negociar a crédito, até que lhes fosse dado colher o fruto de seu trabalho.

Por isso os membros do Grande Conselho fizeram o possível para cobrar os


devedores em atraso, logo no início da safra açucareira, tendo determinado
180
O tradutor inglês escreveu: "300 peças de oitavo" (cf. p. 46, 1a coluna,5 § da ed. holandesa
e p. 37, 1a coluna, 2° § da trad. inglesa).
Página 98 de 349

aos funcionários do interior que confiscassem por conta da Companhia a


quantidade necessária desse produto. Entretanto, essa providência só deu
como resultado ações judiciais, sentenças, execuções e prisões, chegando
muitas vezes os membros do Conselho ao ponto de descerem de suas
posições e irem pessoalmente ao interior, a fim de promover a cobrança das
somas devidas à Companhia. Também este expediente falhou, pois os
comerciantes e comissários puseram-se a reclamar contra o fato de a
Companhia se apoderar do açúcar ainda nos engenhos, sem lhes permitir que
também se cobrassem, eles que eram tão credores quanto ela. Nem só
murmúrios e ameaças surgiram, mas ainda reclamações ao Conselho dos XIX,
ao qual tendenciosamente pintavam tais transações com as mais carregadas
cores, na esperança de que os funcionários da Companhia deferissem o
cumprimento de seus deveres. Depois de ponderado estudo, e, receoso, não
sem fundamento, de que com. o tempo se generalizasse o descontentamento,
o Grande Conselho propôs medidas tendentes a melhor satisfazer as
aspirações do povo e a facilitar a liquidação dos débitos. Foi assim sugerido,
por várias pessoas esclarecidas, que a Companhia chamasse a si o
pagamento das dívidas dos particulares, a dinheiro ou por meio de trocas, para
o que os senhores de engenho entregariam à Companhia toda a sua produção,
até a total liquidação de seus compromissos. E, para que fosse mais eficiente
essa medida - que visava tanto o benefício da Companhia como dos senhores
de engenho, dos comerciantes e dos comissários, - resolveu-se que se deveria
assinar um acordo com determinadas cláusulas. A maior vantagem que a
Companhia esperava colher dessa providência, era a de poder cobrar certas
dívidas que já considerava perdidas. Tais acordos causavam excelente
impressão ao Conselho dos XIX, tanto que, a 16 de julho de 1645, 181 dava sua
aprovação a um segundo arranjo feito com Jorge Homem Pinto - do qual a
seguir damos cópia - e que de fato foi de grande vantagem para o Grande
Conselho, como, aliás, o foram todos os outros.

APROVAÇÃO DOS ACORDOS

Aprovação dos acordos.


Com referência ao acordo que Vs. Excias. (o Conselho) celebraram
a H de dezembro182 último, com Jorge Homem Pinto, tivemos de
submetê-lo várias vezes a debate para, afinal, dá-lo por aprovado
com o parecer e a sanção prévios dos Conselheiros de Justiça e de
Finanças. Julgamos, portanto, conveniente aprovar dito acordo, não
só em obediência aos seus próprios termos, como pelo grande
benefício que deles resultará para a Companhia. Recomendamos,
para sua execução, o mesmo zelo que nos foi dado observar na
conduta e na circunspeção com que Vs. Excias. se houveram nas
negociações desses contratos.

181
O tradutor inglês escreveu [i]junho[/i] (cf. p. 48, 1a coluna, 4° § da ed. holandesa e p. 38, 1a
coluna, 1°§ da trad. inglesa).
182
Nieuhof, pela primeira vez, emprega a palavra Deecember (p. 48, 1a coluna últ. §). Daqui
em diante, embora vigorando a denominação particular holandesa, aparecerá de vez em
quando a denominação de origem latina.
Página 99 de 349

A prova irrefutável de que tais acordos foram, por todos que tinham
algum conhecimento de negócios, considerados de grande
interesse para a Companhia, temo-la no fato de vários comerciantes
terem celebrado arranjos semelhantes com seus devedores. Para
que o assunto fique perfeitamente esclarecido, damos abaixo cópia
de um desses documentos, onde claramente se evidencia a
circunspeção com que agia o Conselho nos casos em que estavam
em jogo os interesses da Companhia, dos senhores de engenho e
de seus devedores.

CÓPIA DE UM ACORDO

Perante nós compareceram, de um lado, os senhores Pieter Janz


Bas e Joan van Ratsvelt, Conselheiros de Justiça do Brasil, por
especial designação da Companhia das índias Ocidentais, e oan
van Walbeek, Assessor do Grande Conselho; e de outro, Manuel
Fernando Cruz, senhor do Engenho de Tapicura, em seu nome e no
de seus herdeiros; Benjamim de Pina por 10.600 florins;Isaac da
Costa, por 13.108; Joseph Abenacar, por 4-90; Abraham Aboab por
900; Symon de Valle, por 325; Gaspar Francisco e David Brandão,
por 1.133; Abraham de Tovaer, por 1.000; João Parente, por 350;
João Mendonça de Muribeca, por 4-350; Jacob Gabay, por 1.050;
More de Leon, por 600; Balthasar de Fonseca, por 600; Simon
Gomes de Lisboa, por. 5.910; Bartholomeu Rodrigues, por 900 e
Daniel Cardoso, por 210 florins, num total de 41-526 florins, todos
credores do referido Manuel Fernando Cruz e, na sua maioria,
devedores da Companhia, os quais declaram terem entre si
acordado que Manuel Fernando Cruz deverá pagar à Companhia a
soma total de 60.795 florins, ou seja, 19.269 florins por sua conta e
por ele devidos à Companhia e o restante por conta de seus
credores, que deverão ser creditados pela Companhia, na
proporção dos respectivos débitos, sob as condições seguintes183:

183
A edição inglesa consigna, aqui, três erros: em primeiro lugar, omite a parcela referente a
Abraham Aboab, de 900 florins; em segundo lugar, há erro na parcela de Daniel Cardoso, que
é de 210 florins e não de 910 florins, como escreveu o tradutor inglês; em terceiro lugar, há erro
na soma total, pois o tradutor inglês escreveu (p. 38, 2a coluna, 2° §): the whole amounting to
JfO.526 gilders; enquanto que na edição holandesa está (p. 49, 1a coluna, 12° §): monterende f
zamen een en veertighã duizent vijf honãert zes en twintigh gulden. Portanto: quarenta e um mil
e quinhentos e vinte e seis (41.526) e não quarenta mil e quinhentos e vinte e seis (40.526).
Grande número desses devedores tinha nomes que podem ser de judeus. Assim, por exemplo,
Benjamin de Pina foi um dos autores dos Escamoth, isto é do conjunto de preceitos para
regularizar a vida da comunidade, espécie de consolidação de leis recopiladas e escolhidas
entre as que havia na comunidade (LVIII, 53). Sobre os contratos e as dívidas, é útil a leitura de
"A Bolsa do Brasil" e do "Machadão do Brasil". O primeiro foi traduzido por José Higino e
publicado pela Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, 1883, e mais
tarde no Tomo XXXVII, 1933, da Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, dessa
vez traduzido pelo Padre Geraldo Pauwels. O segundo foi traduzido por Souto Maior e
publicado na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, 1908, n. 71. A
"Bolsa do Brasil" relata a situação financeira do Brasil, em 1647, e traz cópia de vários
contratos feitos pela Companhia com várias pessoas. É, portanto, complemento indispensável
Página 100 de 349

I - Que o débito total deverá ser liquidado dentro dos três próximos
anos, o primeiro pagamento devendo ser efetuado em janeiro de
164-5. Se acontecer que a quota paga em um ano seja menor que a
de outro, todo o saldo deverá ser liquidado no último ano.

II - Que não se farão descontos nos livros da Companhia, senão


após o pagamento da quota devida para cada período ou época
respectiva.

III - Que nem os credores dos que aderiram às cláusulas deste


acordo, nem os devedores da Companhia serão exonerados de
seus débitos nos livros desta última, antes, em caso de falta ou
atraso do) pagamento, nos respectivos vencimentos, de parte ou de
toda a importância devida, ficarão eles obrigados e responsáveis,
cada um por seu respectivo débito, a menos que dêem, outras
garantias à Companhia. Os credores que não tiverem débitos nos
livros da Companhia terão liberdade de transferir outros débitos ou
de receber sua quota dentro do prazo de dois anos, seja por meio
de verbas ou em escravos, mas nunca em mercadorias importadas
ou em açúcar exportável, desde, entretanto, que as cláusulas deste
acordo sejam respeitadas; ou então essas somas ser-lhes-ão
imediatamente levadas a crédito, caso em que lhes serão abonados
juros à razão de 18 por cento, continuando, porém, eles,
responsáveis pela execução do contrato.

IV- Os que aderiram às cláusulas deste acordo, serão obrigados a


empenhar sua pessoa e seus bens pela fiel execução do mesmo, e,
principalmente, a fornecer um inventário de seus haveres pessoais,
confirmado sob juramento, apresentando, ademais, fixadores
aceitos pela Companhia,com renúncia expressa dos beneficium
ordinis, divisionis & executionis, assim como, a responder pelos
pagamentos respectivos, nos devidos vencimentos, bem como pela
soma global 184.

ao estudo das condições financeiras dessa época. Basta dizer que Nieuhof cita os credores de
Manuel Fernandes Gomes, mas pouco trata de Jorge Homem Pinto, cuja dívida montava a
937.997 florins e 13 stuivers, sendo 700.000 à Companhia das índias Ocidentais. Era a
obrigação mais importante da época, pois esse era o segundo contrato, já tendo sido feito
anteriormente um no valor de 340.403 florins e 6 stuivers. Muitos outros devedores são
indicados, sua dívida e suas condições pessoais e, finalmente, estuda-se o prejuízo que
representavam para a Companhia das Índias Ocidentais tais contratos (p. 45-52, ed. da Revista
da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, citada, tradução de Pauwels). - O "Machadão do
Brasil" trata da situação econômica de cada um dos contratantes (especialmente nas pp. 151-
156).
184
As Ordenações Filipinas (II, 856) ordenavam, que, em caso de não declararem as partes
"em que cada hum se obriga, ficará cada hum obrigado in solidum e o credor poderá demandar
qual ele quizer pelo total". O chamado benefício de divisão, de que gozavam os fiadores nestas
condições, foi aqui negado, pois juravam as partes renunciar ao benefício legal. Tal benefício
tem por principal efeito determinar a parte de cada fiador, produzindo, em favor do devedor que
pagar a dívida, a sub-rogação nos direitos do credor, com todas as garantias legais que tinha
este para haver do devedor o que pagou, pois que o fiador solveu dívida de outrem.
Página 101 de 349

V - Os fiadores acima referidos deverão ser pessoas de


posição,abastadas, isentas de dividas, especialmente para com as
Companhia se deverão ser abonadas pelos magistrados de seus
respectivos domicüios.

VI - Dar-se-á conhecimento, por publicação, a todas as pessoas


que possuam títulos, letras, contas ou outros compromissos
relacionados com os bens particulares (que serão relacionados ou
especificados) incluídos neste acordo, para que os exibam dentro
do prazo de três semanas, pois,caso contrário, serão excluídos dos
benefícios deste contrato até que tenha expirado o prazo referido e
convencionado.

VII - Nenhuma pessoa, das que se tenham obrigado pelo presente


acordo ou contrato, poderá contrair novas dividas, a não ser com
oconsentimento do Grande Conselho, sob pena de serem elas
consideradas nula se inexistentes, do que se fará edital público.
Nem lhe será lícito desviar qualquer quantidade de açúcar, por
terra, como sobra, sob pena de ser forçado a tudo restituir, mais os
juros e despesas.

Serão os credores obrigados a desistir e renunciar todas as suas


pretensões, obrigações e ações em favor da Companhia, nem
poderão fundamentar qualquer reclamação sobre a alegação de
precedência ou qualquer outra.

Sempre que o Grande Conselho julgar necessário incumbir


determinada pessoa de visitar o engenho de qualquer das partes
deste contrato, para maior garantia da dívida, ou para receber e
expedir o açúcar destinado à Companhia, estarão elas obrigadas a
lhe fornecer hospedagem em seus engenhos, obrigando-se, porém,
a Companhia a indenizar as partes, por essas despesas.

Pelo referido Senhor Manuel Fernando Cruz me foi dito que, com
aprovação e consentimento 185 de seus mencionados credores, se
oòrigm de maneira geral e que pelo presente instrumento se obriga
e empenha sua pessoa e propriedades, tanto reais como pessoais,

Até hoje os benefícios de ordem e divisão subsistem e são consagrados no direito brasileiro
(Código Civil Brasileiro, arts. 1491-1493). O benefício da ordem é o que assegura ao fiador
demandado pelo pagamento da dívida o direito de exigir, até a contestação da lide, que sejam,
primeiramente, executados os bens do devedor. É também chamado de excussão. O benefício
da divisão (art. 1493 do Código Civil) consiste em que cada fiador responde somente pela parte
que lhe couber, repartida a totalidade da dívida entre todos. Como se vê, a cláusula do contrato
de que Nieuhof dá notícia consignava a renúncia das partes a esses benefícios de ordem e
divisão. Nieuhof escreveu (p. 49, 2a coluna, 2 §): renuntiatie van beneficie ordinis, divisionis &
executionis.
185
Nieuhof escreveu (p. 50, 1a coluna, 2° §): In conformité van dewelkede voornoemde Manuel
Fernando Cruz, by advis ende approbatie van zijne voorsz,crediteuren...
Página 102 de 349

sem qualquer reserva ou exceção, especialmente o já citado


Engenho Tapicura186, com todos seus pertences, de acordo com o
arrolamento anexo ao presente e confirmado sob juramento,
engenho esse que declara estar livre de qualquer ônus anterior,
com todas suas terras, canaviais, pastagens, matas e outras causas
a ele pertencentes, tais como: oito caldeiras de cobre, dez tachos e
paro os (sic)187, além de várias outras vazihas de cobre
pertencentes ao referido engenho, noventa escravos 188 de
propriedade do engenho e de Manuel Fernando Cruz, sua casa e
sessenta bois. E, para melhor execução deste acordo, o senhor
João de Mendonça, morador em Muribeca, e Manuel Gomes de
Lisboa residente em Moquiacxe (sic), após a apresentação dos
certificados dos magistrados de seus respectivos domicílios,
obrigam-se, como pelo presente obrigado têm, a servir como
fiadores de toda a dívida e como devedores de cada uma- das
parcelas dela constantes, prometendo indenizar a Companhia de
todas as ações, processos, e outras reclamações que contra eles
se façam por conta de qualquer outros credores do referido Manuel
Fernando Cruz, não mencionados ou obrigados por este acordo;
como também que nenhum açúcar será sub-repticiamente desviado
ou vendido. E que, em caso de falta de pagamento, a Companhia
fica desde já autorizada a se cobrar de quaisquer prejuízos, com
juros e despesas, contra suas pessoas e bens; renunciando, por
este instrumento, a todas as execuções, ordinis, divisionis &
executionis, como também a todas as reclamações ou pretensões
de privilégios tendentes a invalidar este contrato.

Também os citados credores, em gerai e cada um deles em


particular, declaram haver apresentado conta exata de suas
respectivas pretensões contra o referido Manuel Fernando Cruz,
como também que dele não reclamarão qualquer outra soma ou
somas, além das que foram especificadas após seus respectivos
nomes; prometem que se darão por amplamente satisfeitos com o
que foi estipulado e que, se for executado o acordo conforme se
convencionou, renunciarão a todas as ações, obrigações
particulares, descontos ou preferências, em favor da Companhia; e
que, no caso de falta de pagamento, se obrigam a revalidar e a
restituir à citada Companhia, não somente cada quantia parcelada
que lhes for paga em determinados prazos, como também o total,
tal como se este acordo nunca houvesse existido entre eles;
deixando ao critério da Companhia prosseguir em suas ações

186
No distrito de Serinhaém existiam dois engenhos denominados Itapicurú:o primeiro,
chamado Itapicurú de Cima, sob a invocação de N. S. da Ajuda, pertenceu a Pedro Fragoso e,
na ausência deste, foi confiscado e vendido a Willem Placard; o segundo, chamado Itapicurú
de Baixo, sob a invocação de S. Antônio, pertenceu a Álvaro Fragoso Toscano, que ficou do
lado dos holandeses. (Cf. XV, 142). Sobre os engenhos no Brasil holandês, além do Breve
Discurso, acima citado, existe a Relação dos Engenhos vendidos em 1637 e em 1638,
publicados na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, 1887, n. 34.
187
Nieuhof escreveu (p. 50, 1a coluna, 2° §): Acht Kopere calderos, Tientachos, Paroos... !
188
O tradutor inglês escreveu: 20 escravos, (cf. p. 50, 1a coluna, últ. § da ed. holandesa e p.
39, 2a coluna, últ. § da trad. inglesa).
Página 103 de 349

contra Manuel Fernando Cruz e sem fiadores ou contra eles


próprios e suas propriedades, na condição em que se encontravam,
antes de concluído este acordo. O benefício da Actionem cessam
189
ser-lhes-á facultado contra o referido Cruz e seus fiadores, para
a cobrança de seus justos créditos. Em testemunho do que
expedimos estas nossas cartas, como de costume em tais casos,
seladas com o selo comum da corte de Justiça e assinadas pelo
Secretário do Conselho,

Passada no Recife, aos 23 de Setembro de 1644.

A razão de ser dos contratos

Todos os outros contratos foram lavrados pela minuta acima, somando o total
de seus valores 2.125.807 florins, importância essa devida pelos lavradores
aos senhores de engenho, e, por estes, à Companhia.

A principal, senão a única razão pela qual se fizeram tais acordos (como, aliás,
já ficou dito acima) residia nas exigências e nos vexames que aos senhores de
engenho impunham seus credores, pois, a menos que os primeiros se
sujeitassem a pagar juros à razão de 21/4 e 3 por cento 190 ao mês, estes
procediam à apreensão de seus negros, vasilhames de cobre e outros
utensílios dos engenhos. Assim, ante a contingência de pagarem quantias
exorbitantes e a alternativa de se arruinarem completamente, os senhores de
engenho passaram a defender suas propriedades pela força. A situação,
portanto, se encaminhava francamente para uma insurreição geral, que só se
conseguiu evitar com a instituição desses contratos. Conseqüentemente, os
senhores de engenho, livres da opressão

189
Por meio desse contrato, procurava a Companhia das índias Ocidentais realizar o que,
juridicamente, se chama compensação, isto é, desde que um credor venha a dever ao seu
devedor uma quantia semelhante à que este lhe devia,a obrigação do devedor é extinta em
concorrente quantia. (Cf. Correia Teles, Digesto Português, ou Tratado dos Direitos e
Obrigações, etc. Pernambuco, Tipografia de Santos & Companhia, 1841, p. 134, n. 1164).
No caso de que Manuel Fernandes da Cruz faltasse ao pagamento, os devedores ficariam
obrigados a pagar não só a quantia parcelada, como o total, isto é, renunciariam ao benefício
da divisão. Embora a declaração das parcelas os desobrigasse do pagamento in solidum, na
verdade não estavam desobrigados, desde que haviam renunciado expressamente ao
benefício da divisão. (Cf. Coelho da Rocha, Instituições de Direito Civil Português, Tomo II,
1852, p. 689).
Por esse contrato, a Companhia ficava habilitada a prosseguir em suas ações contra Manuel
Fernandes da Cruz e seus fiadores e cedia aos diferentes dezesseis credores de Manuel
Fernandes da Cruz - devedores da Companhia das índias Ocidentais - a ação de cobrar
daquele o que lhes era devido. Tratava-se, assim, de uma sub-rogação convencional, chamada
cadencia ou cessão, a qual se verifica quando o credor originário transmite o seu direito,
crédito ou ação a outro, sem acordo do devedor. (Cf. Coelho da Rocha, id., I tomo, p. 105).
Esse benefício é, ainda hoje, consagrado no Código Civil Brasileiro, art. 986. (Vide II, nota 2, p.
856).
190
O tradutor inglês escreveu: "2 ou 3 por cento" (cf. p. 51, 1a col., 3a §da ed. holandesa e p.
40, 2a coluna 1a § da trad. inglesa).
Página 104 de 349

de seus credores, passaram a dever exclusivamente à Companhia que lhes


concedeu prazo para suas moendas produzirem o necessário à liquidação de
suas dívidas, estabelecendo pagamentos em épocas certas e a juros de 1 por
cento ao mês.
Tendo-se dado prazo bastante dilatado para o primeiro pagamento, estavam,
assim, afastados, por algum tempo, tanto os pretextos como a oportunidade de
revolta.
Para que melhor se compreenda a situação, atente-se particularmente às
seguintes considerações: A Companhia e o comércio, ambos credores dos
senhores de engenho, conjugavam seus esforços no sentido de obrigarem
estes últimos ao pagamento de seus compromissos, mediante execuções. Tal
estado de coisas, que vinha prevalecendo desde 1642191 até a época em que
se fizeram os acordos, gerou tamanha desordem que tudo indicava o próximo
aniquilamento dos engenhos e, conseqüentemente, do comércio e da própria
Companhia. Foi então que resolveram apelar para o Grande Conselho, a fim de
que este encontrasse uma forma - talvez mediante descontos, ou de qualquer
outra maneira - de transferir tais dívidas para a Companhia. Os conselheiros de
justiça não haviam, a princípio, concordado com todos os pormenores dessa
proposta; entretanto, na reunião de 12 de agosto de 1644, melhor capacitados
do assunto bem como das garantias e benefícios que teria a Companhia, em
tais acordos, resolveram aprová-los no dia seguinte. Foram além; sugeriram,
por consenso unânime, que, em muitos casos, era possível suavizar a situação
dos senhores de engenho e de seus credores. Assim foi que a 10 de novembro
de 1644, foram os contratos finalmente aprovados, com o beneplácito dos
conselheiros da Corte de Justiça e Finanças.

Consoante essa resolução, o Conselho fez publicar editais sobre os acordos


celebrados entre a Companhia e firmas particulares, pelos quais declarou que
ninguém poderia vender a crédito aos devedores contratantes, sem o
consentimento expresso do Grande Conselho sob pena de nulidade 192. Quanto
aos credores desses contratantes, ficavam eles intimados a revalidar seus
créditos dentro de três semanas, sob pena de serem excluídos dos benefícios
do contrato, enquanto o mesmo estivesse em vigor.

Engenho em Pernambuco 1640

191
Na edição inglesa está 1647 (cf. p. 51, 2a coluna, 3° § da ed. Holandesa e p. 40, 2a coluna,
1a § da trad. inglesa).
192
O tradutor inglês omitiu: "sob pena de nulidade", (cf. p. 52, 1-a coluna,3° § da ed. holandesa
e p. 41, 1a coluna da trad. inglesa).
Página 105 de 349

De tudo quanto acima ficou dito, ressalta claramente quão infundadas foram as
insinuações dos que julgaram tais acordos prejudiciais à Companhia e os
consideraram a causa principal da revolta que a seguir se verificou entre os
portugueses. Ao contrário, é fora de dúvida que tais contratos representavam a
única solução para um estado de coisas que se apresentava calamitoso e no
qual estavam igualmente envolvidos os senhores de engenho, os lavradores e
os sitiantes, acarretando a paralisação dos engenhos e o abandono dos
campos. Ademais, se tal situação se prolongasse, causaria a ruína completa da
indústria açucareira, pois a Companhia já vinha sofrendo prejuízos enormes
que orçavam por 38% anualmente, no Brasil, mais 37% na matriz, ou seja, uma
perda total de 75% por ano, somente nos engenhos.

Além de tudo, não eram poucos os comerciantes que, sendo credores dos
senhores de engenho, deviam à Companhia consideráveis importâncias e que
teriam de ir à falência, pela impontualidade de seus devedores, e, portanto,
com enormes prejuízos para a Companhia, se esta não lograsse encontrar uma
forma de se cobrar de tais dívidas, consideradas perdidas. Tudo isso levou o
Conselho a julgar de necessidade inadiável a realização dos acordos, conforme
sugestão dos senhores de engenho e seus credores, mas não sem antes
submetê-los à aprovação do Conselho dos XIX. Não havia, portanto, razão
para que os contratos fossem considerados nocivos à Companhia, ainda que
certas pessoas maliciosamente os combatessem, alegando que (se não tivesse
havido a rebelião) nem em 20 anos, talvez mesmo nunca, teria a Companhia
prejuízo igual à responsabilidade que os contratos lhe trouxeram. Pois, era
notório que o Conselho jamais desembolsaria como de fato não desembolsou,
nem um único vintém para pagar os contratantes por conta da Companhia.
Ademais, esta ficou plenamente garantida pela hipoteca de 25 engenhos cuja
produção média oscilava entre 230, 240 e 250 caixas de açúcar por ano, cada
uma. Admitindo que a Companhia reservasse para si apenas 140 ou 150
caixas da produção de cada uma delas, já aí se teria um total anual dos 25
engenhos de 420.000 florins. É evidente, pois, que, mesmo não se tomando
em conta os engenhos, seus utensílios de cobre, acessórios e animais, a soma
de 2.125.816 florins, que era o total do débito contraído para com a Companhia
em virtude dos contratos, poderia ser cobrada sem grande dificuldade. O
expediente dos contratos teve ainda o mérito de permitir que os senhores de
engenho permanecessem na posse tranqüila de suas moendas, livres da
pressão dos credores e, portanto, alimentando a esperança de que, mais
folgados agora, os lavradores poderiam dedicar-se mais e melhor às lavouras,
acelerando assim a liquidação de suas obrigações. De fato foi isso que se deu,
e, já em 1645, a safra açucareira apresentava perspectivas excepcionais.

Parecia, porém, que os portugueses, movidos por um ódio inato ao povo que
os havia dominado, estavam decididos a não poupar esforços para minar o
governo batavo, em seus fundamentos, conspirando contra ele. Acresce ainda
notar que, enterrados em dívidas a mais não poder, e não dispondo de
recursos com que liquidá-las, se abandonavam ao desespero e se dispunham
antes a enfrentar os azares de uma luta armada (na esperança de auxílio de
Portugal) que suportar as agruras da miséria. Os mais francos dentre eles
chegaram mesmo a dizer aos nossos, mais tarde, que, caso tivessem
Página 106 de 349

malogrado as suas esperanças de reforços da Baía, estavam dispostos a


solicitar o auxílio da Espanha ou da Turquia.

Razão da revolta dos portugueses

Pelos fins de 1642 corriam boatos de que os portugueses tramavam uma


conspiração contra o Estado. Por isso foram eles desarmados e o armamento
recolhido aos arsenais do Governo. Entretanto, pretextando vários motivos e
assegurando-nos de que viveriam pacificamente entre nós, conseguiram os
lusos, aos poucos, reaver suas armas. Assim agindo, talvez os movesse o
receio de nossas guarnições ou ainda não se achassem perfeitamente seguros
do concurso baiano. Entretanto, parece-nos chegado o momento de analisar as
verdadeiras causas da revolta.

A 13 de dezembro de 1642, João Fernandes Vieira, escabino da Cidade


Maurícia, compareceu perante o Grande Conselho, achando-se presente o
Conde Maurício e disse ter conhecimento, por certos judeus, de que tanto ele
como seu sogro Berenguer eram, na Holanda, considerados suspeitos por
haver ele remetido ao Rei de Portugal, por intermédio de um filho do mesmo
Berenguer, cartas tendenciosas e nocivas aos interesses do Estado. Não
negava, João Fernandes, ter enviado ao Rei uma carta, por intermédio da
referida pessoa. Entretanto, tratava-se apenas de uma recomendação, visando
auxiliar Berenguer a obter do soberano uma colocação. Prontificou-se a provar
suas alegações, para o que exibiu uma cópia da referida carta, na qual não se
viam senão expressões de congratulação com o Rei pela sua ascensão ao
trono e a recomendação do referido Berenguer. A seguir propôs Vieira, como
medida imprescindível para a segurança do Estado, que fossem os
portugueses desarmados, assim como os Capitães de Campo e todos os que
se achavam sob as suas ordens: negros, brasileiros, mulatos e mamelucos.

Cartas procedentes do estrangeiro fazem aumentar as suspeitas

Veio, também, à baila, nessa ocasião, uma carta datada de 1.° de julho de
1642 193 recebida pelo conde Maurício do Conselho dos XIX segundo a qual
um tal Arent Jansz Van Norden, que durante cerca de quatorze meses servira,
no Brasil, na qualidade de cadete, lhes havia declarado em Amsterdã que
estivera empregado em um engenho pertencente a João Fernandes Vieira,
onde, após haver trabalhado dois meses, fora convidado por Francisco
Berenguer, lavrador, para acompanhar seu filho Antônio de Andrade Berenguer
à Holanda e de lá a Portugal, a fim de servir-lhe de intérprete. Ante as
promessas que lhe foram feitas, Van Norden aceitara o convite e partira com
Antônio de Andrade a bordo do navio de Liefãe para a Zelândia e, a seguir, de
Vlissingen no navio S. Hubes para Lisboa.194 Dizia a carta que, depois de uma
convivência de três semanas, Antônio de Andrade Berenguer revelara a Van
Norden ser portador de uma carta assinada por João Fernandes Vieira,
Francisco Berenguer, Bernardino Carvalho, João Bezerra e Luiz Braz Bezerra,

193
O tradutor inglês escreveu junho (cf. p. 55, 1a coluna, holandesa e p. 42, 1a coluna 1° § da
trad. inglesa).
194
O tradutor inglês omitiu o nome do navio S.Hubes (cf. p. 55, 1a coluna,1° § da ed.
holandesa e p. 42, 1a coluna, 2° § da trad. inglesa).
Página 107 de 349

pela qual informavam ao Rei de Portugal estarem bem abastecidos de homens,


dinheiro e armamento para a restauração do domínio português no Brasil.
Acrescentava o Conselho na citada missiva que o Rei de Portugal dera patente
de capitão ao dito Berenguer por esse pequeno serviço, e, por isso,
recomendava ao Grande Conselho e ao Conde Maurício que mantivessem
esses indivíduos sob vigilância, tendo em vista a aversão que os portugueses
nutriam contra os holandeses.

Na reunião do Grande Conselho do Brasil, realizada a 16 de março 195 de 1643,


declarou o Conde Maurício ter sido informado de que portugueses de destaque
planejavam surpreender as nossas guarnições do interior - Muribeca, Santo
Antonio e outros lugares, como o Maranhão - passando-a a fio de espada,
plano esse que deveria ser posto em execução em um dia santo, quando
costumava reunir grande massa popular. Residiam na Várzea os que tinham
maior responsabilidade nessa conspiração e se propunha atacar de surpresa
também o Recife, - o que sem dúvida lograriam fazer. De resto, as outras
guarnições do interior seriam facilmente subjugadas, e, assim, sem tropa e sem
comércio, estaria a Companhia impossibilitada de se manter no Brasil por mais
tempo.

As deliberações tomadas

Tratou-se, então, de decidir se seria melhor deter imediatamente os cabeças


da rebelião ou protelar essa medida para ocasião mais oportuna, a fim de que
as prisões não alarmassem o povo. Optou-se pela última alternativa, mesmo
por não haver ainda provas seguras sobre as intenções dos indiciados, cujos
movimentos, entretanto, passaram a ser atentamente observados pelo serviço
secreto do Conde Maurício, com tempo de se tomarem as devidas precauções.
Julgou-se, contudo, aconselhável recolher para o Recife as guarnições do
interior e fortificar-se a praça com novas paliçadas, bem como repararem-se os
velhos bastiões de madeira. Determinou-se, também, que ficasse um navio de
prontidão, do lado do mar, e diversas chalupas fizessem o patrulhamento do
rio, a fim de defenderem as ruas do Recife com sua artilharia. Receberam-se,
ainda, várias cartas de particulares, algumas anônimas, dirigidas ao Conde
Maurício e ao Grande Conselho, denunciando os traiçoeiros projetos dos
portugueses. Dentre outras, destacava-se uma remetida ao Conde Maurício
por um senhor de nome Van Eis e datada de Serinhaém, 25 de março de
1643196, dizendo estar seguramente informado de que certo mulato pertencente
à Companhia de Agostinho Cardoso, interrogado por pessoas daquela
freguesia sobre os motivos de sua presença naquela cidade, dissera ter ido
entregar cartas a pessoas residentes nas proximidades do Recife e
acrescentara que dentro em pouco veriam eles como a cidade seria tomada
sem efusão de sangue, quer holandês, quer português.

195
O tradutor inglês escreveu fevereiro (cf. p.55, 1a coluna, últ. § da ed. holandesa e p. 42, 1a
coluna, 1a § da trad. inglesa).
196
O tradutor inglês escreveu: "20 de março" (cf. p. 56, 1ª coluna, 1a § da ed. holandesa e p.
42, 2a coluna, últ. § da trad. inglesa).
Página 108 de 349
Página 109 de 349

Embaixadores do Conde de Sonho recebidos em audiência

Em dezembro de 1643, Don Michiel de Crasto [Dom Miguel de Castro], Don


Bastiaen Manduba de Sonho e Don Antônio Ferdinandes, embaixadores do
Conde de Sonho, na Angola, chegavam ao Recife a bordo do navio Het Wapen
van Dorãrecht.[ Het Wapen Van Dordrecht] Cada um deles dispunha de apenas
um criado, mas trouxeram de presente ao Conde Maurício vários negros com
colares de ouro, além de grande número de escravos destinados à Companhia.

Recebidos em audiência a 21 de janeiro pelo Conde Maurício 197 e pelo Grande


Conselho, pediram, em nome de seu chefe, que se não mandassem auxílios ao
Rei do Congo de quem receavam um ataque para breve, não obstante se
acharem ambos em guerra contra os portugueses. O Conselho respondeu-lhes
que escreveria ao diretor da Companhia naquele país, senhor Nieulant,
pedindo que usasse de sua autoridade e mediação, no sentido de preservar as
boas relações e remover qualquer motivo de discórdia entre o Rei do Congo e
seu suserano, pois que ambos eram confederados dos Estados Gerais. O
Conde de Sonho dirigiu, ainda, uma carta ao Conde Maurício, pedindo licença
para comprar uma cadeira, uma capa, algumas insígnias de guerra, bandeiras
e diversas peças de vestuário.

O Grande Conselho dirigiu, em resposta, uma carta ao Rei do Congo e outra


em iguais termos ao Conde de Sonho exortando-os à paz e reme-tendo-lhes os
seguintes presentes em nome da Companhia:

AO REI

►Uma longa capa de veludo negro, com galões de prata;


►Um manto debruado com rendas de ouro e prata;
►Um paletó de veludo e um chapéu de castor com fita prateada.

AO CONDE
►Uma cadeira de braços, forrada com veludo vermelho e guarnecida com
franjas douradas;

►Uma longa capa de veludo com galões de ouro e prata;

►Um manto de rendas de ouro e prata;

►Um chapéu de veludo e um chapéu de castor com fita de ouro e


prata198.

Enquanto estiveram no país, foram os embaixadores hospedados com todas as


honras devidas ao seu elevado cargo. Mostraram-se muito hábeis no jogo do
espadão, no qual exibiam as mais terríveis expressões e atitudes.

197
O tradutor inglês omitiu a data (cf. p. 56, 1a coluna, 2° § da ed. holandesa e p. 43, 1a
coluna, 2° § da trad. inglesa).
198
Esses presentes oferecidos pelo Supremo Conselho concordam, de modo geral, com os
que descreve Barlaeus (VII, 254-5)
Página 110 de 349

Compreendiam perfeitamente o latim, e, nessa língua, fizeram várias orações


eruditas.
Página 111 de 349

Nova suspeita de revolta

A 13 de outubro de 1644, certo judeu, de nome Gaspar Francisco da Cunha, e


mais dois outros de destaque na colônia comunicaram ao Conselho que
haviam sido informados por alguns judeus do interior, com os quais mantinham
correspondência, que os portugueses estavam conspirando contra o Brasil
Holandês, expondo igualmente ao Conselho os fundamentos dessa
informação. Após haver testemunhado seu agradecimento aos anciãos por
essa demonstração de zelo, o Conselho resolveu não descansar enquanto não
descobrisse os planos dos portugueses. Informado de que os lusos
aguardavam a chegada, por via marítima, de armas e munições, determinou o
Conselho, a 17 de outubro de 1644199, que o iate Nieuwenhuisen,
acompanhado de um galeão e uma chalupa, fizesse o patrulhamento do litoral
a fim de manter estrita vigilância sobre os navios que pretendessem se
aproximar de terra.

A 11 de maio de 1644, deixava o Recife, de regresso à Holanda, o Conde


Maurício, depois de oito anos de governo no Brasil Holandês. Todo o povo e as
personalidades de projeção do Recife e da Cidade Maurícia compareceram
armados ao embarque, formando duas alas que iam desde a cidade velha até
à Porta do Mar. Ao passar entre elas, o Conde ia se despedindo com as mais
eloqüentes expressões de cortesia.

Diante do portão200, estava um cavalo arreado, no qual montou e dirigiu-se,


com grande comitiva, ao longo da praia, além de Olinda. Os Altos Comissários,
o Conselho da Justiça e outros Comandantes de Guerra o conduziram adiante
da cidade de Olinda, onde dele se despediram. Nassau continuou a viagem
com o Senhor Bullestrate, que tinha recebido ordem de acompanhá-lo até que
a esquadra se tivesse afastado. Entretanto, o Conde parou várias vezes e
contemplava o seu famoso palácio, que ele próprio mandara construir, belo e
agradável e que, então, abandonava; enquanto isso, os seus corneteiros
tocavam, contentes, Wilhelmus van Nassau201. Finalmente, embarcou com toda
a sua gente em quatro navios. Depois da partida do Conde, o Governo ficou a
cargo dos Senhores Altos Comissários Secretos, como Hendrik Hamel, Kodde
van der Burgh e Adriaen Bullestrate. A frota, composta de 13 unidades, só
zarpou da Terra-Vermelha a 22 de maio. Conduzia ela de regresso numerosos
soldados, pois para a defesa do Brasil Holandês ficaram apenas 18
companhias. O Senhor Bullestrate regressou ao Recife no dia 26.

199
O tradutor inglês escreveu: "12 de outubro" (cf. p. 57, 1a coluna, 1° § da ed. hol. e p. 43, 2a
coluna, 1° § da trad. inglesa).
200
O texto desde "Diante do portão" até. "e Adriaen Bullestrate" foi traduzido diretamente do
holandês, por estar omitido na edição inglesa. (Cf.p. 57, 1a coluna 3°, 4° e 5° da edição
holandesa com a p. 43, 2a coluna, 2° § da edição inglesa).
201
Vide anexo n. 1. Aí damos a música e letra da canção popular Wilhelmus van Nassau. Foi
composta e escrita por Philippe de Marnix, Senhor de Sain-te-Aldegonde, que nasceu em
Bruxelas, em 1538, e faleceu em 1598. Refugiou-sena Alemanha, quando os protestantes
foram perseguidos nos Países Baixos. Em 1592, voltou novamente para seu país e pelos
escritos, por meio da palaL religion, 1598, considerado, por Bayle, notável, pela mescla de
erudição e lógica. (XXVII, pp. 6 e 7).
Página 112 de 349

A 22 de abril, não muito antes da partida do Conde Maurício, foi lida no Grande
Conselho uma decisão da Diretoria da Companhia das índias Orientais, tomada
na sessão de 4 de junho de 1642 202 e datada de 22 de maio de 1643, segundo
a qual o governo do Brasil Holandês passaria a ser exercido pelo Grande
Conselho, até segunda ordem.

Dando cumprimento a essa resolução, o Conde Maurício designara um dia


para investir o Conselho em suas novas funções. Com aprovação do mesmo,
convocou, para 6 de maio, uma reunião conjunta dos desembargadores,
magistrados, conselho eclesiástico, ministros da Cidade Maurícia,
oficiais de terra e mar, altos funcionários da Companhia, oficiais da milícia e
elementos de destaque entre os judeus.

O Conde Maurício passa o Governo

À hora aprazada compareceram todos ao grande salão da municipalidade.


Fazendo uso da palavra, o Conde declarou, então, que, uma vez que o
Governo supremo, sua Alteza o Príncipe de Orange e o Conselho dos XIX lhe
haviam dado permissão para regressar à Holanda, depois de uma permanência
de 8 anos no cargo de Governador do Brasil Holandês, havia promovido essa
reunião a fim de externar a todos os seus agradecimentos pelos bons serviços
prestados à Companhia, cada um em seu posto, assim como pela disciplina,
honestidade e respeito, que sempre haviam demonstrado para com sua
pessoa. Disse ainda que, ao passar o Governo para o Grande Conselho, a
todos exortava em nome dos Estados, do Príncipe de Orange e do Conselho
dos XIX, a que rendessem aos conselheiros a mesma obediência, fidelidade e
respeito que de todos merecera.

Sua despedida

A seguir o Conde apresentou seus cumprimentos ao Conselho - que também


recebeu congratulações de todos os presentes - e deixou o salão. Passando
para a sala do Conselho, aí se despediu dos conselheiros e apresentou-lhes os
mais calorosos agradecimentos pela cooperação e assistência que sempre lhe
proporcionaram, bem como pelo respeito e deferência com que souberam
cercar a sua pessoa. Disse-lhes mais que, sendo essa a última vez que
comparecia perante essa Assembléia, havia elaborado um memorial 203, que
então lhes entregava, destinado a orientá-los na direção dos negócios públicos.
Punha-se ainda à disposição do Conselho para quaisquer esclarecimentos que
julgassem necessários. Os Conselheiros retribuíram-lhe os agradecimentos
apresentados e manifestaram a esperança de que o Conde jamais se
desinteressasse dos assuntos do Brasil Holandês. Antes de encerrar a sessão
aventou-se, na presença do Conde, a questão da precedência entre os
membros do Conselho, a fim de saber qual deles deveria exercer a

202
O tradutor inglês escreveu 1 de julho de 1642. (Cf. p. 43, 2a coluna, 3a §da ed. inglesa e p.
57, 2a coluna, 2° § da ed. hol.).
203
Maurício de Nassau deixou um testamento político, que foi traduzido por José Higino e
publicado na Rev. do Inst. Hist. Geog. Brás., 1895, t. 58, p. 223; e um relatório apresentado aos
Estados Gerais, em 27-9-1644, que vem publicado no 2° vol. dos Documentos Holandeses,
coligidos por Caetano da Silva.
Página 113 de 349

presidência, ou se esta deveria ser exercida em rodízio, uma vez que as


instruções recebidas eram omissas a esse respeito. Depois de expostos vários
argumentos pró e contra, ficou assentado que a situação deveria ser a mesma
que prevalecia durante os impedimentos do Conde, isto é, cada um conservaria
sua posição, sem prioridade de nenhum dos Conselheiros, até que o Conselho
dos XIX esclarecesse esse ponto. Assim, a direção dos negócios públicos
caberia primeiramente ao senhor Dirk Hamel, depois ao senhor Bullestrate, e,
finalmente, ao senhor Kodde van der Burgh.

Delegados enviados ao Brasil Português e suas instruções

O primeiro assunto de que se ocupou o Conselho foi de investigar


diligentemente sobre os projetos dos portugueses contra o Governo, para o
que decidiu, em janeiro de 1644, enviar o senhor Gysbert de Wit, Conselheiro
da Corte de Justiça, e o Capitão Dirk Hoogstraeten, comandante em chefe do
Cabo Santo Agostinho, em missão especial junto a Antônio Teles da Silva,
então Governador da Baía, com as seguintes instruções datadas de 15 do
mesmo mês; cumprimentar o Governador, após a entrega das credenciais, em
nome do Grande Conselho e apresentar-lhes sinceros protestos e garantias de
amizade e boa vizinhança. Em seguida deveriam comunicar ao Governador
que numerosos súditos do Brasil Holandês, depois de aí contraírem dívidas
consideráveis, tanto com a Companhia, como com particulares, retiravam-se
para a Baía. Desejava-se, portanto, que, para se fazer justiça, ou fossem tais
insolventes detidos, ou pelo menos que fosse o Governo Holandês informado
de sua chegada, a fim de serem eles submetidos à ação da Justiça. Na
realidade, porém, a verdadeira missão dos delegados batavos era conseguir
informações secretas sobre os seguintes pontos:

I - De que forças dispunham os portugueses na Baía e em outras províncias do


Sul;

II - Qual à sua frota;

III - Qual o número de navios que esperavam receber de Portugal;

IV - Qual a situação do tráfico de escravos e de onde provinham eles;

V- Se havia comércio entre os lusos e os habitantes de Bueno-Aires;

VI- Quais as condições da região.

De tudo deveriam dar ao Grande Conselho, por ocasião de seu regresso, as


melhores informações que conseguissem obter. Levavam ainda os emissários
holandeses a incumbência de descobrir, secretamente, quais as pessoas que
fomentavam a tão temida rebelião dos portugueses no Brasil Holandês e qual a
assistência, ou auxílio, que estes deveriam receber. Cumpria-lhes, ainda, instar
com o Governador para que não permitisse, de futuro, que desertores
holandeses chegados à Baía, por terra, fossem enviados a Portugal, mas, sim,
detidos e recambiados para o Recife.
Página 114 de 349

Cidade de Salvador - 1671 - Arnoldus Montanus

Sua chegada a São Salvador

Os enviados do Governo Holandês chegaram à Baía a 8 de fevereiro de 1644,


tendo o navio que os conduzia ancorado ao cair da tarde junto ao Castelo de
Santo Antônio, na cidade de São Salvador. Imediatamente apresentaram-se a
bordo dois oficiais a fim de indagar de onde vinham, por quem e a quem eram
enviados, para informarem o Governador Antônio Teles da Silva. No dia
seguinte os delegados holandeses foram cumprimentados, em nome do
Governador, pelo major Domingos Delgado e pelo Capitão David Ventura que
lhes disseram ter ordens de lhes enviar um escaler, para desembarcarem.
Pelas três horas da tarde, os mesmos oficiais, acompanhados de mais três ou
quatro, voltaram, em uma embarcação, para buscar os delegados batavos.

São recebidos em audiência

Tão logo desembarcaram eles, encontraram animais de montaria à sua


disposição, e, cavalgando-os, foram conduzidos até o palácio do Governador,
por uma colina repleta de curiosos. Forte guarda estava postada no vestíbulo.
Na sala seguinte, encontravam-se vários alferes e outros oficiais inferiores. No
terceiro compartimento achavam-se capitães e tenentes, e, finalmente no
último, coronéis, generais, alguns eclesiásticos e o próprio Governador que,
tendo ido até a porta para receber os hóspedes, os convidou para se sentarem
a seu lado, em poltronas adrede preparadas. Os enviados iniciaram, então, sua
saudação, dizendo que se sentiam extremamente felizes por encontrá-lo em
perfeita saúde, no momento em que vinham visitá-lo por determinação do
Página 115 de 349

Governo do Brasil Holandês, cujas excelentes disposições desejavam


demonstrar-lhe para que mais se estreitassem as boas relações entre ambos
os Governos. Desejavam também apresentar-lhe votos mui cordiais pela
felicidade de Sua Majestade, pela sua própria e pela prosperidade do Governo,
para cuja preservação estavam prontos a contribuir com tudo o que estivesse a
seu alcance. A seguir disseram ao Governador que tinham vários assuntos a
tratar com ele, tão logo julgasse conveniente recebê-los. O resto da
conversação decorreu entre mútuos cumprimentos e informações. Depois
dessa recepção, foram os enviados novamente conduzidos pelo Governador
até à porta da sala, onde este determinou aos já citados Domingos Delgado e
David Ventura que os determinou a um grande prédio ricamente mobiliado, no
qual ficariam hospedados por sua conta. A isso os delegados se recusaram,
alegando ser contrário às instruções de seus superiores. Forçados, entretanto,
a aceitar o oferecimento do Governador, foram magnificamente tratados ao
jantar.

Segunda audiência

Por volta das 11 horas da manhã seguinte, dirigiram-se os delegados


novamente ao Palácio, onde, depois de solicitar uma segunda audiência, foram
recebidos da mesma forma que na véspera. Convidados a se retirarem todos
os que ali se achavam, com exceção do secretário do Governador, a este
entregaram os enviados holandeses as mensagens de que eram portadores,
redigidas em português, pedindo que fossem elas objeto da melhor
consideração por parte do Governador,-visto como visavam a consolidação das
boas relações entre os dois Governos. Deu-lhes, então, o Governador esta
resposta genérica: que se esforçaria sempre por cultivar um perfeito
entendimento e boas relações conosco, em cumprimento, aliás, às instruções
expressas e reiteradas que recebera do Rei seu Senhor. E, quanto às
mensagens que lhe foram entregues, iria reunir seu Conselho de Guerra e
Justiça e ulteriormente lhes comunicaria sua resposta.

Foram eles, então, reconduzidos por Domingos Delgado à residência que lhes
havia sido destinada, onde mais uma vez receberam, ao jantar, toda a sorte de
atenções. No dia seguinte receberam a visita do próprio Governador.

Terceira audiência

No dia 17 obtiveram os enviados uma terceira audiência do Governador que


lhes comunicou, em termos muito corteses, haver consultado o Conselho sobre
os assuntos ventilados, e que a resposta que lhe competia dar-lhes se achava
condensada na carta que então lhes entregava e cujo teor lhes foi lido.
Conhecido o conteúdo da carta, os delegados redargüiram dizendo que, uma
vez que se deixaria, assim, aberta uma porta aos velhacos e vagabundos,
esperavam, ao menos, que o Governador determinasse que fossem levados ao
conhecimento do Governo Holandês os nomes dos indivíduos que se
refugiassem na Baía, a fim de que o Grande Conselho fosse informado dos
lugares onde se homiziassem. A isso o Governador acedeu. Depois dos
cumprimentos do estilo e de mútuos protestos de amizade, deixaram
novamente o Palácio os embaixadores batavos.
Página 116 de 349

Seu regresso ao Recife

No dia 22, os enviados do Grande Conselho despediram-se do bispo e de


várias pessoas gradas, das quais haviam recebido cortesias, e, por fim, do
próprio Governador, que se fez acompanhar por muitos oficiais e pessoas de
destaque. Os nossos delegados agradeceram ao Governador as atenções e
cortesias de que foram alvo, desejando tanto a ele como ao Rei de Portugal um
longo e feliz reinado, bem como a vitória sobre os castelhanos. Retribuiu-lhes o
Governador os cumprimentos e os acompanhou até fora da sala, tendo então
ordenado a vários negros que conduzissem os embaixadores em cadeirinhas
até à base da colina sobre que se ergue a cidade. Aguardava-os o mesmo
escaler que os havia trazido a terra, para novamente transportá-los para bordo,
ao som festivo de bandas musicais. Após se despedirem dos enviados
holandeses, os oficiais portugueses regressaram à cidade. Os nossos
delegados iniciaram, então, a viagem de regresso ao Recife, onde chegaram
dias depois, em segurança.

É o seguinte o conteúdo da carta que lhes foi entregue pelo Governador :

CARTA DO GOVERNADOR

Carta do Governador.

Gysbert de Wit, Conselheiro de vossa Corte de Justiça, e Dirk


Hoogstraeten, comandante em chefe do Cabo de Santo
Agostinho, deputados de Vs. Excias., aos quais recebi de
acordo com suas credenciais e merecimentos, entregaram-me
vossa carta aventando vários assuntos que se achavam
autorizados a tratar comigo. Posto que me tenha esforçado, de
todas as maneiras, por cultivar e manter as boas relações de
vizinhança, vejo-me, entretanto, constrangido a confessar com
franqueza,, que escapa à minha alçada dar-vos resposta mais
satisfatória que a, presente. Quero crer que as inúmeras provas
que tendes tido das minhas sinceras disposições constituem o
penhor de que estarei sempre pronto, em tudo quanto dependa
de meu governo, a evidenciar as mesmas demonstrações de
obediência e fidelidade ao Rei, meu Senhor, a quem apraz que
seja inviolavelmente observada a trégua pactuada, e, bem
assim, das minhas sinceras intenções e do apreço em que
tenho a vossa amizade, nada mais desejando senão que me
proporcioneis oportunidade de vos dar uma demonstração real
de minha solicitude em vos servir. Recomendo-vos à proteção
do Altíssimo.

Baía, 14 de fevereiro de 1645. Assinado


Antônio Teles da Silva
Página 117 de 349

Com respeito aos seis pontos das instruções secretas que levaram, foi o
seguinte o relatório apresentado ao Grande Conselho pelos enviados
holandeses:

Relatório dos enviados, ao Conselho

I - Que as forças portuguesas daquelas regiões eram geralmente


avaliadas por uns em 3.000 e 3.000 ou 3.500 por outros, sem incluir
os brasileiros nem os negros 204. Entretanto, pela investigação mais
acurada a que haviam procedido, calculavam que elas não
excedessem de 3.000 homens, inclusive brasileiros e negros, e aí
compreendidas todas as guarnições tanto do Norte como do Sul,
até o Rio de Janeiro. Consistiam elas em cinco regimentos, ou
sejam: três de portugueses, sob o comando dos coronéis João de
Araújo, Martins Soares e N. N., o quarto de brasileiros sob as
ordens de um coronel brasileiro, Antônio Filipe Camarão, e o quinto
de negros, sob o comando do preto Henrique Dias. Quanto a estes
dois últimos regimentos, não excediam eles, englobadamente de
300 homens dispersos em guarnições, ao norte, próximo ao Rio
Real, junto às nossas fronteiras. Compunham-se eles da escória
social das respectivas regiões. Por esse motivo, não podiam ser
aquarteladas na Capital, pois, já se tinham dado rixas entre as
guarnições, tendo exigido a presença de oficiais superiores para
dirimi-las. Os três regimentos portugueses compreendiam cerca de
2.700 homens aquartelados em São Salvador e nos fortes
circunjacentes, com exceção de duas companhias, das quais uma
fora destacada para as proximidades do Rio Real e a outra para a
Ilha do Morro de São Paulo. A esse número, havia, ainda, que
acrescer 100 homens enviados para as Capitanias de Ilhéus, Porto
Seguro e Espírito-Santo. Assim, pois, todas as guarnições de São
Salvador e dos fortes vizinhos somavam pelo menos 2.300 homens,
cada Companhia contando aproximadamente cem homens
escolhidos e bem uniformizados. Quatro companhias mantinham-se
de prontidão todas as noites, a saber: uma no Palácio, uma em
cada porta da cidade e a quarta nos fortes marítimos, fora da
cidade.

II - Quanto à força naval dos portugueses, as observações


procedidas revelavam insignificância, pois eram elas mais
consideráveis em número que em poder ofensivo. Consistiam em
apenas 50 unidades, a saber: UO caravelas, 2 navios de pequeno
porte e iates, inteiramente desaparelhados para a guerra, não tendo
os delegados conseguido observar preparativo algum nesse
sentido. Parece que a missão principal da frota lusa consistia em
proteger os navios destinados à Metrópole contra os ataques de
piratas castelhanos e dinamarqueses e de corsários turcos. Pelo
que conseguiram os embaixadores observar durante a sua
permanência na Baía, lá haviam chegado dois poderosos navios de
204
O tradutor inglês escreveu: "entre 3.000 e 4.000 homens". (Cf. p. 61, 1a coluna, 2° § da ed.
holandesa e p. 46, 2a coluna, 2° § da trad. inglesa).
Página 118 de 349

guerra portugueses, com tripulação de 600 homens cada um e bem


municiados, sob o comando de Salvador Correia de Sá. Esses
navios tinham ordem de ir até o Rio de Janeiro para de lá escoltar
até a Baía os que estivessem em condições de zarpar, e, em
seguida, comboiá-los, juntamente com outros que daí deveriam
partir, até às costas portuguesas. Por essa razão, outras naus cujas
partidas estavam marcadas para dias diferentes, segundo a
conveniência de cada uma, tiveram ordem de aguardar sua inclusão
no mesmo comboio. Por esses navios de guerra soube-se que o
Rei de Portugal proibira a construção de caravelas e outras
embarcações pequenas para que as atividades dos estaleiros se
concentrassem na construção de barcos mais bem aparelhados
para a guerra marítima.

Pelo que informaram os delegados holandeses, podiam-se prever


graves inconvenientes para os portugueses, decorrentes da alta dos
fretes que o sistema de comboios certamente provocaria, com
relação às mercadorias transportadas do Brasil português para a
Europa, especial-mente o açúcar que, conseqüentemente, não
poderia ser vendido pelo preço mantido pelos holandeses. Seriam,
provavelmente, consideráveis os prejuízos que o comércio teria que
sofrer, tanto em matéria de juros como no que respeita aos prazos
de entrega, à vista da necessidade de se reunirem em comboios os
navios, quando anteriormente tinham liberdade de regressar à
Metrópole quando lhes aprouvesse.

III - Observaram mais que, apesar de os baianos estarem


aguardando a chegada daqueles navios, então em viagem
inaugural, algumas naus portuguesas procedentes tanto da costa
lusa como das ilhas, lá aportaram antes das demais.

IV - Aos delegados batavos pareceu que o tráfico negreiro era


insignificante por ocasião de sua visita. De fato, apenas haviam
conseguido saber que o comércio de escravos prosseguia ainda.
Não atingindo o preço de um negro, por aquele tempo, mais do que
35$000 ou, o mais elevado, 40$000, ou sejam 262.10 florins ou 300
florins, concluíram os nossos enviados que devia haver suprimento
suficiente de braço escravo205. Os últimos negros importados
procediam do Cabo Verde e de Ardra. Informaram a seguir que,
quando chegaram à Baía, na quarta-feira, 8 de fevereiro,
encontraram dois navios de grande calado bem tripulados e
artilhados com 20 peças cada um. Indagando de seu destino,
souberam que partiam para Portugal. Entretanto, não lhes senão
dado saber a que porto rumavam, desconfiaram, baseados,

205
O tradutor inglês escreveu que o preço de um negro não atingia, àquele tempo, mais do que
300 florins (cf. p. 62, 2a coluna, 3° § da ed. Holandesa e p. 47, 1a coluna, 3° § da trad. inglesa).
Sobre esse ponto veja-se a magnífica contribuição de José Antônio Gonsalves de Melo, neto:
"A situação do negro sob o domínio holandês", [i]in[/i] Novos Estudos Afro-Brasileiros,
Biblioteca de Divulgação Científica, vol. IX, 1937, Rio, p. 201-221 (especialmente p. 203).
Página 119 de 349

também, em outras razões, que se dirigiam para outro destino. Não


erraram. De fato, a 17 de fevereiro206, quando se preparavam para
regressar, souberam os nossos enviados, por intermédio de uma
mulata de nome Juliana e também por dois monges, que tais navios
haviam sido despachados com tropas para Angola, a fim de
protegerem o povo de Masagão que, reduzido em número, receava
um ataque dos negros do país. Haviam, por isso, solicitado o auxílio
do Governador e este dera ordens para que os navios zarpassem à
noite e procurassem chegar a Masagão secretamente, sem praticar
nenhum ato hostil contra os holandeses. Se era exata a informação,
e, até que ponto o era, só o tempo o provaria. Tinham, entretanto,
os nossos delegados sobejas razões para acreditar que o Governo
se empenhava em lhes ocultar não só essa expedição como
também outros assuntos, pois (conquanto só o soubessem quase à
hora da partida de regresso) tiveram os lusos o cuidado de impedir
que qualquer alemão ou holandês conversasse, ou, mesmo, se
avistasse com eles. Essa proibição foi tão rigorosamente observada
que os nossos emissários chegaram a imaginar que não havia
holandês algum na Baía. Só mais tarde é que vieram a saber que
todos eles haviam sido conduzidos para bordo de navios
portugueses com o fim de evitar que mantivessem qualquer contado
com a tripulação do nosso barco. Ainda com o mesmo fim,
alegando a necessidade de velar pelo nosso navio, postaram junto
a ele seis sentinelas, em dois barcos, cuja missão era impedir que
qualquer pessoa viesse ter conosco a bordo, de acordo com as
instruções do Governador.

V - Que os baianos, como os habitantes de outras capitanias


portuguesas, não mantinham, na ocasião, o mínimo comércio com
os de Buenos Aires.207 Que, logo após a Revolução em Portugal, os
baianos haviam tentado chegar até lá, sendo, porém, recebidos
como inimigos. Eram, portanto, de opinião que aquele lugar logo
estaria completamente arruinado, pela escassez de comércio, pois
que toda a sua vida dependia do tráfego marítimo procedente das
costas brasileiras. Decadente este, nenhuma prata para aí se
encaminharia, do Peru, não sendo provável que os espanhóis
afrontassem os riscos de uma viagem ao longo da costa inimiga
uma vez que dispunham de rota mais segura para o transporte de
seus tesouros das índias Ocidentais.

VI - Que não lograram os nossos emissários obter nenhuma


informação segura sobre o que planejavam certos habitantes da
Baía em combinação com outros do Brasil Holandês, contra a sorte
deste último.

206
O tradutor inglês escreveu: "22 de fevereiro" (cf. p. 63, 1a coluna, 1° § da ed. holandesa e p.
47, 2a coluna, 1° § da trad. inglesa).
207
Sobre relações entre o Brasil português e Buenos Aires, cf. [i]Los portugueses en Buenos
Ayres, siglo XVII, R. de Lafuente Machain. De La Real Academia de Ia Historia. (Madrid, El ano
MCMXXXI, Libraria Cervantes).
Página 120 de 349

Além desse, os embaixadores batavos apresentaram um relatório geral sobre


quanto lhes fora dado observar com respeito às condições da cidade de São
Salvador, seu povo, o Governador e outros assuntos relacionados com as
regiões circunvizinhas.

Outra revolta dos portugueses

Haviam se dissipado como fumo os boatos que corriam em 1640 sobre a


conspiração dos portugueses contra nós, mas, em fevereiro de 1645, de novo
começaram eles a fervilhar quando se principiou a descobrir a verdade.
Segundo o que se dizia, os portugueses, contando com o apoio da Baía,
pretendiam tomar armas contra nós. A ocasião era mesmo oportuna para a
execução de um tal plano, pois o Conde Maurício regressara para a Europa
com a maior parte de nossa frota e grande número de soldados, e, por outro
lado, não era lícito esperar, tão cedo, novas remessas de forças para o Brasil.

O Grande Conselho, bem a par do que se passava, não poupava esforços no


sentido de descobrir os cabeças da rebelião e responsabilizá-los pelo crime,
condenando-os, conseqüentemente. Vários oficiais foram, enviados como
espiões para o interior, a fim de procurar conhecer as intenções do povo e
saber se havia ligações entre este e os promotores da rebelião.

O mesmo se fez com relação à outra margem do Rio São Francisco e ao


acampamento de Camarão, para onde se destacaram pessoas encarregadas
de inquirir de seus propósitos e se informarem sobre os preparativos que por
ventura se estivessem realizando para a guerra. Nada, porém, conseguiram
apurar, pelo que as suas informações careceram de importância. Puderam,
entretanto, perceber que havia razão para tais avisos, pois dado o caráter altivo
dos portugueses (além da diferença de religião) certamente não deixariam eles
escapar qualquer oportunidade de se libertar do jugo de seus dominadores. A
13 de fevereiro de 1645 dirigia o Grande Conselho a seguinte carta ao
Conselho dos XIX, com relação aos planos portugueses:

Carta do Grande Conselho à Companhia das Índias Ocidentais

Nobilíssimos e Mui Honrados Senhores,

Durante o governo de Sua Excelência o Conde Maurício, vários


habitantes deste Estado entregaram-se a maquinações secretas
para, se rebelarem contra nós, na esperança de conseguir auxílio
da Bahia.

Consistiam as suas atividades em insinuar entre seus amigos, após


o êxito que alcançaram no Maranhão, que, à vista do considerável
enfraquecimento de nossas forças devido aos grandes reforços
enviados às guarnições de Angola, São Tome e outros pontos,
excelente oportunidade se lhes deparava para sacudir o jugo batavo
e restaurar a liberdade antiga, sob seu próprio Rei, Não foi,
portanto, pequeno o encorajamento que receberam - imaginando
poderem levar a efeito os seus planos com relativa facilidade - ao
Página 121 de 349

saber que havia já tempo que não recebíamos novos suprimentos


de carne e de outros gêneros, nem reforços militares da Holanda e
que, já esgotados os armazéns, da Companhia, eram as guarnições
dos fortes obrigadas a se abastecer periodicamente de farinha e
carne fresca, no interior do país.

Julgaram, pois, os portugueses que, se conseguissem dominar a


região, essas guarnições deveriam necessariamente cair em suas
mãos, tal como ocorrera em 1640 com as guarnições espanholas
em Portugal que, por idênticos motivos, não puderam resistir aos
portugueses.

Ademais parecia-lhes que, a menos que enfraquecêssemos demais


as nossas guarnições, não teríamos tropas suficientes para
enfrentar uma ação de grande envergadura, em campo aberto,
Estas e outras insinuações semelhantes foram insistentemente
inculcá-las aos portugueses por indivíduos que, encontrando-se em
situação difícil sob o nosso domínio, esperavam melhorar seus
negócios, substituindo o Governo. Nada disso, entretanto, produziu
grande efeito, enquanto Sua Excelência se manteve à testa do
Governo, em parte porque, advertidos de tal propaganda,
observávamos cuidadosamente todos os movimentos dos
portugueses, e, em parte porque, sendo então nossas forças de
terra e mar, muito maiores que atualmente, pouca ou nenhuma
probabilidade de êxito tinham os projetos lusos. Julgaram, por isso,
de bom aviso, aguardar o regresso de Sua Excelência à Holanda.

Tendo sido divulgada com antecedência a partida do Conde, e,


cientes de que as nossas forças militares ficariam
consideravelmente reduzidas, teriam eles ótima oportunidade para
pôr em prática os planos cuja execução há tanto tempo vinham
procrastinação.

Além disso, muitos portugueses que viveram sob o Governo do


Conde e confiavam em sua autoridade como a única capaz de
manter a disciplina da tropa, receosos agora das arbitrariedades e
execuções que poderiam cometer oficiais ambiciosos e soldados
cúpidos, viam-se forçados a se aliar contra nós.

Depois da partida de Sua Excelência, essas conspirações vêm


progredindo diariamente; os implicados revelam o maior zelo em
obter toda a sorte de informações sobre o efetivo de nossas
guarnições, com a evidente intenção de levar a efeito os seus
planos antes que tenhamos tempo de receber reforços e provisões
da Holanda.

Com esse fim em vista, expediram os rebeldes mensageiros para a


Baía, a fim de pleitear auxílio de homens e de armas, nos quais
parecem depositar grandes esperanças. Há fortes razões para se
acreditar que a vinda de André Vidal, da Baía, em agosto último,
Página 122 de 349

com o pretexto de fazer despedidas antes de regressar a Portugal


onde iria servir seu Rei, teve como objetivo principal verificar
pessoalmente qual a situação aqui reinante a fim de poder informar
tanto o Governador, na Baía, como a Corte, em Portugal.

É também provável que tivesse procurado sondar as disposições


dos nativos, bem como estimular os partidários a lutar por sua
causa mediante a promessa de prontos socorros da Baía. Mais
tarde viemos a saber que esteve presente a vários conciliábulos.

Entretanto, ainda que muito se animassem os rebeldes ante a


perspectiva de sucesso, à vista da diminuição de nossas forças e
da escassez de provisões com que lutamos, não chegaram a pôr
em prática os seus planos, pois perceberam que, sabedores de
suas maquinações, pudemos tomar, a tempo, as devidas cautelas
contra eles.

Além disso, muitos dos moradores portugueses apreciaram


extraordinariamente a atuação do Grande Conselho, na gestão dos
negócios públicos, preferindo antes viver em calma e com
segurança, do que se comprometerem em tão arriscada empresa.

E assim permaneceram as coisas sem alteração de vulto, até o


presente, quando já não temos elementos para afirmar se
pretendem eles ou não deixar que tudo corra como até aqui
Segundo fomos informados de fonte fidedigna, pretendiam os
revoltosos assestar o seu principal golpe contra o Recife, que
contavam tomar de surpresa.

Parecia-lhes que, com o auxílio dos nossos próprios negros (que,


na maior parte, são católicos), poderiam capturar a praça no dia
marcado para o leilão de escravos, quando grande número de
pessoas procedentes do interior aflui para a capital. Se isso
acontecesse, é claro que as demais seriam forçadas a se entregar.

Todos esses planos, porém, falharam devido aos fortes


contingentes que tivemos a cautela de concentrar no Recife durante
os dias de feira. Ao que consta, os principais cabeças do
movimento são: João Fernandes Vieira e seu sogro Francisco
Berenguer, além de vários outros que já teríamos recolhido à prisão
se contra eles tivéssemos conseguido obter informações mais
seguras.

Entretanto, a pesar de tudo fazermos para apurar a verdade, não


conseguimos encontrar motivos que justificassem a prisão desses
indivíduos, nem, o desarmamento geral do povo. Ademais,
soubemos que se o tentássemos fazer, teríamos imediatamente
uma insurreição geral. Nossos armazéns e postos de
abastecimento estavam, por essa época, de tal forma desprovidos
que não poderíamos manter qualquer força, retirada das
Página 123 de 349

guarnições, para oferecer luta em campo aberto.

Além disso, um tal expediente poderia trazer conseqüências


desastrosas para nossa, gente, principalmente para os que
moravam longe dos fortes e que, temíamos, corressem o risco de
serem massacrados pelos portugueses.

Pelas informações que temos enviado a Vs. Excias., vê-se


claramente que os próprios súditos do Rei de Portugal têm sido
instigados a agir contra nós. Torna-se, portanto, absolutamente
necessário usar-se de toda a cautela bem como apressar a
remessa dos suprimentos que reiteradamente lhes temos pedido.

Baseados nos primeiros informes aqui recebidos, isto é, que os


portugueses tentariam desembarcar forças e armas ao Sul do
Recife, enviamos, a 13 de outubro, o iate "Enkhuizen"
acompanhado de uma chalupa e um galeão, para fazerem o
patrulhamento daquelas paragens. Entretanto, essas embarcações
regressaram algum tempo mais tarde, sem ter conseguido descobrir
coisa alguma.

A informação que posteriormente recebemos foi de que se estava


armando uma frota na Baía, com o fim de transportar forças com
que auxiliar os rebeldes. Para investigar esse ponto, achamos que
nenhum expediente seria melhor do que enviar para lá os senhores
Gysbert de Wit e Ditrk Hoogstraeten, com as instruções secretas de
que anexamos cópia. Esses senhores partiram a 25 do mês
findo208.

Soubemos, depois, que certo capitão português havia sido


ultimamente encaminhado da Baía para cá, acompanhado de um
alferes e três soldados, a fim de concitar os nossos súditos à
rebelião, sob promessa de socorros que de lá viriam. Já demos
todas as providências para localizá-los e capturá-los. Jamais
deixaremos de adotar qualquer medida que, nas circunstancias,
possa contribuir para a preservação deste Estado.

Recife, 13 de fevereiro de 1645.

No dia 4 de abril209, o Grande Conselho foi informado por carta, que da Paraíba
lhe dirigiram Isaak Rasiere [o dono do Engenho Gargaú] e o Capitão Blaeubeek,
ser voz corrente naquela região que Camarão, chefe dos brasileiros se achava
em marcha do Sertão para o Ceará, a fim de se reunir com os brasileiros da
região e atacar a Capitania do Rio Grande. À vista disso, o Conselho expediu

208
Nieuhof escreveu (p. 66, 2a coluna, 1° §): [i]die den vijf en twintighstenpassato vertroeken
zijn.
209
Na tradução inglesa (p. 49, 2ª coluna, 2a §) foi omitido o mês de abril. (Compare-se com a
p. 66, 2a coluna, 2° § da edição holandesa).
Página 124 de 349

ordens a Hans Vogel, Governador de Sergipe d'El Rei para que se informasse
e lhe comunicasse com presteza o que conseguisse apurar sobre a presença
de Camarão com sua tropa no Rio Real, ou, caso contrário, se estava em
marcha e quais seriam suas intenções. Transmitiu, ainda, o Conselho
instruções ao povo da Paraíba no sentido de que procurasse saber qual a
origem desses boatos e o informasse a respeito.

A 15 de maio, chegou a resposta de Hans Vogel, datada de Sergipe d'El Rei,


25 de abril, na qual comunicava ao Conselho que, de conformidade com as
ordens recebidas, havia enviado um sargento e alguns soldados ao Quartel
General de Camarão, situado a cerca de 12 léguas 210 de Sergipe, sob o
pretexto de procurar desertores. Informaram esses militares, ao regressar, que
as forças de Camarão consistiam em 200 portugueses e 1.200 brasileiros e
que se achava toda acantonada no mesmo lugar, ocupada, em sua maioria, em
cultivar a terra, pois que o próprio Camarão estava na Baía, onde tinha ido
assistir às solenidades da Páscoa. Foram, assim, levados a crer que as
notícias de que essas forças estavam em marcha não passavam de pura
fantasia. Entretanto, dois dias mais tarde, esses boatos voltaram a circular,
desta vez trazidos por dois portugueses chegados do Rio São Francisco pelo
navio de Jan Hoen e que desembarcaram junto à Candelária. Inquirido, porém,
rigorosamente, o capitão do navio, por ordem do Conselho, declarou o mesmo
que a 8 daquele mês, ao deixar o Rio São Francisco, não havia notícia da
anunciada marcha de Camarão.

210
O tradutor inglês (p. 50, 1a coluna, 1° §) escreveu 10 léguas, quando se trata de 12 léguas
(ed. holandesa: p. 67, 1a coluna, 1° §). Cf. nota 42.
Página 125 de 349

A 30 de maio de 1645, certo judeu de nome Abraham Mercado 211 entregava ao


Conselho uma carta anônima, sob o pseudônimo de Plus Ultra. Traduzida do
português, na mesma noite, apurou-se, de seu conteúdo, que três
desconhecidos informavam o Conselho que numerosas tropas se deslocavam
do Rio Real para a Paraíba com o propósito de ali se reunir a um grupo de
descontentes e atacar de surpresa os fortes holandeses. Aconselhavam ainda
os desconhecidos que se efetuasse a prisão de João Fernandes Vieira, o
Chefe da Revolta.

A carta é a seguinte:

CARTA DE INFORMAÇÃO AO CONSELHO

Admira-se que os senhores se sintam tão seguros, quando é notório


que a mata da Paraíba está repleta de forças procedentes do Rio
Real constituídas por numerosos negros, mulatos e portugueses
chefiados por Camarão.

Desde março que estão se reunindo, na esperança de se juntarem,


agora, às tropas que até aqui estavam detidas pelas cheias dos
rios.

O que planejam é incitar o povo a se levantar em armas, e, uma vez


isso conseguido, consideráveis reforços lhes chegarão da Bahia,
tanto por mar como por terra; com isso planejam bloquear o Recife.
Contam ainda estabelecer acampamento em Olinda ou na várzea e
aquartelar suas tropas nas freguesias das redondezas.

Alardeiam que suas forças já se acham consideravelmente


aumentadas pelos devedores da Companhia e outros vagabundos e
ameaçam, massacrar todos os súditos de Vs. Excias. que se
recusarem a apoiá-los.

Pessoa merecedora de todo o conceito e crédito pertencente ao dito


acampamento deu-nos esta informação para que a transmitíssemos
a Vs. Excias, a fim de se acautelarem.

211
Abraham Mercado pertencia à colônia judaica do Brasil holandês. Era membro do
Mahamed, diretório formado de 7 indivíduos. Seis parnassinos e um gabay, isto é, seis
presidentes e um tesoureiro. (Cf. LVIII, p. 14, 15 e 53). Era médico. Segundo afirma Keyserling,
morreu em 1655 (Cf. XLVII, p. 70); segundo Cardozo de Bethencourt (X, p. 9) saiu do Brasil,
indo para Barbados, em 1656; e em 1655, segundo João Lúcio de Azevedo (V, 435).
Menasseh ben Israel dedicou o segundo volume do [i]Conoiliator,[/i] 1641, aos proeminentes
judeus brasileiros: David Sênior Coronal, Abraham de Mercado, Jacob Mescate, Isaac
Castanho (Bloom, XI, p. 130). Abraham Mercado, ao verificar-se a expulsão dos holandeses do
Brasil, não emigrou para Barbados sozinho, pois "eram 30 famílias, algumas das quais muito
pobres; eles são ordinariamente cidadãos e observam as leis, exceto em questão de religião".
(Cf. Friedenwald, XXXV, p. 60). Seu filho chamou-se David Raphael Mercado.
Página 126 de 349

É por isso que lhes dirigimos a presente. A mesma pessoa nos


informou que João Fernandes Vieira é o Comandante em Chefe da
rebelião e mantém todas as suas forças rebeldes na mata até o dia
aprazado em que, reunidas as tropas, atacarão simultaneamente
todos os fortes holandeses e postos avançados.

Também soubemos que o referido Vieira já não dorme em sua casa


e está sempre de prontidão.

Disso Vs. Excias. poderão facilmente se certificar, enviando gente


para prendê-lo com todos os seus escravos e empregados. Se Vs.
Excias. conseguirem detê-los, é provável que, sentindo-se
surpreendidos, eles façam ampla confissão.

Essa empresa não apresenta riscos para Vs. Excias., nem mesmo
no caso de insucesso. Concitamos Vs. Excias. a que se interessem
pela sorte desta pobre gente que, caso contrário, será forçada a se
unir aos rebeldes contra Vs. Excias..

Julgamos, pois, absolutamente necessário agir sem demora e sob o


máximo sigilo, pois, se os rebeldes se sentirem descobertos,
iniciarão o movimento imediatamente. Somos de parecer que se
devem enviar fortes contingentes para as defesas externas e para
os portos da Candelária e do Recife.

Aconselhamos a Vs. Excias. que de hoje em diante exijam do povo


a entrega de suas armas e ordenem a todos os senhores de
engenho, principalmente os das freguesias de Várzea, Igarassú,
São Lourenço, Santo Amaro, Muribeca de Cabo, Ipojuca e
Serinhaém, que se apresentem no Recife, com seus escravos,
assegurando-lhes que não serão molestados pelas suas dívidas.
Uma vez presentes todos eles, deverão ser detidos sob pretexto de
defendê-los contra as tentativas dos rebeldes, no interior, até que
se decida sobre a orientação a seguir.

Assim procedendo Vs. Excias., não só consolidarão a posição do


Governo como prestarão real serviço a muitos particulares. O
mesmo sistema poderá ser posto em prática com referência aos
senhores de engenho da Paraíba, que poderão ficar detidos no
Forte e os de Porto Calvo que ficarão naquela praça. Se Vs. Excias.
conseguirem agarrar os cabeças, todo o plano dos insurretos terá
malogrado.

Aconselhamos a Vs. Excias. a que não dispensem mais soldados


até que tenham feito uma devassa geral da rebelião e que reforcem
as guarnições das fortalezas, pois do contrário teremos de ver os
holandeses em fuga para não serem massacrados.

Nós três, como súditos fiéis que somos de Vs. Excias., temos a
nossa consciência tranqüila ao propor-lhes o necessário remédio, a
Página 127 de 349

prisão de Vieira, que deverá ser efetuada com sigilo e inteligência,


pois, como já dissemos, ele está sempre prevenido.

Vs. Excias. naturalmente compreenderão a conveniência de se não


divulgarem- estas informações. Outrossim, podemos assegurar-lhes
que não deixaremos de encaminhar a Vs. Excias., daqui por diante,
qualquer outro informe de que tivermos ciência, e dia virá em que
não teremos dúvida em revelar a Vs. Excias, quem são estes três
fiéis vassalos. Se comparecêssemos pessoalmente diante de Vs.
Excias., nada mais poderíamos declarar além do que já ficou acima
dito.

Devem Vs. Excias. tomar, sem demora, providências enérgicas


contra a tentativa dos rebeldes, sabendo-se que esperam pôr em
execução os seus planos nas próximas festas. Estamos passando a
Vs. Excias. estas informações imediatamente após terem chegado
ao nosso conhecimento.

Aconselhamos também a prisão de Francisco Berenguer, sogro de


Vieira, e de Antônio Cavalcanti, e, em resumo, de todos os
principais cabeças de Várzea e de outros lugares .

Assinada

A VERDADE

Plus Ultra

A. vista dessa carta, o Grande Conselho convocou Paulus de Linge, Presidente


do Conselho de Justiça, o Vice-Almirante Cornelisz Lichthart e o Tenente-
coronel Garstman, para uma reunião, a fim de consultá-los sobre as medidas a
serem tomadas em tais conjunturas, desde que por essa carta, bem como por
várias outras, estavam eles suficientemente prevenidos do perigo iminente,
ainda que seja muito relativo o valor de uma carta anônima. Entretanto, à vista
das circunstâncias em que eram remetidas essa e outras informações, julgou-
se absolutamente necessário tomar medidas acauteladoras da segurança do
Brasil Holandês, contra quaisquer tentativas do inimigo.

Essas medidas seriam as seguintes:

I - Abastecimento de todos os fortes com provisões para dois meses.

II - Transmissão de ordens imediatas a todos os comandantes de fortalezas


para manterem suas guarnições em permanente prontidão.

III - Escrever a Johan Listry, comandante em chefe dos brasileiros, para,que


mantenha toda a sua gente nas aldeias, de prontidão, a fim de que possam
marchar à primeira ordem do Conselho, pois não estamos em condições de
entrar em combate sem eles.
Página 128 de 349

IV - Enviar espiões para todas as direções, mesmo para dentro das matas, a
fim de colher informações sobre a situação das tropas inimigas, avisando o
Conselho, a tempo, de tudo quanto venham a saber.

V - Decidiu-se ainda intimar João Fernandes Vieira, o principal chefe


revolucionário, a vir ao Recife juntamente com seus fiadores, Francisco
Berenguer, sogro de Vieira, e Bernardino Carvalho, sob o pretexto de discutir
com ele um segundo acordo, como aliás era seu veemente desejo. Assim
poderia o Governo Holandês aprisioná-los, e, conseqüentemente, esclarecer
toda a origem do plano português, a fim de melhor dominá-lo.

Certo corretor chamado Koin, que havia proposto tal acordo em nome de
Vieira, fora incumbido de desempenhar a missão de trazê-lo à capital, o que
certamente conseguiria com, facilidade e sem despertar suspeitas. Entretanto,
os feriados de Pentecostes atrasaram por algum tempo essas providências.
Com a mesma diligência empregou o Conselho todos os meios possíveis para
deter outras pessoas da Várzea suspeitas de participação nos planos rebeldes,
recorrendo a pretextos vários, pois que, à força, dificilmente seriam eles
apanhados, não só por não pernoitarem em suas residências ou nos engenhos,
como porque durante o dia estavam constantemente prevenidos.

A 31 de maio o Vice-Almirante Lichthart e o Tenente Hendrik Haus


propuseram-se entregar João Fernandes Vieira ao Conselho. Esperavam
conseguir agarrá-lo convidando-o para uma pescaria no lago Luiz Braz
Bezerra.

Mais informes sobre a insurreição

A 9 de junho 212[o Grande Conselho recebeu aviso, por carta que lhe
endereçou o Senhor Koin, Governador do Rio São Francisco, datada de 1° do
mesmo mês, de que Camarão havia atravessado aquele rio à frente de uma
pequena força. Por esse motivo o informante pedia auxílio de homens e
munições.
A informação foi confirmada por carta de 27 junho, acrescentando, Koin, que
até então o inimigo não tinha ainda aparecido ao alcance do forte.

Tendo, ainda, o Conselho recebido repetidas comunicações de que na Mata de


S. Lourenço e em outros lugares distantes estava-se congregando considerável
força militar procedente da Baía, composta de negros e mulatos, vários
destacamentos foram para lá despachados sob o comando de pessoas
familiarizadas com a região. Entretanto, as notícias enviadas pelos chefes
desses expedicionários- foram unânimes em afirmar que não encontraram eles
força alguma, nem mulatos ou quaisquer outros vagabundos pelas cercanias.
Ainda a 12 de junho o Diretor Moucheron mandou novas informações dizendo
ter sido seguramente informado, por cartas datadas de 8 do mesmo mês, de
que Camarão e Henrique Dias à frente de seis companhias de brasileiros,
mulatos e negros tinham atravessado o São Francisco.
212
O tradutor inglês escreveu 3 de julho (p. 52, 1a coluna, 1° §). Comparar com a edição
holandesa (p. 69, 2a coluna, 4° §).
Página 129 de 349

O Rio São Francisco em gravura de Frans Post

Acrescentava o informante que, no momento em que terminava sua carta, dois


moradores de Alagoas tinham dado a entender que alguns componentes
dessas forças tomaram refeição em suas casas. O missivista enviou cópias das
referidas cartas ao Conselho, o qual não hesitou em admitir que o objetivo de
tais forças era o Brasil Holandês; isso principalmente porque já tinha sido
prevenido, através de diversas comunicações procedentes de Santo Antônio,
de que os habitantes das redondezas pareciam preparar-se para uma revolta.

A resolução tomada pelo Conselho

Considerando o Conselho que o plano de armar uma emboscada para Vieira


não seria bem sucedido, porque ele e os apaniguados de seu sogro, Francisco
Berenguer e Bernardino Carvalho não poderiam ser atraídos para o Recife a
pretexto de renovar o contrato antigo e, tendo-o como o principal cabeça dessa
revolta, ordenou que o tenente Jochem Denniger, à frente de bom número de
soldados, fosse ao engenho de João Fernandes Vieira e o trouxesse preso ao
Recife.
Obediente à ordem recebida, Denniger dirigiu-se à noite com seus soldados à
casa do engenho e, cercando-a completamente, assaltou-a de surpresa, por
volta da meia-noite, procedendo a cuidadosa, mas infrutífera busca em todas
as suas dependências.
Na noite seguinte213, ele voltou para o mesmo engenho e para a casa citada;
examinou-os e reocupou-os, não encontrando, porém, pessoa alguma.
Perguntou, então, a um escravo turco e a alguns negros o lugar em que Vieira

213
A tradução inglesa não é fiel (p. 52, 2a coluna, 1a §), razão porque o trecho "Na noite
seguinte." até "... e se retiravam" foi traduzido diretamente do holandês. Cf. p. 70, 1a coluna 2°
§ da edição holandesa.
Página 130 de 349

deveria ser encontrado; eles responderam que nem Vieira nem Berenguer
haviam pernoitado, durante essas três semanas, em suas casas, mas que aí
vinham algumas vezes, durante o dia, a cavalo, e depois de darem algumas
ordens montavam imediatamente e se retiravam. Denniger revistou, ainda, as
residências de Antônio Cavalcanti e Antônio Bezerra, mas com resultados
igualmente negativos. Também aí os escravos o informaram de que esses
revoltosos se haviam homiziado semanas antes.

Enquanto isso o Conselho despachou novas forças sob o comando do tenente


Haus Katner, porta-bandeira Sloteniski e sargento Koenraet Hilt, expedições
essas que, de regresso, afirmaram unanimemente não

haver ainda inimigos, especialmente na Mata, onde não viram senão os que se
ocupavam em lavrar a terra.

Decepcionado por não conseguir capturar Vieira, o Conselho resolveu


determinar a prisão imediata de Francisco Berenguer, sogro de João
Fernandes, Bernardino Carvalho e seu irmão Sebastião Carvalho, Luiz Braz
Bezerra, Amaro Lopes Madeira e João Pessoa Bezerra, os quais como
habitantes da Várzea eram suspeitos de conivência na conspiração. Nas
províncias mais distantes, foi ordenada a prisão das seguintes pessoas:

Em Santo Amaro: Antônio de Bulhões;


Em Santo Antônio: Amador de Araújo, Pedro Marinho Falcão, Antônio dei
Rasto;
Em Ipojuca: Carneiro de Morais, o Rev. Frei Luiz e Francisco Dias Delgado;
Em Serinhaém: João Albuquerque, genro de Pero Lopes de Vera;
Em Porto Calvo: Rodrigo de Barros Pimentel;
Em Igarassú [*]: João Pimenta;
Em Itamaracá: o Rev. Lourenço de Albuquerque214; e, finalmente,
No Rio Grande: João Lostão Navarro.

[*] O topônimo Igarassu, que deu origem ao nome da cidade é oriundo do tupi e significa: Igara
= Canoa; Assu = Grande. Os historiadores acreditam que o nome teria vindo da exclamação de
surpresa dos índios ao avistarem as grandes caravelas portuguesas.

Assegurada a posse da Paraíba

Sendo, porém, de temer que os habitantes de Paraíba, muito endividados, se


revoltassem antes do resto, Paulus de Linge foi imediatamente despachado
para lá, na qualidade de Diretor, com plenos poderes para agir tanto lá como
na Capitania do Rio Grande, segundo os interesses da Companhia e levando
ordens expressas de desembarcar, logo depois de sua chegada, 100 homens
da guarnição dos navios, com provisões suficientes, a fim de guarnecer o forte

214
Nieuhof escreveu (p. 71, 1a coluna, 1° §): [i]Pater Lourenço d'Alkunha.[/i] Parece-nos tratar-
se de Lourenço de Albuquerque. (Cf. Varnhagen, (LXXIII, p. 269). Nieuhof escreve logo depois
(p. 74, 1a coluna, 2° §) [i]Akunha.
Página 131 de 349

de Santa Margarida, não só para defendê-lo como também para manter a


população em obediência.

Pequeno acampamento perto de São Lourenço

Considerando que a escassez de provisões constituía um dos principais


obstáculos a serem vencidos do nosso lado, - circunstância essa que, no pé
em que estavam as cousas, agravar-se-ia cada vez mais, a menos que
continuássemos dominando os campos de onde provinham quase todos os
nossos víveres e conseguíssemos submeter os habitantes descontentes, -
julgou-se necessário estabelecer um pequeno acampamento perto de São
Lourenço. Para lá foram enviados os tenentes Huykquesloot e Hamel, com 35
homens cada um, o primeiro procedente de Igarassú e o último de Muribeca,
bem como o Capitão Wiltschut com mais 50 homens, do Recife. Também
Johan Listry, comandante em chefe dos brasileiros teve ordem para a eles se
reunir, com a maior brevidade possível, levando, sob seu comando, 300
nativos.

No mesmo dia depois de examinadas as fortificações de Maurícia, 215 baixaram-


se ordens no sentido de repará-las. Tendo corrido notícias de que João
Fernandes Vieira fora visto em seu engenho naquela mesma noite, o Conselho
tentou prendê-lo, por todos os meios ao seu alcance, sem entretanto o
conseguir. Por outro lado ficou perfeitamente evidenciado, (pelo depoimento de
um de seus empregados do Engenho São João, feito perante o escrivão Indijk,
no Recife, a 21 de janeiro de 1647, que desde seis meses antes de rebentar
essa insurreição, João Fernandes Vieira nenhuma noite dormira em sua casa e
que, quando acontecia de lá estar durante o dia, permanecia a maior parte do
tempo num torreão, de onde podia descortinar uma grande região nas
redondezas. Se tinha necessidade de descer, punha alguém de atalaia com
ordem de avisá-lo imediatamente da aproximação de duas ou mais pessoas.
Se avistassem um holandês, Vieira se retirava imediatamente para as matas
vizinhas. Tinha também colocado vários negros a certa distância da casa,
incumbidos de avisá-lo da aproximação de qualquer pessoa desconhecida.

A 13 do mesmo mês Sebastião Carvalho e Antônio de Bulhões foram feitos


prisioneiros e levados para o Recife. Os outros que se presumiam culpados,
conseguiram escapar. Tendo sido inquirido naquela mesma noite pelo
Assessor, Senhor Walbeek, a respeito da conspiração, Sebastião Carvalho fez
o seguinte depoimento:216

SUA CONFISSÃO

Que era ele um dos três que ainda poucos dias antes denunciara ao Conselho,
por carta, a Conspiração que se processava em Várzea, da qual o cabeça era
João Fernandes Vieira, que, tanto quanto os seus cúmplices portugueses,

215
O tradutor inglês cometeu um engano, ao escrever cidade de Munheca, ao invés de
Maurícia. (Comparar p. 53, 1a coluna 3° § da ed. inglesa com a p. 71,2a coluna 4° § da ed.
holandesa).
216
Calado (XVII, p. 177, 1a coluna) conta-nos que foram seus intérpretes dois judeus [i]hum
chamado o Febo & outro seu primo ou irmão.
Página 132 de 349

confiava nos auxílios prometidos pela Baía, com cuja denúncia tinha pensado
poder abortá-la. Que todo o plano da conspiração lhe tinha sido revelado por
meio de um documento pelo qual parecia pretender-se formar uma espécie de
associação, - o qual lhe fora entregue por um empregado do dito Vieira
juntamente com uma carta em que lhe pedia que o subscrevesse. Que apenas
duas pessoas, João Fernandes

Vieira e Luiz da Costa Sepulveda, haviam assinado o dito documento. Que a


finalidade da associação consistia em levantar em armas os seus membros
contra este Estado, bem como sacrificar suas vidas e haveres pela restauração
do Brasil holandês à coroa portuguesa. Que de fato o depoente havia assinado
o tal documento, tendo, porém, se comunicado imediatamente com Fernando
Vale e uma terceira pessoa e que, juntamente com o Senhor Vale, tinha
endereçado a carta acima referida ao Grande Conselho, para ser entregue ao
Dr. Mercado, o médico. Que os conspiradores tencionavam fazer alastrar a
conspiração por todo o Brasil holandês, mas que os habitantes da Capitania de
Paraíba eram os de que mais se devia recear por serem- os mais endividados
e, portanto, terem muito má vontade para com o nosso Governo. Que era
desejo dos conspiradores se apoderarem imediatamente de um forte à beira-
mar ou junto ao litoral, onde pudessem receber os recursos provenientes da
Baía, donde esperavam dois galeões de guerra e três ou quatro fragatas. Que
o depoente tinha assinado o documento acima referido simplesmente de medo
de Vieira, que havia ameaçado de morte os que a tanto se recusassem, tendo
chegado a mandar matar diversas pessoas, por esse motivo.

Em vista de ter a confissão de Sebastião Carvalho concordado em todos os


seus pormenores com o depoimento anteriormente feito por Fernando Vale, e,
tendo sido ele torturado o tempo todo, foi o mesmo dispensado de qualquer
outro inquérito.

Carvalho liberto

Ainda mais convicto da traição de Vieira e seus comparsas, pelo depoimento


de Sebastião Carvalho, o Conselho resolveu tentar uma vez mais a prisão de
João Fernandes caso ainda se encontrasse nas proximidades do Recife, bem
como de seu lugar-tenente Manuel de Sousa, empenhado na mesma empresa,
Antônio Bezerra e Amaro Lopes, ambos habitantes de Várzea. Não somente
falhou a missão dos captores, como ainda trouxeram eles de volta, juntamente
com a informação de que as pessoas procuradas não se achavam nas
proximidades do Recife, a de que Antônio e Manoel Cavalcanti, Antônio
Bezerra, João Pessoa e Cosme de Castro Passos, haviam naquele mesmo dia
deixado Várzea com destino à Mata. O Capitão Wiltschut teve então ordem de
deter o tabelião Gaspar Pereira, residente em S. Lourenço, suspeito de ter
redigido o manifesto da associação referida. Resolveu ainda o Conselho
conceder anistia a Antônio Cavalcanti e João Pais Cabral, que tendo sobre si a
responsabilidade de numerosas famílias, talvez assim se decidissem
abandonar os rebeldes, assim os enfraquecendo e nos habilitando a tomar
conhecimento mais íntimo de seus planos. Interrogado por essa ocasião,
Página 133 de 349

Antônio de Bulhões habilmente declarou não ter o menor conhecimento da


Conspiração e conseguiu obter do Conselho a libertação de Sebastião
Carvalho, detido até 4 de agosto, como suspeito, apesar de seu depoimento
acima transcrito, mediante prova de ter sido este um dos três autores da carta
denunciando a conspiração.

O Recife fortificado com paliçadas


Ampliação das fortificações da Cidade Maurícia

A 14 os habitantes do Recife e da parte posterior do rio receberam ordem de


cercar suas residências com paliçadas sob pena de multa de 200 florins. E,
para melhor concentrar as companhias e expor o menos possível os nossos
homens ao perigo de serem surpreendidos pelo inimigo, todas as guardas
tiveram ordem de se retirar para perto do Recife, ficando sob o comando de
Haus, e em Serinhaém, sob as ordens do Capitão Fallo que também recebeu
instruções de remover a guarnição de Una para lugar mais seguro. A fim de
melhor prover os fortes, evitando que por falta de abastecimento caíssem em
poder do inimigo, o Conselho expediu ordens aos comandantes em chefes
para requisitar toda a farinha que conseguissem obter entre os habitantes do
país, para uso das respectivas guarnições, requisições essas que deveriam ser
pagas pelos comissários da Companhia. Considerou-se também necessário,
para maior segurança da Cidade Maurícia, que fossem alargados os fossos do
forte Ernesto, bem como os do forte Quinquangular. Encarregado Haus da
execução de tais obras, o vice-almirante Lichthart teve o cuidado de colocar
dois navios-patrulha entre os Fortes Quinquangular e Bruin e outro além de
Barreta a fim de evitar qualquer surpresa por aquele lado, quando das marés
baixas. Foi igualmente determinado que nenhum navio saísse do Recife sem
permissão do Grande Conselho. O Major da Milícia teve ordem de manter de
prontidão a sua tropa que deveria ser passada em revista a 17, juntamente
com a guarnição. Em substituição aos comandantes que deviam voltar para
Holanda, foram nomeados diversos oficiais para a Milícia. Na mesma ocasião
Paulus Linge partiu para a Paraíba com 1.500 florins que se supunha o
necessário para a jornada,217 e Bernardino de Carvalho, que se havia
homiziado por algum tempo, teve permissão de voltar ao Recife para se
defender.

A 15, João Pessoa, senhor do Engenho Pantelo, que também tinha contra si
uma ordem de prisão, dirigiu-se ao Conselho por escrito pedindo licença de
comparecer perante o mesmo, alegando que não havia fugido por se
reconhecer culpado, mas simplesmente de receio. Idêntico pedido formulou o
Padre Lourenço de Albuquerque e a ambos deferiu o Conselho.

Pela manhã de 16, recebemos notícias de que André Vidal, à frente de 1.000
portugueses, Camarão chefiando índios Rodelas 218 e Henrique Dias

217
O tradutor inglês cometeu grave erro, ao escrever 1500 soldados, quando Nieuhof
escrevera 1500 florins. (Comparar p. 74, 1a coluna 2° § da ed. holandesa, com a p. 54, 2a
coluna 1a § da ed. inglesa).
218
Nieuhof escreveu Rondelas (p. 74, 1ª coluna, 3° §) e a seguir Rodelas (p. 75, 1a coluna).
Pela carta regia de 14 de maio de 1633, Camarão foi feito capitão-mor, não só dos Petiguaras,
de cuja nação era principal, mas de todos os índios do Brasil (Cf. LXXII, tomo II, p. 309 e nota
Página 134 de 349

comandando um corpo de negros armados se haviam postado acima de Santo


Antônio, junto ao engenho Tapacurá219. Nesse mesmo dia, João Carneiro de
Maris e Francisco Dias Delgado, senhores de engenho no distrito de Ipojuca,
contra os quais havia ordem de prisão, foram capturados e trazidos prisioneiros
para o Recife. Amador de Araújo e Pedro Marinho Falcão, moradores de Santo
Antônio, que até então se achavam escondidos, pediram permissão para vir ao
Recife apresentar sua defesa, o que lhes foi prontamente concedido.

Transferência de nosso acampamento para Muribeca

Em face das últimas informações recebidas com relação às intenções do


inimigo, reuniu-se o Grande Conselho para considerar á conveniência de
transferir o nosso pequeno acampamento de S. Lourenço para Muribeca.
Depois de alguma discussão, a mudança foi assentada a fim de assegurar a
passagem do rio Jangada220 e assim ficarmos senhores de toda a região até
Santo Agostinho de onde se poderia abastecer de farinha e gado, tanto o
acampamento como o Recife. Se, ao contrário, o inimigo se apoderasse dessa
posição, poderia (como aliás já o fizera em guerras anteriores) interceptar todo
o abastecimento do Recife, proveniente do Sul.

À vista dessa deliberação expediram-se ordens ao Capitão Wiltschut para


marchar imediatamente para Muribeca e lá esperar os brasileiros e os novos
reforços. Recebeu, também, o Capitão instruções no sentido de se apoderar da
igreja e fortificá-la para prevenir um ataque de surpresa.

Na Cidade Maurícia os chefes de famílias tiveram ordem de adquirir, nas


cercanias de Muribeca, provisões de farinha e gado para seu consumo próprio.

Foi também publicada uma proclamação ordenando a todos os habitantes de


Serinhaém, Ipojuca, Santo Antônio e Muribeca, sem exceção, que, bem
armados, se concentrassem com toda a rapidez possível, com a cavalaria de
que dispusessem, em Santo Antônio, onde se deveriam alistar nas forças que,
sob o comando do Coronel Kaspar Van der Ley e do Tenente-Coronel Johan
Hek, estavam encarregadas da defesa do campo aberto. Os que não se
pudessem manter por conta própria, receberiam provisões da Companhia, tal
como os demais soldados. Estes dois militares prontificaram-se, então, a
fornecer, para o consumo de nossas guarnições, 1.500 alqueires de farinha,
mediante pagamento à vista.

91 de Varnhagen e Rodolfo Garcia). Os índios Rodelas eram os do Rio São Francisco (LXXII,
tomo III, p. 22, p. 279). Segundo Rafael de Jesus (XLIV, p. 477), o maioral dos tapuias do Rio
São Francisco chamava-se Rodela.
219
Nieuhof escreveu Tapekura (p. 74, 1a coluna, 3° §) e Tapikura (p. 75, 1acoluna). Em
Vingbooms, Tapicura (XCVII, 2° vol., mapa 48, ref. a Pernambuco). Em Calado, Tapucura
(XVII, p. 199). Em Barlaeus, Tapecurú (VIII, mapa entre as pp. 24-25). Em Varnhagen (LXXII,
vol. III, p. 16 e LXXIII, p. 272), Tapacurá. Em Ayres de Cazal (XX, 148), Tapacorá.
220
Nieuhof escreveu Sengada (p. 74, 1a coluna, últ. § e p. 125, 2a coluna). Parece-nos que se
trata do Rio das Jangadas. No Breve Discurso (XV, p. 141) se diz:" Rio das Jangadas a 2 e
meia léguas do Recife". Em Vingboons (XCVII, 2° vol.,mapa 48). Em Barlaeus, (VII, p. 127) o
rio Jangada é considerado como um dos rios mais importantes de Pernambuco. Ayres de
Cazal (XXVI, p. 149) menciona apenas a Barra das Jangadas, que fica 2 léguas ao norte do
Cabo de Santo Agostinho e onde desemboca o Rio Jaboatão. Verdonck fala, também, do rio
Jangada, junto a N. S. da Candelária, umas 3 milhas ao norte do Cabo (XCIII, p. 219).
Página 135 de 349

Nessa mesma data o Grande Conselho recebeu uma carta em que Antônio
Cavalcanti (recentemente indultado) protestava que nem ele nem os demais
habitantes de Várzea estavam envolvidos em qualquer conspiração contra o
Estado e que, se fugiram, foi tão somente pelo receio de serem aprisionados,
pela suspeita que sobre eles certamente levantariam seus inimigos. O
Conselho respondeu-lhe que se ele de fato se considerava inocente, que
voltasse para seu engenho, sendo esta a única forma de se reabilitar. Tendo,
porém, o Conselho razões ponderáveis para suspeitar de que Camarão tentaria
pôr sob suas ordens os brasileiros então sob a jurisdição dos batavos, ordenou
a Listry, comandante em chefe dos mesmos, que tentasse persuadir o povo da
conveniência de enviar suas mulheres e filhos para a Ilha de Itamaracá, sob o
pretexto de pô-los a salvo das investidas do inimigo (à qual certamente
estariam expostos, se permanecessem nas vilas), mas, na realidade, para
conservá-los como penhor de sua lealdade.

Montante dos reforços enviados da Baía para os rebeldes

Por esse tempo o Conselho recebeu informações de Antônio de Oliveira, no


sentido de que os recursos remetidos da Baía para os rebeldes compunham-se
de considerável número de portugueses sob o comando do irmão de
Cavalcanti, 400 brasileiros às ordens de Camarão, 300 índios Rodelas
provenientes do sertão e 50 negros comandados por Henrique Dias221.

Relato do alferes Sloteniski

No dia 16 de Junho, o alferes da guarda Sloteniski foi enviado era missão de


reconhecimento, com onze mosqueteiros e doze brasileiros, que voltou ao
Recife em 24 do mesmo mês, e fez a seguinte narrativa das suas peripécias
aos altos comissários. Disse que, tendo partido do Recife, dirigiu-se
primeiramente a São Lourenço e daí para São Miguel, de onde, juntamente
com os seus brasileiros, marchou, através do São Francisco, até Casura; daí
para Geita, Mata e São Sebastião 222 cujos habitantes tinham abandonado as
suas casas. Nesta última povoação atravessou o rio Tapacurá e, chegando às
terras de João Fernandes Vieira, lá encontrou ótimos cavalos. Os negros
informaram-lhe de que tinham ordens do patrão para fugir, ante a aproximação
dos holandeses, mas aos portugueses fornecer quanto desejassem.

Daí marchou para Santo Antônio, e, a caminho, tocou em uma casa também
pertencente a João Fernandes Vieira onde encontrou 50 ou 60 cabras 223 e
grande quantidade de galinhas pertencentes aos rebeldes e seus aliados da
Baía, reservas essas destinadas aos doentes. Aconselharam-lhe a não
prosseguir muito além, pois corria o risco de encontrar com tropas acantonadas
221
[Varnhagen (LXXII, vol. III, p. 221 e LXXIII, p. 272) baseou-se em Nieuhof, enganando-se,
porém, ao escrever "um considerável número de brasileiros comandados por um irmão de
Cavalcanti", quando o considerável número comandado por um irmão de Cavalcanti era
constituído de portugueses e os brasileiros eram chefiados por Camarão; o irmão de Antônio
Cavalcanti a que se refere Nieuhof deve ser Manuel Cavalcanti.
222
Nieuhof escreveu Kasura, Geyta, Tapikura (Cf. nota 219).
223
O tradutor escreveu (p. 55, 2a coluna, 4a §), [i]50 or 60 sheeps.[/i] (Cf. p. 75, 2a coluna, 2° §
da ed. hol.).
Página 136 de 349

nas propriedades dos frades de São Bento; lá chegando, porém, Sloteniski


soube que tanto os portugueses como os índios se tinham ido. Daí o oficial
seguiu para uma casa de propriedade de Miguel Fernandes, que três meses
antes havia recebido de João Fernandes Vieira a incumbência de conseguir
provisões de farinha para as forças auxiliares da Baía, provisões essas que
mais tarde transportou daí para Pedro da Cunha224, ponto de encontra de duas
companhias revolucionárias. De acordo com informação fornecida por um
negro, conduzido ao Recife por Sloteniski, Miguel esperava aí receber maiores
provisões de gado, adquiridas por Vieira. Próximo ao campo de Dom Pedro da
Cunha, encontrou ele o mulato que atirou o capitão Waldek e dois holandeses,
criminosos de morte, que não tinham sido indultados. João Fernandes Vieira
havia prometido reunir-se a eles pelas festas de São João. Sloteniski seguiu
daí para Una e São Luiz. Não encontrando, porém, ninguém a não ser um
frade, regressou para o Recife.

A 17 de Junho o Grande Conselho resolveu, com a aquiescência do Conselho


de Justiça, fazer publicar uma proclamação de anistia geral, exceto para os
principais cabeças da rebelião.

É o seguinte o teor desse documento:

DECLARAÇÃO DE ANISTIA GERAL

O Grande Conselho do Brasil faz saber a todos quantos esta proclamação


possa interessar que, atendendo à situação dos que, induzidos por alguns dos
cabeças da rebelião, deixaram seus engenhos, mulheres e filhos de receio que,
como lhes fora insinuado, fossem eles incomodados, saqueados e sacrificados
pelas partes em luta, desejoso de protegê-los e de fazer quanto esteja em seu
alcance pela prosperidade de seus súditos e de suas propriedades, o Conselho
achou de bom aviso tornar pública a sua intenção de proteger os habitantes do
interior, contra quem quer seja e com o máximo de seu poderio, reduzir à
obediência os que abandonaram suas casas e evitar que sejam estas
destruídas. Outrossim promete indultar a todos aqueles que cinco dias depois
de terem conhecimento desta proclamação compareçam ao Recife, mesmo
sem excetuar os que se alistaram entre os rebeldes (a menos que se trate de
um dos cabeças), contanto que abandonem os revoltosos e retornem à antiga
obediência, pois que assim poderão desfrutar pacificamente a posse de seus
engenhos e campos, sob sua proteção e mediante a condição de prestarem
novo juramento de fidelidade ao estado. Os que, ao contrário, persistirem em
sua rebeldia ou auxiliarem os revoltosos sob qualquer que seja o pretexto, são
desde já declarados inimigos do estado, sem direito à vida, nem às
propriedades, perseguindo-os o Governo, a ferro e fogo, etc.

***
Essa proclamação foi imediatamente traduzida para o português e enviada, na
manhã seguinte, a Santo Antônio e Várzea para ser lá divulgada. Várias cópias
224
Nieuhof escreveu Dom Pedro d'Akunha (p. 75, 2a coluna, 3a §). Será Pedro da Cunha,
como seríamos levados a supor pela grafia, ou haverá, aqui, equívoco da parte de Nieuhof,
semelhante ao que cometeu ao escrever Lourenço d'Alkunha por Lourenço de Albuquerque?
(p. 71, 1a coluna).
Página 137 de 349

foram igualmente distribuídas entre os frades, para serem lidas ao púlpito e


afixadas às portas das igrejas
.
A 18 do mesmo mês, consideráveis quantidades de provisões e munições
foram enviadas aos Fortes Keulen e Rio Grande, e as guarnições de ambas
essas praças de guerra tiveram ordem de ficar de prontidão. Também aí foi
divulgada a declaração de anistia do escabino Johannes Hoek, e Antônio
Paraupaba, chefe dos brasileiros, nessa zona, recebeu instruções de conservar
de sobreaviso os seus comandados à espera do momento de comprovar sua
lealdade.

A 21, de junho 225 dois moradores de Porto Calvo, que chegaram pela manhã
em uma pequena embarcação, informaram o Grande Conselho de que
Camarão à frente de seus brasileiros e Henrique Dias, cem seus negros
armados, formando ao todo sete companhias, se haviam postado nas Alagoas,
junto ao Engenho Velho. Disseram ainda que o número dessas forças havia
aumentado de quatro a cinco mil homens pela junção dos que cruzaram o rio
São Francisco, através da Mata e que já tinham iniciado as hostilidades, de
maneira que o Conselho não tinha mais razões para duvidar das intenções dos
portugueses. O comandante de Porto Calvo mandou idêntico aviso,
acrescentando que estava preparado para uma vigorosa defesa.

Inicio da Rebelião em Ipojuca

A rebelião começou no distrito de Ipojuca e sendo de apenas 30 homens a


força que lá se achava, sob o comando do Tenente Jacob Flemming, este
recebeu ordens de retirar-se para Santo Antônio e lá organizar a defesa
juntamente com as forças locais. As hostilidades propriamente ditas
começaram com o aprisionamento, pelos rebeldes, de Ipojuca, de dois barcos
e seus passageiros que foram executados à exceção de um marinheiro, que
teve a boa sorte de conseguir fugir.
Isto feito, os moradores, tanto da vila como do campo, procuraram seu chefe
Tabatinga Amador de Araújo 226 e cortaram as nossas comunicações por terra
com o Cabo Santo Agostinho pelo lado do sul, de maneira que o forte
localizado no Cabo só com grande dificuldade podia ser abastecido de água do
rio.

225
O tradutor inglês escreveu (p. 56, 2a coluna, 4° §): 19 de junho. Vid 76, 2a coluna 6a § da
ed. holandesa.
226
Tabatinga Amador d'Arrauio (p. 77, 1a coluna, 1a §). Trata-se de um engano de Nieuhof ,
pois Amador de Araújo era capitão-mor e Tabatinga um riacho afluente do Ipojuca, ou o
engenho em Ipojuca que, em 1637, foi comprado por Amador de Araújo, por 40.000 florins,
vencendo a última prestação a 11 de janeiro de 1639. O mesmo engenho pertencera a Cosme
Dias da Fonseca e fora confiscado pelo governo holandês. (Cf. Relação dos Engenhos
confiscados e que foram vendidos em 1637, in Rev. do Inst. Geog. e Arqueol. Pernambucano,
p. 197, 1887-90, vol. 6). Amador de Araújo era, também, proprietário, em Ipojuca, do engenho
Santa Luzia, igualmente confiscado pelo governo holandês e mais tarde adquirido por ele.(XV,
p. 146). Rio-Branco (LXXV, p. 366) afirma que o capitão Jacob Flemming não estava em
Ipojuca quando se verificou o primeiro encontro de armas. Rodolfo Garcia (LXXII, p. 14, nota
19) aceitou a correção de Rio Branco a Varnhagen. Nieuhof, porém, confirma este último. Em
Barlaeus (VIII, mapa de Pernambuco, Pars Borealís, entre pp. 24-25), Tabatinga (em Ipojuca)
Página 138 de 349

Cedo, pela manhã do dia 19 de junho 227, chegou um brasileiro ao Recife e


comunicou ao Conselho que tinha sido despachado de Porto Calvo por Johan
Blaer, com cartas dirigidas ao Grande Conselho, mas que fora detido perto de
Camboa 228 pelos rebeldes de Ipojuca os quais lhe tiraram as cartas e mataram
o companheiro. Disse mais que Camarão estava acampado no distrito de Porto
Calvo e que o capitão Johan Blaer se achava no forte.

Tendo-se convocado um conselho para estudar quais os melhores meios de


defender o Brasil holandês contra qualquer tentativa do inimigo, o primeiro
ponto a ser debatido foi se - de acordo com o consenso geral dos que
desejavam o bem-estar do nosso governo - não seria melhor para a nossa
defesa estabelecer um acampamento e fazer face ao inimigo em campo aberto.
Pois, se o adversário conseguisse dominar o interior, forçaria os habitantes a
se congregarem, em torno dele e nos privaria de todas as provisões, sem o que
não poderíamos subsistir por muito tempo.

O outro ponto discutido, em seguida, foi o de onde e como conseguir forças


para a operação militar, já que as guarnições eram tão escassas a ponto de
não poderem dispensar um só homem e o corpo sob as ordens do capital
Wiltschut consistia de apenas 120 homens, além dos 300 brasileiros que a
estes deveriam reunir-se em Muribeca. Considerando, portanto, que toda a
força de Alagoas compunha-se de duas companhias apenas, sob o comando
de Moucheron, número esse que não estava de forma alguma em relação a tão
vasta extensão territorial, julgou-se conveniente fazer da necessidade virtude e
retirar as forças para o Recife, como já se tinha ordenado anteriormente.

Estando, porém, cortado o caminho pelos rebeldes de Ipojuca, foi despachado


para Porto Francisco um navio que se achava pronto para largar, com ordens
para que Moucheron embarcasse imediatamente com suas forças sem se
preocupar com a bagagem e que o resto das forças que não pudesse embarcar
fosse por terra ao Rio São Francisco para auxiliar o capitão Koin na defesa
daquela praça. O Capitão Fallo teve também ordem de marchar com a
guarnição, de Serinhaém para Santo Antônio, por não ser provável que as
tropas em Serinhaém conseguissem fazer alguma cousa depois da chegada de
Camarão a Porto Calvo.

Remessa de reforços para Itamaracá

Nesse dia quarenta novos recrutas foram enviados para Itamaracá, sob o
comando do capitão Pieter Seulijn, senhor do Engenho Harlem 229, porque essa
ilha era da maior importância para nós e porque as guarnições do Forte Orange
e da cidade de Schkoppe, de apenas uma companhia em cada uma das
praças, eram muito fracas e os moradores armados não montavam a muito
mais de uma companhia.

227
O tradutor inglês escreveu (p. 57, 1a coluna, 2° §), 20 de junho; compare-se com a p. 71, 1a
coluna, 2° § da ed. holandesa.
228
Vide nota 129. Nieuhof ora escreve Joan ora John Blaer (Cf. ed. hol. p. 77; 2° §).
229
Em Barlaeus (VIII, mapa de Pernambuco, Pars Borealis, entre as pp. 24, 25, em Itamaracá),
Harlem; em Vingboons (XGVII, II, mapa 47).
Página 139 de 349

Ainda na mesma data os senhores Bas e Van der Voorde, conselheiros da


Corte de Justiça, tiveram ordem de inquirir Gaspar Pereira, o tabelião, com
respeito à redação do documento da conspiração. Deveriam também interrogar
João Carneiro de Maris, Francisco Dias Delgado, no distrito de Ipojuca, e
Sebastião Carvalho sobre o que sabiam da conspiração.

Segunda confissão de Carvalho

Carvalho declarou, pela segunda vez, em casa do tenente-coronel Haus que


dias atrás (não podia se lembrar exatamente quando) um criado português que
não conhecia, veio-lhe em nome de João Fernandes Vieira e apresentou-lhe
uma carta em que Vieira lhe pedia que assinasse o documento anexo, redigido
em forma de associação, cuja finalidade seria a de tomar armas contra o
governo logo que recebessem recursos da Baía. Esse documento estava então
assinado por João Fernandes Vieira e Luiz da Costa Sepulveda e, ao que
supunha o depoente, seria apresentado à maioria do povo. Declarou mais que
se recusou a assinar o dito documento, diante da carta de João Fernandes
Vieira e que sendo-lhe desconhecida a letra, devolveu tanto a carta como o
documento ao mesmo portador que os trouxera, com a resposta verbal de que
não podia assiná-lo.

Tendo refletido mais maduramente sobre o caso mandou dizer ao seu amigo
Fernando Vale230, essa mesma tarde, que desejava encontrar-se com ele pela
manhã seguinte no morro dos Guararapes. Durante a entrevista ficou
assentado que se desse parte da conspiração ao Grande Conselho, por meio
de uma carta anônima. Tal carta, assinada "Plus Ultra", fora escrita por Vale e
entregue ao declarante para lê-la, cerca de 1 ou 2 dias mais tarde231, em casa
de um padeiro, à Rua da Ponte. Foi, depois, entregue a Abraham Mercado,
médico, que a entregou ao Grande Conselho.

Remessa de reforços para Ipojuca

No mesmo dia 20 de junho o Grande Conselho recebeu a carta dos senhores


Ley e Hek datada de Santo Antônio, informando que toda a freguesia havia
tomado armas e feito prisioneiros 16 ou 18 residentes holandeses que haviam
fortificado a igreja à espera dos de Ipojuca aos quais não tentariam atacar a
menos que recebessem reforços de Recife. O assunto foi objeto de cuidadoso
exame, tendo o Grande Conselho concluído que, não havendo motivo para
recear uma rebelião no norte - Paraíba e Rio Grande - enquanto nossa frota
permanecesse perto de Terra-Vermelha e sendo necessário reconduzir à razão
os rebeldes de Ipojuca e com sua punição evitar que os demais tentassem se
levantar, seguisse o Tenente-Coronel Haus, com um destacamento de 100
homens, para Muribeca. onde deveria reunir-se ao capitão Wiltschut e aos

230
Varnhagem escreve Fernão do Valle (LXXII, p. 12, 3° tomo e nota 15 de Rodolfo Garcia).
Era proprietário do engenho São Bartolomeu, situado na freguesia de Muribeca (Breve
Discurso, XV, p. 149). Foi representante de Muribeca na Assembléia Geral reunida em
Maurícia a 27 de agosto de 1640. Aí se escreve Fernão do Valle. (Rev. do Inst. Arqueol. e
Geog. Pern., tomo V, 1886, Atas da Assembléia Geral, p. 174)
231
O tradutor inglês escreveu p. 58, 1a coluna, 10 dias. Vide a ed. Holandesa (p. 78, 2a coluna,
2° §).
Página 140 de 349

brasileiros e continuar a marcha até Santo Antônio. Daí, essa força combinada
deveria marchar diretamente para Ipojuca e reduzir à obediência os rebeldes,
pois, caso contrário, era de recear-se que estes cortassem todas as
comunicações entre o Recife e as guarnições do Sul. Foi tão bem sucedida
essa expedição que os rebeldes foram batidos e o Tenente-Coronel Haus
passou a dominar tanto a cidade como o Convento, de onde soltou 40
prisioneiros que lá estavam sob ferros e forçou os rebeldes a evacuarem todas
as passagens das circunvizinhanças. Entretanto, informado da aproximação de
Camarão com sua força, pediu ao Conselho que lhe enviasse novos reforços,
mas, estando já bastante reduzidas as guarnições do Recife, não seria possível
àquele atender o pedido do Coronel antes que chegassem recursos da
Metrópole.

Jejum

A 21 de junho o Grande Conselho resolveu ordenar um jejum geral, no Brasil


holandês, a ser observado no próximo dia 28, a fim de render graças ao
Altíssimo pela grande mercê manifestada em diversas ocasiões, especialmente
por ter descoberto em tempo as manobras traiçoeiras do inimigo que o
pretendeu surpreender justamente quando menos esperava.

O plano dos portugueses rebelados

A rebelião tinha sido planejada pelos portugueses da seguinte forma:


tencionavam eles, durante os feriados de Pentecostes, celebrar com ruidosos
festejos e cavalhadas e realizar diversos casamentos marcados para essa
ocasião, para os quais pretendiam convidar as figuras de maior destaque do
Brasil holandês, entre civis e militares, as quais, depois de tocadas pelo vinho,
seriam assassinadas como nas Noites Sicilianas ou no famoso Casamento
Parisiense232. Decapitados os chefes do Brasil holandês, os demais
constituiriam presas fáceis, quando atacados em diversos pontos
simultaneamente. Não tendo, porém, conseguido realizar seu plano
sanguinário naquele dia, transferiram-no para o de São João Batista como
sendo o mais propício, pois, nessa ocasião, os navios deviam estar fora do
porto do Recife. Os portugueses sabiam que, não tendo recebido novos
fornecimentos da Holanda, desde há muito tempo, principalmente de pólvora,
eram escassas as nossas reservas. Portanto, se se apossarem

Quanto ao casamento parisiense, a que se refere o autor, trata-se do massacre


de São Bartolomeu, a 24 de agosto de 1572. Esse acontecimento foi o
resultado de lutas religiosas. Coligny, chefe dos huguenotes, foi assassinado e,
a fim de impedir a revolta dos chefes huguenotes, reunidos em Paris por
ocasião do casamento de Henrique de Bourbon com Margarida de Valois,
resolveu-se assassiná-los a todos. Houve, nessa noite, cerca de 3.000 vítimas.
O massacre provocou grande indignação, especialmente nos países

232
O autor se refere ao célebre e sangrento episódio que se verificou na Sicília, no Domingo de
Páscoa, a 31 de março de 1282, quando foram massacrados 2000 franceses. Foi motivado
pela luta entre Carlos D'Anjou, que por doação do Papa Urbano IV governava a Sicília, e os
Hohenstangers da Alemanha, aos quais cabia o governo da Sicília.
Página 141 de 349

protestantes. (LXXXIV, p. 309). Isso explica, talvez, a lembrança do autor em


associar tais acontecimentos aos intuitos que atribuía aos portugueses.

Aliás, já no Breve Discurso acerca da Rebelião (XXIX, 124) se encontra o


seguinte trecho: "O primeiro Ato da tragédia que eles assentaram de
representar era semelhante às bodas de Paris, celebradas a 24 de agosto de
1572, as quais perduraram longos anos na memória dos homens dos campos
circunvizinhos, logo estaríamos reduzidos à penúria. Sabiam também que
todos os nossos navios, à exceção de dois, estavam prontos para zarpar, ao
primeiro vento favorável. Assim, conhecedores de nossa fraqueza, os
portugueses se propunham à conquista de todo o Brasil holandês de um só
golpe. Todavia, uma vez descoberta a conspiração antes do dia de São João,
todos os castelos dos revoltosos desfizeram se em fumo e ambos os lados se
viram na contingência de recorrer às armas".

Objetivos dos lusos

Os portugueses não pretendiam tanto provar a lealdade devida a seu rei


quanto recuperar a liberdade de consciência. A pesar de tudo, porém, temos
razões de sobra para supor que a insurreição foi organizada com conhecimento
e sob o patrocínio da corte portuguesa e do governo da Baía, pois não era
provável que Camarão, Henrique Dias e os demais cabeças tentassem nos
atacar à força, sem aprovação do Rei de Portugal. Além disso, Moucheron
declara haver lido a seguinte passagem em um documento português: "Esta
revolta e guerra empreendida para a Glória de Deus, propagação da fé
católica, apostólica romana, para o serviço do rei e em prol da liberdade de
todos." Disse mais que ouviu vários portugueses dizerem que, se não nos
conseguissem expulsar do Brasil e destruir tudo a ferro e fogo, de maneira a
nos cercear qualquer possibilidade de fruir benefícios da terra, retirar-se-iam
com suas famílias para a Baía, a fim de se instalarem nalguma região mais
remota, onde estivessem a salvo dos ataques batavos. À vista da situação
incerta do Rei de Portugal e de seu caprichoso reinado, houve quem
considerasse improvável que o soberano se envolvesse em guerra conosco ou
a ela desse o seu consentimento. Entretanto, os acontecimentos se
encarregaram de provar o contrário.

Carta dos chefes revoltosos ao Conselho

A 22 de junho foi entregue uma carta endereçada ao Grande Conselho e


assinada por João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti, João Pessoa, Manuel
Cavalcanti, Antônio Bezerra e Cosme de Castro Passos, na qual se queixavam
de que, tendo sido, há muito tempo, acusados pelos judeus de conspirar contra
o governo, tinham com isso sofrido bastante. E agora, informados pelos
mesmos judeus de que estavam em perigo de perder seus engenhos e suas
propriedades, que seriam doados a certos holandeses mandados vir
especialmente da Metrópole, desejavam que o prazo de cinco dias estipulado
no último indulto fosse prorrogado, pois era por demais exíguo para negócio de
tão elevada monta. Além disso sugeriam que o indulto fosse concedido sem
exceção, acrescentando que, se o Conselho não concordasse, eles desde
Página 142 de 349

então se eximiam de toda responsabilidade pelas calamidades que pudessem


resultar da recusa.

O Conselho discute o assunto

Reuniu-se o Conselho pela manhã de 23 a fim de considerar o assunto da


carta. Depois de prolongados debates sobre a situação e os planos do inimigo,
as opiniões se dividiram, sendo uns partidários da anistia geral, sem nenhuma
exceção, em vista de não dispormos de força nem de provisões suficientes;
outros se firmaram no parecer de que uma carta contendo tão grande número
de inverdades patentes, não merecia resposta. Havia ainda conselheiros que
sustentavam opiniões diversas. Durante o decurso dos debates, o Conselho
recebeu comunicação do Tenente-Coronel Haus, estacionado em Santo
Antônio dizendo estar pronto para atacar os rebeldes de Ipojuca no dia
imediato, não sem esperanças de sucesso. Assim sendo e considerando a
importância de tal ação sobre o curso dos acontecimentos, o Conselho
resolveu suspender os trabalhos até o dia seguinte a ver se recebia notícias da
ofensiva do Tenente-Coronel.

Boas notícias da Paraíba

A 28 de junho Moucheron chegou ao Recife com suas duas companhias,


procedente de Alagoas. Ficou decidido que a companhia sob o seu comando
fornecesse o forte Quinquangular, do qual, por constituir posição de grande
importância, foi ele feito comandante em chefe. A outra, sob o comando do
Capitão Willem Lambertsz foi encaminhada para o Forte Ernesto.
Por carta datada de 25 de junho, Paulus de Linge, governador da Paraíba, nos
informou de que os habitantes das redondezas se prontificaram a dar novas
provas de lealdade, renovando o juramento de fidelidade e que não conseguiu
perceber o menor entusiasmo com relação à revolta.

Interrogatório e confissão de Antônio de Oliveira

Jacob Dassine, senhor do engenho Supupema233, que percorreu a redondeza


acompanhado por diversos homens, informou o Conselho ter estado em vários
engenhos, onde encontrou cerca de 200 homens das tropas inimigas, divididos
em pequenos grupos compostos de portugueses, mulatos e negros, sob as
ordens de Amador de Araújo, Antônio Castro, um tal Taborda 234 e Henrique
Dias.

233
Nieuhof escreveu Supapema (p. 80, 2. coluna, últ. §). Em Vingboons, Supupema (XCVII,
mapa 48, 2° v.). Supupema escreve-se na "Continuação da relação dos engenhos vendidos em
1637", declarando-se que fica em São Bento, que seu proprietário é Jacob de Siqueira (sic) e
pertenceu a Alveiro (sic) Barbalho, sendo o preço 24.000 florins, vencendo a última prestação a
1° de janeiro de 1640.
Jacob Dessine, Jacob Vermeulen, Mattheus van den Broeek e 12 soldados, enviados para
Santo Antônio, foram presos por Fernandes Vieira e escoltados por soldados da Baía. Jacob
Dessine permaneceu em Santo Antônio e enviou uma carta a Bullestrate, na qual acusava K.
van der Ley e Hek de terem conhecimento da revolta. Bullestrate, que era compadre de van der
Ley, mostrou-lhe a carta e este, por sua vez, mostrou-a ao Capitão português Pedro Marinho
Falcão, que o prendera. (Cf. Mattheus van den Broeek. XVI, pp. 14 e 22).
234
Trata-se do Capitão Antônio Gomes Taborda. (LXXII, 3a tomo, p. 7-19).
Página 143 de 349

A 29 de junho, por ordem expressa do Conselho, Balthazar van der Voorde


interrogou Antônio de Oliveira com respeito às intenções dos portugueses
contra o nosso governo. Declarou este que tendo estado em casa de Sebastião
Carvalho em princípios deste mês, juntamente com Francisco de Oliveira,
Bernardino Carvalho e o já mencionado Sebastião de Carvalho, certo
português, bem conhecido de todos, entregou-lhe uma carta dirigida a todos os
presentes, capeando outro documento aberto que ele começou a ler. Vendo,
porém, que o conteúdo declarava serem os signatários do mesmo fiéis
vassalos do rei de Portugal e que João Fernandes Vieira, Francisco Berenguer,
Antônio da Silva e diversos outros em cujos nomes não pôs reparo o haviam
assinado, recusou-se assinar o documento e devolveu-o dizendo a seu filho
que melhor seria ter a mão cortada que assinar tal papel. Dito isto saiu sem
que nenhum dos presentes tivesse assinado o referido documento naquela
ocasião. Declarou não ter reconhecido a letra de quem o autografou. Após
mais detida consideração do caso, achou conveniente proceder a uma
investigação, o que fez dois dias mais tarde, em companhia de Mattijs Reex,
que desejava também fosse ouvido pelo Conselho. Declarou mais que o
referido documento foi assinado por mais de 100 pessoas.

Interrogatório de Diogo Lopes Leite

A 30 de Junho um tal Diogo Lopes Leite235, recentemente capturado pelos


brasileiros, foi interrogado pelo senhor Bullestrate, Dortmont e alguns outros
militares. Declarou o .prisioneiro, em sua confissão, que logo de início os
portugueses escreveram a Antônio Teles da Silva, governador da Baía,
pedindo auxílio e dizendo que, se o recusasse, apelariam para a Espanha e
que se também lá não o conseguissem preferiam entregar-se aos turcos que
suportar por mais tempo os maus tratos dos holandeses. Que, não obstante,
tinha ouvido terríveis imprecações contra João Fernandes Vieira. Que o menos
que este merecia era ser condenado às galés, pois provocara esta rebelião
apenas com o fim de livrar-se de suas enormes dívidas para com a
Companhia.
Nesse mesmo dia tomou-se a resolução de despachar uma patrulha de 12
soldados e oito brasileiros a fim de trazer de São Lourenço boa partida de
farinha. Esses homens foram de tal forma atacados junto àquela povoação,
que poucos conseguiram escapar. Quase ao mesmo tempo o Conselho
recebeu a má notícia de que alguns habitantes de Igarassú tinham tomado
armas contra os holandeses.
Em princípios de Julho ficou resolvido restringir o âmbito das fortificações da
Cidade Maurícia, acrescentando-se-lhes nova linha de para-peitos. Esse
trabalho foi executado pelos negros, escravos dos habitantes do Recife, sob a
direção do Vice-Almirante Lichthart que teve o cuidado de aperfeiçoá-lo de
acordo com o modelo desenhado pelos engenheiros. Recebeu-se, por essa

235
Nieuhof escreveu Diogo Lopes Leyte (p. 81, 1a coluna, últ. §). Diogo Leite foi um dos que
assinaram a Carta dos Aflitos Moradores de Pernambuco (Cf. Rev. Inst. Arqueol e Geog. Pern.,
n. 34, 1887, vol. 6, p.120-22).
Página 144 de 349

ocasião, notícia no sentido de que João Lourenço Francês236 e João Dias Leite
moradores de Igarassu estavam incitando o povo à revolta.
O Capitão Sluyter comunicou também, de Itamaracá, que cerca de 80 homens
e 110 mulheres e crianças, todos brasileiros, das vilas de São Miguel e
Nassau, tinham ido procurar refúgio naquela ilha e que os habitantes da Aldeia
de Otta pretendiam fazer o mesmo. Os magistrados e os chefes portugueses
de Goiana apresentaram ao Conselho novos protestos de lealdade, sob
condição de, em caso de necessidade, terem eles permissão de se retirarem
àquela ilha. A permissão foi concedida e o Conselho externou o seu
reconhecimento pela prova de fidelidade.

Os magistrados de Igarassu comunicaram que Vieira tinha mandado afixar no


engenho de Gonçalo Novo de Lira237 uma declaração que mandaram arrancar
e da qual remetiam cópia ao Conselho, assegurando-o de que não poupariam
esforços no sentido de manter os moradores das redondezas em obediência,
conquanto notassem, em alguns deles, inclinação para a revolta.

Interrogatório de Fernando Vale

Interrogado por B. van der Voorde e Pieter Jansz Bas, Fernando Vale declarou
que tendo recebido uma carta de Sebastião de Carvalho pedindo-lhe que o
fosse encontrar pela manhã seguinte no Morro Guararapes, porque tinha algo a
lhe comunicar que se relacionava com suas propriedades, vida e honra, o
depoente, sem nada dizer à sua mulher ou ao seu irmão, para lá se dirigiu a
cavalo, acompanhado apenas por um rapaz, apesar de estar, naquela ocasião,
sofrendo de cálculos. No lugar aprazado encontrou Sebastião Carvalho,
igualmente acompanhado por um rapaz, o qual lhe disse que, tendo recebido
uma carta capeando um plano de insurreição contra o governo, achou
imprescindível dar conhecimento do fato ao Grande Conselho, e, por isso,
queria que ele, (o declarante) versado como era, na língua holandesa,
escrevesse uma carta ao Grande Conselho. Que, tendo Vale perguntado se
havia mais alguém que soubesse do que se passava, Carvalho respondera que
seu irmão Bernardino também o sabia e que igualmente era de opinião que se
informasse o Conselho. Que, voltando cada um para sua casa, Vale redigiu
uma carta em português, consoante as instruções que recebera de Carvalho e
deixou-a em casa de um padeiro, num dia de leilão de escravos, para que
Sebastião a visse. Depois disso enviou dita carta, dentro de outra, ao Dr.
Mercado, pedindo-lhe que a encaminhasse cuidadosamente ao Grande
Conselho, sem fazer referência ao seu teor.

Tendo recebido várias informações de que os portugueses da Baía pretendiam


mandar uma frota, em auxílio dos revoltosos, o Grande Conselho resolveu dar
ordem de regressar ao Recife imediatamente aos quatro navios Amsterdam,
Moriaen, Noort-Hollant e Groeningen, que se achavam fundeados na Terra-

236
João Lourenço Francês (A Bolsa do Brasil, n° 47) "deve tanto a particulares, como a
Companhia, 84.509 florins. O contratador tem bastante recursos, seus fiadores são três, sendo
um advogado que não possui nada e os outros dois pobretões. Deu 13.000 florins ao Sr. Kodde
e 3.000 a outros."
237
O engenho de Gonçalo Novo de Lira era o [i]Araripe de Cima,[/i] situado no distrito de
Igarassu. (Cf. Breve Discurso, XVI, p. 152).
Página 145 de 349

Vermelha, prontos para zarpar com destino à Metrópole, pois o governo tinha
urgente necessidade de seu auxílio a fim de impedir que as forças provenientes
da Baía se reunissem aos rebeldes.

Por outro lado o Conselho recebeu comunicação do Tenente-Coronel Haus,


despachada de Ipojuca a 26 de junho, dizendo que tinha concedido salvo-
conduto a mais de 200 pessoas que voltavam aos seus trabalhos.

Dizia mais, que dois ou três dos cabeças excluídos do último indulto,
procuraram obter idêntico favor e que tinha capturado um tal Francisco
Godinho238 também chefe dos revolucionários, a quem mandou executar na
forca que ele próprio havia mandado levantar.

Que Amador de Araújo partira para Várzea com 150 homens, a fim de se reunir
a Vieira e que ele (Haus) aguardava ordens para persegui-lo, achando que
seria empresa fácil desalojá-lo de lá. Informou ainda o Tenente-Coronel que em
Ipojuca havia mais de 700 pessoas239, inclusive os brasileiros, suas mulheres e
filhos e que, se não recebessem provisões do Recife, logo teriam consumido
todo o gado da redondeza.

O Grande Conselho respondeu ao Tenente-Coronel Haus, na mesma noite,


autorizando-o a indultar a todos que o pedissem, sem exceção nem mesmo
dos chefes revolucionários, a fim de enfraquecer Amador de Araújo e seus
apaniguados. Ordenou também o Conselho que marchasse para o Recife com
todas as forças de que dispusesse em Ipojuca (depois de organizar a defesa
da guarnição, como melhor lhe parecesse) a fim de atacar Vieira. No Recife
não haveria falta de víveres, pois contavam com as provisões acumuladas por
Vieira para os socorros que esperava receber da Baía, bem como com o gado
pertencente aos rebeldes.

Todavia, enquanto o Tenente-Coronel Haus trabalhava na fortificação de


Ipojuca, os que se achavam em Várzea fortificavam-se quanto podiam. Com o
fim de aumentar as forças de que dispunha, João Fernandes Vieira e Antônio
Cavalcanti, que se denominavam os Chefes da guerra, afixaram suas
proclamações pela Cidade Maurícia e Igarassú incitando o povo à rebelião e
prometendo-lhes consideráveis reforços da Baía. Além disso, seus asseclas,
aos quais freqüentemente enviavam em missões pelas cercanias, forçavam os
camponeses a se armarem, executando os que se recusavam a fazê-lo.
238
Francko Godinho escreve Nieuhof (p. 82, 2a coluna, 4° §). A 25 de junho é que foi
aprisionado Francisco Godinho, lavrador de Amador de Araújo."Como esse indivíduo
mandasse levantar uma forca em Ipojuca, para aqueles que se não quisessem revoltar, o
senhor Tenente-Coronel (Haus) o mandou pendurar na sua própria máquina". (XVI, p. 4).
Calado (XVII, p. 189, 1a coluna) refere-se ao fato, dizendo que H. Haus estava com seus
soldados em Ipojuca, onde mataram a Francisco Godinho e ao Ermitão de Santa Luísa pela
culpa de haver tangido o sino à missa, achacando-lhe que dava rebate à nossa gente. Moreau
(LIX, 65) relata a chegada de Haus a Tabatinga e a atitude assumida por Godinho, que
procurava impedir que ele avançasse, dizendo-lhe que os portugueses eram em maior número;
retirou-se, então, para Ipojuca, levando consigo Godinho. Quando o viram aproximar-se,
rebateram o sino, que era o sinal de chamada às armas; Godinho (Godigno em Moreau) foi,
então, estrangulado.
239
O tradutor escreveu (p. 61, 1a coluna, 2° §) 500 pessoas. Comparar coma ed. holandesa, p.
83, 1a coluna, 2° §.
Página 146 de 349

De idêntica maneira agia Amador de Araújo, em Ipojuca, de forma que, em


parte acenando com provisões fartas e, em parte, ameaçando e oprimindo,
conseguiram reunir em Várzea contingente ponderável, sem que a isso nos
pudéssemos opor, dada a força escassa de que aí dispúnhamos.

Sendo, porém, absolutamente necessário tentar impedir o mais possível esse


agrupamento, tomou-se a resolução de armar alguns rapazes robustos com
mosquetes fornecidos pelo povo (pois que não havia armas de reserva) e
incorporá-los a um destacamento da guarnição, ao qual também se reuniu uma
força composta de 100 homens, sob o comando de Pedro Potí, chegada
recentemente.

O capitão Blaer tem ordem de partir com suas forças

De acordo com esta resolução o capitão Johan Blaer recebeu ordens na noite
de 29 de junho de se pôr à frente de 300 homens entre os quais estavam os
100 brasileiros comandados por Pedro Potí, marchar com toda celeridade
possível para fora do Recife,240 e, postando-se de emboscada junto às
principais passagens, procurar interceptar as tropas inimigas, na esperança de
que conseguisse saber, através dos prisioneiros, onde se achava Vieira com
sua força principal, de quantos homens se compunham os seus exércitos bem
como os reforços da Baía que já se presumia estarem ao seu lado.

Johan Blaer recebeu ordens terminantes de não incomodar os civis


desarmados, mas, ao contrário, protegê-los bem como às suas propriedades.
Teve ainda instruções de acolher os que pedissem mercê, conduzindo-os ao
Recife.

Também ao Tenente-Coronel foram despachadas ordens de marchar para


Várzea com toda a força de que pudesse dispor da guarnição do Sul, a fim de
se reunir ao Capitão Blaer e tentar o ataque contra os chefes rebeldes

Se conseguissem vencê-los, talvez pudessem abafar a chama da rebelião e


restaurar a paz no Brasil Holandês.

A 1º de julho o Conselho considerou a conveniência de conceder tudo quanto


desejassem as pessoas suspeitas de conivência com a conspiração. Essa
resolução foi tomada como sendo a única capaz de sossegar o espírito do
povo.

No dia seguinte à tarde, o Conselho recebeu comunicação do Capitão Blaer,


que se achava estacionado em Monjiope241 e pretendia atacar o inimigo onde
quer que o encontrasse.

A 3, Blaer marchou para Igarassú. A 4, recebeu o Conselho cartas do Tenente-


Coronel Haus, de Santo Antônio, informando que, tendo posto a guarnição de

240
O tradutor inglês (p. 61, 2a coluna, 3° §) omitiu a data e a referência aos 100 brasileiros
comandados por Pedro Potí. Vide p. 82, 2a coluna últ. § da ed. holandesa.
241
Coluna Mongioppe escreve Nieuhof (p. 84, 2a coluna, 1° §) e Magioppe à p. 37
Página 147 de 349

Ipojuca sob o comando do Tenente Flemming e deixado uma companhia de


brasileiros em Santo Antônio, estava pronto para marchar em direção ao
Engenho Velho e daí para Muribeca onde aguardaria instruções.

As condições de Goiana

Tendo o povo de Goiana fortificado determinada casa de propriedade de Listry,


seu principal magistrado, pedia que o Conselho lhe fornecesse 40 mosquetes a
fim de prover os que não possuíam armas. O pedido foi atendido e Servaes
Carpentier teve instruções expressas de aproveitar essa oportunidade para
desarmar, por bem ou à força, todos os portugueses do local. Para dar
cumprimento a essa ordem, Servaes deveria reunir todos os holandeses, em
um só grupo, se possível. Carpentier respondeu que tentaria desarmar os
portugueses por bem, já que não dispunha de meios para desarmá-los à força.
Além disso, informou o Conselho, em sua carta de 11 de junho, que até então
Goiana estava em perfeita calma, mas que os brasileiros (contrariamente às
suas ordens expressas), reclamando o direito de só serem comandados por
seus próprios oficiais, conforme decreto do Conselho, tinham, de passagem
para Itamaracá, assaltado diversos moradores lusos.

A maior parte dos rebeldes portugueses havia deixado suas mulheres e filhos
em suas casas e engenhos, o que para eles representava não pequena
vantagem. Assim sendo, alguns portugueses leais aos batavos sugeriram ao
Grande Conselho, a 3 de Julho, a conveniência de forçar essas mulheres e
crianças a seguirem seus chefes. Várias foram as razões alegadas em favor de
tal alvitre.

I - Porque, com suas famílias, os rebeldes tinham de consumir maior


quantidade de farinha e outras provisões, o que certamente os levaria a logo
alterar as rações e mudar de posição.

II - Que assim teriam receio de um ataque vigoroso.

III- Que não poderiam marchar ou mudar de acampamento tão livremente


como antes, nem permanecer em lugares inabitáveis.

IV- Que com a remoção dessas mulheres que serviam de espiãs aos rebeldes,
por intermédio de seus escravos, ter-lhes-íamos cerceado toda e qualquer
oportunidade de serem informados quanto aos nossos movimentos.
Pesadas todas essas razões, foi publicada a seguinte proclamação.

PROCLAMAÇÃO PARA REMOÇÃO DAS MULHERES E CRIANÇAS DOS


REBELDES

O Grande Conselho do Brasil, com autorização dos Estados Gerais das


Províncias Unidas, de Sua Alteza o Príncipe de Orange e da Companhia das
índias Ocidentais, faz saber a todos quantos esta virem que, considerando que
muitos dos que se uniram aos três chefes rebeldes, João Fernandes Vieira,
Antônio Cavalcanti e Amador de Araújo, contra este Estado, deixaram suas
mulheres, filhos e famílias em suas próprias moradias; por esta proclamação
Página 148 de 349

ordena expressamente que todas as mulheres e crianças, de ambos os sexos,


cujos maridos e pais se tiverem engajado nas fileiras rebeldes, deixem suas
respectivas residências dentro de seis dias depois da publicação da presente,
sendo resolução do Conselho não tomá-los sob sua proteção, bem como
suspender as garantias dadas a todos de nossos súditos que acolherem ou
esconderem essas mulheres, seus filhos ou haveres, a menos que os maridos
e pais dessas mulheres e crianças voltem às suas moradas dentro de seis dias
e solicitem o indulto do Conselho.

No ano de 1645, devido à revolta dos portugueses, muitos holandeses e


portugueses, como também cerca de 1.000 brasileiros, a saber, 369 homens e
o resto mulheres e crianças de várias aldeias do continente, retiraram-se para a
ilha de Itamaracá, a fim de escaparem aos portugueses rebeldes242

Balthazar van Dormont, Conselheiro da Fazenda, foi para lá enviado, em


princípios de julho, na qualidade de Diretor Supremo do distrito de Igarassú, a
fim de garantir essa ilha, tão importante para os interesses do nosso Estado.
A 5 de julho foi publicada uma proclamação contra os três chefes rebeldes
João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e Amador de Araújo, confiscando
suas propriedades, condenando-os à pena capital e oferecendo prêmios pela
sua captura nos seguintes termos:

PROCLAMAÇAO PARA A CAPTURA DOS TRÊS CHEFES REBELDES

O Grande Conselho do Brasil, com autorização dos Estados Gerais das


Províncias Unidas, de Sua Alteza o Príncipe de Orange e da Companhia das
índias Ocidentais, vos saúda. Saibam todos quantos esta virem, que,
perfeitamente cientes de que João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e
Amador de Araújo, abandonaram sua fidelidade e, há bastante tempo,
puseram-se a conspirar contra o Estado, tendo enviado cartas a diversas
freguesias sob nossa jurisdição, incitando o povo à revolta; que reuniram e
ainda estão reunindo forças com que levar a cabo seus planos traiçoeiros
contra este Estado, forçando os súditos fiéis a apoiá-los, sob pena de morte;
que executaram diversos holandeses e brasileiros por esse motivo; que
afixaram e publicaram declarações em diversos lugares, com o fito de agitar e
causar confusão no espírito dos súditos deste Estado, com o nome e título de
Governador desta Guerra (quando deveriam ter-se intitulado traidores sem fé),
acobertando seus vis desígnios sob o nome da Majestade Divina, além de
muitos outros ardis pelos quais se fizeram réus do crime de lesa-majestade;
por todos esses motivos, julgamos nosso dever declarar os referidos João
Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e Amador de Araújo, como pela presente
declaramos, inimigos do Estado, perturbadores da ordem pública e dos nossos
súditos fiéis, rebeldes e traidores dos magistrados legais, e, portanto, como
tendo perdido o direito a todos os seus privilégios, bens e vidas. Assim sendo,
não só concedemos permissão a qualquer pessoa para capturar os referidos
João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e Amador de Araújo, mas, ainda,
prometemos uma recompensa de 1.000 florins a quem prestar tão valioso
serviço à Companhia, qual seja o de prender esses indivíduos e apresentá-los
242
O tradutor inglês (p. 62, 2a coluna), além de omitir a data, resumiu o trecho; o mesmo foi
retificado, segundo o texto holandês (p. 86, 1a coluna, 1° §).
Página 149 de 349

à Justiça; prometemos ainda a quem conseguir matar qualquer um desses


traidores, idêntica recompensa, além do perdão para qualquer crime
anteriormente cometido; se for

Balthazar van Dormont, Conselheiro da Fazenda, foi para lá enviado, em


princípios de julho, na qualidade de Diretor Supremo do distrito de Igarassú, a
fim de garantir essa ilha, tão importante para os interesses do nosso Estado.
A 5 de julho foi publicada uma proclamação contra os três chefes rebeldes
João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e Amador de Araújo, confiscando
suas propriedades, condenando-os à pena capital e oferecendo prêmios pela
sua captura nos seguintes termos:

PROCLAMAÇAO PARA A CAPTURA DOS TRÊS CHEFES REBELDES

O Grande Conselho do Brasil, com autorização dos Estados Gerais das


Províncias Unidas, de Sua Alteza o Príncipe de Orange e da Companhia das
índias Ocidentais, vos saúda. Saibam todos quantos esta virem, que,
perfeitamente cientes de que João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e
Amador de Araújo, abandonaram sua fidelidade e, há bastante tempo,
puseram-se a conspirar contra o Estado, tendo enviado cartas a diversas
freguesias sob nossa jurisdição, incitando o povo à revolta; que reuniram e
ainda estão reunindo forças com que levar a cabo seus planos traiçoeiros
contra este Estado, forçando os súditos fiéis a apoiá-los, sob pena de morte;
que executaram diversos holandeses e brasileiros por esse motivo; que
afixaram e publicaram declarações em diversos lugares, com o fito de agitar e
causar confusão no espírito dos súditos deste Estado, com o nome e título de
Governador desta Guerra (quando deveriam ter-se intitulado traidores sem fé),
acobertando seus vis desígnios sob o nome da Majestade Divina, além de
muitos outros ardis pelos quais se fizeram réus do crime de lesa-majestade;
por todos esses motivos, julgamos nosso dever declarar os referidos João
Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e Amador de Araújo, como pela presente
declaramos, inimigos do Estado, perturbadores da ordem pública e dos nossos
súditos fiéis, rebeldes e traidores dos magistrados legais, e, portanto, como
tendo perdido o direito a todos os seus privilégios, bens e vidas. Assim sendo,
não só concedemos permissão a qualquer pessoa para capturar os referidos
João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e Amador de Araújo, mas, ainda,
prometemos uma recompensa de 1.000 florins a quem prestar tão valioso
serviço à Companhia, qual seja o de prender esses indivíduos e apresentá-los
à Justiça; prometemos ainda a quem conseguir matar qualquer um desses
traidores, idêntica recompensa, além do perdão para qualquer crime
anteriormente cometido; se for os delegados formular o seu protesto, bem
como isentar-se de toda e qualquer responsabilidade pelas depredações,
crimes e saques cometidos ou que viessem a sê-lo por essas forças, contra os
holandeses, portugueses e brasileiros. Deveriam os delegados declarar ao
Governador que consideravam o fato como uma ameaça à paz, um ato de
hostilidade, do qual deveriam dar contas aos seus superiores, que, certamente,
saberiam o que fazer para se ressarcir dos prejuízos sofridos. Deveriam, ainda,
os enviados, protestar que os holandeses se declaravam inocentes de todas as
misérias resultantes da necessidade de tomarem armas em sua defesa, depois
de ter sido rejeitado o seu razoável pedido.
Página 150 de 349

Chegada à Bahia

A delegação zarpou do Recife a 9 de julho de 1645, a bordo do navio


denominado de Gulde Ree tendo chegado à Baía a 17, onde foram
cumprimentados por diversas personalidades portuguesas, em nome do
Governador Antônio Teles da Silva, antes do desembarque. A esses
portugueses pediu a delegação licença para desembarcar, pois que tinha
assuntos de grande relevância a tratar com o Governador, em nome do Grande
Conselho do Brasil.

Recebidos em audiência

No dia imediato, 18 de julho, por volta do meio-dia, o Tenente-Coronel André


Vidal e Pedro Cavalcanti, acompanhados por outros oficiais, vieram a bordo de
um bergantim, para conduzi-los a palácio. Lá chegando, depois dos primeiros
cumprimentos, entregaram suas credenciais e fizeram sentir ao Governador
que, pelo teor das mesmas, já teria visto que vinham para tratar de certos
pontos que estavam prontos a expor imediatamente ou quando ele se
dispusesse a ouvi-los. Depois dos cumprimentos do estilo e do exame das
credenciais, o Governador disse aos delegados que estava pronto a ouvi-los a
qualquer momento. Diante disso expuseram os fins de sua missão.

Falam os delegados

Disseram, então, os enviados batavos que alguns súditos portugueses das


Províncias Unidas tinham organizado uma conspiração com o fim de tomar
armas e atacar Pernambuco; para isso dirigiram cartas aos seus patrícios,
concitando-os a aderir à revolução e armarem-se na esperança de reforços de
fora. Que em princípios de maio, Camarão e Henrique Dias, com seus
brasileiros, negros e alguns portugueses, estando em marcha para
Pernambuco, em atitude hostil, João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e
Amador de Araújo e outros portugueses seus apaniguados, notificados de sua
chegada, ausentaram-se de suas residências, arrebanhado todos os homens
que puderam - um pouco à força, um pouco por meios suasórios, - publicaram
declarações intitulando-se Governadores dessa Guerra pela Liberdade Pública,
e a tudo se dispuseram na esperança de serem socorridos por tropas de fora.
Que com a graça de Deus, seus superiores não tinham falta de elementos com
que proteger os súditos fiéis e punir os rebeldes, na devida altura. Não podiam,
porém, compreender o que poderia ter induzido essas tropas estrangeiras a
penetrarem em seus territórios, em tempo de paz, para auxiliar revoltosos, mas
que estavam em condições de enfrentá-las. Que os batavos esperavam que o
Governador lançasse mão de todos os recursos a fim de evitar o choque. Por
isso o Grande Conselho os tinha enviado a fim de informar Sua Excelência dos
atos hostis praticados por Camarão e Henrique Dias, pedindo-lhe que tivesse a
bondade de intimá-los a não prestar auxílio aos rebeldes e a abandonar o
território de Pernambuco e de outras províncias sob a jurisdição holandesa;
pois assim os revolucionários, privados de auxílio, poderiam ser prontamente
reduzidos à antiga obediência e os nossos súditos passariam a fruir os
benefícios da trégua concluída entre o atual rei de Portugal, S. M. D. João IV, e
Página 151 de 349

o Governo holandês. Eram essas as recomendações que o Grande Conselho


apresentava à consideração de Sua Excelência e que se achavam
condensadas numa carta a ele entregue pelos deputados e concebida nos
seguintes termos:

CARTA DO GRANDE CONSELHO AO GOVERNADOR DA BAHÍA243

Vossa Excelência sabe com que rigor tem sido observada pelos habitantes do
Brasil holandês, em todas as suas minúcias, a trégua celebrada entre Sua
Majestade, o Rei de Portugal, e os poderosos Estados Gerais das Províncias
Unidas, mesmo segundo a opinião de baianos e cidadãos de outras
procedências, que ultimamente têm passado pelas nossas capitanias. Por
outro lado jamais recebemos a menor reclamação nem de S. Majestade o Rei
de Portugal, nem de Vossa Excelência, e, portanto, isso nos leva a crer que
Vossa Excelência jamais consentiria em que súditos seus praticassem
qualquer ato contrário a essa trégua. Entretanto, alguns de nossos súditos
portugueses, pondo de parte sua lealdade para com este Estado, tomaram
armas e voltaram-se contra o poder constituído, logo que Camarão e Henrique
Dias, à frente de alguns brasileiros, negros e uns tantos portugueses, entraram
em nosso território, em flagrante desrespeito às leis internacionais, sem
permissão e nem sequer o mais leve estímulo de nossa parte, e, reunindo-se
aos rebeldes, abriram hostilidades contra os nossos súditos, não como
soldados, mas como ladrões e assaltantes. Não podemos, porém, nos
persuadir de que tais forças tivessem assim agido por ordem ou com o
consentimento de Sua Majestade, o Rei de Portugal, nem de Vossa
Excelência, contra os seus confederados.

Com a graça de Deus não nos faltam recursos para reconduzir à razão os
nossos súditos revoltados, nem para desbaratar as tropas estrangeiras.
Todavia, para mostrar a todo o mundo como estamos prontos a cumprir as
reiteradas ordens de nossos superiores no sentido de manter inalterada a
trégua firmada entre eles e Sua Majestade, bem como para evitar más
interpretações nas cortes estrangeiras, com relação ao caso e dar a Sua
Majestade, p Rei de Portugal, e a Vossa Excelência oportunidade de convencer
o mundo de que não haveis consentido nem instigado esta conspiração, nós,
em nome dos Poderosos Estados Gerais, de Sua Alteza o Príncipe de Orange
e dos Governadores da Companhia das índias Ocidentais, enviamos os
Senhores Balthazar Van der Voorde, Conselheiro da Corte de Justiça, e
Diederik Van Hoogstraeten, Comandante em Chefe do Cabo Santo Agostinho,
como deputados nossos junto a Vossa Excelência, com plenos poderes para
expor a Vossa Excelência estes pontos e pedir que determine imediatamente o
regresso, dentro de determinado espaço de tempo, de Camarão, Henrique Dias
e outros chefes, por meio de proclamação ou qualquer outro que Vossa
Excelência julgue mais seguro ou expedito, punindo-os de conformidade com
as suas culpas. Caso se recusarem atender às ordens de V. Excelência, sejam
eles declarados inimigos de Sua Majestade, pois sem isso não podemos
imaginar como seja possível dar as devidas satisfações aos Estados Gerais, ao

243
Esta carta foi publicada na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern., 1887, n° 34, vol. 6, p. 109-
111. Não se encontra nessa cópia da citada revista o nome de Hendrik de Moucheron.
Página 152 de 349

Príncipe de Orange e à Companhia das índias Ocidentais. É o que esperamos


obter de Vossa Excelência.

Subscritos,

De vossa Excelência,
Amigos bem intencionados,

Hendrik Hamel,
A. Van Bullestrate,
P. J. Bas,
J. Van Walbeek e
Hendeik de Moucheron.

Do Recife, 7 de julho de 1645.244

Resposta do Governador aos Deputados

O Governador respondeu imediatamente aos deputados, afirmando-lhes que


longe de mandar socorros aos rebeldes, ele nem ao menos tinha tido disso
conhecimento. Disse que os brasileiros e negros haviam sido dispersados por
ordem de Sua Majestade, e que tanto estes como os portugueses que haviam
seguido em auxílio dos rebeldes não podiam ser em grande número. Ao que
supunha consistiam tais tropas de vagabundos e foragidos que, tendo cometido
crimes na Baía, se aproveitaram dessa oportunidade para escapar à ação
punitiva da justiça, como aliás também vinham de Pernambuco para a Baía,
sem que isso o levasse a duvidar da sinceridade do Conselho. Disse-lhes,
ainda, o Governador que estava satisfeitíssimo com a confiança que nele
depositava o Conselho com relação à manutenção da trégua pactuada entre
Sua Majestade o Rei de Portugal e os Estados Gerais e assegurou-lhes de que
jamais a quebraria, mesmo pelo perigo que então correria sua vida. E que se
tanto pretendesse, meios não lhe faltariam para agir, com auxílio dos
brasileiros. Entretanto jamais lhe ocorreu tal cousa, apesar de ter sido
provocado pelos holandeses, os quais, mesmo depois de celebrado o
armistício, apreenderam um navio português e o levaram para o Recife, barco
esse que, somente devido à bravura dos lusos, escapou aos batavos e
regressou à Baía, sendo os marinheiros holandeses postos em liberdade sem
sofrer punição. Assegurou-lhes de que não era insensível à opinião que os
líderes do Brasil holandês mantinham de sua sinceridade, mas que tinha
motivos para acreditar que, então como de outras vezes, haviam eles enviado
deputados principalmente para lhe tomar o pulso, julgar de sua força e sondar-
lhe os planos. Que, entretanto, passaria a carta ao seu Conselho e dar-lhes-ia
uma resposta pronta, a fim de que pudessem regressar, conforme desejo
expresso de seus superiores. Levantando-se o Governador, os deputados
deixaram o palácio e voltaram para bordo.

244
No texto holandês (p. 90, 1ª coluna) está 1640, mas na errata o ano está corrigido para
1645 (p. 240).
Página 153 de 349

Segunda audiência

Pela manhã do dia 19 um tenente foi buscar novamente os deputados a bordo,


conduzindo-os à casa do Tenente-Coronel Pedro Correia da Gama onde
jantaram em companhia de André Vidal e Paulo da Cunha. À noite foram
novamente a palácio onde o Secretário lhes pediu que esperassem um pouco,
porque o Governador estava terminando sua correspondência. Depois de
alguma demora foram levados à presença do Governador que lhes disse ter
examinado cuidadosamente o teor da carta e verificado que concordava
perfeitamente com a exposição verbal que lhe fora feita no dia anterior,
consistente em dois pontos principais, a saber:

A segunda resposta do Governador

Em primeiro lugar, o elevado conceito em que os chefes do Estado holandês


tinham sua sincera intenção de manter boas relações com eles, a fim de
preservar a trégua ajustada entre Sua Majestade e os Estados Gerais e a
confiança que externavam de que ele, o Governador, não estava envolvido na
rebelião e nem a ela prestava auxílio. Manifestou o desejo de que os chefes
holandeses conservassem tais sentimentos de vez que jamais cometera a mais
leve infração contra os termos do armistício, nem tolerara que súdito algum seu
o fizesse. Entretanto, os holandeses já diversas vezes tinham quebrado a
trégua com suas expedições a Angola, São Tome e Maranhão e o saque às
propriedades de Pedro César Meneses, que durante o tempo em que esteve
preso foi ignobilmente tratado, não como pessoa de posição, tendo sido
forçado a se refugiar no mato, quando conseguiu escapar. Haviam também os
bata vos apreendido um navio português em seu próprio porto. Nem faltavam
motivos de queixa aos habitantes de Pernambuco e de outras capitanias. Disse
ainda o Governador que tinha tido conhecimento, através de diversas cartas,
de como os judeus forjavam, constantemente, contra eles, acusações que
eram aceitas como verdadeiras e que, quando de medo os portugueses se
refugiaram, os batavos armavam contra eles os Tapuias, ou habitantes das
montanhas. Assim foi que, entre outros, enforcaram um pobre ermitão.
Declarou mais que o Grande Conselho lhe havia sempre dado provas de
desconfiança, sendo que a última embaixada não teve outra finalidade (como o
poderá testemunhar o Capitão Hoogstraeten) que a de sondar os seus planos e
a sua força. Assim é que tinha sido divulgada e aceita como verdadeira a
notícia de que ele (o Governador) havia determinado a ida de André Vidal,
Paulo da Cunha e diversos outros oficiais para Pernambuco e que entretanto
ali estavam eles presentes.

Quanto ao segundo ponto, no que respeita às forças que diziam ter sido
enviadas para Pernambuco, afirmou o Governador tratar-se de alguns
brasileiros e negros recentemente desmobilizados, os quais, como nós
mesmos o sabíamos, pouco representavam, na ordem das cousas. Que, se
entre eles havia portugueses, era de supor que se tratasse de criminosos
egressos da justiça. Declarou estar disposto a chamá-los por meio de uma
proclamação, mas receava não ser obedecido por indivíduos dessa espécie,
aos quais não conseguia manter em disciplina, nem mesmo dentro dos limites
de sua própria jurisdição. Que, a fim de satisfazer o nosso pedido e eliminar
Página 154 de 349

todos os motivos de queixa, ele pretendia enviar seus deputados para


Pernambuco, dentro em breve. Disse que seu pensamento tinha ficado bem
claro na carta que formulara ao Conselho e que, de acordo com o pedido de
nossos superiores, com ela nos despacharia, dentro do menor espaço de
tempo possível.

Resposta dos Deputados

Os deputados responderam que o seu governo jamais alimentara suspeitas


contra Sua Excelência, nem lhes havia ordenado que sondassem suas
intenções; ao contrário, sua firmeza em observar a trégua sempre causara
muito boa impressão ao governo holandês, como aliás poderia atestar o
Senhor André Vidal que, durante a sua permanência no Recife, teve liberdade
de ir para onde quis, sem outra companhia que a de seus homens, Que as
acusações levantadas por judeus, a que o Governador fizera referência, não
tinham importância, porquanto nunca se lhes havia dado ouvido e que a
conspiração havia sido descoberta por pessoas absolutamente idôneas. Que
João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e outros de seus partidários
estiveram sempre forrados contra qualquer falsa acusação e tinham liberdade
para se dirigir a todos os Conselheiros da Corte de Justiça e aos das outras
colônias, bem como aos mais graduados dos holandeses. Não tinham pois
razão de se esconderem, temendo os Tapuias, dos quais jamais se pretendeu
utilizar contra eles. Que não sabiam de nenhum ermitão que tivesse sido
enforcado por eles, mas, ao contrário, que num encontro com Amador de
Araújo, um clérigo havia sido abatido pelos brasileiros quando procurava tocar
o sino para dar alarme.

Os deputados disseram mais ao Governador que, conquanto não tivessem


instruções para tratar com Sua Excelência sobre qualquer outro assunto não
relacionado com a rebelião, poderiam, entretanto, afirmar em face do mundo
que Angola e outros lugares foram conquistados de acordo com as regras da
guerra, sem a menor infração à trégua, já que fora expressamente estipulado
que a guerra continuaria nesses lugares até que o armistício lá fosse publicado.
Afirmaram os delegados que os brasileiros, negros e portugueses que entraram
em nosso território eram em número considerável e de forma alguma poderiam
ser considerados soldados desmobilizados; ao contrário, iam bem armados e a
sua chegada não fora inesperada, pois que os rebeldes os aguardavam.
Entretanto o Conselho não estava tão preocupado com o número desses
soldados, quanto em saber sob que autoridade haviam eles tomado armas, a
fim de determinar que tratamento dispensar-lhes. De qualquer forma, os
deputados desejavam que Sua Excelência ficasse certo de que seu Governo
teria o máximo prazer em conhecer suas boas disposições, pois que assim se
evitaria efusão de sangue. Pediam, ainda, insistentemente que o Governador
enviasse logo seus deputados com as necessárias instruções.

O Governador prometeu despachar seus emissários logo após o regresso da


embaixada holandesa a Pernambuco, acrescentando que, estando certo de
que era correspondido pelos batavos em seus propósitos de boa vizinhança, de
sua parte estava resolvido a mantê-la. Quanto ao resto que lhes havia dito, fora
apenas à guisa de comentário e não com a intenção de provocar discussão
Página 155 de 349

quanto à legalidade ou ilegalidade dos fatos, conquanto lhe parecesse, a ele,


deveras estranho que os holandeses se ajustassem à coroa portuguesa no
Brasil e a ela movessem guerra em outros lugares sob pretexto de que a
conclusão da paz não havia sido aí publicada; também que a seu ver não havia
justificativa para o que se passara com Pedro César de Meneses.

Retiram-se os Deputados

Depois das despedidas protocolares, o Governador levantou-se prometendo


enviar-lhes a bordo, no dia seguinte, a carta que estava preparando para o
Conselho; os nossos deputados dirigiram-se, então, para o navio que os
transportara. Pela manhã do dia 20 o Secretário do Governador foi a bordo de
nosso navio levando a carta prometida, que foi entregue aos deputados. O
Secretário pediu-lhes, em nome do Governador, que lhe mandassem uma
tradução, em português, assinada por eles, da carta que o Conselho lhe dirigira
em holandês. Preparada a tradução pedida e entregue ao Secretário do
Governador, este deixou o navio e regressou à terra.

Seu regresso a Recife

Por volta do meio-dia o navio zarpou da Baía, em sua viagem de regresso ao


Recife, onde chegou à tarde do dia 28. No mesmo dia os deputados deram
conta ao Grande Conselho dos resultados de sua missão e fizeram entrega da
carta a ele endereçada por Antônio Teles da Silva, concebida nos seguintes
termos:

CARTA DO GOVERNADOR AO CONSELHO:245

Carta do Governador ao Conselho.


O Senhor Balthazar Van der Voorde, Conselheiro de Justiça, e o Capitão Van
Hoogstraeten, Comandante em Chefe do Cabo Santo Agostinho, deputados de
Vs. Excias. entregaram-me a carta em que Vs. Excias. se dignaram dar-me
notícia da revolta de alguns súditos, contra o Governo de Vs. Excias. Recebi
essa informação como devia e não o teria feito sem grande surpresa e certa
agitação, se não tivesse a minha consciência tranqüila com a segurança de
que Vs. Excias. jamais imaginaram que essa insurreição tivesse tido a sua
origem em meu Governo. E, conquanto pudesse eu entrar, aqui, a enumerar
pormenorizadamente vários atos de meu Governo, com a idéia de provar aos
olhos do mundo e dos mais poderosos reis e príncipes da Cristandade, que a
referida boa harmonia foi de nossa parte rigorosamente mantida, como o
prometem Vs. Excias., em carta, ao invés de dar a menor ocasião de
aborrecimento ou dissensão alongando-me sobre os pontos em que os súditos
de Vs. Excias. violaram abertamente a trégua concluída e ratificada pelo Rei,
meu Senhor, e os Estados Gerais das Províncias Unidas, prefiro não o fazer a
ter que tratar das lamentáveis ocorrências verificadas durante a expedição de
Angola justamente na ocasião em que os Estados Gerais auxiliavam, com suas
forças navais, à Coroa de Portugal, e que os nossos embaixadores no Recife
eram informados de que as tropas não se destinavam a atacar qualquer porto

245
Esta carta foi publicada na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern., 1887, n° 34 p 111-116
Página 156 de 349

de Sua Majestade, mas sim para serem empregadas nas índias Ocidentais,
conquanto na mesma ocasião empreendessem estas a conquista de Angola. O
mesmo pode-se dizer com, relação à tomada da Ilha de São Tome, a cidade de
São Luiz do Maranhão" o e a captura de um navio português proveniente do
Espírito Santo, carregado de açúcar. O Comissário Greving, foi enviado para cá
sob o pretexto de comprar farinha, mas, na realidade, para conhecer as minhas
intenções como ele mesmo o confessa, quando diz em sua carta, que,
"conquanto tivesse sido enviado com essa missão (a de comprar farinha) fora
principalmente incumbido de tomar o seu pulso e pôr à prova sua lealdade". A
atuação desleal dos Diretores de Angola na capitulação do Governador Pedro
César Meneses;246 o arrasamento do nosso Forte Arraial, em Bengo; os maus
tratos infligidos ao Governador que, além de sua, elevada posição, era General
de Sua Majestade; são ações incompatíveis com as normas da guerra, com, os
sentimentos de humanidade e contrárias não só aos costumes das nações
mais civilizadas da Europa como aos dos próprios bárbaros. Da mesma
natureza foi a resposta que deu o seu Conselho ao nosso embaixador que,
solicitando a pronta cessação das hostilidades em Angola, obteve como
resposta a afirmativa de que aquele território não estava sob a nossa
jurisdição. Esse modo de agir está em flagrante contraste com as intenções
sinceras que sempre pus em todas as negociações com Vs. Excias.. Haja vista,
por exemplo, o caso do Capitão Agostinho Cardoso e de um tal Domingos da
Rocha; tão logo Vs. Excias. me apresentaram queixa contra os referidos
senhores no sentido de terem eles se apoderado de uma barcaça carregada de
açúcar, conduzindo-a para este porto, fiz voltar a embarcação e prendi o
capitão, até que fosse remetido para Sua Majestade. Informado, também, de

246
Pedro César Meneses, terceiro filho de Vasco Fernandes César e de Ana de Meneses,
sucedeu a Francisco de Vasconcelos da Cunha, no ano de 1639. A 24 de agosto de 1641,
apareceu de fronte a Loanda a frota enviada por Nassau. A 25 de agosto, tomaram posse da
cidade os holandeses. Retirou-se Pedro César Meneses para Bembém e depois para Bengo e,
finalmente, para Massangano. Voltou a Bengo devido à trégua entre a Holanda e Portugal, mas
os holandeses, a 26 de maio de 1643, atacaram-no em represália aos ataques portugueses à
ilha de São Tome. Caiu prisioneiro, fugiu para Massangano, onde tomou posse do governo.
(XCII, p. 172-75).
Nessa época, Bengo era habitada por umas 400 pessoas e distava de Loanda 4 horas. Os
territórios do Maranhão, Angola e São Tome foram, em 1648, reconquistados por Salvador
Correia de Sá e Benevides. Sobre os episódios de Angola, vide o Manifesto das hostilidades
que a gente de que serve a Companhia Ocidental da Holanda obrou contra os vassalos d'El
Rei de Portugal, neste reino d' Angola, debaixo da trégua celebrada entre os Príncipes...
Lisboa, na Oficina, Craeesheckiana, 1651, 4°.
Era Luiz Felix da Cunha secretário do governo no reino de Angola (Inocêncio da Silva, LXXXV,
Tomo V, p- 223). Foi, mais tarde, publicada por Edgar Prestage uma nova edição (Coimbra,
1919, Academia das Ciências de Lisboa, Separata do "Boletim da classe de Letras", vol. XIII,
de acordo com a edição original da Biblioteca Nacional de Lisboa). Neste trabalho se conta a
história resumida das lutas luso-holandesas em Angola, desde a conquista do reino em 1641,
pelo Almirante Cornelisz Jol até a sua restauração em 1648, quando sua capital passou a
denominar-se Cidade de São Paulo de Assunção de Loanda (LVI, p. 445, nota de Edgar
Prestage).
Um curioso autor anônimo do séc. XVII, escrevendo sobre a restauração do Maranhão e de
Angola, disse: Toda a água do mar Oceano não lavaria nunca os portugueses do massacre
feito aos holandeses no Maranhão, aos quais prestaram juramento de fidelidade; outro tanto
teriam feito em Angola, se duas pessoas não tivessem avisado ao governador. Trata-se de um
exagero evidente, pois em Bengo, dos 400 soldados, morreram 7. (XIII, p. 14).[/i]
Página 157 de 349

que um soldado e um morador sob a minha jurisdição,247 João de Campos e


Domingos Velho o Sigismundo, haviam cometido tropelias em sua Capitania de
Pernambuco, mandei-os enforcar imediatamente, considerando ser esse um
dever do qual não me poderia eximir a fim de manter as nossas boas relações.
Nem mesmo as ocorrências acima alinhadas me levaram a esquecer as
repetidas ordens de Sua Majestade no sentido de cultivar as relações pacíficas
e respeitar alianças celebradas entre ele e os Estados Gerais, para satisfação
de ambas as partes. Devo, entretanto, confessar que na qualidade de soldado,
que de fato sou (abstendo-me de qualquer consideração sobre os interesses
do Estado e os dever es de súdito), não achava que devesse suportar
impassivelmente essas afrontas e nem deixar passar tantas oportunidades de
fazer justiça. Tudo isso excede em muito a tudo quanto possa resultar da
reunião de alguns portugueses desarmados, um negro descontente e alguns
rebeldes cuja proteção não pode, como disse anteriormente, ser posta em
paralelo com as diversas provocações a nós feitas, e, portanto, o nosso
governo não pode ser acoimado de constituir a causa oculta dessa rebelião,
como, aliás, Vs. Excias. mesmos houveram por bem confessar. Por outro lado
não me entregaria à* enumeração dos fatos acima, se me não sentisse
obrigado, por dever de lealdade, a dar a Vs. Excias. esta satisfação. Com
respeito à ausência de Henrique Dias, basta dizer que certa noite deixou ele
sua guarda no Rio Real e passou para a outra margem. Dom Antônio Filipe
Camarão, Capitão dos brasileiros, despachado em seu encalço, não mais
regressou. Estamos na suposição de que se dirigiram com o fim de atacar o
Mocambo dos Palmares do Rio São Francisco, o que me levou (para evitar
qualquer suspeita de estar o nele governo envolvido em algum ato capaz de
quebrar a trégua) a enviar dois jesuítas incumbidos de persuadi-los a
regressar. Foi infrutífera esta providência, pois que eles se recusaram a
obedecer, quer pelo receio de serem punidos, quer por já se terem engajado
aos rebeldes (o que agora já posso crer que de fato se deu). Depois disso nada
mais soube deles a não ser o que vim a saber pela carta de Vs. Excias..

Os portugueses sob seu governo comunicaram-me as razões que os impeliram


a esta rebelião, solicitando o meu auxílio na qualidade de súditos do Rei meu
Senhor. Disseram-me que receavam ser sacrificados à fúria de 4.000 Tapuias
248
especialmente enviados do Rio Grande para esse fim. Para evitar essa
calamidade e temendo a ira de Vs. Excias., provocada pelas falsas acusações
dos judeus (os mais pérfidos e irredutíveis inimigos da Cristandade), preferiram
antes os riscos de uma penosa fuga, abandonando suas esposas e filhos, a ter
de enfrentar as agruras de uma dura prisão. Dificilmente teria imaginado que
Vs. Excias. se deixariam ludibriar pelas invencionices de uma raça tão
desprezada por todos os povos, a ponto de acreditarem que para aí haviam
seguido pessoas que foram aqui vistas pelos seus próprios deputados. E, ainda
que me seja possível crer que alguns desses portugueses receberiam com

247
A edição inglesa (p. 68, 1a coluna, 1° §, linha 49) consigna dois soldados; o texto holandês
(p. 94, 1a coluna linha 38) confere com a cópia publicada na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog.
Pern., 1887-1890, 6a vol., n° 34, p. 113.
248
No texto holandês (p. 95, 1a coluna, 1° §) está escrito: vam vier duizent Tapuyas, isto é,
4.000 Tapuias. Na cópia publicada na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern., 1887-1890, n° 34,
vol. 6, p. 115, está escrito U0 tapuias. Só a consulta ao original é que poderia certificar-nos da
cifra exata, o que, infelizmente, não pudemos fazer
Página 158 de 349

prazer a nossa proteção, - 'sendo muito mais natural que no caso de opressão
antes sofram a de seus próprios reis ou príncipes que a de estrangeiros, -
entretanto, quando reflito maduramente sobre as propostas de Vs. Excias.,
formuladas pelos seus deputados, quais sejam as de forçar o Capitão Camarão
e Henrique Dias a regressar à Baía, bem como lançar mão de todos os meios
para reconduzir os portugueses rebelados à razão; quando também reflito, de
um lado sobre as calamidades e de outro sobre quão destituído de meios estou
no momento para atender se% pedido, não posso deixar de me preocupar
profundamente com o caso, pois estou certo de que tais chefes não se
deixarão facilmente persuadir, visto como me faltam meios para os subjugar,
dada a grande distância em que se foram acampar, nas malas. Entretanto
disposto como me acho a satisfazer o mais possível o pedido de Vs. Excias., e
também com a idéia de lhes dar prova da sinceridade do povo português, o
qual, ainda que contra os seus próprios interesses, jamais deixa de cumprir o
que julga ser seu dever para com os confederados, prontifico-me aceitar o
papel de mediador a fim de tentar apaziguar os ânimos com a minha
autoridade. Para esse fim pretendo enviar-lhes o mais breve possível, pessoas
de reconhecida capacidade, com instruções e poderes suficientes para
compelir os revoltosos a retornar aos seus afazeres. Se, porém, a tanto se
recusarem, tomaremos providências para reduzi-los pela força, o que espero
possa constituir o melhor meio de restabelecer a tranqüilidade em seus
domínios e manter as nossas boas relações. Rogo a Deus que mantenha os
laços de amizade existentes entre os nossos países.

Baía, 19 de julho de 1645,

(Assinado) Antônio Teles da Silva

Hoogstraeten é sondado pelo português Souza

Na mesma ocasião o Senhor Hoogstraeten fez o seguinte relato verbal 249 ao


Grande Conselho, em caráter confidencial: Logo após a sua chegada André
Vidal, Capitão Paulo da Cunha e João de Souza dirigiram-se aos deputados,
sendo que o último sentou-se junto a ele (Hoogstraeten) e perguntou-lhe
discretamente se o seu tio Filipe Pais Barreto também estava entre os
amotinados. O Senhor Hoogstraeten respondeu-lhe que o referido senhor
ainda se encontrava em seu engenho. Logo depois, tendo sido servido o jantar,
João de Souza foi convidado para nele tomar parte, ao que se recusou,
alegando estar de serviço. Entretanto, antes de terminar o jantar, João de
Souza voltou e convidou Hoogstraeten e Cunha para fumarem numa sala
retirada. Para lá se dirigiram acompanhados do Secretário Springapple. Ao
atravessar uma galeria, Paulo da Cunha puxou de lado Springapple, enquanto
Souza dizia em voz alta a Hoogstraeten que muito se surpreendera em saber
que seu tio Filipe Pais não havia aderido aos revoltosos. Hoogstraeten
redargüiu que Filipe fizera bem em se manter afastado desses acontecimentos
cujos resultados seriam, provavelmente, desastrosos. - Isso é o que o senhor

249
"Relatório do Capitão van Hoogstraeten sobre o seu proceder na Baía, feito aos senhores
do Supremo Conselho no Brasil", pub. na Rev. do Inst. Hist. Geog. Brás. Tomo 42, vol. 146,
1922. Rio, Imprensa Nacional, 1926, p. 206-210. Esse relatório foi traduzido pelo Padre Frei
Zacarias van der Hoeven, O. F. M.
Página 159 de 349

pensa, respondeu-lhe Souza, mas, tenha um pouco de paciência, e, por ter a


certeza de que o senhor foi sempre amigo dos portugueses, posso assegurar-
lhe de que as cousas correrão bem. Por isso, quero avisar-lhe, como amigo,
para tomar cuidado com a sua pessoa, pôr à salvo a si, sua senhora, filhos O
bens. Mas se quiser prestar um serviço ao Rei, meu Senhor, e ao Governador,
será largamente recompensado e não lhe faltarão nem dinheiro, nem terras,
nem engenhos. Terá um hábito de Cristo e dar-se-lhe-ão duas ou três
comendas. Por isso, nada lhe faltará, mas terá tudo quanto desejar 250.

Um tanto embaraçado com essa conversa Hoogstraeten disse-lhe que estava


disposto a prestar qualquer serviço ao seu alcance, tanto ao Rei como ao
Governador. Entretanto, não podia imaginar que espécie de incumbência lhe
seria dada. Ao que Souza respondeu: Estou certo de que o senhor poderá
prestar muito bons serviços ao Rei. Então, retrucou Hoogstraeten, diga-me de
que maneira. - Pois não, respondeu Souza, o senhor é o governador do Cabo
Santo Agostinho, pois não? Sim, confirmou Hoogstraeten. Então, continuou
Souza, o que se quer do senhor é que nos entregue o dito forte com todas as
suas obras, a fim de que possamos desembarcar nossos homens pelas
vizinhanças. Se o senhor prometer fazê-lo, terá larga recompensa e será feito
Comandante de nossas tropas da milícia. A isso respondeu o Senhor
Hoogstraeten: transações dessa natureza são incompatíveis com o meu
juramento e a minha dignidade. Interrompida a conversa pela entrada de outra
pessoa na galeria, João de Souza e Paulo da Cunha seguiram por outro
caminho. O Senhor Hoogstraeten dirigiu-se então ao senhor Springapple com
um ar aborrecido: O que imaginam esses cães? Acaso têm-me eles por
traidor? Ia prosseguir quando Cunha e Souza, voltando à galeria levaram-no
para um lado e asseguraram-lhe de que ele poderia estar certo de que todas as
promessas seriam cumpridas e que, se quisesse dinheiro, tê-lo-ia
imediatamente. Quanto ao resto, conduzi-lo-iam só, ao Governador, a fim de
ouvir de sua própria boca a confirmação de quanto lhes haviam dito. O Senhor
Hoogstraeten respondeu : O que o senhor deseja não está em minhas forças
prometer; jamais agiria dessa forma, mesmo porque tenho promessas de ser
promovido a sargento-mor logo após o meu regresso, e, então, naturalmente
ser-me-á dado outro lugar. Durante essa conversa, entrou na galeria o Senhor
Balthazar Van der Voorde em companhia do Senhor André Vidal que o havia
entretido enquanto os outros falavam com o capitão. Aproveitando-se da
oportunidade o Senhor Van der Voorde, já que caminhavam lado a lado,
murmurou ao ouvido do Senhor Hoogstraeten: Gostaria de me livrar dele um
pouca para falarmos em particular. Não sei qual sejam seus planos, mas receio
que me matem, ou pelo menos me detenham aqui. O Senhor Hoogstraeten ia
responder, mas não pôde porque aproximavam-se os senhores Souza, Cunha
e Pedro Correia da Gama (este conhecedor da língua holandesa) 251, de

250
Na edição inglesa foram suprimidas certas passagens desse trecho. Por essa razão,
traduzimo-lo diretamente do holandês. Vide p. 96, 1a coluna 4° § da ed. holandesa e p. 69, 2a
coluna da inglesa. Cf. com a tradução do Frei Zacarias van der Hoeven, p. 207, vol. 146, Tomo
92 (1922), 1926, da Rev. do Inst. Hist. Geog. Bras.
251
Nieuhof escreveu: wel duitsche verstond (p. 97, 1ª coluna, 1° §). O tradutor inglês escreveu:
"compreendia bem holandês", (p. 70, 1a coluna): the last ofwhich understood Dutch. O Revmo.
Frei Zacarias van der Hoeven (Rev. Inst. Geog. Brás., 1922, vol. 146, p. 20) traduziu: "entendia
bem o alemão". Hoje Duitsche, em holandês, significa alemão, mas já significou o antigo
Página 160 de 349

maneira que o Senhor Hoogstraeten e seu companheiro acharam melhor


separarem e fingir que tratavam de assunto muito diverso. Tendo o Senhor
Hoogstraeten dito, então, a Souza que tinha muita vontade de fazer uma visita
à D. Catarina de Melo, sogra de Filipe Pais, respondeu-lhe seu interlocutor que
pediria licença ao Governador. Obtida a permissão, o Senhor Hoogstraeten
dirigiu-se para a casa dessa senhora, em companhia de Souza, e, ao sair da
galeria, disse em voz baixa a Van der Voorde: Terão presa pelo rabo uma
enguia lúbrica.252. Quando se encaminhavam para a casa da sra. Catarina de
Melo, Souza e Cunha repetiram mais uma vez toda a história, tentando
encorajar o Senhor Hoogstraeten com esperanças e promessas de grandes
recompensas, tanto da parte do Rei como da do Governador, com quem
disseram que ele deveria se entender em particular com respeito à transação.
A entrevista se realizaria da seguinte maneira. Quando voltassem da casa da
Sra. Catarina de Melo e se dirigissem à casa de Pedro Correia da Gama, onde
Van der Voorde os aguardava, Cunha iria ter com o Governador, secretamente,
a fim de com ele combinar que, quando os senhores Hoogstraeten, Van der
Voorde, Souza e Cunha fossem a palácio, o Governador, por intermédio de seu
Secretário" pedir-lhes-ia que esperassem um pouco. Enquanto isso Souza
convidaria o Senhor Hoogstraeten para tomar um copo de vinho, e, com esse
pretexto, leva-lo-ia para a sala do confessor do Governador, onde se realizaria
a entrevista secreta.

Assim foi que, enquanto Hoogstraeten e Souza se dirigiam à casa de Pedro


Correia da Gama, Paulo da Cunha foi ter com o Governador e Souza ficou a
falar-lhe exclusivamente das probabilidades de sucesso de sua empresa contra
o Brasil holandês, dizendo-lhe que o Governador estava apenas à espera da
chegada de Salvador Correia de Sá e Benevides, que devia vir do Rio de
Janeiro com três galeões, um que viera de Portugal e dois que haviam sido
feitos no Rio de Janeiro, além de outros navios; que para essa expedição
estavam destinados 2.500 homens, além dos que já se achavam mobilizados
em Pernambuco, força essa que deveria ser despachada da Baía e
desembarcada no Cabo Santo Agostinho253. - Aí está, disse Souza, o que o
Governador lhe pede.

Apenas tinham eles defrontado a casa de Pedro Correia da Gama, quando


André Vidal chegou e lhes comunicou que o Governador estava pronto para
recebê-los. Dirigiram-se então a palácio onde, chegando à antecâmara, o
Secretário do Governador pediu-lhes que esperassem um pouco, enquanto
acabava de fechar a correspondência. Assim foi que, enquanto alguns

holandês e o flamengo. Na letra do Wilhelmus van Nassau, que vem em anexo, encontra-se:
Wilhelmus van Nassau we Benick van Duytsehen Bloet... Cf. anexo I.
252
Nieuhof escreveu (p. 97, 1a coluna, 3° §): Zy zullen een gladde ael by destaert hebben. O
Revmo. Frei Zacarias van der Hoeven (ob. cit., p. 208) traduziu: "Terão presa pelo rabo uma
enguia lúbrica". O tradutor inglês verteu livremente: "They have catch'd a Mackrel, for I intend to
Act the HyDOcrite to the Life", (p. 70, 1a coluna 1° §). Evidentemente, a tradução foi bastante
livre.
253
O tradutor inglês não foi fiel, ao escrever (p. 70, 2a coluna, 1° §): Salvador de Sá e
Benevides, who were expected with four Galleons from, Rio de Janeiro, besides some other
ships; and that 2500 Men were designed for this Expedition, besides those already in Arms in
Pernambuko, who were to be sent from Bahia, and to be landed on the Cape of St. Austin.
Comparar com o texto português e o holandês (p. 97, 2a coluna l° §).
Página 161 de 349

portugueses entretinham o Senhor Van der Voorde junto à janela, Souza


convidou o Senhor Hoogstraeten para tomar um copo de vinho. Tendo
compreendido o convite, o Senhor Springapple, Secretário da Embaixada,
disse que os acompanharia, mas o Senhor Paulo da Cunha e outros
portugueses imediatamente encetaram conversa com ele, levando-o para outro
lado, de maneira que o Senhor Hoogstraeten foi conduzido a sala do confessor.

Entrevista secreta do Senhor Hoogstraeten com o Governador

Dentro de poucos minutos o Governador Antônio Teles da Silva entrou na sala


e cumprimentou muito cortesmente o Senhor Hoogstraeten. Sentando-se em
uma cadeira, junto ao emissário holandês, deu ordem para que fechassem a
sala, não sendo nela admitida pessoa alguma, além das presentes, entre as
quais se achava Souza. Disse então o Governador ao Senhor Hoogstraeten
que tinha sempre notado ser ele amigo dos portugueses e que esperava que
assim continuasse, não recusando a oferta que lhe havia sido feita por
intermédio de Dom João de Souza em nome do Rei e no dele próprio. Afirmou
não ser intenção de qualquer um dos dois entrar em guerra com os
holandeses, mas tão somente reivindicar aquilo que de direito pertencia ao Rei
de Portugal, D. João IV, e que, se o Conde Maurício de Nassau tivesse
permanecido por mais tempo no país, teria auxiliado a realização desse
desígnio. O Senhor Hoogstraeten disse que teria prazer em saber de que
maneira poderia servi-lo. Foi o que o senhor já ouviu do Senhor Souza, disse o
Governador, e eu desejo que o senhor se torne inteiramente português. O
Senhor Hoogstraeten fez sentir ao Governador que o que ele lhe pedia estava
acima de suas forças, visto como, imediatamente após à sua volta, seria
promovido a Major e, conseqüentemente, ser-lhe-ia dada outra posição.
Retrucou então o Governador: Não é preciso o senhor se preocupar com
posições honoríficas ou rendosas, entre nós; mas talvez não seja conveniente
discutirmos agora estes pontos, para que o Senhor Van der Voorde não
desconfie. Todavia, pretendo mandar dois embaixadores (um deles será o
Senhor Paulo da Cunha) ao seu Governo, os quais levarão poderes para
acertar esse assunto com o senhor E, acrescentou o Governador, estendendo
a mão ao Senhor Hoogstraeten, asseguro-lhe em nome do Rei e no meu
próprio, que tudo quanto o Senhor Paulo da Cunha então lhe prometer, será
fielmente cumprido.

Alegando, então, que não mais se demoraria a fim de não levantar suspeita
entre os colegas, o Governador retirou-se para o seu salão. Tão logo os
senhores Hoogstraeten e João de Souza deixaram a sala, o Governador
mandou que entrassem os delegados batavos, para com eles tratar das
propostas apresentadas em nome do Conselho do Brasil Holandês. Quando se
encaminhavam para a sala do Governador, o Senhor João de Souza dirigiu-se
novamente ao Senhor Hoogstraeten, em voz baixa, perguntando-lhe se seria
obrigado a aceitar o posto de major; ser-lhe-ia tão fácil dizer que preferia
permanecer como governador da praça, onde se achava, certo de que quando
passasse para o lado dos portugueses, não lhe faltariam posições dignas de
um bom soldado como era ele. O Senhor Hoogstraeten, que não se deixava
levar por tais promessas, estava ansioso para voltar para bordo o mais breve
possível a fim de poder comunicar tudo ao Senhor Van der Voorde. De fato
Página 162 de 349

assim o fez logo que se viram a sós, na cabina, cuja porta fecharam
cuidadosamente254.

Os holandeses discutem sobre o aproveitamento dos tapuias

Enquanto isso se passava, o Conselho do Brasil Holandês discutia, de 5 a 10


de julho, se, para a segurança do país, não necessitariam do auxílio dos
tapuias sob o comando de seu rei Janduí 255 residente no Rio Grande. Para
esse fim o chefe indígena já havia reunido grande força próximo a Cunhaú,
principalmente depois que os portugueses cometeram toda sorte de
barbaridades contra os holandeses e convocaram os selvagens denominados
Rodelas, da Baía. Entretanto, levando em consideração as devastações que
forçosamente acarretaria a marcha de um povo bárbaro, através do país,
julgaram de bom alvitre nada decidir sobre esse ponto, até que se
comunicassem com o Tenente-Coronel Haus, a quem despacharam
imediatamente uma carta sobre o assunto.

Haus e Blaer têm ordem de se reunirem

A 7 de julho o Tenente-Coronel avisou o Conselho de que pretendia deixar


Muribeca com suas forças, naquele mesmo dia, e, depois de se juntar ao
Capitão Johan Blaer, atacar o inimigo em São Lourenço. Entretanto, por outra
carta datada de 16, de autoria do Capitão Blaer, o Conselho soube que os
rebeldes continuavam muito fortes em São Lourenço e esperavam reforços da
Mata, onde haviam obrigado o povo a tomar armas ao lado deles. O Capitão
pedia reforço de cinqüenta homens para desalojá-los de lá. O Conselho
resolveu, então, despachar correios tanto a Blaer como a Haus, ordenando-
lhes que reunissem as suas tropas e atacassem os rebeldes próximo de São
Lourenço, pois do sucesso dessa operação dependia, em grande parte, a
conservação do Brasil holandês.

254
Aqui Nieuhof terminou o relatório de Hoogstraeten. Segundo o texto do folheto Extraet ende
Copye, traduzido pelo Revmo. Padre Frei Zacarias van der Hoeven e publicado na Rev. do
Inst. Hist. Geog. Bras., 1922, n. 146, p. 210, a relação continua desse modo: "... de modo que
podemos refletir sobre o caso sabido só por nós, o que, entretanto, não podemos calar para
vossas excelências, conforme à honra e juramento. Pedindo publicação em prol do bem estar
da nossa querida pátria, como também da minha vida e da família e segurança dos bens,
conforme vossas excelências o acharem conveniente, protegendo-me contra todos os perigos
iminentes, que provierem dessas conversas sucedidas e publicadas, prometo ficar como fui até
hoje e quero ser até morrer, de vossas excelências servo humilde. - T. V. Hoogstraeten - 1645".
255
Nieuhof escreveu (p. 98, 2a coluna, 2° § e p. 148, 2a coluna, 2° §) [i]Jan Duwy,[/i] Zacarias
Wagner Jan de Wy (XXXIV, p. 38); Laet, Jandovi (XLIX, p. 40) ; Barleus, edição latina, 1647,
Iandovius, Iandovio (p. 257); edição alemã, 1659, Johann de Wy (p. 693); edição holandesa
(VIII, p. 240 e 332 respectivamente Joan de Wy e Jan de Wy; edição brasileira, Janduí ou João
Wy (?). (VII, p. 260-261); Marcgrave (LXX, p. 269), Iandui; Moreau (LIX, 138, 139, 156) Jean
Dary; Baro (IX, 244, 246 e outras pp.) Iandhuy e não como afirmou Rodolfo Garcia (XLI, nota
89, p. 309, vol. II), Jean Dory. Wätjen escreveu sempre Jandubi (em várias págs.). Alfredo de
Carvalho registra alguma das grafias, sem citar as fontes (XX, p. 659, nota 3).
Trata-se de nome tupi de chefe tapuia das tribus Tarairiús ou Ostchucaianas. Pertencia ao
denominado grupo Carirí. Aliás, quase todos os objetos dos Tapuias eram designados com o
nome da língua geral (XXXIV, p. 42). Significa, segundo alguns escritores, ema pequena. Aliás,
Batista Caetano (III, p. 570) registra no Guarani yandú = nandú, s. aranha; s. avestruz; yandi =
nandü, s. aranha pequena, aranha que faz teias nas casas. Essa tribo dirigida por Janduí
usava, realmente, peles de ema como ornamento.
Página 163 de 349

O Tenente Flemming tem ordem para se retirar para Santo Antônio

No dia 7 do mesmo mês, o Conselho recebeu carta do Tenente Flemming,


datada de Ipojuca, na qual comunicava ter recebido informações no sentido de
que Camarão estava marchando contra ele e que duas companhias já haviam
atingido o Engenho Pindoba 256. Teve então ordem para, caso achasse serem
suficientes as provisões de que dispunha para se manter na posse do mosteiro,
retirar-se para Santo Antônio, quando as tropas de Camarão se aproximassem,
a fim de melhor fazer frente ao inimigo. No mesmo dia Hartsteyn marchou com
um destacamento de 90 soldados e 30 brasileiros das guarnições de Recife e
Itamaracá para Ajama e Jaguaribe257, à procura dos rebeldes. Não
encontrando, porém, nenhum revoltoso, regressou por volta do meio-dia e, na
noite seguinte, marchou em direção às tropas de Haus.

O Conselho envia socorro a Haus

Tendo recebido informação, em data de 8, de que Haus pretendia deixar o


Engenho do senhor João Fernandes Vieira a fim de atacar os rebeldes em São
Lourenço, o Conselho resolveu enviar em seu socorro toda a força possível
visto como do sucesso dessa expedição dependia a manutenção do Brasil
Holandês. Assim foi que duas companhias de infantaria, sob o comando de
Moucheron e Blaer, tiveram ordem de para lá se dirigir, sem cogitar se antes da
chegada desse reforço o Capitão Blaer já se teria juntado ao Tenente-Coronel
Haus. De fato, no dia imediato, o Conselho recebeu comunicação de Haus,
dizendo que estava pronto para se reunir ao Capitão Blaer.

Haus recebe ordens de enviar reforços para Santo Antônio

A 10 o Conselho comunicou por carta ao Tenente-Coronel Haus as


informações que havia recebido com relação à situação em Santo Antônio e
Ipojuca, ordenando-lhe, ao mesmo tempo que, em socorro das guarnições
desses lugares, enviasse as armas e brasileiros que pudesse dispensar, a fim
de manter livre a passagem entre Santo Antônio, Ipojuca e Serinhaém. Sem
isso todas as comunicações entre eles e o Recife poderiam ser cortadas pelo
inimigo. No mesmo dia foram lidas em Conselho duas cartas de João
Fernandes Vieira e Antônio Cavalcanti, nas quais os autores reclamavam
contra a severidade das duas últimas proclamações. Essas cartas, entretanto,
não foram consideradas dignas de resposta, principalmente porque Amador de

256
Pindora escreveu Nieuhof (p. 99, 1a coluna, 3° §). O engenho Pindoba estava situado na
freguesia de Ipojuca, e pertencia a Cosme Dias, que se exilou: confiscado pela administração
holandesa, o engenho Pindoba foi vendido a Mateus da Costa. Era movido por meio de bois.
(XV, p. 146). Em Vingboons, encontra-se o rio e o engenho de Pindoba (XCVII, vol. II, mapa
45). Em Barlaeus, (VIII, mapa de Pernambuco, entre as pp. 24-25), Pindoba. Em Van den
Broeck, Pindova (XVI, p. 6). Segundo Mário Melo, Pindoba, afluente do Ipojuca (LVII, p. 56)
257
Nieuhof escreveu Ajama e Jegoaribi (p. 99, 1a coluna, últ. §). Em Vingboons (XCVII, vol. II,
mapa 47, Itamaracá), são registrados o rio Angama e os engenhos Aujama e Aujama de Baixo,
e o rio e engenho Jeguaribi. Alfredo de Carvalho registra Jaguaribe, como corruptela de yaguár
- y - pe, no rio da onça (p. 49). É um braço do rio Maria Farinha, na ilha de Itamaracá. No Breve
Discurso (XV, p. 141), segue-se um légua ao norte do Tapado, o Rio Doce. Duas léguas ao
norte deste rio, o rio Ajama e uma légua adiante o Igarassú.
Página 164 de 349

Araújo já se tinha, mais ou menos por essa ocasião, retirado da passagem de


Pindorama.

Dois dias antes, o Conselho havia recebido carta do escabino Hoek, datada do
Rio Grande, 25 de junho, e informando que até então não se tinham registrado
comoções naqueles lados, mas, que, apesar disso, desarmara os portugueses,
e, finalmente, que os Tapuias pareciam bem inclinados em favor do Governo.
O Conselho determinou, então, ao Senhor Hoek que cultivasse as boas
relações com os Tapuias, tendo, para tanto, enviado presentes a Janduí, chefe
dos selvagens. O Conselho aprovou igualmente o ato do Hoek desarmando os
portugueses. Na mesma data o Padre Manuel, Luiz Braz, Manuel Fernandes
de Sá, Gaspar de Mendonça Furtado e Jerônimo de Rocha, todos portugueses
e habitantes do Brasil Holandês, deram entrada a uma petição em que,
alegando haver terminado o prazo de seis dias estipulados na última
Proclamação para que as mulheres e filhos dos portugueses revoltados
deixassem o país, solicitavam ao Conselho lhes fosse permitido ficar em suas
casas pelo menos até que melhorassem um pouco os caminhos, tornados
intransitáveis pelo transbordamento dos rios. Todavia, considerando que os
rebeldes portugueses forçaram o povo, por meio de ameaças e de outras
maneiras violentas, a tomar armas contra o Governo, a petição foi indeferida.

Os rebeldes fogem na vanguarda de Haus

A 13 de julho, o Conselho foi informado por carta de Haus, datada de 12, que
havia atravessado o Capibaribe e, marchando pela Mata em direção ao
engenho de Arnão de Olanda, encontrara 400 revoltosos que, ante a
aproximação de suas tropas, fugiram para Muribeca, tendo, porém, perdido
alguns homens; daí poderão, sem dificuldade, marchar para a Mata do Brasil.
Informou, ainda, o Tenente-Coronel, que estava pronto para deslocar suas
forças em direção a Tapacurá e daí para São Lourenço, onde aguardaria
ordens do Conselho. Este despachou imediatamente ordens a Haus para que
perseguisse e atacasse os rebeldes, o mais rapidamente possível, antes que
tivessem tempo de se distanciar muito e para impedir que se acampassem em
lugar onde lhes fosse fácil o abastecimento, pois as suas reservas estavam
reduzidas a ponto de não poderem suprir a tropa. Haus já havia, até certo
ponto, providenciado a respeito, tendo também enviado reforço de 100 homens
e uma Companhia de brasileiros sob o comando do Capitão Fallo, ao Senhor
Ley, Governador de Muribeca e Santo Antônio. O Conselho ordenou também
ao Governador do Cabo de Santo Agostinho que ampliasse as fortificações
com paliçadas. Recebeu, ao mesmo tempo, comunicação do Senhor Ley, de
Santo Antônio no sentido de que os rebeldes, sob o comando de Amador de
Araújo e Pedro Marinho Falcão se haviam postado ao alcance da vista, no
Engenho Novo, acrescentando que logo que recebesse reforços, não tinha
dúvida que os expulsaria de lá, pois haviam falhado as tentativas de Amador de
Araújo para conseguir que o povo de Ipojuca tomasse armas contra o Governo.

Recebera, também, o Conselho informações do Senhor Carpentier, de Goiana,


dizendo que lá tudo estava ainda em paz, mas que, enquanto Haus se ocupava
em perseguir os rebeldes em Várzea, Pedro Marinho Falcão, declarando-se
chefe dos rebeldes de Ipojuca, havia conseguido congregar força suficiente
Página 165 de 349

para sitiar a guarnição de Santo Antônio que não dispunha de outras provisões
além das que recebia da região adjacente. Consciente do perigo, o Conselho
mandou imediatamente ordens a Haus para que corresse incontinente em
auxílio da praça. Recebendo a ordem, o Tenente-Coronel orientou sua marcha,
na mesma noite, em direção ao Engenho de Luiz Braz, deixando em São
Lourenço o Capitão Wiltschut com uma companhia e todos os doentes.

O Conselho recebeu ainda informação escrita de Paulus de Linge, datada da


Paraíba, 12, dizendo reinar calma nas redondezas, mas que só com muita
habilidade conseguira impedir os índios das aldeias de saquear os
portugueses, que se mostravam muito aborrecidos por terem sido soltos alguns
tapuias que muito os haviam prejudicado. O Conselho respondeu a Linge
dando instruções para que tivesse cuidado de evitar que índios ou batavos
saqueassem a propriedade dos lusos ou lhes fizessem qualquer mal. Nesse
sentido o Conselho fez publicar na Paraíba a seguinte proclamação.

PROCLAMAÇÃO

Nós, membros do Alto e Secreto Conselho, tendo recebido freqüentes


reclamações, contra pilhagens e roubos praticados pelos soldados e
voluntários, nas propriedades de muitos habitantes do país, que recentemente
fizeram novo juramento de fidelidade ao Governo, e resolvidos a mantê-los na
posse de suas propriedades e bens demo-lhes, por esse motivo, as nossas
garantias e os acolhemos sob a nossa especial proteção. Assim, proibimos a
todos os oficiais e soldados bem como aos nossos súditos tentar saquear
qualquer habitante que tenha recebido garantias nossas, ou de prejudicá-los de
qualquer outra, maneira, nas suas pessoas ou propriedades, sob pena de
castigos corporais.

À noite de 15 o Conselho foi informado pelo Senhor Ley, que os rebeldes


haviam matado alguns soldados da guarnição de Santo Antônio enviados pelas
redondezas a fim de conseguirem algum gado no Engenho Igarassú e que
tinham sitiado a praça a ponto de estar a guarnição privada de receber
provisões; dizia mais que, não dispondo de víveres senão para alguns dias
mais, estava sua tropa ameaçada de aniquilamento. Esperado em São
Lourenço com sua força, naquela noite, o Tenente-Coronel Haus, o Conselho
enviou-lhe ordem para ir em pessoa ou, pelo menos, enviar os soldados que
pudesse reunir, sob o Comando de Johan Blaer, em auxílio da praça de Santo
Antônio, pois achava que a segurança do Cabo Santo Agostinho e de todas as
províncias meridionais, dependia da manutenção dessa praça. Por isso,
ordenou também o Conselho, ao Capitão Fallo, igualmente esperado com uma
companhia, bem como aos índios de Muribeca, que marchassem diretamente
para Santo Antônio e lá permanecessem até segunda ordem. Dessas
instruções foram informados os senhores Ley e Hek. Tendo Haus, obediente,
às ordens recebidas, encaminhado sua tropa para Santo Antônio (apesar do
cansaço de seus homens, depois de longa e tediosa marcha), logo que Pedro
Marinho Falcão soube de sua aproximação, levantou o cerco e, com seu grupo
de cerca 600 revoltosos aliciados fora dos distritos de Santo Antônio, Ipojuca e
Muribeca, foi se reunir aos rebeldes nesta última cidade.
Página 166 de 349

Levantamento do cerco de Santo Antônio

No dia 17 de julho, o Conselho recebeu comunicação de Haus, que se achava


em Muribeca, dizendo, segundo informação de Ley e Hek, Pedro da Cunha 258
havia descarregado em Porto das Galinhas dois navios de munições, e que,
por isso, Haus tinha para lá enviado o Capitão Johan Blaer, acompanhado de
Hartsteyn, com boa força, composta de seus melhores soldados e índios.
Acrescentava que ele, Haus, não tinha podido seguir porque suas forças se
mostravam extenuadas pelas últimas caminhadas; por esse motivo as
recolhera aos quartéis, para repousar e lá aguardaria novas ordens, visto como
não julgava necessária sua presença no Recife, já que os inimigos fugiam em
sua frente.

O Conselho envia ordens a Haus

Foi então que o Conselho despachou, a 19 de julho, ordens ao Tenente-


Coronel Haus para continuar aquartelado em Muribeca, conservar-se de
sobreaviso contra os revoltosos que se haviam refugiado nas selvas e ficar de
prontidão para socorrer Santo Antônio ou Ipojuca, já que a posição geográfica
de Muribeca a isso se prestava. Se, entretanto, o inimigo se revelasse por
demais forte, deveria retirar-se para o Recife. O Tenente-Coronel Haus teve,
também, aviso de que Amador de Araújo, Pedro Marinho Falcão, João Pais
Cabral estavam com os revoltosos que haviam conseguido se reunir em Santo
Antônio e Ipojuca e que, na manhã anterior, haviam saído do Engenho Moreno
Gardo a fim de se juntar às tropas de João Fernandes Vieira.

O Conselho recebeu, também, diversas cartas de Johannes Hoek, Roelof Baro


e Jacob Rabbi 259, datadas de 5, 6 e 7 de julho, com relação à situação reinante
no Rio Grande, dizendo que, diante de ameaça de invasão pelas forças de

258
Parece-nos que Nieuhof se equivocou ao escrever [i]Pedro da Cunha,[/i] pois à p. 108
afirmara que Paulo da Cunha desembarcara e à p. 119 transcreve o ultimatum dirigido pelo
mesmo aos comandantes de Serinhaém- Realmente, Paulo da Cunha, depois de desembarcar,
seguira para Serinhaém, a fim de cercar o forte (Cf. p. 6, referente a 4 de agosto, em van den
Broeck, XVI; Varnhagen, LXXI, 3o tomo, p. 27; e Rio Branco, LXXV, p. 436). Depois de se
encontrarem com Amador de Araújo e Pedro Marinho Falcão, cercaram os restauradores,
dirigidos por Paulo da Cunha, o forte. Calado (XVII, p. 235) escreve que Paulo da Cunha e
Cristóvão de Barros foram avisados da necessidade de cercar a fortaleza por Hipólito Alonso
Vercosa (sic), que veio ter com eles, ao saber que nossa Armada teria desembarcado em
Tamandaré. É curioso que o mesmo equívoco seja cometido pelo autor de uma carta escrita a
2 de agosto de 1645, traduzida pelo Padre Frei Zacarias Van der Hoeven, O.F.M. e publicada
na Rev. do Inst. Hist. Geog. Bras., tomo 92, vol. 146, (1922), Rio, Imprensa Nacional, 1927. Aí
se encontra que 2000 a 2500 homens haviam desembarcado (Nieuhof escreveu 1800 a 2000
homens - p. 107, 1a coluna e p. 118, 1a coluna Cf. p. 164 deste livro)
259
A Biblioteca Histórica Brasileira publicará, brevemente, a relação da viagem de Roelof Baro.
Alfredo de Carvalho escreveu excelente biografia de Jacob Rabbi. (Um intérprete dos Tapuias,
1637-1647, Rev. do Inst. Arqueol. Geog. Pern., vol. XIV, 1912, republicado nas "Aventuras e
Aventureiros no Brasil", edição das obras de Alfredo de Carvalho, sob a direção de Eduardo
Tavares, Paulo Pongetti & Cia. Rio, 1930, p. 165-204). Neste trabalho, traduz Alfredo de
Carvalho o inquérito mandado realizar pelo Supremo Conselho, a fim de apurar as
responsabilidades pelo assassinato de Jacob Rabbi (p. 177-204). Foi assassinado a mando do
Tenente-Coronel Garstman, cujo sogro fora imolado em Uruassú, por ocasião de uma das
espoliações cometidas por Rabbi, contra portugueses. Esse ataque de Tapuias, dirigidos por
Rabbi, realizou-se em outubro de 1645.
Página 167 de 349

Camarão, provenientes do sul e pelos índios de Ceará e Maranhão, haviam


desarmado todos os portugueses e recolhido as armas ao forte de Keulen.
Também, por sugestão do chefe Janduí, tinham posto sob custódia certo
português chamado Antônio Vilela juntamente com seu filho, acusado por
aquele chefe indígena de conivência no assassínio de um holandês no Ceará,
bem como de estarem envolvidos na conspiração. Reclamavam também os
missivistas contra o mau vezo de os portugueses procurarem, por todos os
meios, oprimir os batavos das redondezas, acrescentando que o chefe Janduí
e suas forças tapuias estavam prontos para se lançarem contra os lusos logo
que recebessem ordens. Cientes disso, muitos peninsulares haviam fugido
para Paraíba.

Mais ou menos pela mesma época, cerca de 1.000 índios, sendo 369 homens
e os restantes, mulheres e crianças, refugiaram-se na Ilha de Itamaracá, onde
estavam sendo mantidos com as reservas ali existentes. Resolveu então o
Conselho, a 21 de julho, para lá enviar o Senhor Listry, como administrador, a
fim de ver se conseguia que os índios pudessem providenciar o seu próprio
abastecimento, com víveres provenientes das respectivas aldeias, aliviando
assim a Companhia desse encargo. Até então, tudo corria em paz em
Itamaracá, Goiana e Paraíba, graças à dedicação do Senhor Paulus de Linge,
Governador desta última. Logo que a chama da rebelião irrompeu em Várzea,
Ipojuca e Olinda, o Conselho, já de sobreaviso com relação a Paraíba, onde se
suspeitava que havia diversos simpatizantes dos rebeldes, para lá enviou um
alto funcionário do Tribunal de Justiça, com amplos poderes para tentar manter
a ordem entre o povo, agindo para isso como melhor lhe parecesse. Lá
chegando, teve o funcionário o cuidado de ver que os fortes fossem
devidamente guarnecidos e providos de munições e vitualhas provenientes dos
navios que encontrou no porto, por detrás da Terra-Vermelha. Providenciou
também a detenção de pessoas suspeitas e impôs às demais novo juramento
de fidelidade ao Governo.

Idênticas medidas tomou o Conselho com respeito aos distritos de Ipojuca,


Várzea, Igarassú e Goiana, onde obrigou os habitantes que não haviam
abandonado suas residências a prestar novo juramento de obediência.
Entretanto os socorros remetidos da Baía frustraram tais expedientes.

Propostas feitas ao Conselho

A 24 de julho, o Senhor Ley chegou ao Recife, procedente de Santo Antônio,


mandado pelo Senhor Johan Hek, com uma carta credencial aos Altos
Comissários e fez as seguintes propostas260:

I - Que, sabendo-se que diversos jovens e homens válidos, de Santo Antônio


não obedeceram o edital de alistamento, desejavam que fossem baixadas
ordens rigorosas obrigando a todos os moradores nos distritos da Cidade
Maurícia e de Santo Antônio, no campo, a tomarem armas em defesa do país.

260
O tradutor inglês não foi fiel ao texto holandês, pois omitiu que o Sr. Johan Hek houvesse
enviado Ley. Confronte-se a p. 103, 1a coluna, 3° § da ed. holandesa, com a p. 74, 2a coluna,
2° § da ed. inglesa
Página 168 de 349

II - Obrigar a todos os moços que não pudessem servir como voluntários, às


expensas próprias, a se engajarem como soldados, impondo-se-lhes a
disciplina militar.

III - Que talvez fosse aconselhável retirar a guarnição de Porto Calvo a fim de
parecermos mais fortes no campo.

IV - Dividir as forças de ferra em dois corpos a fim de melhor se manterem em


campo aberto, pois, considerando-se que agora, ao menor movimento do
inimigo, toda a nossa força tem de se lançar contra ele, a guarnição de Santo
Antônio deve ser reforçada, de maneira que possa despachar uma boa coluna
para o interior, em busca das necessárias provisões.

Resoluções do Conselho

Depois de madura consideração, o Conselho foi de opinião:

I - Que os rapazes de Santo Antônio, Ipojuca e Muribeca, não deviam ser


forçados a servir no forte Santo Antônio.

II - Que os Senhores Ley e Hek teriam autorização para aceitar tantos


voluntários quantos se apresentassem, engajando-os por quatro
meses,mediante o soldo de 9 florins por mês e pagamento de um mês,
adiantadamente.

III - Era absolutamente contrário a que se abandonasse o forte de Porto Calvo,


que deveria ser defendido ao extremo.

IV - Quanto à divisão das forças terrestres em dois corpos, o Conselho


consultaria o Tenente-Coronel Haus. Aprovou, entretanto, a idéia de reforçar a
guarnição de Santo Antônio pelos mesmos motivos por eles alegados.

Apreensão de algumas cartas remetidas ao Conselho.

Por cartas datadas de Sergipe d'El Rei, 18 e 27 de julho, o Tenente Hans Vogel
comunicou ao Conselho que havia despachado um destacamento, à procura
de Camarão, força essa que, conquanto não tivesse encontrado portugueses
ou índios com que combater, aprisionou um português que levava cartas
destinadas ao Rio São Francisco. Esse português informou o destacamento
batavo que Camarão marchava à frente de sua tropa, através do São
Francisco, com destino à Capitania de Sergipe d'El Rei, e que três ou quatro
navios ou caravelas, sob o comando de André Vidal, tinham partido da Baía,
com destino a Maranhão e Ceará. O Tenente Vogel enviou ao Conselho as
cartas encontradas em poder do português, as quais davam a entender que a
origem do movimento estava entre os baianos, ou pelo menos que estes se
achavam inteiramente informados sobre o curso dos acontecimentos e tinham
fornecido socorros. Entre outras, havia uma carta do bispo daquela Capitania,
dirigida a um certo frade do Recife, na qual o autor dizia esperar encontrar-se
com o destinatário dentro de pouco tempo. Por esse motivo o fiscal teve ordem
Página 169 de 349

de investigar o caso a fim de encontrar o restante da correspondência trocada


entre esses dois clérigos.

Os tapuias trucidam 35 portugueses

Enquanto isso, os tapuias do Rio Grande (conforme carta do Senhor de Linge,


datada de 19 de julho) massacraram em 16 do mesmo mês 35 portugueses,
nos engenhos de Cunhaú 261 que se achavam no rol dos que haviam entregue
suas armas, em obediência à Proclamação. O fato causou profunda comoção
entre os portugueses das redondezas, especialmente da Paraíba onde
abandonaram suas casas, de maneira que, temendo fossem eles se reunir aos
rebeldes, sob pretexto de defesa própria, o Senhor de Linge pediu reforços a
fim de atemorizar os tapuias. Ordenou, por isso, o Conselho que o Pregador a
Stetten e o Capitão Willem Lambertsz à frente de sua companhia de infantaria,
além de 20 fuzileiros e um destacamento de 50 homens, da guarnição de
Paraíba, se encarregassem de conduzir os tapuias para o Recife. Jacob Rabbi,
seu comandante, teve ordem de seguir com eles e Roelof Baro foi encarregado
de providenciar acomodações no porto.

O Coronel Haus entra em contacto com os rebeldes

Haus tendo, já por essa ocasião, proporcionado bom descanso à sua tropa de
Muribeca, escreveu uma carta ao Conselho, em data de 1.° de agosto, pedindo
ordem para partir no encalço dos rebeldes, a fim de atacá-los antes que
recebessem estes os reforços esperados. Recebidas as instruções solicitadas,
o Coronel Haus atacou os revoltosos no Engenho de Baltasar Moreno262.

A princípio, isto lhes foi favorável, pois ele os afugentava e perseguia de um


lugar para outro, até que, finalmente, a 3 de agosto, chegou aos
acampamentos dos portugueses, que ficavam numa montanha alta, íngreme,
entrincheirada e fortificada, chamada, pelos habitantes, Santo Antônio, e, pelos
portugueses, Real Novo; a qual só possuía um lugar de acesso. O Coronel
Haus, porém, assaltou e atacou o inimigo, na esperança de tomar a posição,
pela bravura dos nossos e, assim, pôr termo à guerra. Mas, visto que os
rebeldes na montanha fossem muito fortes e continuassem com vantagem,
fizeram com que Haus se retirasse com a perda de mais de 100 mortos e

261
Sobre o massacre de Cunhaú, vide [i]Breve, verdadeira e autêntica Relação das últimas
tiranias e crueldades que os pérfidos dos holandeses usaram, com os moradores do Rio
Grande,[/i] separata do vol. XXVI, das Publicações do Arquivo Nacional, constante de 300
exemplares. Oficinas Gráficas do Arquivo Nacional, Rio, 1922. Foi, pela primeira vez, publicada
por Manuel Calado, no Valeroso Lucideno e, mais tarde, transcrita por J. B. Fernandes Gama,
nas Memórias históricas da Província de Pernambuco, 1844-48, vol. III, p. 80; e também por
José de Vasconcelos, em "Datas célebres e fatos notáveis da História do Brasil", Recife, 1869.
Quem dirigiu a matança foi Jacob Rabbi (vide nota 259).
O texto inglês suprimiu a data do massacre, dando somente a data do recebimento da carta (cf.
p. 104, 1a coluna, 3° § da ed. holandesa, com a p. 75, 1a coluna, 4° § da ed. inglesa)
262
Baltasar Gonsalves Moreno era proprietário do engenho Nossa Senhora da Apresentação,
que era movido a água (XV, p. 148). Em Castrioto Lusitano(XLIV, p. 290) se diz que demorava
a légua e meia do Monte das Tabocas. (Cf. p.155 deste livro e p. 16, III de Varnhagen).
Página 170 de 349

feridos, embora outros avaliassem a perda em 500 homens. Entre os mortos se


encontrava, também, o Capitão Loor.263

Os holandeses, batidos, retiram-se para o Recife

Depois dessa derrota, ciente de que o inimigo esperava receber a qualquer


momento reforços da Baía, Haus retirou-se para o Recife, onde suas tropas se
tornavam indispensáveis para a defesa da praça.

Dois portugueses condenados à morte

Rebelião em Serinhaém - A primeiro de julho, Gonçalo Cabral de Caldas, que,


instigado por João Fernandes Vieira, havia assumido a chefia dos rebeldes de
Goiana, foi condenado à morte pelo tribunal de Justiça. Idêntico destino

263
O Barão de Rio Branco (LXXV, p. 430), criticando ter sido Varnhagen infiel na transcrição de
um texto de Moreau, decisivo para a reconstituição do local da luta, que se iniciou a 31 de julho
e findou com a vitória dos brasileiros a 3 de agosto de 1645, incorreu, por sua vez, em lapso
idêntico, pois a sua citação de Nieuhof é inteiramente arbitrária. Assim é que ele escreve:
"Bery Santantan", enquanto que o trecho de Nieuhof está assim redigido: [i]aen hunne
legerplaetse quam, de welke een hooge, steile en rontom getrenoheerde of beschanste en
gesterkte bergh was, SANTANTON by dHnwoonders, en by de Portugesen REAEL NOVO
genoemt:[/i] (p. 104, 2a coluna, 3° §). Convém indicar que o próprio texto citado de Moreau,
talvez por erro de impressão, está, também, truncado.
Quanto ao número de feridos e mortos de ambos os lados, a variação dos cronistas é
impressionante. Segundo Calado (XVII, p. 204, 1a coluna), as forças holandesas eram
constituídas de 1500 soldados e 800 petiguaras, enquanto que os portugueses contavam com
1200 soldados e apenas duzentas espingardas. (Na p. 203, fala em mosquetes e, na p. 204,
por duas vezes, em espingardas). Os outros soldados estavam armados com dardos, facões,
espadas, rodelas e paus tostados. Oito foram os mortos e trinta e dois os feridos, dos quais
três vieram a morrer, sendo de 254 as perdas holandesas - Rafael de Jesus (XLIV, p. 292 e
308) calcula as forças holandesas em 1500 soldados e 800 indígenas, e as restauradoras em
1300 e 100 (p. 308), escravos e índios, também armados com 200 espingardas e outras armas,
como cutelos, paus, espadas enferrujadas "que podiam magoar, mas não feriam". Foram de
370 as perdas sem contar os feridos, entre os holandeses, e 28 os mortos e 37 feridos entre os
nossos, exclusive negros e índios. Do lado holandês, Mattheus van den Broeck calcula em 200
homens perdidos, entre os quais o Capitão Andries Fallo, Capitão Sickema, Tenente
Hoyekesloot, Tenente Jacob Hamel e Tenente Schot. No Diário ou Breve Discurso sobre a
Rebeldia, XXIX, n. 127) calcula-se entre os holandeses de 30 a 40 mortos e 163 feridos. Além
dos citados por Mattheus van den Broeck (XVI), dá, também, o Capitão André van Loo, de
Dort, e o Alferes Dorville, e, entre os portugueses, 460 mortos e 6 feridos, dentre os seus
principais. - Moreau (LIX, p. 71) fala em 100 mortos. Dentre os historiadores modernos, o
Barão de Rio Branco (LXXV, p. 437) aceitou o cálculo de Calado, quanto aos mortos e, quanto
aos feridos, avaliou-os em 37. - Finalmente, Varnhagen (LXXIII, p. 279) foi o primeiro a mostrar
os exageros a que se entregaram os cronistas portugueses, entre os quais Calado, que avaliou
as perdas dos holandeses em 350 homens.
Essa primeira luta tem duas vantagens principais: em primeiro lugar, proporcionar armas de
fogo e munições tiradas aos inimigos mortos (Capistrano de Abreu, (I, p. 105); o que é exato,
pois Calado queixava-se da falta de armas entre as forças restauradoras e lamentava que o
inimigo pelejasse [i]com palanquetes e balas enramadas e muitas delas ervadas, segundo se
viu, porque nas bolsas dos mosquetes, que os mortos deixavam se achou toucinho[/i] (XVII, p.
203, 1a coluna); e Rafael de Jesus (XLIV, p. 306) escreveu: [i]não houve soldado que se não
armasse com escolha e índio que se não vestisse com vaidade.[/i] Em segundo lugar,
conforme afirma Handelmann (XL, p. 232): [i]de fato era enorme o feito; não somente o exército
dos patriotas havia sustentado com sucesso a prova de fogo e imposto a realidade da
revolução, vias, também por seu triunfo ele ficava senhor do interior do pais e as forças
militares holandesas tinham que se recolher absolutamente às suas praças fortificadas.[/i]
Página 171 de 349

aguardava Tomaz Pais, morador de Tijipió, que tinha tentado congregar tropas
para João Fernandes Vieira264. No mesmo dia o Grande Conselho recebeu
informação de Serinhaém (as cartas secretamente conduzidas à noite, num
pequeno bote que desceu o rio até o litoral) dizendo que os rebeldes estavam
se tornando muito numerosos pelas redondezas e que, senhores do rio, tinham
afundado todos os barcos e saqueado o Engenho Formoso, de onde roubaram
os negros e mataram os animais pertencentes aos holandeses, mas não
tocaram nos dos portugueses. Convicto de que nada, a não ser a força, poderia
subjugar os rebeldes, e que, dia a dia, recebiam eles reforços da Baía, ao
passo que as forças holandesas diminuíam, o Conselho resolveu, a 1° de
agosto, enviar para a Holanda o Senhor Balthazar Van der Voorde, Conselheiro
do Tribunal de Justiça a fim de lá relatar ao Conselho dos XIX a verdadeira
situação do Brasil Holandês e pedir socorros imediatos. Obediente às ordens
do Conselho o Senhor Van der Voorde zarpou no dia seguinte, para a Holanda,
levando as seguintes instruções e credenciais.

O SENHOR VAN DER VOORDE ENVIADO PARA A HOLANDA COM


CREDENCIAIS.

Aos Nobres, Honrados e Ilustres Senhores:

Conquanto os rebeldes não se refiram, nem de leve, à autoridade


real, ao contrário, coloquem a revolta sob a égide da Liberdade
Divina, sempre fomos de opinião que a rebelião dos nossos súditos
portugueses foi não somente iniciada com o consentimento do Rei
de Portugal - ou pelo menos do Governador da Bahia - como ainda
é encorajada e fomentada pela sua autoridade e conduta. Pois,
como se poderia imaginar que Camarão e Henrique Dias, bem
como outros chefes rebeldes, ousariam nos atacar sem sua
aprovação?

264
O tradutor inglês escreveu 1° de agosto, enquanto no original está 1° de julho. Vide p. 104,
2a coluna, últ. § da ed. holandesa e a p. 75, 2a coluna, 2° § da ed. inglesa.
Nieuhof escreveu Tienpio, (p. 104, 1a coluna). Trata-se de Tejipió. (Cf. Varnhagen, LXXII, 3a
vol., p. 28).
Nieuhof escreve Lago mar, S. Alexo, Porto Dosser, Nambous, ou Lagamar de Marakaipe (p.
107, 1a coluna, 3°, 4° e 5° §§). Na carta escrita por Antônio Teles da Silva, datada da Baía, de
21 de julho de 1645, cuja tradução do holandês foi publicada na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog.
Pern., n° 34, 1887, p. 82-84, se encontram as mesmas informações, o que faz supor que
Nieuhof haja escrito baseado nesta carta, que foi apreendida pelo Almirante Lichthart, quando
derrotou J. Serrão de Paiva. Na mesma revista (p. 74-98), encontram-se, também, todas as
outras cartas apreendidas. A carta a que acima nos referimos diz: . [i]tratará de dar
desembarque à gente, com aviso aos pilotos mais práticos, para maior segurança em Una,
Lagamar ou Tamandaré, que fica 3 léguas ao sul ãa ilha de S. Aleixo. Não vindo a tornar os
referidos portos, tomará o de Fernambuis[/i] (?) [i]ou o lagamar de Maracaípe, que demora ...[/i]
(em branco) [i]léguas ao norte da dita ilha de S. Aleixo; e se, tendo feito toda a necessária
diligência, não puder tomar nenhum dos mencionados portos, buscará o das Galinhas,
procurando em todo o caso desembarcar a gente entre Barra Grande e o porto das Galinhas,
com a recomendação de que mui atentamente vigiará que os navios não sejam desviados
dessas paragens por correntes e ventos, e acontecendo que à tarde ou à noite cheguem diante
da Barra Grande lançarão âncoras, para trazerem a terra sempre bem reconhecida.[/i]
No "Breve Discurso sobre as quatro capitanias conquistadas" (XV, 140-1), mencionam-se,
também, o porto de Barra Grande, Lagamar e Maracaípe.
Página 172 de 349

Também, sempre foi nossa opinião - à vista da atual situação de


incerteza, reinante em Portugal e da aliança existente entre o Rei e
os Estados da Holanda, contra a Espanha - que, antes de se
convencer da possibilidade de conquistar todo o Brasil Holandês, o
Rei jamais consentiria em que os atos dos capitães rebeldes e os
socorros a estes prestados tivessem o seu beneplácito ostensivo; e
isso a fim de evitar que a quebra da confiança e todo o seu cortejo
de conseqüências desastrosas desabasse, um dia, sobre sua
cabeça.

Desde então as nossas cogitações se vêm realizando diariamente,


pois, pela resposta dada à nossa carta e que anexamos à presente,
o Governador da Baía, Antônio Teles da Silva, nega ter tido
conhecimento e muito menos conivência na conspiração; lança toda
a responsabilidade dos acontecimentos sobre os cabeças, que
recusaram acatar suas ordens, e dispõe-se a enviar emissários
para tentar o apaziguamento dos ânimos revoltados. Propõe-se,
ainda, o Governador a subjugá-los pela força, obrigando-os a depor
as armas, caso se recusem, a obedecê-lo.

Entretanto, o relatório elaborado e assinado pelos senhores Van der


Voorde e Hoogstraeten, permite-nos fazer idéia de quão pouco se
harmonizam os protestos formulados pelo Governador, no sentido
de pôr termo à rebelião, com as suas verdadeiras intenções.

Nesse documento encontram-se as seguintes palavras textuais de


Antônio Teles da Silva: que "os índios e negros foram dispersos por
ordem expressa de Sua Majestade, o Rei de Portugal". Os inclusos
extratos das várias cartas remetidas da Baía e apreendidas aos
respectivos correios, pelas nossas forças, em Sergipe, demonstram
claramente que diversos baianos, entre os quais se conta o próprio
bispo, já, em maio último, tinham conhecimento das intenções de
João Vieira e seus apaniguados.

Adicionem-se a isto as declarações feitas e assinadas pelo Capitão


Diederik Hoogstraeten, com respeito às propostas a ele feitas em
particular, quando lá esteve a serviço da Companhia, na qualidade
de um de nossos deputados, declarações essas que desmentem
categoricamente a resposta que nos dirigiu o Governador e se terão
desvendados os seus secretos intentos. Portanto, tomando como
advertência os fatos expostos - pois, enquanto os rebeldes recebem
suprimentos constantes da Baía, de nossa parte só nos é lícito
esperar um progressivo enfraquecimento - achamos conveniente
determinar que o Senhor Balthazar Van der Voorde, Conselheiro de
nosso Tribunal de Justiça, aí fosse a fim de relatar pessoalmente a
Vs. Excias. membros do Conselho dos XIX, de maneira mais ampla
do que o poderíamos fazer por escrito, a deplorável situação em
que nos achamos.

Estamos certos de que Vs. Excias. se decidirão a nos enviar


Página 173 de 349

urgentes socorros a fim de nos habilitar a restabelecer a situação e


libertar nossos súditos do perigo iminente que pesa tanto sobre
suas vidas como sobre suas propriedades. Esperamos, por isso,
que Vs. Excias. proporcionem boa acolhida ao Senhor Batthazar
Van der Voorde.

Recife, 2 de agosto de 1645.

Preparam-se os portugueses para a invasão do Brasil holandês

Pretextos para a invasão

Imediatamente após terem partido da Baía os dois enviados holandeses,


Senhor Van der Voorde e Capitão Hoogstraeten, no dia 20 de julho, o
Governador Antônio Teles da Silva expediu ordens para que as forças de terra
e mar se reunissem imediatamente a fim de embarcar em doze navios que já
estavam providos de armas, munições e víveres, para esse fim. A frota estava
sob o comando supremo de Jerônimo Serrão de Paiva e as forças terrestres
seguiam sob as ordens do Coronel Martim Soares Moreno e André de
Negreiros, oficiais a serviço do Rei de Portugal. As ordens dadas pelo
Governador ao Almirante, em data de 20 de julho, diziam, em resumo, que,
informado pelo Grande Conselho do Brasil holandês da insurreição dos
portugueses residentes em Pernambuco, tinha ele achado de bom aviso armar
essa frota, a fim de pôr breve fim às desordens, pois estava disposto a atender
ao pedido do Conselho à vista da sincera amizade existente entre este e a
Coroa de Portugal, amizade essa que tinha ordens expressas de Sua
Majestade para respeitar, apesar de ter o Conselho declarado em carta que
dirigiu, a 13 de agosto, ao Senhor Salvador Correia de Sá e Benevides que não
desejava auxílio da parte do Governador da Baía contra os portugueses
rebelados.

As instruções do Almirante português

O Almirante português levava instruções no sentido de fazer sua esquadra


rumar da Baía para Pernambuco, mantendo-se a uma distância de 20 a 30
milhas de terra. Atingindo os 10 graus, deveria aproximar-se do litoral, e, se
verificasse que o vento soprava forte, do Sul, antes de atingir a altura
predeterminada, deveria ter muito cuidado para não ultrapassar aquele ponto à
noite. Depois de inspecionar a região e de se aconselhar com seus melhores
pilotos, deveria tentar o desembarque de seus homens, nos lugares mais
seguros que conseguisse encontrar pelas vizinhas: Una, Lagamar ou
Tamandaré, três milhas ao sul da Ilha de Santo Aleixo. Se, entretanto, não
pudesse franquear nenhum desses portos, o Almirante deveria entrar em
Dosser, Nambour ou Lagamar de Maracaípe265, situado duas milhas ao norte
de Santo Aleixo. Se, porém, nem mesmo esses portos conseguisse alcançar, a

265
O tradutor inglês escreveu fins de julho, (p. 77, 1a coluna, 3° §); vide p. 107, 1a coluna,
último § da edição holandesa.
Página 174 de 349

esquadra portuguesa deveria apoderar-se do Porto das Galinhas e


desembarcar seus homens entre aquele porto e Barra Grande. Depois de
deixar em terra as tropas com víveres e munições, o Almirante deveria então
conduzir sua esquadra para a Baía de Pernambuco a fim de entregar
pessoalmente a carta do Governador aos Senhores do Grande Conselho.

Os portugueses zarpam da Baía

Partiu, pois, a esquadra portuguesa da Baía, pelos fins de julho ou princípios


de agosto e, alguns dias depois, chegou à Baía de Tamandaré entre os rios
Una e Formoso, cerca de quatro ou cinco milhas além de Santo Aleixo e
Serinhaém. Tão logo lançaram âncora, a 28 de julho, o Coronel Martim Soares
Moreno e André Vidal de Negreiros desembarcaram 1 800 ou 2 000 soldados
de infantaria entre os quais se achavam muitos oficiais reformados. A força
trazia grande quantidade de armas, munições e tudo o mais que era
necessário.

O desembarque de tropas

A 1° de agosto, pela tarde, três navios e cinco outras embarcações pequenas


foram avistadas do Recife, velejando para o Norte, motivo pelo qual o Grande
Conselho deu ordem imediata aos seus dois navios, o Zoetelandia e o
Zeelandia para segui-los a todo pano, observar qual o rumo que tomavam e
evitar que desembarcassem tropas. Mais ou menos pela mesma ocasião,
chegou um navio-correio despachado por Lichthart, trazendo cartas, nas quais
o Almirante comunicava ao Conselho ter visto os referidos navios e acreditar
estarem os mesmos incumbidos de desembarcar tropas ao sul do Cabo de
Santo Agostinho, motivo pelo qual pedia que lhe fossem despachadas mais
algumas unidades e lhe dessem ordem de retirar da guarnição de Santo
Agostinho os homens de que tivesse necessidade a fim de atacar o inimigo. As
localidades do Norte foram imediatamente avisadas para se porem de
sobreaviso contra qualquer surpresa.

Rebate falso no Recife

Entretanto, no dia seguinte, tendo perdido de vista os navios portugueses,


vários comandantes de pequenas embarcações que se tinham aproximado da
frota, no alto mar, informaram tratar-se de grandes navios mercantes que,
impelidos por forte vento Norte, haviam se aproximado de terra, mas que
levavam a direção de Portugal.

A frota portuguesa parte para Pernambuco

Logo que o Almirante Paiva zarpou da Baía de Tamandaré, topou com a


armada, sob o comando do Almirante Salvador Correia de Sá e Benevides, que
havia partido recentemente do Rio de Janeiro, regressando com ela para o dito
porto. No dia de São Lourenço, reunidas as frotas, partiram para a Baía de
Pernambuco.
Página 175 de 349

Aviso ao Conselho

As primeiras notícias que o Conselho recebeu a 11 de agosto, foram


veiculadas pelo comandante de um naviozinho, de nome Joan Hoen, em
viagem para Sergipe d'El Rei e pelo Comissário Jan Barentz. Acrescentavam
os informantes que haviam visto uma armada de 27, 28 ou 30 266 navios ao
largo de Una ou Rio Formoso e que três deles os haviam perseguido, tendo
mesmo feito alguns disparos contra eles. Na mesma ocasião o Conselho
recebeu cartas do Major Hoogstraeten, do Cabo Santo Agostinho e do Forte
Van der Dussen, dizendo que André Vidal, Henrique Dias e Paulo da Cunha
desembarcaram em Una e, marchando para Serinhaém, tinham tomado o
lugar, onde haviam poupado os holandeses, mas trucidado todos os índios.

Diante disso o Conselho providenciou imediata remessa de víveres e munições


para dito Cabo, tendo já, dois dias antes, ordenado aos Senhores Ley e Hek
que, para maior segurança daquela posição, deixassem o forte Santo Antônio e
se retirassem com a guarnição para o Cabo Santo Agostinho antes de serem
cercados pelo inimigo.

Os batavos armam vários navios

Dois navios, Deventer e Elias, que a serviço da Companhia se achavam


descarregando no Passo267, tiveram ordem de se armar imediatamente e se
juntar aos outros cinco ancorados na baía: o Utrecht, o Zeelandia, o Ter Veer, o
Zoetelandia e o Gulde Ree.

Na mesma noite despachou-se comunicações desses acontecimentos ao


Tenente-coronel Haus juntamente com ordem de se conservar de prontidão e
retirar sua tropa para o engenho do Senhor Hek na Várzea ou para qualquer
outro lugar conveniente, de onde pudesse manter comunicação com o Recife.
Enviaram-se também cartas aos Senhores Dortmont, em Itamaracá,
Carpentier, em Goiana, e Linge, em Paraíba, anunciando a aproximação do
inimigo. A fim de suprir a deficiência de marinheiros, muitos operários foram
recolhidos a bordo da esquadra, bem assim 35 soldados da Companhia de
Moucheron que estavam com os pés machucados devido a extensa caminhada
feita recentemente. De bordo do navio Elias retiraram-se 1.000 libras de
pólvora e do Deventer 600, que foram desembarcadas para uso da guarnição.

Cartas enviadas ao Conselho

Logo depois do jantar a frota inimiga, composta de 28 ou 30 navios, surgiu à


vista do Recife e lançou ferros ao norte de quatro dos nossos navios e um iate
que ali se achavam fundeados. A noite seguinte foi empregada em carregar os
266
O tradutor omitiu 27 (Cf. p. 77, 2a coluna, últ. § da tradução inglesa, com a p. 108, 1a
coluna, 1° § da ed. holandesa).
267
Passo era um armazém ou trapiche de recolher gêneros, muito comum na época colonial.
Sobre sua significação e os vários [i]Passos[/i] existentes, vide "O Passo do Fidalgo", pelo Dr.
P. A. Pereira da Costa, [i]in[/i] Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern., vol. 10, 1902-1903, n° 56,
p. 53-74 e 171-173 e LXXVII, nota n° 11, p. 372, Cf. Diálogos das Grandezas do Brasil,
introdução de Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo Garcia. Publicação da Academia
Brasileira de Letras, 1930, Rio, Of. Indústrias Gráficas, nota 14, p. 168.
Página 176 de 349

barcos Elias e Deventer e prepará-los para zarpar. Ao nascer da aurora do dia


seguinte, o Almirante português, que levava hasteada a bandeira branca,
despachou Martim Ribeiro e Baltasar de Castilho e Andrade como deputados
seus, a bordo do navio capitania do Almirante holandês, Cornelisz Lichthart,
levando quatro cartas a saber: duas do Governador da Baía, Antônio Teles da
Silva, datadas de 21 e 22 julho; a terceira do Almirante português Salvador
Correia de Sá e Benevides e a quarta de Jerônimo Serrão de Paiva datada de
12 de agosto, além de outra carta do Governador dirigida a João Fernandes
Vieira, Antônio Cavalcanti e outros chefes revoltosos portugueses.

O Almirante Lichthart levou os deputados para terra a fim de entregarem


pessoalmente as cartas ao Conselho, as quais, depois de traduzidas, foram
lidas na reunião realizada a 13 de agosto 268 juntamente com as de 21, 22 e 24
de julho e as de Salvador Correia de Sá e Benevides, Almirante da armada
portuguesa, e de Jerônimo Serrão de Paiva, que haviam desembarcado André
Vidal e seus homens próximo ao Rio Formoso.

268
O tradutor inglês escreveu 14 de agosto. Vide p. 78, 2a coluna, 2° § da edição inglesa e p.
108, 2a coluna, 7° § da edição holandesa.
Página 177 de 349

A primeira carta estava assim concebida269:

Conforme a carta de Vs. Excias. e as propostas feitas pelos seus


deputados Senhor Balthazar Van der Voorde, Conselheiro de
Justiça, e Diederik Hoogstraeten, Governador do Cabo Santo
Agostinho, na qual Vs. Excias. pedem o recolhimento das tropas
sob o comando de Henrique Dias, e, no intuito de cumprir da
maneira mais cabal possível a promessa que fiz em minha
resposta, determinei a ida dos mestres de campo Martim Soares
Moreno e André Vidal de Negreiros (homens de conduta
irrepreensível e reconhecida prudência) à Capitania de
Pernambuco, munidos de plenos poderes e instruções para reduzir
à obediência os portugueses revoltados. Com idêntico objetivo
dirigi-me também, por carta, aos chefes rebeldes, exortando-os ao
cumprimento de seus deveres e à deposição das armas.

A fim de assegurar o êxito dessa missão, mandei para essa


Capitania forças que poderão auxiliar Vs. Excias. a controlar os que
se mostrarem obstinados e expulsar os rebeldes de seus domínios.

Espero que, com o auxílio de Deus, consigam extinguir o fogo da


rebelião, restabelecendo a paz no Brasil e incrementando as boas
relações de amizade entre as duas nações.

Recomendo Vs. Excias. à proteção divina e subscrevo-me mui


cordialmente.

De Vs. Excias. Fiel Servidor,

Assinado: Antônio Teles da Silva

Bahia, 21 de julho de 1645.

A segunda carta do dito Governador estava assim redigida:270

Dei ordens ao Coronel Jerônimo Serrão de Paiva, Capitão-mor de


nossa esquadra (a qual mandei para auxiliar a Vs. Excias.) para que

269
Esta carta se encontra na Rev. do Inst. Arqueológico e Geográfico Pernambucano, 1887.vol.
6, n° 34, p. 130-131.
270
Esta carta se encontra na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano,
1887,vol. 6, nota 34, p. 131-132. Em Nieuhof, a carta está datada de 22 de junho de 1654 (p.
109, 2a coluna), enquanto que na citada cópia da Rev. está 21 de julho de 1645. Quanto ao
ano, trata-se, evidentemente, de erro de impressão.
Página 178 de 349

entregasse estas cartas a Vs. Excias. imediatamente após o


desembarque das forças que vão a bordo da dita esquadra e que
oferecesse a Vs. Excias., em meu nome, toda a ajuda que puder
prestar, de acordo com as minhas instruções e com o pedido de Vs.
Excias..

É meu desejo valer-me desta oportunidade para dar a Vs. Excias.


mostras do meu zelo pelo bem-estar de Vs. Excias., principalmente
contribuindo com aquilo que estiver ao meu alcance para subjugar
os revoltosos.

Não há a menor dúvida de que, com esta expedição, as chamas da


guerra intestino, serão extintas sem que haja possibilidade de se
reavivarem, mais tarde, bem como de que terei a satisfação de ter
sido útil a Vs. Excias., correspondendo assim às expectativas de
Vs. Excias...

Recomendando-os à proteção divina, subscrevo-me

Fiel Servidor,

Assinado: Antônio Teles da Silva

Bahia, 22 de julho de 1645.

Além dessas, o Governador da Baía enviou outra carta dirigida ao Conselho do


Brasil Holandês, por intermédio de Dom Salvador Correia de Sá e Benevides,
Almirante da armada brasileira, nos seguintes termos271:

Quando tentava atender ao pedido que me foi feito pelos


Embaixadores de Vs. Excias., e me ocupava do embarque das
forças que destinei para servir-lhes, sob o comando dos dois
Coronéis, Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros, em
conjunto com o Coronel Jerônimo Serrão de Paiva, Capitão-mor das
referidas forças, aconteceu que, por especial desígnio do Senhor,
chegou do Rio de Janeiro com sua frota, a caminho de Portugal,
Salvador Correia de Sá e Benevides, Almirante português e
membro do Conselho dos Negócios Ultramarinos, nomeado pela
autoridade do Rei meu senhor.

Desejoso de redobrar os meus esforços, não somente com o seu


auxilio pessoal, mas também com a força de sua armada, para ser
mais útil a Vs. Excias., achei conveniente enviar para a Capitania
revoltada o Almirante com a frota sob o seu comando, juntamente
com os demais, certo de que pela sua conduta e autoridade ele
será de grande utilidade no restabelecimento da paz nos domínios

271
Esta carta encontra-se na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern., 1887,n. 35, vol. 6, p. 37-38.
Página 179 de 349

de Vs. Excias..

Espero que tudo isso constitua perfeita demonstração da


compreensão e amizade que desejo cultivar entre os nossos dois
Estados.

Recomendando Vs. Excias. à divina proteção, subscrevo-me.

Assinado: Fiel Servidor, Antônio Teles da Silva

Bahia, 25 de julho de 1645.

O conteúdo das cartas

O teor dessas cartas visava persuadir o Grande Conselho do Brasil Holandês


de que, consoante o pedido formulado pelos Deputados holandeses, o
Governador da Baía havia enviado forças de terra, sob o comando dos
Coronéis Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros, a bordo da
esquadra comandada por Jerônimo Serrão de Paiva, juntamente com toda a
frota do Rio de Janeiro sob o comando do Almirante Correia a fim de auxiliá-lo
tanto em terra como no mar.

O Governador pedia ao Conselho, por intermédio de seus Deputados, Capitão


Martim Ribeiro e o Ouvidor-Geral Baltasar de Castilho e Andrade, que tivesse a
bondade de informar o Rei, seu Senhor, de quanto havia feito, por carta
particular endereçada a Sua Majestade.

O que nos cumpre particularmente observar, com relação às cartas dirigidas a


João Fernandes Vieira e aos demais rebeldes, é que o Governador a eles se
dirigiu como a "súditos do Rei, aos quais enviava auxílio para sua defesa", e,
apesar dessa restrição, para reduzi-los por todos os meios suasórios à antiga
obediência ao Governo Holandês.

Conquanto fosse evidente que a representação feita pelos nossos deputados


junto ao Governador Teles pedia o recolhimento das forças rebeldes sob o
comando de Camarão e Dias, bem como das que vieram em auxílio destas,
declarando-as, em caso de recusa, rebeldes e inimigas do Rei de Portugal,o
Governador, em flagrante contraste com o desejo e o pedido do Conselho, ao
invés de recolhê-las, enviou forças em seu socorro, preferindo fazê-las
desembarcar em ponto remoto da costa onde então se achavam Camarão e
Dias, com suas forças, a pô-las sob as ordens do Conselho. Este, porém, não
ignorava as intenções do Governador ao enviar para o Recife sua esquadra,
numa ocasião como essa, pois que não eram outras senão a de auxiliar os
planos dos revoltosos e estimular os demais a Debates tomarem armas contra
o Governo holandês.

Debates do Conselho

O Conselho estava perfeitamente convicto disso, quando recebeu aviso do


Cabo Santo Agostinho no sentido de que a guarnição de Serinhaém tinha sido
Página 180 de 349

forçada a render-se ante a aproximação das forças de André Vidal,


desembarcadas nas cercanias. Voltaram-se, então, os debates sobre como
poderiam expulsar a esquadra inimiga do Recife e até mesmo das costas de
Pernambuco, considerando que toda a força naval dos batavos, em condições
de zarpar, consistia em cinco navios: o Utrecht, o Zeelandia, o Ter Veer, o
Zoetelandia e o Gulde Ree. Além disso, eram reduzidas as provisões,
principalmente de pólvora, a equipagem era pequena e poucos homens
poderiam ser retirados das guarnições mais próximas. Por outro lado, a armada
portuguesa consistia de 8 ou 10 grandes navios sendo que o do Almirante tinha
dois tombadilhos, dando a impressão de um grande galeão, quando visto à
distância.

Atacá-los, parecia, portanto, empresa arriscada. Depois de madura


deliberação, ficou unanimemente resolvido que se agradecesse ao Almirante
Salvador Correia de Sá e Benevides o auxílio oferecido contra os rebeldes e se
declinassem as razões pelas quais nos víamos forçados a pedir-lhe que se
retirasse do porto, com sua esquadra, como se vê da carta abaixo transcrita.

Julgou-se conveniente remeter dita carta imediatamente e, enquanto


esperávamos pela resposta, fazer o possível para equipar os navios Deventer e
Elias, a fim de que, caso os portugueses se recusassem atender o pedido do
Conselho, pudéssemos estar em condições de atacá-los e expulsar sua frota
de nossa costa.

Caso contrário pouca probabilidade de sucesso teríamos em nossa campanha


contra os rebeldes, enquanto pudessem eles contar com abastecimentos
constantes provenientes da Baía.

Considerou-se também a conveniência de se deter um dos deputados


portugueses até que Jerônimo Serrão de Paiva desembarcasse, de acordo
com o pedido do Conselho. Este alvitre foi, entretanto, rejeitado, para evitar que
se fornecesse aos portugueses novo pretexto para continuarem no porto. Os
Senhores Gysbert de Wit e Hendrik Moucheron, membros do Tribunal de
Justiça, encarregados de levar a carta em questão, dirigiram-se para bordo do
navio capitânia português, naquela mesma noite, a fim de se desempenhar de
sua missão. Foi a seguinte a carta entregue ao Almirante Salvador Correia de
Sá e Benevides.

Soubemos tanto pelas cartas de V. Excia. como pelas do


Governador Antônio Teles da Silva, das quais foram portadores o
Capitão Martim Ribeiro e o Auditor-Geral Baltasar de Castilho e
Andrade, bem como pelo que em nome de Vs. Excias. nos
afirmaram esses senhores, que a presença de sua esquadra em
nosso porto não tem outro fim que não o de nos auxiliar com sua
autoridade e conselhos a reconduzir à razão os rebeldes. Por tudo
isso apresentamos-lhes os nossos sinceros agradecimentos.

Entretanto, não podemos deixar de fazer ver a Vs. Excias. que a


vinda de tão considerável armada, no momento atual, constitui, para
nós, causa de não pequena preocupação, não apenas porque não a
Página 181 de 349

solicitamos, como ainda porque, ao invés de recambiar Camarão e


Henrique Dias com suas tropas, os dois Coronéis André Vidal e
Martim Soares Moreno, sob o pretexto de subjugar os rebeldes,
desembarcaram, sem o nosso conhecimento, seus homens e
munições em ponto distante, e, portanto, em auxílio dos
portugueses rebeldes, enquanto que, de acordo com a promessa
que nos fez S. Excia. o Governador, a redução dos revoltosos seria
feita por uma severa proclamação, obrigando-os a voltar para a
Bahia.

Por outro lado, os dois coronéis a que acima nos referimos


deveriam ter-se dirigido primeiramente a nós. Esse modo de agir,
contrário às intenções de Vs. Excias,, trouxe como desastrosa
conseqüência o fato de numerosas pessoas, certas de que sua
armada tinha por missão auxiliar os portugueses revoltados,
puseram-se a tomar armas e a eles aderir. Isso nos obriga a
apresentar os nossos agradecimentos a Vs. Excias. pelos auxílios
oferecidos, pedindo-lhes ao mesmo tempo que façam o favor de se
retirar de nosso porto com sua esquadra, desenganando assim o
povo da má interpretação dada às intenções de Vs. Excias..

Isso constituirá eficiente maneira de acalmar os ânimos, o que, nas


circunstâncias atuais, para nós representa não pequeno serviço.
Com respeito ao seu pedido de permissão para tomar água potável
e combustível em nosso porto, por estarem os seus navios mal
providos desses elementos, à vista da partida repentina da Baía,
cumpre-nos dizer-lhes que estaríamos prontos a atendê-lo, se não
fosse a ocorrência das razões já apontadas, bem como o rigor da
estação que tornaria por demais tediosa essa operação. Somos,
portanto, forçados a apresentar as nossas escusas nesse sentido.
Tendo-nos dito em sua carta S. Excia. o Senhor Antônio Teles da
Silva que deu instruções ao Senhor

Jerônimo Serrão de Paiva no sentido de que, tão logo


desembarcasse as forças de infantaria sob o comando de Martim
Soares Moreno e André Vidal, comparecesse perante esse
Conselho a fim de nos pôr ao par dos poderes com que foi S. Excia.
investido, pedimos a V. Excia. que nos envie o Senhor Jerônimo
Serrão de Paiva a fim de conferenciar conosco a respeito das
instruções recebidas de S. Excia., com relação à remessa e ao
desembarque das referidas forças.

Quanto ao resto, deixamos a cargo de nossos Deputados,


Conselheiros de nossa Corte de Justiça, Gysbert de Wit e Hendrik
Moucheron, aos quais pedimos que V. Excia. dê inteiro crédito,
consoante os seus méritos pessoais e a confiança que neles
depositamos.

Deus proteja a V. Excia.


Página 182 de 349

Assinada por: Hendeik Hamel,

A. Van Bullestrate,

P. J. Bas,

J. Van Walbeek,

G. de Wit,

J. Albrecht,

Hendrik de Moucheeon,

J. Van Raesvelt e

J. C. LlCHTHART.

Recife, 13 de agosto de 1645.

Já que os nossos se sentiam fracos demais para atacar a esquadra inimiga


com 4 navios e um iate (pois o Almirante comandava um galeão com duas filas
de 38 peças metálicas e 300 homens), ficou resolvido, depois de terem
examinado atentamente a mensagem do Almirante, que se lhe agradecesse o
seu oferecimento de auxílio contra os rebeldes, se declinasse, igualmente, do
seu oferecimento de transportar lenha e água para a frota (conforme tinham
pedido seus comissários Ribeiro e Castilho) e que lhe fosse feito o convite de
partir do porto, na esperança de, assim, conseguirem que saíssem, também, os
nossos dois navios Beventer e Elias para que, caso o inimigo não se
resolvesse a sair, depois de sua mensagem, pudessem, então, atacá-lo
hostilmente com maior aparência de bom resultado e de expulsá-lo ou
conquistá-lo272.

A armada portuguesa deixa o porto

Pela manhã de 14, pudemos ver que toda a esquadra se havia feito ao mar,
sendo que boa parte já estava fora do alcance visual. Ora, sabendo-se que os
dois barcos que transportavam os nossos e os dois deputados portugueses
dificilmente conseguiriam alcançar os navios da esquadra e que os nossos
deputados, ao voltar, deveriam informar o nosso Almirante, a bordo de sua nau
capitânia, se o almirante português havia consentido em mandar o Senhor
Jerônimo Serrão de Paiva ao Recife, a fim de expor as suas instruções ao
Grande Conselho (o que tinha agora motivos de sobra para crer que não faria),
este despachou ordens imediatas ao Almirante Lichthart para dar todo pano
aos navios sob seu comando, no encalço dos portugueses, não só para
observar os seus movimentos como também para tentar aproximar-se, com o
navio capitânia, do barco em que viajava o dito Jerônimo Serrão e pedir-lhe
272
O trecho da tradução portuguesa que começa: "Já que os nossos" até "expulsá-lo ou
conquistá-lo", foi traduzido diretamente do holandês, pois o tradutor inglês o omitiu. Cf. p. 112,
2a coluna, últ. § e 113, 1a coluna, 1° § da ed. holandesa e p. 81, 1a coluna, 1° § da ed. inglesa
Página 183 de 349

que voltasse ao Recife a fim de tratar pessoalmente com o Conselho a respeito


das instruções que trazia. Entretanto, depois de madura deliberação, e
considerando o modo de agir dos portugueses como mero pretexto, o Conselho
expediu ordens ao Almirante Lichthart, para deter todos os navios portugueses
que conseguisse alcançar, tratando-os, de futuro, como a inimigos.

Carta do Rio Grande ao Conselho

A 28 de agosto, o Conselho foi avisado por carta, que do Forte de Santa


Margarida, no Rio Grande, lhe enviou o Governador Linge, em data de 24, 273
que 12 navios inimigos, depois de desembarcar forças próximo a Tamandaré,
entraram na baía de Traição e que, de acordo com as declarações de certos
prisioneiros portugueses, de bordo da frota lusa, pretendiam eles desembarcar
também aí algumas forças, contanto que pudessem se reunir aos rebeldes da
Mata; se estes, porém, não viessem ao seu encontro, ditas forças voltariam
para a Baía. O Senhor Linge teve, então, ordens de trazer toda a tropa que
conseguisse reunir, quer fosse constituída por soldados, tapuias ou brasileiros,
a fim de evitar o desembarque dos lusos e sua junção com os rebeldes,
naquela Capitania.

O outro ponto também debatido foi sobre a conveniência de enviar uma flotilha
sob o comando do Almirante Lichthart, em perseguição da esquadra
portuguesa, para atacá-la. Depois de várias considerações, concordou-se em
esperar até que todos os nossos navios estivessem aptos para a empresa,
suprindo-se com operários do Recife a falta de marujos, de maneira a
tornarmo-nos tão fortes quão possível, no mar.

O almirante holandês zarpa do Recife

Nesse ínterim, o Almirante Lichthart fez-se ao largo, a 1° de setembro, com


quatro navios, um iate e uma fragata274. O Almirante ia no Utrecht, mas o mau
tempo (o Zeelandia, perdeu um mastro durante a tormenta) e o receio das
rochas submarinas fizeram-no ancorar não muito longe dos portugueses que
tentavam distanciar-se dele. Também os Senhores de Wit e Moucheron
voltaram, com seu navio, não tendo conseguido alcançar os portugueses,
devido ao forte vento contrário. Entretanto, transferiram os deputados
portugueses para um naviozinho a fim de que acompanhassem a esquadra.

No mesmo dia o Conselho recebeu carta dos Senhores Hoogstraeten, Ley e


Hek informando que o inimigo se havia estabelecido nos engenhos Salgado e
Surchaque e em outros pontos circunjacentes, e, surgindo novamente, nessa
noite, à frente do Recife, a frota portuguesa que tinha sido avistada ao largo da
Baía da Traição, o Conselho achou de bom aviso ordenar que o Almirante
Lichthart embarcasse imediatamente a bordo do Utrecht e, auxiliado pelo Ter
Veer e dois navios menores, fosse observar os movimentos dos portugueses.

273
O tradutor inglês escreveu: em data de 20, ao invés de 24. Cf. p. 113, 2a coluna § da ed.
holandesa e p. 81, 2a coluna 2° § da tradução inglesa.
274
O tradutor inglês omitiu uma fragata. Cf. p. 114, 1a coluna, 1° § da ed. holandesa e p. 81, 2a
coluna últ. § da ed. Inglesa.
Página 184 de 349

Providenciou-se, também, para que o barco Over-Yssel [Overyssel] fosse


aprestado até o dia seguinte, na certeza de que quando acrescida deste navio -
mais o Zoetelandia e o Gulde Ree que haviam sido enviados para fora, em
busca de informações, a armada holandesa estaria apta a enfrentar os
portugueses, ou pelo menos a expulsá-los para fora da baía.

Na manhã seguinte podia-se ver perfeitamente, do Recife, a esquadra lusa


panejando ao largo, mas o nosso Almirante não conseguiu zarpar devido aos
ventos adversos. Apesar disso o Utrecht e o Ter Veer vieram do Sul a todo
pano, e, sendo barcos mais velozes, conseguiram escapar aos portugueses e
reunir-se à nossa frota.

A 4 de setembro o Major Bayert e o Senhor Volbergen reclamaram ao


Conselho que, tendo o Senhor Vierbergen, Agente ou Mordomo do Conde
Maurício, recebido ordem de derrubar umas tantas árvores a fim de ampliar as
defesas do Forte Ernesto, havia ele exorbitado as instruções recebidas,
abatendo grande número delas com a intenção confessa de destruir toda a
propriedade. Os reclamantes tinham tido o cuidado de conservar o maior
número possível das grandes palmeiras que não os estorvavam diretamente. À
vista dos desmandos do Mordomo, a população enraivecida pôs-se a exigir a
derrubada, não só de todo o arvoredo, mas, também, do palácio do Conde
Maurício, e não foi sem grande custo que se conseguiu acalmar a ira da
multidão. Pediam os reclamantes que tudo isso fosse tomado a termo afim de,
oportunamente, servir em sua defesa.

Nesse meio tempo o nosso Almirante Lichthart partira em perseguição dos


portugueses, tendo-os apanhado na Baía de Tamandaré, com sete navios, três
caravelas e quatro barcas; as demais unidades haviam sido despachadas para
Portugal, carregadas de açúcar. Até então ainda se não haviam reunido ao
Almirante todos os navios despachados do Recife. Entretanto, resolvido a não
deixar escapar essa oportunidade de atacar o inimigo, Lichthart mandou um
aviso ao Conselho dizendo que, estando à vista da frota lusa - composta de 11
embarcações - próximo à Baía de Tamandaré, estava disposto a atacá-la ali
mesmo, pedindo, por isso, ao Conselho que lhe enviasse imediatamente todos
os navios que pudesse.

Resolveu-se, então, reunir os dois barcos Elias e Deventer com o Eenhoorn e o


Leyden surtos na baía do Recife, mas, destinados à Holanda, além dos tenders
disponíveis e despachá-los prontamente ao Almirante Lichthart. Toda a noite
seguinte foi, por isso, empregada no apresto dos navios que, entretanto,
ficaram detidos na manhã seguinte pelos ventos contrários.

Deram-se ordens a todos os soldados e habitantes da ilha de Antônio Vaz para


que se munissem de cestos de baldear terra, e, com auxílio do povo e da
soldadesca, construíram-se paliçadas desde a ponta do Recife até junto ao rio;
na extremidade próxima ao mar instalaram-se cinco grandes peças de artilharia
Página 185 de 349

sobre umas ruínas, de onde dominavam toda a praia até ao Forte dos Cinco
Bastiões275.

Os holandeses atacam e expulsam a esquadra lusa

A 8 de setembro Lichthart, desfraldando bandeira vermelha, ordenou a


abordagem da nau capitânia portuguesa artilhada com 60 canhões e defendida
por 300 homens. O almirante português portou-se com bravura. Postando-se à
porta de sua cabina, de espada em punho, abateu três ou quatro adversários,
mas, finalmente, coberto de ferimentos, foi obrigado a render-se. Entretanto, os
outros navios batavos, seguindo o exemplo do capitânia, haviam igualmente
atacado os barcos portugueses, mas, percebendo a maruja inimiga que sua
bandeira fora arriada do navio almirante (sinal evidente do desastre) perdeu a
esperança e atirou-se ao mar a fim de escapar à fúria do ferro e do fogo que
sobre ela desabavam. Perseguidos pelos holandeses, em seus barcos, muitos
portugueses morreram antes de alcançar terra firme. Nessa refrega pereceram
mais de 700 homens,276 além de grande número de prisioneiros entre os quais
o próprio almirante. Três navios foram capturados e enviados para o Recife; os
demais foram incendiados, pois, não estando em condições de navegar, por
terem perdido a cordoalha, encalharam justamente defronte às baterias
instaladas em terra pelos portugueses. Os batavos, receosos de serem
impelidos até ao alcance das peças inimigas, atearam fogo aos barcos
apresados, conseguindo safar seus navios dentre os bancos, com grande
dificuldade. Depois dessa batalha voltei ao Recife para atender aos meus
interesses e o Almirante despachou um correio, em navio de pesca, com a
seguinte carta dirigida ao Conselho do Brasil Holandês:

CARTA DO ALMIRANTE HOLANDÊS AO CONSELHO

Tão logo chegaram, ontem à noite, o Leyden, o iate De Ree junto à


ponta de Tamandaré, foi resolvido, em Conselho de Guerra, que se
franqueasse a barra na manhã seguinte, o que foi feito na seguinte
ordem: em primeiro lugar o navio capitânia, Utrecht, a seguir o Ter
Veer, depois o Zeelandia, em quarto lugar o Over-Yssel, logo atrás
o Zoetelandia, seguido pelo De Ree, o Leyden, e por último o iate
Eenhoorn, além dos tenders Doghboort e Bark que tiveram ordem
de se conservar à mão, fará qualquer eventualidade. Passada a
barra, encontramos o inimigo com sete navios além de três
caravelas menores e quatro barcas. Notamos também que haviam

275
O Forte dos Cinco Bastiões é o de Frederico Henrique. Cf. Breve Discurso, (XV, p. 182).
276
Segundo Moreau, (LIX, p. 82) as perdas portuguesas foram de 600 a 700 homens. Calado
(XVII, p. 234), consigna a perda de 100 pessoas somente e procura justificá-la dizendo que os
holandeses não mataram a todos, senão que deitando-se a nado, sem saberem nadar, se
afogaram. Segundo o Breve Discurso sobre a Rebeldia (XXIX, p. 136-7), os holandeses
tiveram 3 mortos e 2 feridos. O que é importante, como resultado da luta é que, a bordo dos
navios, acharam os holandeses correspondência do Governador Geral para D. João IV e
epístolas do Rei ao seu representante na Baía, das quais claramente se inferiu que um e outro
não só tinham perfeito conhecimento do plano da insurreição pernambucana, como, até,desde
o início, haviam nela influído. (XCVI, p. 240)
Página 186 de 349

instalado diversas peças de artilharia na praia, em duas baterias.


Fomos recebidos por cerrada salva de artilharia tanto dos navios
como das baterias de terra, bem como por várias descargas de
armas menores. Apesar disso o Utrecht abordou galhardamente o
capitânia português que, após curta, mas ardorosa refrega, foi
capturado juntamente com a bandeira do Almirante. Em resumo, os
outros navios nossos portaram-se com tal bravura, que logo depois
obrigaram os portugueses a abandonarem seus barcos. Louvado
seja Deus por essa vitória. Jerônimo Serrão de Paiva, o Almirante
português, é nosso prisioneiro. Acha-se a bordo de meu navio e
está bastante ferido. Pretendo entregá-lo a Vs. Excias. logo que
retorne ao Recife. Nesse ínterim, consoante as ordens de Vs.
Excias., tenciono fazer voltar o Leyden e o iate Eenhoorn amanhã
cedo. É possível que ainda nos tenhamos de empenhar em luta
mais uma vez porque o inimigo se entrincheirou próximo à praia;
entretanto, na primeira oportunidade, regressarei ao Recife a fim de
dar-lhes contas pormenorizadas de toda a refrega.

Recomendo Vs. Excias. à divina proteção.

Apressadamente, de bordo do Utrecht, no interior da Baía de


Tamandaré,

9 de setembro de 1645.

Fiel servidor de Vs. Exdas.,

Assinado: CORNELISZ LlCHTHART

Em carta datada de 18 de setembro, o Almirante português Serrão de Paiva


relatou os reencontros havidos aos dois Mestres de Campo, generais Martim
Soares Moreno e André Vidal de Negreiros, como segue:

CARTA DO ALMIRANTE PORTUGUÊS A ANDRÉ VIDAL

Sendo voz corrente aqui no Recife que Vs. Ss. dizem, aí, que o
Almirante holandês Jan Cornelisz Lichthart, antes da última batalha,
franqueou a barra hasteando bandeira branca e, surpreendendo os
nossos, matou muitos deles a frio, julguei ser meu dever informá-los
como as cousas realmente se passaram. De fato, dois dias antes da
refrega, apareceram à entrada da barra um iate e uma barca, com
bandeira branca, contra os quais um de nossos navios menores fez
três disparos de peça. Quando, porém, o Almirante ingressou na
baía, levava hasteadas, tanto a bandeira holandesa como a
vermelha. Nem ê verdade o que se diz sobre o massacre de
portugueses, a frio. Nem um único homem foi abatido a bordo de
meu navio a não ser durante a luta. Cinco ou seis deles, que se
haviam escondido no tombadilho inferior, foram aprisionados e um
Página 187 de 349

soldado gravemente ferido foi recomendado para ser tratado com


todo o cuidado possível. Também não se deu uma cutilada sequer
depois da capitulação do navio e todos foram tratados de acordo
com sua hierarquia e com as circunstâncias do momento. A razão
pela qual tão poucos foram então indultos, é que quase todos se
lançaram ao mar, em primeiro lugar os marinheiros e depois os
soldados. Mesmo de espada em punho não consegui evitar que
escolhessem entre morrer afogados e enfrentar o perigo a bordo.
Duas ou três pessoas de destaque, vendo-me mal ferido, deram-me
clemência, sem me conhecer e sem que eu lha pedisse. Aí está a
prova convincente de que não recusariam clemência a todos
quantos a pedissem. Sinto-me obrigado a dizer que não tenho
palavras com que traduzir minha gratidão para com a humanidade e
generosidade do Almirante. Além disso, é fora de dúvida que fomos
nós quem primeiro atiramos contra eles, tanto de bordo de nossos
navios, como de nossas baterias instaladas na costa. Dou-lhes,
acima, um relato preciso de toda a refrega, da qual fui testemunha
visual, e, por isso, não tenho dúvida de que Vs. Ss. me darão todo
crédito.

Deus proteja Vs. Ss. por muitos anos Recife, 18 de setembro de


1645.

Assinado: Jerônimo Serrão de Paiva

A essa carta, André Vidal enviou resposta, por intermédio de um de nossos


tambores (enviado ao inimigo em missão especial), em data de 29 de
setembro,277 como segue:

SUA RESPOSTA AO ALMIRANTE

Fomos informados por sua carta, de que V. S., ao invés de ser


tratado como merecia, recebeu os mesmos maus tratos que o
restante de nossos concidadãos. Embora considerando que o seu
caso é diferente dos demais, V. S. deveria ser tratado de outra
forma, de vez que para cá veio sem a menor intenção de mover
guerra contra eles (ponto sobre o qual eles deveriam ter refletido),
mas, apenas, comboiavão alguns navios que se dirigiam para a
Metrópole, desembarcou nossas forças nesta Capitania, a pedido
nosso. À vista dos maus tratos e violência que os nossos súditos
têm recebido das mãos deles, não podemos prometer-lhes melhor
tratamento. Tomamos tão circunstanciadas notas de todos os
assassínios cometidos a frio, que temos certeza de poder justificar a
nossa causa, e a nós mesmos, tanto perante os Estados Gerais
Holandeses, como perante os nossos demais aliados. De fato,

277
O tradutor inglês escreveu 20 de setembro. Cf. p. 117, 1a coluna, 3a § ed. holandesa e p.
84, 1a coluna 2° § da trad. inglesa.
Página 188 de 349

recolhemos diversos de nossos camaradas portugueses com


projeteis e pedras atados às pernas e ao pescoço; alguns tiveram a
boa sorte de serem salvos, quando procuravam alcançar a praia a
nado, muitos outros, porém, pereceram queimados, no bojo dos
navios. É fora de dúvida que a intenção desses cavalheiros fazendo
um tão generalizado massacre entre cristãos é a de nos roubar toda
e qualquer esperança de podermos jamais voltar aos nossos lares.
De tudo isso, porém, terão um dia que prestar contas rigorosas, não
só ao Altíssimo, como também a quem deles exigir satisfação. A
nosso ver, porém, jamais poderão eles justificar suas crueldades,
nem os males que fizeram ao nosso povo, quer perante Deus, quer
perante o Rei, nosso Senhor. Espero que V. S. continue satisfeito,
apesar de sua atual condição, e ponha suas esperanças em Deus e
em nosso Rei, que ainda estão vivos, para exigir deles rigorosa
satisfação.

Deus proteja a V. S. Em nosso Quartel de São João na Várzea, 29


de setembro de 1645.

Assinado: André Vidal de Negreiros

Certo tenente inimigo, de nome Francisco Gomes, veio em companhia do


mesmo tamboreiro, trazendo uma carta do dito André Vidal, dirigida ao
Conselho e cujo teor era o seguinte:

CARTA DE ANDRÉ VIDAL DE NEGREIROS AO GRANDE CONSELHO

Recebi em Igarassú a carta em que Vs. Excias. demonstram seu


aborrecimento pela matança de alguns brasileiros e suas esposas,
pelos nossos soldados, sob a alegação de que a Vs. Excias., tão
somente, cabe o comando deles.

Isso em muito nos surpreende, à vista da Proclamação em que Vs.


Excias., determinando que não se tenha piedade de nenhum
morador português (apesar de súditos naturais do Rei, meu
Senhor), alegam, entre outros motivos, o de terem eles nascido
nesta Capitania e aqui recebido sua educação (Capitania esta que
foi inicialmente conquistada por monarcas portugueses, com o
auxilio de muitos de seus súditos).

Entretanto pretendem, agora, Vs. Excias., que esse mesmo povo se


apiede daqueles brasileiros que não há muito tempo foram
mantidos e instruídos na fé católica, como sendo vassalos, não de
Vs. Excias., mas do Rei, meu Senhor. Vs. Excias. devem se lembrar
de que não estão de posse do país por direito de sucessão, mas,
tão somente, pela força das armas. Desejamos que Vs. Excias.
tomem rigorosas providências no que respeita aos métodos a
serem observados na presente guerra. Esperamos que Vs. Excias.
se hajam com prudência e que o nosso povo seja tratado com
Página 189 de 349

clemência. Caso contrário ver-me-ei forçado a agir da maneira que


julgar mais condizente com a minha honra, a fim de tirar a desforra
dessas injúrias. Queremos também que se ponha um paradeiro no
assassínio a frio, de mulheres, crianças e velhos, como se tem dado
ultimamente em Tejucopapo, Rio Grande e Paraíba.

Deus proteja Vs. Excias.


278
Do nosso Quartel em São João, 29 de setembro de 1645

Assinado: André Vidal de Negreiros.

Com o consentimento dos membros do Tribunal de Justiça e do Coronel


Garstman, o Grande Conselho fez o referido tenente regressar na mesma
noite, em companhia do tambor, com sua resposta à carta acima.

Como agiram desde o desembarque

Voltemos, porém, um pouco atrás e vejamos como procederam, os lusos, após


o desembarque. Logo que André Vidal de Negreiros e Martim Soares Moreno
desembarcaram, a 28 de julho de 1645, próximo a Tamandaré, entre Una e
Formosa, com suas forças que orçavam entre 1.800 e 2.000 homens, trazendo
grande cópia de provisões, armas e munições, a eles se reuniram não só as
quatro companhias que vieram da Baía, por terra, mas as tropas sob o
comando de Henrique Dias e Camarão, que até então tinham estado montando
cerco a Porto Calvo. Daí orientaram sua marcha para a cidade de Serinhaém e
sitiaram o forte, onde havia apenas uma guarnição de 80 soldados holandeses
e 60 brasileiros, comandados por Samuel Lambert e Kosmo de Moucheron.
Dois dias depois de sua chegada a Serinhaém, o inimigo instalou-se no
Engenho de Daniel de Haen. Por essa época Henrique Dias foi visto em
Serinhaém, conquanto os comandantes portugueses André Vidal e Moreno
negassem que mantivessem qualquer correspondência com ele, naquela
ocasião. Os ditos comandantes tinham também despachado o Capitão-Major
Paulo da Cunha a fim de intimar o forte, missão de que se desempenhou,
conforme sua carta de 2 de agosto, escrita no Engenho de Jaques Peres e
dirigida a Samuel Lambert.

ULTIMATUM ENVIADO AO FORTE DE SERINHAÉM

Vim ter a este Engenho por ordem de Martim Soares Moreno e


André Vidal de Negreiros, nossos governadores, que atualmente
estão muito ocupados com o desembarque de suas tropas.
Enviaram-me à frente, a fim de evitar qualquer mal-entendido entre
nós e Vs. Ss. Se nesse ínterim Vs. Ss. se decidirem a reunir suas
forças às nossas, ou com elas se retirarem para outro lugar,

278
É curioso que esta escrito 29 de setembro de 1654 (p. 118, 1a col., linha 34). Não era
possível tal data, devendo ser 1645. Na errata está, novamente, 1654 (p. 240).
Página 190 de 349

poderão fazê-lo com toda segurança, dispondo-me desde já a


fornecer licença para tal fim, pois que os referidos governadores
vêm com a intenção de pôr fim à presente insurreição.

Deus proteja a Vs. Ss. Do Engenho de Santo Antônio, 2 de agosto


de 16b5.

Assinado: Paulo da Cunha Souto Maior

Vista de Serinhém - Arnoldus Montanus 1671

Dois dias depois, os referidos comandantes em chefe enviaram a Samuel


Lambert outra carta que pouco diferia da que ficou acima:
Página 191 de 349

SEGUNDO ULTIMATUM DOS CHEFES PORTUGUESES

Ao que nos parece, Vs. Excias. não estão ao par das intenções com
que viemos, motivo pelo qual não nos surpreende encontrá-los em
atitude defensiva. O Grande Conselho do Brasil Holandês enviou
uma embaixada ao nosso Governador Geral de Terra e Mar,
Antônio Teles da Silva, pedindo que S. Excia. fizesse uso de sua
autoridade e força no sentido de abafar a insurreição nesta
Capitania. Tendo sido imediatamente atendido esse pedido, a fim
de auxiliar o Conselho e libertar os portugueses das violências
cometidas contras suas famílias e propriedades, tivemos instruções
de desembarcar as nossas forças junto ao Engenho Rio Formoso.
Isso feito, e prontos como estamos para marchar em direção ao
interior do país, achamos conveniente pô-lo ao par das nossas
intenções, o que, provavelmente, já chegou ao seu conhecimento,
pois que já foram publicadas em diversos lugares, através de
nossas proclamações das quais anexamos uma pedindo-lhe que
mande afixá-la à porta da Igreja de Serinhaém. Desejamos,
portanto, que V. S. deponha as armas e deixe de lado qualquer
suspeita, certos de que, de sua parte, teremos recepção favorável,
pois, da nossa, tudo faremos a fim de restabelecer a tranqüilidade
entre os portugueses revoltados, por todos os meios suasórios de
que pudermos lançar mão. Asseguramos-lhe, entretanto, que, se V.
S. se recusar a vir ao encontro de nossos desejos, causará não
pequeno desprazer ao Grande Conselho do Brasil Holandês.

Deus proteja V. S. do Engenho de Formosa, 4 de agosto de 16U5.

Assinado: Martim Soares Moreno, André Vidal de Negreiros,

Cerco e capitulação do Forte de Serinhaém

No dia seguinte, Paulo da Cunha compareceu pessoalmente diante da praça,


com um magote de soldados e campônios providos de armas retiradas de
bordo da esquadra, e, depois de cercá-la, cortou o fornecimento de água dos
rios e das fontes, aos sitiados. Enquanto isso se dava, Roelant de Carpentier e
Daniel de Haen tinham sido postos em liberdade, com permissão dos
comandantes portugueses, que embarcaram um pesado canhão no navio de
Carpentier, a fim de subir o Rio Formoso.

Cinco dias após a chegada de Paulo da Cunha, apareceram à vista de


Serinhaém as forças do inimigo em ordem de batalha, e apertaram o cerco do
forte. A guarnição holandesa estava inteiramente fora de qualquer proporção
com a força inimiga, e, de tal forma guarneceu esta todas as vias de acesso à
praça, que, dentro de pouco tempo, os batavos estariam à míngua de tudo,
principalmente de água. Além disso, muitos dos moradores das redondezas
mantinham contacto freqüente com o inimigo e davam-lhe informação quanto a
situação no forte. Apesar de já terem despachados diversos mensageiros para
Página 192 de 349

o Recife, havia já dois meses que os batavos não recebiam comunicação do


Conselho. Assim, perdidas todas as esperanças de conservar essa posição, os
holandeses julgaram mais conveniente ao interesse da Companhia antes
salvar a guarnição, - que poderia ser útil em qualquer outro lugar onde
houvesse necessidade de bons soldados, - que expô-la à fúria do inimigo.

Assim foi que Samuel Lambert, Kosmo de Moucheron e La Montagne,


comandantes do forte, ao receberem o segundo ultimatum do inimigo,
negociaram com os portugueses a 6 de agosto a, capitulação, da qual
Moucheron deu conta ao Conselho, pessoalmente, a 15 de agosto, e, por
escrito, a 20 do mesmo mês.

O segundo ultimatum

I - Nós, os comandantes portugueses, fazemos saber a todos, que


para aqui fomos enviados a pedido do Grande Conselho do Brasil
Holandês, a fim de abafar a insurreição estalada entre os
moradores portugueses da região. Entretanto, tendo sido informado,
ao desembarcar, que apesar desse pedido e das nossas boas
intenções os holandeses haviam assassinado muitos portugueses,
a frio (sendo certo que estraçalharam diversos portugueses que
para isso foram seqüestrados dentro de uma igreja), e que
organizaram forças para nos combater - o que nos serve de aviso
para que não deixemos nenhuma fortaleza atrás de nós - achamos
necessário negociar esta capitulação, até conseguirmos concertar
novas medidas com o Grande Conselho, nas bases seguintes:

I - Os comandantes Samuel Lambert e Kosmo de Moucheron terão


permissão para sair do Forte e Castelo, com sua guarnição,
bandeiras desfraldadas, todas as suas armas, mourões acesos etc.

II - Terão permissão para marchar pela estrada, com suas


bandeiras e espadas nuas, e serão conduzidos em segurança, por
um ou mais capitães que terão por obrigação fornecer-lhes veículos
e embarcações para o transporte de suas pessoas e bagagens para
o Recife.

III - Os portugueses se obrigam a restituir a Kosmo de Moucheron


tudo quanto dele foi tirado e que lhe pertencia antes do cerco.

IV - Obrigam-se ainda a fazer que os moradores da cidade, bem


como os de Câmara, esqueçam as passadas ofensas, por- palavras
ou ações e a manter na posse de seus haveres, do mesmo modo
que aos portugueses,todos os batavos que aqui quiserem
permanecer. Gozarão, também, os holandeses dos mesmos
privilégios e poderão praticar sua própria Religião, contanto que não
preguem em público e que respeitem, devidamente,os lugares
sagrados. Terão liberdade de comércio com os
portugueses,poderão reclamar, como antes, as importâncias que
lhes forem devida se não serão obrigados a tomar armas contra os
Página 193 de 349

Estados das Províncias Unidas.

V- Nessas condições serão eles obrigados a entregar o forte esta


tarde com tudo quanto a ele pertencer, tendo, entretanto, permissão
para se proverem do necessário para a viagem, que poderá ser
feita da maneira que melhor lhes convier.

assinado por André Vidal de Negreiros,

Álvaro Fragoso de Albuquerque,

Diogo de Silveira,

Lopes Lourenço,

Ferreira Bitencourt,

Hipólito Alonso de Verçosa e

Sebastião de Guimarães.

Evasivas dos portugueses

Imediatamente após a capitulação do forte, Moucheron entreteve-se


longamente com os comandantes portugueses, a respeito da missão que
traziam, a qual, afirmou ele, era, na verdade, muito diversa da que anunciava o
Governador em suas cartas, isto é, a de apaziguar os portugueses, a pedido do
Grande Conselho. Os oficiais portugueses responderam a Moucheron com
evasivas, dizendo-lhe que teriam todo cuidado em não contrariar a paz
celebrada entre o Rei, seu Senhor, e os Estados Gerais. Não tardou, porém,
que começassem a dominar a região, detendo até os menos suspeitos e
relacionando os holandeses casados com portuguesas; organizaram um
tribunal de justiça com elementos seus e forçaram Moucheron a vender seus
escravos por uma quarta parte de seu valor. Tal foi o desprezo a que votaram
aos últimos artigos da capitulação, que mandaram amarrar às paliçadas 33
brasileiros 279 que faziam parte da guarnição e os enforcar. Os portugueses

279
O tradutor inglês escreveu 30 brasileiros (Cf. p. 121, 1a coluna, da ed. holandesa e p. 87, 1a
coluna da trad. inglesa). Segundo Varnhagen, (XLI, p. 27), eram 62 os holandeses que se
renderam e 49 os índios que foram enforcados. Mattheus van den Broeck (XVI, p. 10) fala em
39 indígenas, e afirma que de acordo com o depoimento de La Montagne, os portugueses não
cumpriam a promessa que haviam feito de dar quartel aos indígenas. Isso contrasta com a
asserção de Varnhagen, que declara terem sido abandonados à discrição do artigo 6 da
capitulação, quando, como vimos, segundo Nieuhof, não existe artigo 6 da capitulação. Calado
afirma que eram 62 holandeses e 56 índios (XVII, p. 236). E não demonstra qualquer
sentimento de piedade por essas execuções em massa de indígenas, pois, numa frase, que se
torna chavão no seu livro, sendo repetida sempre que fala desses enforcamentos, diz: [i]índios
Brasileiros aos quais por quanto sendo vassalos dei Rey & criados aos peitos da Santa Madre
Igreja Romana, se avião rebelado contra os portugueses".[/i] - Segundo o Breve Discurso sobre
Página 194 de 349

alegaram em sua defesa que os brasileiros foram punidos por crimes que
confessaram ter cometido, conquanto, ao contrário, seja mais provável que
tenham eles sido sacrificados aos portugueses descontentes, que se
queixavam amargamente dos brasileiros. Entretanto, 30 deles foram poupados
e entregues aos oficiais, para servirem de carregadores. Suas mulheres foram
entregues aos moradores do lugar. Os portugueses constituíram a Álvaro
Fragoso de Albuquerque Governador da cidade e do forte, e nomearam capitão
a um desertor francês, Francisco de La Tour280, para comandar 40 desertores
que se alistaram entre suas forças.

Os portugueses arvoram-se em chefes

Organizaram, ainda, três companhias com camponeses lusos, sob o comando


de Pedro Fragoso, Inácio e Manuel de Melo, as quais foram destacadas para
defender Serinhaém. Aí batizaram os lusos a dois judeus de nome Jacques
Franco e Isaac Navarro.281 A maioria dos holandeses que tinha alguma
propriedade ou engenho pelas adjacências recebeu garantias, de maneira que
a não ser dois que se retiraram para o Recife, nenhum outro deixou a
Capitania. Os que se retiraram tiveram motivos de sobra para se arrepender,
pois, como veremos mais adiante, foram bastante mal tratados pelos
portugueses.

Na tarde de 15 de agosto a guarnição de Serinhaém, composta de apenas 32


homens (os demais ficaram atrás), chegou embarcada ao Recife, e seu
comandante apresentou-se ao Conselho no mesmo dia, a fim de explicar os
motivos que o levaram a capitular. Roelant de Carpentier, dono do engenho
Formoso, e Daniel de Haen, dono do engenho Itaperaú, foram ao encontro do
pessoal recentemente desembarcado e obtiveram dele que pudessem
permanecer nos seus engenhos e nos seus bens282. Apesar do seu gesto, foi

a rebeldia (XXIX, p. 12 a), eram, ao todo, 30 indígenas. Moreau (LIX, p. 75) calcula em 40
soldados e não se refere ao morticínio dos indígenas.
Francisco de La Tour, francês de nação, natural de Bordéus, católico romano, casado com uma
mulher portuguesa e homem tido entre os moradores em muita conta e por qualificado cristão,
o qual deixando logo sua casa, mulher e filho em Serinhaém, aonde tinha seu domicílio, se veio
logo em companhia de nossa gente para o sítio onde estava o governador da liberdade João
Fernandes Vieira (Cf. Calado, XVII, p. 236 e Rafael de Jesus, XC, p. 318)
Manuel Calado (XVII, p- 187) se refere a um judeu que estava catequizando e a mais sete que
haviam sido enviados para Portugal; e, à p. 244-245, fala de três outros, um dos quais logo
pediu que o batizassem, enquanto os outros dois começaram a discutir com Manuel Calado.
Este termina por convertê-los.
280
Francisco de La Tour, francês de nação, natural de Bordéus, católico romano, casado com
uma mulher portuguesa e homem tido entre os moradores em muita conta e por qualificado
cristão, o qual deixando logo sua casa, mulher e filho,em Serinhaém, aonde tinha seu
domicílio, se veio logo em companhia de nossa gente para o sítio aonde estava o governador
da liberdade João Fernandes Vieira (Cf.Calado, XVII, p. 236 e Rafael de Jesus, XC, p. 318)
281
Manuel Calado (XVII, p- 187) se refere a um judeu que estava catequizando e a mais sete
que haviam sido enviados para Portugal; e, à p. 244-245, fala de três outros, um dos quais logo
pediu que o batizassem, enquanto os outros dois começaram a discutir com Manuel Calado.
Este termina por convertê-los
282
O trecho dessa tradução, que começa "Roelant de Carpentier" até "...nos seus bens" está
omitido na tradução inglesa (Cf. p. 121, 2a coluna últ. § e p. 122, 1a coluna 1° § da ed.
holandesa e p. 87, 1a coluna da ed. inglesa). Conforme se lê no Discurso sobre a Rebeldia,
(XXIX, p. 176): Roeland Carpentier, possuidor do engenho de Rio Formoso, fez acordo com os
Página 195 de 349

obrigado a responder a conselho de guerra. O oficial que conduziu a guarnição


ao Recife entregou ao Conselho, no mesmo dia, uma carta de Martim Soares
Moreno e André Vidal de Negreiros, datada de 8 de agosto, dizendo que
tinham vindo para o Brasil Holandês, por ordem expressa do Governador da
Baía, e exprobrando as violências que diziam ter sido cometidas pelos
holandeses contra os portugueses. Essa carta capeava outra do Governador,
datada de 30 de julho, contendo uma proclamação a ser publicada na
Capitania de Pernambuco, em que se intimavam todos os habitantes a
comparecerem perante eles, dentro do prazo de oito dias, a fim de receber
instruções para o restabelecimento da tranqüilidade entre o povo. Era o
seguinte o teor da carta de Martim Soares Moreno e André Vidal de
Negreiros283:

CARTA DOS COMANDANTES PORTUGUESES AO CONSELHO

Quando Vs. Excias. se viram ameaçados por uma perigosa


conspiração de portugueses moradores desta Capitania dirigiram-se
ao Governador Antônio Teles da Silva e pediram que adotasse as
medidas mais eficazes para abafar rebelião.

Mais ou 'menos pela mesma época, os moradores desta Capitania


unanimemente imploraram seu auxílio e proteção contra as
inúmeras afrontas, pilhagens, assassínios e estupros, dizendo que
estavam resolvidos, por consenso geral, a se armar com paus (pois
que o uso de armas lhes havia sido proibido pelo Governo tirano) a
fim de se defenderem e lutarem até ao extremo pela sua honra,
certos de que Deus Onipotente vingaria o sangue de tantos
inocentes.

Representaram a Sua Excelência dizendo que, pela sua posição,


estava obrigado a auxiliá-los em sua aflição, pois que eram seus
compatriotas. Se, porém, o auxílio não fosse eficiente, se razões de
estado o induzissem a deixá-los ao desamparo, negando-lhes
auxílio, sua vida estaria correndo risco, e severas seriam as contas
que teria que prestar perante Deus, caso tivessem eles que pedir a
qualquer potência estrangeira o auxílio que não conseguiam obter
de seus próprios irmãos.

Considerando, detidamente, todas essas razões e também em


consideração, tanto ao pedido de Vs. Excias., como à reclamação
dos portugueses, o Governador empenhou-se em encontrar o meio
mais eficaz (que Vs. Excias parecem ter deixado a seu critério) de
sufocar a revolta. Sabendo que a insurreição se tinha alastrado

portugueses e ficou no mesmo engenho sob a salvaguarda deles; mas os portugueses,


querendo fazerem-se senhores de um tão bom, esbulho, acusaram-no (Deus sabe com que
pretexto) de traição e sem forma de justiça o degolaram.
283
A cópia do original português encontra-se publicada na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern.
1887, n. 35, vol. 6, p. 38-41. Como afirmou Varnhagen (LXXIII, p. 290), a grande
correspondência trocada entre o inimigo e André Vidal de Negreiros demonstra que os
holandeses compreenderam que ele era o verdadeiro diretor da guerra.
Página 196 de 349

entre os portugueses desta Capitania e que poderia ainda se


expandir mais, contra o Governo de Vs. Excias., o Governador
achou melhor mandar para cá pessoas, acompanhadas de força
armada, as quais, pela sua prudência, e, em caso de necessidade
pelas armas, haveriam de restaurar a almejada tranqüilidade.

É por isso, senhores, que aqui nos achamos, dispostos a


emprestar-lhes toda a nossa força e assistência, de acordo com o
pedido de Vs. Excias., no sentido de preservar a paz estabelecida
entre as nossas duas nações, em prol da qual nem medimos as
despesas que teremos de fazer.

Entretanto, mal tínhamos posto pé em terra e já os nossos ouvidos


e corações se feriam com gritos de 40 inocentes católicos
portugueses, massacrados na igreja do Rio Formoso, para onde
foram seqüestrados por indivíduos a serviço de seu Governo. Sem
o mínimo respeito pela idade e pelo sexo, até criancinhas foram
barbaramente assassinadas pelos nativos, nos braços de suas
mães.

Nem nos escaparam os gritos de desespero de nobres donzelas


raptadas pelos brasileiros em Várzea e São Lourenço, sem falar
das barbaridades cometidas em Ipojuca onde muitos ermitães e
crianças inocentes foram massacrados em uma caverna.

Os criminosos nem ao menos pouparam os lugares e objetos


sagrados: reduziram a fragmentos imagens de santos e
estraçalharam os paramentos da Virgem Maria, Rainha dos Céus.
Procedimento assim tão monstruoso é, por si só, suficiente para
encher de horror e espanto os corações generosos.

Não obstante terem Vs. Excias. pedido ao nosso Governador Geral


que interviesse com sua autoridade, Vs. Excias. organizaram forças
que ainda hoje continuam em campo. Obrigados, pelas ordens que
recebemos, a ir ter com Vs. Excias., no Recife, julgamos que seria
conveniente não deixar atrás de nós nenhuma força armada, que
mais tarde nos pudesse constituir entrave. Procuraremos tratar
com, respeito e bondade a todos os seus súditos e manter entre
nós a guarnição de Serinhaém até conseguirmos chegar a um
acordo com Vs. Excias., para melhor serviço de Deus e do Estado.
Enquanto isso, desejamos ardentemente que se ponha um
paradeiro às violências cometidas pelos seus soldados, a fim de
evitar que nos seja dado motivo de represália.

Protestarmos, em nome de Deus e Dom João IV, que Deus o


guarde, bem) como em nome dos Estados Gerais cujo poderio
queira Deus aumentar, que nada mais desejamos que a
continuação da paz firmada, desejo esse que sempre norteará
todas as nossas ações. Trouxemos conosco uma cópia autêntica do
tratado de paz, para servir de justificativa perante todos os príncipes
Página 197 de 349

da Europa. Para conhecimento de Vs. Excias., anexamos cópia da


Proclamação que publicamos quando desembarcamos nesta
Capitania.

Deus guarde Vs. Excias.,

Serinhaém, 8 de agosto de 1645.

Assinada por Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros.

Quando Vs. Excias. se viram ameaçados por uma perigosa


conspiração de portugueses moradores desta Capitania dirigiram-se
ao Governador Antônio Teles da Silva e pediram que adotasse as
medidas mais eficazes para abafar rebelião.

Mais ou 'menos pela mesma época, os moradores desta Capitania


unanimemente imploraram seu auxílio e proteção contra as
inúmeras afrontas, pilhagens, assassínios e estupros, dizendo que
estavam resolvidos, por consenso geral, a se armar com paus (pois
que o uso de armas lhes havia sido proibido pelo Governo tirano) a
fim de se defenderem e lutarem até ao extremo pela sua honra,
certos de que Deus Onipotente vingaria o sangue de tantos
inocentes.

Representaram a Sua Excelência dizendo que, pela sua posição,


estava obrigado a auxiliá-los em sua aflição, pois que eram seus
compatriotas. Se, porém, o auxílio não fosse eficiente, se razões de
estado o induzissem a deixá-los ao desamparo, negando-lhes
auxílio, sua vida estaria correndo risco, e severas seriam as contas
que teria que prestar perante Deus, caso tivessem eles que pedir a
qualquer potência estrangeira o auxílio que não conseguiam obter
de seus próprios irmãos.

Considerando, detidamente, todas essas razões e também em


consideração, tanto ao pedido de Vs. Excias., como à reclamação
dos portugueses, o Governador empenhou-se em encontrar o meio
mais eficaz (que Vs. Excias parecem ter deixado a seu critério) de
sufocar a revolta. Sabendo que a insurreição se tinha alastrado
entre os portugueses desta Capitania e que poderia ainda se
expandir mais, contra o Governo de Vs. Excias., o Governador
achou melhor mandar para cá pessoas, acompanhadas de força
armada, as quais, pela sua prudência, e, em caso de necessidade
pelas armas, haveriam de restaurar a almejada tranqüilidade.

É por isso, senhores, que aqui nos achamos, dispostos a


emprestar-lhes toda a nossa força e assistência, de acordo com o
pedido de Vs. Excias., no sentido de preservar a paz estabelecida
entre as nossas duas nações, em prol da qual nem medimos as
despesas que teremos de fazer.
Página 198 de 349

Entretanto, mal tínhamos posto pé em terra e já os nossos ouvidos


e corações se feriam com gritos de 40 inocentes católicos
portugueses, massacrados na igreja do Rio Formoso, para onde
foram seqüestrados por indivíduos a serviço de seu Governo. Sem
o mínimo respeito pela idade e pelo sexo, até criancinhas foram
barbaramente assassinadas pelos nativos, nos braços de suas
mães.

Nem nos escaparam os gritos de desespero de nobres donzelas


raptadas pelos brasileiros em Várzea e São Lourenço, sem falar
das barbaridades cometidas em Ipojuca onde muitos ermitães e
crianças inocentes foram massacrados em uma caverna.

Os criminosos nem ao menos pouparam os lugares e objetos


sagrados: reduziram a fragmentos imagens de santos e
estraçalharam os paramentos da Virgem Maria, Rainha dos Céus.
Procedimento assim tão monstruoso é, por si só, suficiente para
encher de horror e espanto os corações generosos.

Não obstante terem Vs. Excias. pedido ao nosso Governador Geral


que interviesse com sua autoridade, Vs. Excias. organizaram forças
que ainda hoje continuam em campo. Obrigados, pelas ordens que
recebemos, a ir ter com Vs. Excias., no Recife, julgamos que seria
conveniente não deixar atrás de nós nenhuma força armada, que
mais tarde nos pudesse constituir entrave. Procuraremos tratar
com, respeito e bondade a todos os seus súditos e manter entre
nós a guarnição de Serinhaém até conseguirmos chegar a um
acordo com Vs. Excias., para melhor serviço de Deus e do Estado.
Enquanto isso, desejamos ardentemente que se ponha um
paradeiro às violências cometidas pelos seus soldados, a fim de
evitar que nos seja dado motivo de represália.

Protestarmos, em nome de Deus e Dom João IV, que Deus o


guarde, bem) como em nome dos Estados Gerais cujo poderio
queira Deus aumentar, que nada mais desejamos que a
continuação da paz firmada, desejo esse que sempre norteará
todas as nossas ações. Trouxemos conosco uma cópia autêntica do
tratado de paz, para servir de justificativa perante todos os príncipes
da Europa. Para conhecimento de Vs. Excias., anexamos cópia da
Proclamação que publicamos quando desembarcamos nesta
Capitania.

Deus guarde Vs. Excias.,

Serinhaém, 8 de agosto de 1645.

Assinada por Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros.


Página 199 de 349

É o seguinte o teor da Proclamação acima referida.

PROCLAMAÇÃO

Nós, comandantes em Chefes das forças portuguesas, Martim


Soares Moreno e André Vidal de Negreiros, fazemos saber a todos
e aos moradores de Pernambuco que, tendo o Grande Conselho do
Brasil Holandês comunicado por carta ao Governador e Capitão
Geral do Brasil a revolta estalada entre os portugueses desta
Capitania e pedido auxílio para sufocar o movimento, o dito
Governador enviou-nos com força suficiente. Assim, determinamos
que todos os portugueses, seja qual for a sua condição, se
apresentem perante nós dentro de oito dias, depois da publicação
da presente, para que se restabeleça a tranqüilidade entre eles,
consoante o pedido dos senhores membros do Conselho do Brasil
Holandês. Convidamos também ao Conselho, da maneira mais
cordial e de acordo com o teor da aliança celebrada entre estas
duas nações, a cessar a perseguição dos portugueses, bem como
todo e qualquer outro ato inamistoso e punir severamente aqueles
de seus soldados que ajam de maneira contrária, cada vez que se
lhes apresente queixa.

Eu, Alexes Antunes, lavrei esta proclamação e eu Francisco Bravo


da Silveira, Auditor-General, o aprovei.

Martim Soares Moreno - André Vidal de Negreiros

O Grande Conselho resolveu dar uma resposta sucinta à carta acima a refutar
a Proclamação com outra, e, considerando que as causas de todas as
perturbações e desmandos foram expostas ao Conselho, este ordenou aos
dois Conselheiros da Justiça, De Wit e Moucheron, juntamente com o Senhor
Walbeek, assessor, que respondessem à exposição e representassem ao
Conselho dos XIX, na Holanda, dizendo que tais acontecimentos eram
ocasionados pelos rebeldes e seus simpatizantes.

Os portugueses assediam o cabo de Santo Agostinho

Durante o mês de agosto, as tropas recentemente chegadas da Baía


marcharam de Serinhaém para Ipojuca e daí para o Cabo de Santo Agostinho
onde, reunindo-se às forças sob o comando de Camarão e Dias e aos
habitantes do lugar, resolveram atacar (depois que os nossos homens
deixaram Ipojuca e a cidade de Santo Antônio do Cabo) o forte Van der
Dussen, no cabo de Cabo de Santo Agostinho, por terra. Assim decididos,
dispuseram os rebeldes suas tropas ao longo de ambas as margens do rio.

Entretanto, avisado com antecedência das intenções do inimigo, o Conselho


ordenou, a 2 de agosto, ao Senhor Adriaen Bullestrate, membro do Conselho, e
ao Almirante Lichthart que para lá se dirigissem e tudo providenciassem para a
Página 200 de 349

defesa da praça. Para isso deveriam os referidos senhores examinar


meticulosamente o Forte Van der Dussen284 e todas as suas obras externas,
tendo o cuidado de ver se havia necessidade de reparos no reduto do morro
denominado Nazaré e na bateria à entrada do porto, para defesa do forte.
Partiram, portanto, do Recife a 5 de agosto os senhores Bullestrate e o
Almirante Lichthart, tendo chegado ao Forte Van der Dussen na mesma noite.
Desempenhada a missão, o Senhor Bullestrate regressou ao Recife a 9 de
agosto e prestou as seguintes informações ao Conselho.

Disse que deixou o Recife a cerca de 9 horas da manhã do dia 5 de agosto,


tendo chegado ao Forte Van der Dussen, no Cabo Santo Agostinho, à noite do
mesmo dia.

Relato de sua missão

A 6 de agosto, depois do sermão da manhã, dirigiu-se, em companhia do


Almirante e de outros oficiais, para o morro do Cabo Santo Agostinho. Tendo
inspecionado o porto verificou que o reduto de pedra necessitava reparos de
pouca monta. Os canhões das baterias estavam bem firmes e as obras
externas, do lado do mar, em boas condições. Ordenou a construção de um
parapeito, a ereção de paliçadas em torno do reduto, a construção de uma
casa da guarda e o alargamento dos fossos. Determinou também a construção
de uma barragem de pedra (por falta de madeira) com uma ordem de paliçadas
e uma casa de guarda, bem como que, logo que o tempo melhorasse,
ateassem fogo ao mato do morro e limpassem todo o terreno em volta da igreja
de Nazaré.

Tendo examinado o Forte Van der Dussen, deu ordem ao Major Hoogstraeten
para que o colocassem em boas condições de defesa, com toda a urgência
possível, enquanto que o Almirante se incumbiu de circundá-lo com paliçadas.
Disse ainda que, a 7 de agosto, tendo feito pagamento à guarnição e aos
artilheiros passou para Santo Antônio, por caminhos bastante difíceis, onde
também fez pagamento aos soldados, visitou as trincheiras e dispôs as cousas
o melhor que pôde.

Contratou com terceiros o reparo do reduto do morro denominado Nazaré, a


construção da barragem de pedra, as duas casas de guarda e a ereção de
paliçadas em torno de ambas as defesas, de acordo com os seus desenhos,
pelo preço de 900 florins, devendo as obras estar inteiramente terminadas

284
O Forte do Pontal de Nazaré fora construído pelos holandeses em 1634 e era por eles
chamado van der Dussen. Segundo Barlaeus, (VII, p. 144). o Forte van der Dussen, no Cabo
de Santo Agostinho, era armado de 6 bocas de fogo. Não deve ser confundido com o antigo
Forte português de Nazaré, situado no próprio cabo, que resistiu aos ataques holandeses até 2
de julho de 1635, data em que foi destruído. (Cf. Barão do Rio Branco, LXXV, 490 e 387, onde
trata da capitulação do forte, dirigido por Pedro Correia da Gama e Luiz Barbalho Bezerra,
sendo os holandeses dirigidos por S. van Schkoppe).
Sobre a destruição do velho forte português há referência no Breve Discurso (XV, p. 180),
quando ali se declara: [i]a fortaleza, que o inimigo levantara em, torno da igreja de N. S. de
Nazaré, situada sobre o monte mais alto do Cabo (Santo Agostinho), há muito foi arrasada por
imprestável.[/i] Em Barlaeus, no mapa que abrange o Cabo de Santo Agostinho (ed. 1647),
pode-se ver o Pontal de Nazaré.
Página 201 de 349

dentro de três semanas. Foi aí que teve a primeira notícia do desembarque de


forças provenientes da Baía, junto ao Rio Formoso, forças essas transportadas
pela mesma frota que fora avistada ao largo do Recife na semana anterior. Não
tendo, porém, recebido mais informações, despachara um mensageiro ao
tenente La Montagne, comandante de Serinhaém, pedindo-lhe informes exatos
dos acontecimentos e das condições em que então se achava a sua guarnição.
Nessa mensagem procurava também encorajar o tenente, com toda a sorte de
promessas, pois que as comunicações por terra já estavam cortadas entre
eles. Alistou, também, 35 voluntários285.

Dizia, ainda, o Senhor Bullestrate, em seu relato ao Conselho, que a 8 de


agosto, a despeito do mau tempo reinante, conseguira atravessar as
montanhas de Hegendos dirigindo-se ao litoral de onde, encontrando-se com o
Almirante, subiram o Rio Jangada com maré alta, até Candelária, onde se
demoraram um pouco e receberam a notícia de que no último

Notícias do Cabo Santo Agostinho

encontro entre o Tenente-Coronel Haus e os rebeldes, próximo àquele morro,


mais de 200 destes últimos - dentre os quais, alguns oficiais - haviam,
perecido, sendo que do nosso lado apenas morreram 45 ou 50 homens. Um tal
Belchior Álvares286 procurou-os especialmente para dizer-lhes que cerca de
300 revoltosos estavam inclinados a aceitar o perdão, fato este que ele, Senhor
Bullestrate, referiu ao Conselho. Continuando seu relato, disse o Senhor
Bullestrate que, no momento em que se dispunha a montar a cavalo para
regressar ao Recife, um dos nossos soldados, que ficara para trás, veio se
queixar de que fora violentamente agredido pelos empregados do jangadeiro
do Rio Jangada que o seviciaram brutalmente e o feriram. Belchior Álvares teve
ordens de pensar o ferido e o Capitão Pistor de partir com 20 soldados à
procura dos malfeitores. Chegando à casa do balseiro, cercaram-na, detiveram
a este e aos seus três filhos, mas o mulato autor do espancamento conseguiu
escapar. Prosseguindo viagem a cavalo, para o Recife, apesar da violenta
chuva que desabava, atravessou o rio, não sem grande perigo, próximo ao
forte Emília. Que a 9 de agosto. soube, por uns negros de Moiséz Navarro que
havia despachado com cartas para o Engenho Surchaque, que lhe haviam
armado uma emboscada, perto de Candelária, sem que, entretanto, o inimigo
tivesse ousado atacá-lo. Seus negros foram feitos prisioneiros, mas
conseguiram escapar e vir ter conosco.

285
O tradutor inglês escreveu 38 voluntários (cf. p. 125, 2a coluna, 1° § da ed. holandesa e p.
89, 2a coluna 3° § da ed. inglesa).
286
Foi Belchior Álvares quem emprestou a Maurício de Nassau o boi que serviu para as festas
da inauguração da primeira ponte no Recife. Um dos divertimentos foi o do boi voador. Calado
(XVII, 131). Em Barlaeus, (VIII, mapa de Pernambuco, entre as p. 16-17), registra-se um curral
de Belchior Álvares e (no mapa de Cirii, entre as p. 8-9) mais dois currais. Em Vingboons
(XCVII, mapa 86),na fronteira de Pernambuco com Sergipe, à margem do Rio São Francisco,
registra-se a propriedade de Belchior Álvares. Segundo o Relatório sobre Alagoas: "Belchior
Álvares disputou com Gonsalves da Rocha as terras ao sul do rio São Miguel, nas Alagoas, e a
questão compôs-se do seguinte modo: Belchior possuiria uma légua em quadro, sendo a
primeira barra para cima e Gonsalves Rocha quatro légua são longo do rio até a igreja de São
Miguel". (XCV, p. 161).
Página 202 de 349

Por carta datada de 13 de agosto, endereçada ao Conselho, Hoogstraeten o


informou de que com os voluntários vindos de Santo Antônio a guarnição do
Cabo Santo Agostinho contava, então, com cerca de 280 homens, sendo 217
soldados e artilheiros e 63 voluntários. Dizia, também, que tão logo a nossa
guarnição deixara Santo Antônio, Henrique Dias e Camarão se instalaram com
suas tropas, no engenho Algodoais287, junto à praça, onde esperavam a
chegada das forças de Martim Soares e André Vidal, provenientes da Baía.
Hoogstraeten esperava ser, a qualquer momento, assediado pelo inimigo, e
nada temia tanto como a falta de água potável, de vez que o abastecimento já
havia sido interrompido. Ante essa informação, o Conselho deu ordens para
que se remetessem imediatamente 30 barris de água, munições, provisões e o
mais que fosse necessário para uma vigorosa defesa da praça, já então
suficientemente guarnecida. No dia seguinte, o Conselho recebeu notícias de
Hoogstraeten, por intermédio dos Senhores Ley e Hek, dizendo que o
adversário havia ocupado o engenho Salgado e Surchaque e outros pontos
circunjacentes. O Conselho confiava na bravura e fidelidade dos oficiais da
guarnição do forte, que, por sua vez, prometeram levar a efeito heróica defesa.
Eram todos militares que se haviam distinguido por seus serviços e estavam à
espera de promoção: comandante Hoogstraeten, Kaspar van der Ley, antigo
capitão de cavalaria, Johan Hek e Albert Gerritsz Wedda, antigo capitão
pertencente à Companhia. Entretanto a infidelidade e a cupidez desses
indivíduos contrabalançavam em muito os seus méritos, pois, Hoogstraeten,
comandante em Chefe, com a conivência de Kaspar van der Ley e Albert
Gerritsz Wedda, vil e traiçoeiramente negociara a capitulação do dito forte com
os portugueses, a 13 de agosto, pela importância de 6.000 cruzados ou 18.000
florins além de outras compensações que lhe foram prometidas pelo inimigo.
Esses oficiais bandearam-se ao adversário com toda a guarnição, sendo
Hoogstraeten nomeado Coronel de um Regimento Holandês, integrado pelos
seus soldados e mais homens de diversas nacionalidades desertados de
nossas fileiras. E assim foi a fortaleza entregue aos portugueses, justamente
por um dos que mais devia sua fortuna à Companhia288.

287
Nieuhof escreve Algodais (p. 126, 1a coluna). Algodais, como registra o Breve Discurso
(XXXII, p. 147), estava situado na freguesia do Cabo de Santo Agostinho (Barlaeus, VIII, mapa
de Pernambuco, entre as p. 24-25), e pertencia a Miguel Pais. Tendo sido confiscado, mas não
vendido, porque nele permanecera o exército por ocasião do cerco do Cabo, sofreu grandes
estragos (XV, p. 147).
288
Desde 15 de agosto sitiava Martim Soares o forte do Cabo e a 23 chegava com reforço
André Vidal, logo depois da capitulação de Serinhaém. A 26 de agosto, André Vidal enviava
Paulo da Cunha a exigir que Hoogstraeten cumprisse a promessa de entrega. A 1° de
setembro André Vidal enviava novamente Paulo da Cunha e o Auditor Francisco Bravo da
Silveira a dizer ao governador da Fortaleza que a entregasse, sob pena de não lhe dar quartel.
(Calado, XVII, p. 241). Aos 3 de setembro, entregava Hoogstraeten a fortaleza (cf. Calado,
XVII, p. 242, e Rio Branco, LXXV, p. 490-91).
O tradutor inglês (p. 90, 2a coluna 1° §) escreveu 23 de agosto e Nieuhof 13 de agosto (p. 126,
2a coluna). Trata-se de infidelidade do tradutor e erro de Nieuhof.
Esse erro de Nieuhof é bem grave, pois a tomada só se deu a 3 de setembro. É curioso que,
na carta de Martim Soares, dirigida a Antônio Teles da Silva, na qual aquele relata a tomada do
Forte, Nieuhof enha traduzido 13 de corrente mês (p. 126, 2a coluna, últ. §), quando Martim
Soares escreveu, domingo, 3 do presente (a carta traz a data de 6 de setembro), Deus nos fez
Tneroê de nos meter de posse desta força do Pontal.
Desde 15 de agosto de 1645, começara o sítio da Fortaleza (Rio Branco, LXXV, p. 491).
Mattheus van den Broeck, que a 17 de agosto assinava sua rendição (XVI, p. 12), foi quem
Página 203 de 349

A tomada e conquista do Cabo de Santo Agostinho foi relatada, por Martim


Soares Moreno, em carta datada de setembro ao Governador Antônio Teles da
Silva, nos seguintes termos289:

No domingo, 13 deste mês corrente, Deus Todo Poderoso concedeu-nos a


posse do Forte do Cabo Pontal, que havia sido cercado por André Vidal de
Negreiros. No dia seguinte alegrou-nos o recebimento do dinheiro que V. Excia.
nos enviou, e o vinho, com que fui particularmente presenteado, serviu para
celebrar a nossa alegria, em companhia dos amigos. Fizemos um excelente
negócio, pois, além da importância da posição, conseguimos para nós os
melhores soldados do inimigo. O exemplo servirá também para indicar aos
demais qual o caminho a seguir. João Fernandes Vieira conseguiu, no sábado,
levantar a soma de 4.000 ducados para nosso uso, não, porém, sem o
emprego da força. Esse dinheiro veio, entretanto, em muito boa ocasião, pois
tendo efetuado a transação, temos que melhorar a fortificação da praça, cujo
porto não é inferior ao do Recife. Não me alongarei, porém, em pormenores
enfadonhos sobre esse ponto. Logo depois da capitulação do forte, surgiu uma
embarcação enviada do Recife em seu auxílio. Contra ela despachamos o

melhor relatou a conferência havida entre os vários oficiais sobre dever-se ou não entregar o
forte. Dentre estes, três não aceitaram a capitulação: Isaac Zweers, Johannes Brookhuizen e
Abraham van Milligen, sendo que Klaes Klaesz aceitou a rendição e mais tarde fugiu com 63
soldados.
O Diário ou Breve Discurso (XXIX, p. 134), depois de reconhecer a importância do Pontal, pois
se os portugueses houverem o Pontal, terão um porto livre, e poderão carregar comodamente
de açúcar os seus navios, declara que a, 11 de setembro recebeu-se a notícia de que a 5 do
mesmo mês, Hoogstraeten entregara o forte.
Moreau (LIX, p. 82) calcula em 1800 libras e mais o cargo de coronel para Hoogstraeten e 30
libras para os 650 soldados do forte; Handelmann (XL, p. 235) calcula em 9.000 cruzados para
os quais Vieira contribuiu com 7.000. Segundo Rafael de Jesus (XLIV, p. 349), eram 275 os
rendidos; Varnhagen (LXXII, p. 31, vol. 3°) diz que a entrega do forte ocorreu a 3 de setembro e
conta que foi imposta aos moradores a soma de 4.000 cruzados, à qual se juntou outra igual
mandada da Baía pelo governador geral. Calado (XVII, p. 240 e 251) confirma o que escreveu
Varnhagen, dizendo que João Fernandes Vieira impôs uma furta para a sustentação da guerra,
contribuindo cada um com determinada quantia; declara que eram 275 soldados, aos quais se
deu quatro mil réis por primeira paga. Os nove mil cruzados estabelecidos no acordo com o fito
de pagar os soldos devidos aos soldados pela Companhia não parece que tenham sido
recebidos por estes e sim por Hoogstraeten. Permitiu-se, também, que os que quisessem
tomar armas a favor dos restauradores assentassem praça.
Rio Branco calcula (LXXV, p. 242) em 275 oficiais, declarando certamente que recebera
Hoogstraeten o título de mestre de campo e não de Coronel, como escreveram Nieuhof e
Moreau, pois o cargo de Coronel só foi criado pela re-forma de 15 de novembro de 1707,
quando desapareceram os lugares de mestre de campo e sargento maior.
Nieuhof equivocou-se outra vez ao falar em Regimento Holandês, pois se trata de um terço de
estrangeiros, não só de holandeses, cuja chefia foi dada ao mestre de campo Hoogstraeten.
289
A cópia do original português encontra-se na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern., 1887, n.
35, p. 45-47.
O tradutor inglês escreveu (cf. p. 90, 2a coluna da ed. ing. e p. 126, 2a coluna da ed.
holandesa) "por carta datada de 26 de agosto de 1645", onde estava "13 do corrente mês";
ainda assim continua errado, pois conferindo-se com o referido original, acima citado, verifica-
se que a data é "3 do corrente mês" (setembro, pois a carta está datada de 6 de setembro).
Nieuhof escreveu Damiano de Lankois (p. 127, 1ª coluna, 5° §); na referida cópia da Rev. do
Inst. Arqueol. e Geog. Pern., está conforme esta tradução.
Sobre o nome Capivara tudo faz crer tratar-se de índio (cf. Varnhagen, LXXII, p. 33, tomo III).
Sobre os 4.000 ducados levantados por João Fernandes Vieira, cf. nota 288.
O tradutor não foi fiel ao escrever o navio Bispo (cf. p. 127, 1a coluna, 7° §, da ed. holandesa e
p. 91, 1a coluna 4° § da ed. inglesa).
Página 204 de 349

Capitão Barreiros numa embarcação bem armada, com 35 homens, boa


provisão de pólvora e de balas. Esse expediente nos foi bastante útil. Tomo a
liberdade de sugerir a V. Excia., que, caso despache um mensageiro com esta
notícia a Sua Majestade, talvez a missão possa ser confiada ao Capitão
Damiano de Lançóis, pois é provável que, além de um bom presente, o Rei o
recompense com algum cargo honorífico.Recebi notícias, ontem à noite, de
que a frota comandada por Jerônimo de Paiva tinha franqueado a Baía de
Tamandaré. Receio seja ela atacada pelos navios para isso despachados do
Recife, pois diversas vezes pedimos-lhe que entrasse em nosso porto.
Capivara partiu de lá para a Baía, por terra; talvez tivesse informado Jerônimo
de Paiva de que já somos senhores do Pontal. Se ele achar conveniente trazer
sua esquadra para cá, estará seguro; caso contrário fica à sua vontade. Corre
por aqui que o navio do Bispo está perdido. Talvez tenha sido destacado para
escoltar Salvador Correia durante parte do percurso. Não posso deixar de frisar
a V. Excia. o quanto ficamos a dever ao Major Diederik Hoogstraeten e aos
demais oficiais do forte. Ao primeiro prometemos uma comenda de oficial da
ordem de Cristo. Peço portanto a V. Excia que, em nome de Sua Majestade,
cumpra, o mais logo possível, a promessa que lhe fiz, pois se trata de pessoa
que está pronta a nos prestar qualquer outro serviço de que tenhamos
necessidade. Por enquanto, fizemos-lhe alguns presentes de menor
importância, dos quais, a seguir, informaremos. O capitão de Cavalaria Kaspar
van der Ley também tem para nós grande merecimento, da mesma forma que
todos os outros casados com portuguesas. Ao que corre por aqui, este último é
pessoa de destaque em sua terra. Também a ele prometemos uma comenda
de oficial de Cristo e uma pensão anual para um de seus filhos. Esperamos
que V. Excia. não se recuse a fazer boa nossa promessa, pois seus filhos são
nascidos de mulher portuguesa. O mais velho chama-se João e o mais novo
Gaspar van der Ley. Os demais se acham presentemente em suas casas;
quando se apresentarem, porém, teremos igualmente que lhes prometer
alguma cousa, do que depois informaremos V. Excia.. Todos eles merecem a
nossa consideração por se terem casado com mulheres portuguesas. Espero
que V. Excia. esteja satisfeito com este trabalho, pois João Fernandes Vieira
conseguiu coletar, em uma hora, mais dinheiro do que nos custou a conquista
do Pontal. Está atualmente na Várzea, entre os selvagens, e nós no forte do
Cabo até que tudo esteja pronto. Capivara seguiu por terra, há cerca de três
dias e, possivelmente, terá chegado à presença de V. Excia. antes da
embarcação que conduz esta carta. Espero que chegue bem e faço votos de
uma longa vida a V. Excia., para defesa deste Estado.

Do Morro de Nazaré, a 6 de setembro de 1645.

(Assinado) Martim Soares Moreno.

Enquanto isso, Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros haviam


despachado 7 ou 8 cartas do Cabo Santo Agostinho, datadas de 13,290 30 e 31
de agosto, 2 e 6 de setembro, nas quais informavam o Almirante Paiva estar de

290
O tradutor inglês escreveu 23 de agosto (cf. p. 128, 1a coluna, 1° § da ed. holandesa, e p.
91, 2a coluna, 2° § da tradução inglesa).
Página 205 de 349

posse do forte e pediam-lhe insistentemente que fosse para aquele porto com
sua frota. A primeira das 2 cartas de setembro estava assim redigida:

CARTA DOS COMANDANTES PORTUGUESES AO ALMIRANTE PAIVA

Senhor.

Estamos agora de posse do porto de Nazaré, e, como diz o ditado,


sem lançar uma só âncora, motivo pelo qual vimos convidá-lo a
trazer para cá sua frota. Aqui poderá V. S. querenar seus navios e
abastecê-los de provisões frescas, homens, munições e tudo mais
que necessitarem até quando, por consenso mútuo, combinarmos o
que mais deveremos fazer, no serviço de Deus e de Sua Majestade.
Até agora, o inimigo só tem um navio poderoso no mar. Os outros
são destituídos de importância, nem pretendem, no momento,
entrar em contado com os navios de V. S., tentarão apenas cortar
as suas comunicações com a costa. Se V. S. tem já dado tão
abundantes provas de coragem que essa retirada em nada
deslustrará a fama de suas vitórias. Por outro lado V. S. tem a
considerar que é responsável pelas milhares de vidas que se
acham em sua esquadra. Por isso pedimos-lhe, mais uma vez, que
venha para este porto com sua esquadra e os oficiais sob o seu
comando, onde terão carinhosa e confortável recepção.
Reconhecendo, porém, que seria erro grosseiro insistir sobre
matéria tão evidente, com tão grande comandante como é V. S.,
ficamos a espera de sua vinda. Pretendemos receber, na casa de
Nazaré, o Santíssimo Sacramento, cujo nome demos ao forte. Entre
outras cousas aí encontradas achamos um livro de missa que nos
tem prestado bons serviços.

Deus guarde V. S.

Pontal, 6 de setembro de 1645.

Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros.

O teor da segunda carta ao mesmo Almirante era o seguinte:

Sendo já do conhecimento de V. S. que estamos de posse do Forte


Nazaré,291 esperamos que aproveite a primeira oportunidade que se

291
O tradutor inglês escreveu Pontal (Cabo) (cf. p. 128, 2a coluna da ed. holandesa e p. 92, 1a
coluna da ed. inglesa). A cópia do original português encontra-se na Rev. do Inst. Arqueol. e
Geog. Pern., 1887, n. 34, p. 80-81. Aí está, também, Forte Nazaré.
Página 206 de 349

lhe depare para vir ter conosco. Soubemos por uma carta escrita no
Recife, apanhada na embarcação que vinha em socorro da praça e
por nós aprisionada, que o inimigo tem duas flotilhas e um navio
artilhado com que pretende expulsar a esquadra de V. S. desta
costa. Julgamos, por isso, dever nosso dar-lhe conhecimento
imediato a fim de que, com sua costumeira prudência, V. S. possa
tomar as providências que entender. Os holandeses, com seus
métodos traiçoeiros, obrigaram-nos a recorrer à força; desejamos,
portanto, que V. S. lhes pague na mesma moeda, com ferro e fogo,
como eles nos fazem a nós. Se V. S. deseja vir para cá, é
necessário que o faça logo, pois toda demora é perigosa em
tempos como estes. Fizemos uma cópia fiel desta carta em nosso
diário, para que mais tarde nos sirva de documento. Deus guarde V.
S.

Pontal do Santíssimo Sacramento, 6 de Setembro de 1645.

Martim Soares Moreno e

André Vidal de Negreiros.

Em carta escrita do Cabo por Gaspar da Costa Abreu292 ao seu amigo


Domingos da Costa, residente na Baía, encontramos um relato da capitulação
do Cabo Santo Agostinho e de outras transações entre holandeses e
portugueses. A referida carta está assim concebida:

Espero que esta o encontre com saúde como o deseja este seu fiel
amigo. Acho-me em situação regular em Pontal de Nazaré que,
depois de um cerco de 20 dias, capitulou com relativa facilidade,
porquanto os que o comandavam eram casados com mulheres
portuguesas e tinham propriedades nas circunvizinhanças.

O Capitão da praça foi o primeiro a opinar pela capitulação.


Conseguiram obter as condições que pretendiam, além de uma
gratificação de 4.000 ducados. Encontramos no forte 300 dos
melhores soldados holandeses e doze canhões de bronze - dos
quais quatro de quatrocentas e vinte libras - e provisões por três
meses, de maneira que, se não tivéssemos feito acordo, a empresa
ter-nos-ia custado grande número de homens.

Na mesma revista existe, também, cópia de uma carta escrita de Pontal, datada de 6 de
setembro de 1645 e assinada por Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros; o
conteúdo da carta anterior dada por Nieuhof está muito truncado (cf. p. 81-82, da citada
Revista).
292
A carta de Gaspar da Costa Abreu para Domingos da Costa encontra-se na Rev. do Inst.
Arqueol. e Geog. Pern., 1887, n. 34, p. 95-97. Nessa cópia do original português escreve-se
2.500 ducados e não 1.500 ducados, como está na edição de Nieuhof (cf. p. 129, 2a coluna, 2°
§): duizent vijf hondert dukaten.
Página 207 de 349

Entretanto, capturamos a praça com a perda de um único homem,


morto por um tiro acidental de canhão. Apreendemos, também, uma
embarcação que estava atirando de Pontal antes da capitulação, na
qual se achavam várias centenas de homens que se dirigiam para o
Recife.

O comandante da embarcação bem como outro senhor de


Serinhaém (ambos magistrados nas suas respectivas localidades)
entregamo-los aos moradores do lugar que logo os mataram, a
despeito de ser um deles casado com mulher portuguesa, pois,
havendo eles dito que ainda tinham esperanças de lavar as mãos
em sangue português, as mulheres se exasperaram a tal ponto que
eles foram logo executados.

Quase todos os prisioneiros estão detidos em Santo Antônio, para


de lá serem remetidos para a Baía. Entretanto, muitos dentre eles
estão trabalhando para nós. Calculamos que o número de
holandeses mortos e aprisionados deve orçar por cerca de 1.300.

Não vimos a flotilha comandada por Salvador Correia de Sá.


Receamos que algo lhe tenha sucedido. Alguns dos nossos navios
estiveram cruzando, pelas proximidades, mas nos últimos três ou
quatro dias nenhum deles apareceu na costa. Os holandeses têm
uma armada de 12 navios; é bem bom que não se aventurem a um
encontro conosco.

O Recife, com todas as suas fortalezas, está cercado; Lourenço


Carneiro está em Porto Calvo. Os judeus dizem que vieram ordens
no sentido de retirar todas as forças holandesas do Rio Grande,
Paraíba e São Francisco, a fim de transportá-las para o Recife. Não
há grande harmonia entre judeus e holandeses; assim dizem os
judeus que os holandeses querem vender o pais. Quatro de seus
principais oficiais que são nossos prisioneiros, dentre os quais o
artilheiro-mor, têm ordem de serem enviados para a Baía. No
mesmo dia em que tios assenhoreamos de Pontal veio uma
embarcação do Recife, com ordem de resistir ao extremo.
Capturamos a embarcação com apreciável quantidade de munições
e provisões, tudo no valor aproximado de 1500 ducados.

5 de setembro de 1645.

Gaspar da Costa Abreu

Por esta e pelas cartas seguintes, vê-se que de há muito havia o Major
Hoogstraeten lançado as bases de seu plano traiçoeiro para a entrega do Cabo
Santo Agostinho aos portugueses, ou seja, desde que em companhia do
Senhor Balthazar van der Voorde foi enviado à Baía, em missão junto ao
Governador Antônio Teles da Silva. Assim foi que um certo sargento também
Página 208 de 349

vendeu ao inimigo um reduto próximo à cidade de Olinda, por 300 florins. 293Ao
início do cerco do Cabo Santo Agostinho, André Vidal de Negreiros mandou
duas cartas ao Major Hoogstraeten, Ley e Hek, por intermédio de João Gomes
de Melo, em data de 13 de Janeiro,294 na primeira das quais Negreiros
reclamava contra os maus tratos e 09 assassínios perpetrados contra os
portugueses pelos batavos. Na segunda pedia a eles que, de conformidade
com as promessas feitas por Hoogstraeten na Baía, para o Rei de Portugal,
entregassem o forte.

AS DUAS CARTAS DE VIDAL A HOOGSTRAETEN 295

A primeira estava assim concebida:

Cheguei esta manhã à Vila de Santo Antônio do Cabo, com


esperança de ter notícias suas e do Capitão van der Ley, a quem,
beijo a mão muitas vezes. Comunico-lhe pela presente que fomos
para aqui enviados por ordem do Governador Antônio Teles da
Silva, sem outra intenção que a de abafar o movimento
recentemente estalado nesta região, de acordo com a solicitação do
Conselho, do que V. S. é testemunha.

Logo que chegamos a Tamandaré recebemos muitas notícias


inteiramente contrárias ao que esperávamos aqui encontrar, isto é,
que no Rio Grande ) 37 moradores foram massacrados, muitas
donzelas conspurcadas e a imagem da Virgem Maria
sacrilegamente desrespeitada. Ações tão abomináveis dificilmente
se poderia imaginar que uma nação tão heróica fosse delas capaz.

Enquanto lhe escrevo esta carta, chegam-me notícias de que os


holandeses mataram diversos habitantes de Goiana; entretanto,
não me sinto inclinado a dar crédito a tais informações, pois, caso
fossem exatas, não poderíamos deixar de prestar assistência a
essa pobre gente, ainda que pertencesse a mais desprezível das
nações, tanto mais que pediram o nosso auxílio, e, além de
cristãos, são súditos do Rei de Portugal, que Deus o guarde.

Enquanto o Conselho aguardava os resultados da acomodação


projetada, os holandeses surpreenderam e mataram, diversas

293
Sobre esse reduto, cf. Calado, (XVII) p. 246, 1a coluna e 2a coluna, 1° §. Nessa luta, João
Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros foram acompanhados por Diederik Hoogstraeten
e sua companhia de estrangeiros- Estava esse reduto localizado junto à vila de Olinda, a um
tiro de mosquete, no meio deu ma restinga de areia, que divide a costa do mar das águas do
Rio Beberibe, no caminho por onde se serve a gente que vai da vila para o Recife. Está a uma
légua do Recife e se chama Forte de Santa Cruz; chamava-se, em outro tempo,a guarita de
João de Albuquerque.
Foi Diederik Hoogstraeten quem se dirigiu ao Sargento que se rendeu com 60 soldados. Cf.,
também, Rafael de Jesus (XLIV, p. 345) e nota n. 51.
294
O tradutor inglês escreveu 13 de agosto (cf. p. 93, 1a coluna, 2° § da ed. inglesa e p. 129,
2a coluna, últ. § da ed. holandesa).
295
A cópia do original português encontra-se na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern., 1887, n°
35, p. 43-44.
Página 209 de 349

pessoas, fato esse que nos obriga a pedir-lhe em nome de Deus, de


Sua Majestade, Sua Alteza e dos Estados Gerais, que não dê
motivo para ruptura e que, ao contrário, faça tudo que estiver ao
seu alcance para manter a paz celebrada, que de nossa parte
lançaremos mão de todos os meios, com o comandante em chefe
desta praça. Assim contribuiremos para a tranqüilidade de ambas
as partes. Os portadores da presente são o Capitão João Gomes de
Melo e o Tenente Francisco Gomes, os quais desejamos que sejam
autorizados a voltar o mais rapidamente possível.

Deus o guarde por muitos anos.

13 de agosto de 1645.

André Vidal

Era o seguinte o teor da segunda carta:296

A promessa que V. S. nos fez na Bahia e o que depois disso


comunicou o Capitão Ley ao Governador João Fernandes Vieira e
ao Capitão João Gomes de Melo, leva-nos a assegurar a nossa
orientação anterior na certeza de que tanto V. S. como o Capitão
Ley manterão o compromisso com que Vs. Ss. se dignaram a nos
obrigar e pôr ao serviço de Vs. Ss.

Para cá viemos à frente de 3.000 homens escolhidos e apoiados


por duas flotilhas de navios de guerra bem equipados, uma das
quais ainda não apareceu na costa. A outra V. S. viu passar há
poucos dias.

Espero que assim possamos libertar o pobre povo, e, sabendo que


tanto os moradores, como nós, nada mais desejamos que vê-lo ao
nosso lado, para que tenhamos oportunidade -de dar provas de
nossa afeição, queremos que V. S. abandone qualquer suspeita
que possa ter contra nós. Estamos prontos a cumprir à risca (para o
que deixamos aqui empenhada a nossa palavra) tudo quanto lhe
prometeram João Fernandes Vieira e João Gomes de Melo. Da
minha parte prometo-lhe de que não deixarei de cumprir e
concordar com o que quer que V. S. peça a mais, nesta ocasião.

Os habitantes da praça receberão salvo-condutos e serão


protegidos por nós da mesma maneira que o foram o Comandante

296
A cópia do original encontra-se na Rev. do Inst. Arqueol. e Geog. Pern., 1887, n. 35, p. 44-
45. Existe, ainda, uma terceira carta, publicada à p. 45, assinada por Martim Soares Moreno e
André Vidal de Negreiros e dirigida a Hoogstraeten e van der Ley e que Nieuhof não noticia.
Página 210 de 349

escolteto Carpentier de Serinhaém e outros. O mesmo esperamos


de sua parte. E, para que V. S. possa ter certeza sobre a pessoa
com quem trata, enviamos-lhe João Gomes de Melo, que está ao
par de todo o assunto. Se V. S. se recusar, seremos forçados a
tomar as medidas que julgarmos mais convenientes para nós.

Entretanto, Deus guarde V. S. por muitos anos. Seu afeiçoado


amigo e servidor

Santo Antônio do Cabo, 13 de agosto de 1645.

André Vidal de Negreiros.

O Major Hoogstraeten, o Senhor Hek e o Senhor Ley deram resposta imediata


a essa carta, dizendo em resumo que a eles não interessavam as violências
cometidas pelos Tapuias contra os portugueses, e, ao que parece, recusando-
se a tratar com Melo.

É o seguinte o teor da resposta dos holandeses:

Recebemos a carta que V. S. nos enviou por intermédio de João


Gomes de Melo, pela qual soubemos que V. S. veio ter a Santo
Antônio. Estamos muito satisfeitos por ver que o Governador
Antônio Teles da Silva providenciou o apaziguamento da situação,
nesta região, e não duvidamos que a presença de V. S. aqui muito
contribuirá para a consecução dessa finalidade. Quanto às afrontas
e violências de que fala V. S., como tendo sido cometidas pelos
Tapuias e holandeses, podemos assegurar-lhes que o foram contra
a nossa vontade, pois que por ordem nossa nenhuma criança
jamais sofreu o quer que fosse. Assim sendo a sua reclamação
deve ser dirigida ao Conselho e não a nós. A proposta que V. S.
nos faz por intermédio do Capitão João Gomes de Melo e do
Tenente Francisco Gomes escapa à nossa alçada e poder, de
maneira que lhe pedimos insistentemente não mais nos fazer
semelhante solicitação. Beijamos as mãos de V. S. e o
recomendamos à proteção divina.

Aqui ficam seus servidores e amigos devotados

Kaspar Van der Ley,

D. Van Hoogstraeten,

Johan Hek.
Página 211 de 349

Hoogstraeten revela as cartas.

O major Hoogstraeten teve o cuidado de enviar ao Conselho as duas cartas


acima, juntamente com sua resposta, tendo por essa ocasião renovado seus
protestos de fidelidade; em resposta, o Conselho confirmou Hoogstraeten em
seu posto de governo e exortou Ley e Hek a perseverarem em sua patriótica
resolução, que seria oportunamente recompensada com melhores posições. A
revelação das cartas do inimigo foi tomada como tão eloqüente prova da
sinceridade de Hoogstraeten e tão profunda impressão exerceu sobre o povo,
em geral, que raramente se encontrava alguém que não se sentisse confiante
de sua fidelidade e de seu zelo.

Entretanto, essas tentações não deixaram de levantar alguma suspeita no


espírito do Conselho que achou melhor mandar vir o Tenente-Coronel Haus
para o Recife a fim de mandá-lo para o Cabo Santo Agostinho.

Convicto, pelas cartas de Vidal a Hoogstraeten, Ley e Hek, de que a intenção


de ordenar a retirada das tropas rebeldes nada mais era que mera desculpa, o
Conselho deu ordens imediatas ao Almirante Lichthart que, de futuro, tratasse
como inimigos todos os navios portugueses que encontrasse.

Consulta sobre a concentração das tropas no Recife

Chegado ao Recife a 15 de agosto, o Tenente-Coronel Haus sugeriu ao


Conselho, como medida absolutamente indispensável aos interesses do
Estado, que aí se concentrassem as tropas acampadas no interior, pois, não
excedendo ela de 300 homens além dos brasileiros, seriam facilmente isoladas
pelo inimigo que, com a chegada dos reforços da Baía, sob o comando de
Martim Soares Moreno e André Vidal, se tornara forte e numeroso em lugares
onde não pudessem receber socorros do Recife.

Além disso essas tropas eram necessárias para a defesa da cidade que, sendo
a capital de todo o Brasil Holandês, naturalmente seria atacada com todo o
vigor.

Contra esse parecer alegaram-se muitas razões:

I - Recolhendo as forças, abandonaríamos todo o interior de onde provinham


os abastecimentos de gado e farinha, de que tanto necessitávamos, e teríamos
que esperar pelos fornecimentos provenientes da Holanda. Além disso, se
assim procedêssemos, teríamos que contar como inimigo imediatamente às
portas da cidade.

II - Que, livres do controle de nossas tropas, as populações do interior tinham


liberdade para se reunir ao inimigo, aumentando assim os seus contingentes.

III - Que, assim procedendo, teríamos que deixar à mercê do inimigo os


tapuias, que haviam tomado armas a pedido nosso e se reunido às nossas
tropas perto de Maciape ou Santo Antônio.
Página 212 de 349

Contra esses argumentos alegou-se que:

I - Quanto ao fornecimento de gado e farinha, do interior, estariam em melhores


condições para obtê-los, pois poderiam enviar forças a todas as regiões
circunjacentes, enquanto que na situação em que se achavam eram forçados a
permanecer em determinado lugar. Além disso, tendo o domínio dos mares,
poderíamos a qualquer momento fazer um desembarque onde julgássemos
mais conveniente, o que obrigaria o inimigo, em vez de cercar o Recife, a
distribuir suas forças para defender a região.

Quanto ao aumento das forças inimigas, pela adesão das populações do


interior, o fato poderia ser considerado como de pouca conseqüência para nós,
pois, que, ao contrário, era mais interessante que se nos apresentassem como
inimigas que como amigas dissimuladas Sabia-se perfeitamente que essas
populações simpatizavam com seus compatriotas e que, a despeito de sua
falsa atitude, não perdiam oportunidade de informar o inimigo do que se
passava entre nós. Portanto, se as tivéssemos como inimigas declaradas,
poderíamos facilmente apoderar-nos de seu gado, provisões e outros bens
móveis, que seriam usados no Recife, e, estando assim suprida a cidade, o
inimigo desistiria de tentar reduzi-la pela fome. O que se alegara com relação
aos tapuias, reconhecia-se não ser de pouca importância; entretanto,
considerando que ainda não havíamos recebido notícias de seu movimento,
não se achava que fosse de importância assim tão grande a ponto de ser posto
em paralelo com o bem-estar de todo o Brasil holandês, cuja segurança
dependia em muito dessas tropas. Depois de detido exame do assunto, o
Conselho resolveu, a 15 de agosto, com aprovação dos membros do Tribunal
de Justiça que, tendo em vista o perigo a que estavam expostas as nossas
tropas e que a conservação da cidade do Recife dependia de sua segurança,
deviam elas para lá convergir a toda pressa. Apenas 50 homens ficariam na
casa de De Wit, sob as ordens do Capitão Wiltschut, para controlar parte da
região adjacente e proteger a retirada das forças que enviássemos à procura
de gado, farinha e outras provisões.

O Coronel Haus capitula incondicionalmente

Consoante esta resolução, o Tenente-Coronel Haus para lá se dirigiu a cavalo,


no mesmo dia, com a idéia de executar a ordem naquela noite, se possível, ou,
o mais tardar, na manhã seguinte. Entretanto, ao que parece, Haus descuidou-
se ao ponto de retardar a marcha da tropa não só aquela noite, mas, ainda,
todo o dia seguinte, e, ao invés de retirar-se em direção ao Recife, demorou-se
no engenho, sem a menor informação sobre a aproximação do inimigo; de
maneira que, a 17 de agosto, surpreendido pelas forças de André Vidal, muito
mais numerosas, teve sua tropa destroçada antes que pudesse lançar mãos às
armas.

Avisado de que o Tenente-Coronel Haus havia sido atacado pelo inimigo no


engenho do Senhor De Wit, o Conselho convocou a milícia da cidade, e o
Senhor Bullestrate juntamente com o Senhor Bas dirigiram-se para a Casa Boa
Vista onde deveriam aguardar ordens. Doze mosqueteiros foram aí postados
Página 213 de 349

para proteger a ponte sobre o rio. Hendrik Hamel e os Conselheiros de Justiça


encarregaram-se da cidade do Recife.

Tão logo fora o Conselho informado da derrota de Haus e sua retirada para a
casa de De Wit, pertencente ao engenho, foi consultado sobre se poderiam de
alguma forma libertar o Coronel. Apesar da fraqueza da guarnição e da
temeridade da empresa, foi resolvido que se tentasse socorrer Haus com uma
força de 150 soldados e 100 voluntários. Entretanto, antes que o plano fosse
posto em prática, um brasileiro, que assistiu o embate e conseguiu chegar ao
Recife depois de trocar suas roupas com as de um português, trouxe-nos a
inditosa notícia de que o Coronel Haus, com as forças sob seu comando, havia
capitulado incondicionalmente e entregue a casa do engenho, mediante
promessa de clemência.Esse desastre foi atribuído principalmente à incúria do
Tenente-Coronel Haus que só colocou seus homens em ordem de combate
quando já era demasiado tarde, suposição essa depois confirmada em
depoimento feito perante o Grande Conselho, a 6 de julho de 1646, pelo
próprio capitão-tenente da Companhia do Coronel Haus, Willem Jacobsz.

Novo relato da derrota de Haus, pelo Capitão Jacobsz

Somente na noite anterior à derrota, foi que Haus recebeu notícias, por um
negro prisioneiro, de que o inimigo partira de Muribeca com numerosa tropa.
Na manhã seguinte, uma das nossas sentinelas informou o Coronel que o
inimigo estava atravessando o rio. Mais tarde um pouco o peão do Coronel,
que fora dar de beber a seu cavalo na mesma aguada, voltou a todo galope,
trazendo idêntica informação.

Logo depois, ouvimos os primeiros disparos contra a nossa vanguarda que


imediatamente se retirou em direção ao grosso da tropa. O Coronel não
chamou seus homens às armas, nem deu alarme antes que o inimigo tivesse
surgido à nossa vista e carregado contra a nossa linha externa. Estalaram-se
algumas escaramuças enquanto Camarão com sua tropa tentava cortar nossa
retirada para o Recife, o que não conseguimos impedir, dada a inferioridade
numérica de nossas tropas. Haus consultou o Capitão Wiltschut, Blaer e o
Comandante Listry sobre o que seria melhor fazer. O capitão Wiltschut, porém,
respondeu que fizesse o que melhor lhe parecesse, já que nunca lhe havia
solicitado parecer anteriormente. Foi então que Haus ordenou a retirada para a
casa do Senhor De Wit e incumbiu o Capitão Blaer, que não esperava
clemência, de abrir caminho para o Recife. A casa foi defendida com bravura
durante quatro horas. Finalmente, por falta de pólvora e balas - pois que a
única meia barrica de pólvora que possuíam estourou acidentalmente - os
nossos entregaram-se a André Vidal, sob a condição única de serem poupadas
suas vidas e as dos brasileiros que se achavam entre eles. Assinado o acordo
por Vidal e dois ou três dos principais chefes portugueses, foi o documento
entregue ao Coronel Haus. A pesar disso, porém, os brasileiros foram
massacrados pelo povo, com o consentimento dos portugueses, tão logo os
holandeses abandonaram a posição que ocupavam. As mulheres brasileiras
vendo seus maridos assassinados atiraram seus filhos de cabeça contra a
parede, para que não caíssem vivos nas mãos dos portugueses.
Página 214 de 349

Todos os batavos, em número de 250, entre os quais estava o próprio Tenente-


Coronel Haus, o Capitão Willem Blaer e Johan Listry foram feitos prisioneiros
de guerra e ficaram durante quatro ou cinco dias, no engenho de Hacq, quando
João Fernandes Vieira e muitos dos moradores do lugar pediram a André Vidal
que entregassem os prisioneiros, para os matar. Vidal, porém, a isso se
recusou e remeteu-os imediatamente para a Baía, por terra.

Os prisioneiros foram tratados mais ou menos bem durante a caminhada, mas,


os que por moléstia ou acidente eram abandonados para trás, foram
massacrados, e igual sorte teriam os demais se não fosse a proteção da
escolta. Chegados à Baía, relacionaram-nos e designaram-lhes os lugares
onde deveriam permanecer, concedendo-lhes também 311/2 soldos por
semana e um alqueire de farinha cada dez dias.

Com exceção do Tenente-Coronel Haus, Capitão Wiltschut e Comandante


Listry que ficaram detidos em suas residências e não podiam falar a ninguém
senão mediante permissão especial, os demais tinham licença de passear pela
cidade. O coronel Haus foi finalmente enviado para Portugal, e, em junho de
1647, Wiltschut e Listry foram postos a bordo de um navio com mais 230
prisioneiros holandeses. Cerca de 60 ou 70297 dos nossos homens
conseguiram serviço, mas os holandeses natos eram recusados pelos
portugueses.

O inimigo sentiu-se grandemente encorajado por esses sucessos e teve suas


forças aumentadas diariamente pelos portugueses residentes nas capitanias de
Paraíba e Goiana, (até então presos pelo novo juramento de fidelidade ao
Governo) que passaram a tomar armas contra nós. Por isso julgou-se
conveniente retirar desses lugares nossas guarnições.

O que sucedeu à guarnição do Cabo Santo Agostinho

Voltemos, porém, ao Cabo Santo Agostinho. Depois da capitulação da


guarnição, foi ela conduzida para Santo Antônio, onde teve que entregar seu
armamento. Entre os nossos, feitos prisioneiros, achavam-se Isaac Zweers,298
que mais tarde foi feito vice-almirante da Holanda e da Frísia Ocidental como
homenagem a sua combatividade e honra, Abranham Van Millingem e
Johannes Broekhuizen, sendo que estes dois últimos ainda vivem na Holanda.

O Major Hoogstraeten dirigiu-se a eles na esperança de fazê-los aderir aos


portugueses, acenando-lhes com os postos de Capitão, Tenente e alferes,
afirmando-lhes ainda que dispunha então de prestígio para promovê-los a
postos muitos mais elevados. Quando, porém, viu que recusavam sua oferta,
297
O tradutor inglês escreveu somente 60 (cf. p. 96, 2a coluna, 2° § da ed. inglesa e p. 135, 1ª
coluna 2° § da ed. holandesa).
298
O tradutor inglês não foi fiel, pois omitiu "Frísia Ocidental, como homenagem à sua
combatividade e honra". Cf. p. 135, la coluna, 6° § da ed. Holandesa e p. 96, 2a coluna, 4° § da
ed. inglesa).
Sobre as atribulações por que passou Isaac Zweers, vide XVI, p. 26-29. Foi libertado a 31 de
dezembro de 1645. Isaac Zweers deixou escritos documentos importantes para o
esclarecimento dos últimos anos de revolta, muito especialmente a rendição da fortaleza do
Cabo de Santo Agostinho. (Cf. VIII, p. 2 dos Aditamentos de S. P. L'Honoré Naber).
Página 215 de 349

jurou-lhes que haveriam de se arrepender. Na mesma ocasião promoveu ao


posto de capitão três holandeses, a saber: Winsel Smith, que tinha sido seu
tenente, Alexander Boucholt e Klaes Klaesz, naturais de Amsterdã. O último
destes, sendo íntimo amigo de Zweers e Broekhuizen, afirmou-lhe mediante
juramento que se tinha posto a serviço entre os portugueses com o propósito
de conseguir uma oportunidade de voltar a nós. Esses prisioneiros tinham
liberdade de ir para onde quisessem, mas sempre acompanhados de um
guarda que observava todas as suas ações. Não muito tempo depois, o
Provedor-Mor, português, mandou buscar Johannes Broekhuizen, e, depois
dos primeiros cumprimentos, disse-lhe que se quisesse servir o Rei de Portugal
na qualidade de Comissário Geral, iria com ele para a campanha, receberia
100 florins por mês e seria seu comensal. Se, por outro lado, recusasse sua
oferta e ficasse na retaguarda, correria perigo de ser assassinado pela
população. Broekhuizen respondeu, entretanto, que, estando ligado à
Companhia por juramento, jamais o quebraria, ainda que sua vida corresse
perigo. Então, - disse-lhe o Provedor - o Senhor prefere servir uma canalha de
mercadores, a servir um Rei? Estamos a ponto de levar a cabo um plano
infalível; verá, então, o senhor que a causa do Rei é mais justa e será bem
sucedida. A seguir ofereceu-lhe um copo de conhaque, e, depois do Senhor
Broekhuizen ter tomado um bom trago, retirou-se para junto de seus
camaradas aos quais relatou o que se havia passado durante a entrevista.

Um corneteiro holandês revela ao Conselho os planos do inimigo com


relação à Ilha de Itamaracá

Entrementes, foram estes informados por alguns portugueses de que o plano


se relacionava com a Ilha de Itamaracá, e, certos de que o Conselho não
antevia tal perigo, estavam lançando mão de todos os meios possíveis a fim de
transmitir-lhe a informação; não tinham, porém, até então, encontrado pessoa
que pudesse se encarregar dessa missão. Finalmente Isaac Zweers,
prometendo larga recompensa, conseguiu persuadir um corneteiro holandês,
de nome Marten Stomp, de levar a informação ao Conselho e pedir a libertação
dos prisioneiros holandeses que ainda existissem em Santo Antônio. Tudo
combinado, o corneteiro despediu-se do Senhor Zweers e partiu por volta da
meia-noite para sua viagem ao Recife, deixando mulher e filhos. Os senhores
Zweers e Broekhuizen pareciam bastante satisfeitos; contudo, em seu íntimo,
preocupava-os bastante o resultado da empresa.Procuravam freqüentemente a
mulher do corneteiro a fim de lhe impor silêncio, tendo-lhe recomendado que se
alguém perguntasse pelo marido respondesse que fora para a Várzea, reunir-
se ao acampamento.

Um padeiro despachado com idêntica missão ao Recife por Broekhuizen

Decorridos alguns dias299, foi ter com eles um certo Pieter Ritsaart, que estivera
no Cabo de Santo Agostinho, como padeiro. Broekhuizen decidiu-se a
interrogá-lo de algum modo e descobrindo, imediatamente, onde ele estava
hospedado, interpelou-o com palavras brandas (para entrar ao seu serviço), a
fim de movê-lo a levar o mesmo recado com o qual já havia partido o
299
Esse trecho: "Decorridos alguns dias." até "...na primeira noite escura.", foi traduzido do
holandês. (Cf. p. 136, 1ª coluna da ed. holandesa e p. 97, 1a coluna da ed. inglesa).
Página 216 de 349

corneteiro, porque eles já estavam em dúvida acerca do destino que o mesmo


tinha levado.Finalmente, conseguiu persuadi-lo a empreender a viagem: mas
pediu um documento para mostrar que ele não tinha aceitado serviço do Rei de
Portugal. Assim, ele se aprontou para partir na primeira noite escura.

Zweers e Broekhuizen em perigo

Nessa mesma tarde, porém, os holandeses foram informados de que um


italiano, Jacomo de Perugalho, tramava contra suas vidas, de maneira que
Zweers e Broekhuizen, suspeitando, não sem razão, de que os portugueses
tinham tido conhecimento da partida do corneteiro e do padeiro, acharam
prudente não mais permanecer nesse lugar, e, por isso, pediram licença ao
Coronel Pedro Marinho Falcão para se retirarem para Algodoais, de onde
poderiam seguir com os demais prisioneiros para a Baía. A permissão foi
prontamente concedida.

O padeiro é interceptado

Nesse meio tempo, o padeiro, tendo aproveitado a primeira oportunidade que


se lhe deparou, partiu para a sua viagem, mas encontrou dois portugueses no
engenho Trapicha,300 os quais, tendo-se apoderado do certificado a que acima
nos referimos, levaram-no prisioneiro para Santo Antônio do Cabo.

Lá chegando e submetido a torturas, fez tal barulho que o povo se levantou em


armas gritando que não se acalmaria enquanto não se trouxesse de Algodoais,
Zweers e Broekhuizen e os reduzisse a pedaços. Para isso conseguiu a
população sete soldados de Pedro Marinho e teria posto em prática seu plano
se o Capitão Ley a isso não se tivesse oposto. Pois, por mero acaso aqueles
militares se achavam então no engenho do Capitão, e o padeiro, a tudo
resistindo corajosamente, nada revelara nesse sentido. Na manhã seguinte o
Capitão Ley foi ter com eles e, relatando-lhes quanto havia se passado,
perguntou a Broekhuizen: O que quer dizer tudo isto? Este, porém, não tendo
confiança em Ley, tudo negou com firmeza.

Descoberta a viagem do corneteiro

Entretanto, a 2 de outubro, por pouco que todo o plano não foi revelado pela
imprudência da mulher do corneteiro, pois, tendo-se embebedado, contou a
pessoas de suas relações que o marido havia partido para o Recife. Foi então
levada prisioneira para o Cabo Santo Agostinho, onde a torturaram
miseravelmente, mas, sendo mulher resoluta, nada confessou.

O Major Hoogstraeten, porém, aconselhou os portugueses a que não


deixassem mais os prisioneiros holandeses em Pernambuco, mas remetesse
para a Baía todos aqueles que se recusassem a prestar serviços. Portanto,

300
Em Vingboons (XCVII, vol. II, mapa 47, referente a Itamaracá), encontra-se Tripicho; no
mesmo autor (coluna II, mapa 48, referente a Pernambuco), encontra-se o engenho Tripicho, à
margem do rio Salgado. Os engenhos Algodais Velho e Algodais Novo, acima e abaixo,
respectivamente, no citado mapa de Vingbooms, referente a Pernambuco, demoravam entre o
rio Salgado e o Jangada.
Página 217 de 349

todos os prisioneiros batavos que então se achavam no Cabo e em Santo


Antônio foram transferidos a 4 de agosto 301 para Algodoais, onde o Coronel
Pedro Marinho lhes perguntou se queriam servir ao Rei de Portugal.

Os que o não queriam foram imediatamente enviados à Baía, por terra, viagem
tediosa que lhes apresentava ainda o risco de serem massacrados pelo
caminho. Muitos, de receio, se prontificaram a trabalhar, mas Zweers e
Broekhuizen, novamente interrogados, responderam que preferiam antes
morrer que tomar armas contra sua própria pátria.

A 5 de outubro, todos os prisioneiros, escoltados por soldados e camponeses,


foram enviados de Algodoais para Ipojuca. Aí, o Auditor mandou os outros
buscarem Isaac Zweers e levá-lo ao Cabo de Santo Agostinho e deitar com o
pescoço no tronco, fazendo-o castigar severamente 302.

Zweers torturado

Todavia, apenas lá chegaram, Zweers teve ordem de voltar para o Cabo Santo
Agostinho onde foi torturado para que revelasse qual a missão do corneteiro no
Recife, o qual, como supunham, tinha revelado ao Conselho o plano de ataque
a Itamaracá. Entretanto, não conseguindo dele a menor revelação, enviaram-
no para a Baía depois de cinco semanas de prisão.

Chegam à Baía os prisioneiros

Enquanto isso, Broekhuizen e os demais prisioneiros holandeses tinham sido


forçados a caminhar dia e noite até o dia 28 de novembro de 1645, data em
que chegaram a um castelo denominado Itapuã 303, no litoral baiano, a cerca de
meia légua da cidade de São Salvador, após longa e penosa caminhada.
Foram, então, transportados em dez botes para a zona fortificada da cidade,
tendo os portugueses o cuidado de não deixar que os batavos vissem as
fortificações, do lado de terra. Por ordem do Governador Antônio Teles da
Silva, o Senhor Broekhuizen foi instalado, como prisioneiro, em uma casa
particular, enquanto que os soldados foram alojados nos quartéis. No dia
seguinte os presos ouviram os tambores convocando voluntários e convidando
a todos indistintamente, com exceção apenas dos holandeses, a servir o Rei de
Portugal.

Zweers e Broekhuizen interceptam uma carta

A 18 de fevereiro 304 do ano seguinte, Zweers e Broekhuizen interceptaram


uma carta escrita por Hoogstraeten a Hondius, com relação a diversos

301
O tradutor inglês omitiu a data 4 de agosto (cf. p. 136, 2a coluna, 4° § da ed. holandesa e p.
98, 1a coluna, 1° § da ed. inglesa).
302
O pequeno trecho referente ao Auditor foi omitido pelo tradutor inglês. (Cf. p. 137, 1ª coluna,
1° § da ed. holandesa e p, 98, 1a coluna, 2° § da ed. inglesa).
303
Nieuhof (p. 137, 1ª coluna, 3° §) escreveu Tapuao. Deve tratar-se de Itapuã, como grafamos
no texto.
304
O tradutor inglês escreveu 18 de janeiro (cf. p. 137, 1a coluna, últ. § da ed. holandesa e p.
98, 2a coluna, 1° § da ed. inglesa).
Página 218 de 349

assuntos a serem comunicados aos Governadores, e tendo o Capitão Ley sido


informado de que essa correspondência fora interceptada pelos mencionados
holandeses, comunicou-se a 1° de março 305 com o Governador que,
ameaçando-os com nada menos que as galés, atirou-os incomunicáveis a uma
imunda prisão, com ordens rigorosas de não se lhes dar pena, papel e tinta.

São encarcerados

Quando o funcionário estava anotando seus nomes apareceu um capitão, e lhe


disse, da parte do Governador, que os presos eram os traidores que
mantinham correspondência com os holandeses no Recife e deu ordens para
que pusessem sentinela à porta do cárcere a fim de evitar que o povo
praticasse alguma violência contra os mesmos, pois, quando os estavam
transportando, a população fez uma algazarra tremenda gritando: Enforca os
cachorros traidores.306

Sofrem falta de víveres

Ficaram nessa prisão durante cinco dias, sem alimento nem água para beber
até que tiveram licença para representar por escrito ao Governador, sobre sua
deplorável situação.

Fornecem-lhes alimentação

Este autorizou imediatamente que se lhes desse de comer, o carcereiro


português, receoso de que uma alimentação abundante pusesse suas vidas
em perigo, teve o cuidado de ministrar-lhes primeiramente pedaços de pão
embebidos em vinho, repetindo a ração, um pouco aumentada, horas mais
tarde até que, gradativamente, o estômago dos detentos readquirisse sua
primitiva capacidade digestiva.

Tiveram audiência do Governador

No último dia de fevereiro, o Governador deu audiência pública (o que se dava


três vezes ao ano) para libertação daqueles que se achavam encarcerados por
ordem do Rei.

Nessa ocasião, os nossos homens tiveram permissão de se acercar do


Governador. Passaram por uma antecâmara, guarnecida de soldados de
ambos os lados e daí para o Salão de Audiências, enfeitado com damascos de
diversas cores pendentes das paredes. Aí encontraram o Governador
ocupando uma cadeira de braços, à direita da qual estava o trono real sobre
um estrado quatro degraus mais alto que o do Governador e cercado de

305
O tradutor inglês escreveu 1° de fevereiro (cf. p. 137, 1a coluna últ. § da ed. holandesa e p.
98, 2ª coluna, 1° § da ed. inglesa). O Diário de Mattheus van den Broeck (XLI, p. 26) dá o dia
20 de fevereiro como o da prisão.
306
Nieuhof (p. 137, 2a coluna, 1° §) escreveu, textualmente: [i]"Em forca-los caehiores
treidores";[/i] deu, também, tradução holandesa livre dessas palavras, a qual foi utilizada pelo
tradutor inglês (p. 98, 2a coluna, 2° §).
Página 219 de 349

finíssima tapeçaria. Atrás do Governador estavam seus secretários e alguns


alabardeiros.

De ambos os lados estavam sentados vários Conselheiros e advogados, de


cabeça coberta, e atrás deles os oficiais do exército, de cabeça descoberta.
Logo que o Governador viu os prisioneiros, fez sinal para que se
aproximassem. O Senhor Broekhuizen, então, de joelhos disse-lhe
textualmente: Supomos que V. Excia. não ignora que há um mês estamos
detidos numa miserável prisão, sem saber qual o crime que cometemos contra
V. Excia., a menos que se trate da carta que interceptamos e da qual V. Excia.
tem conhecimento. Se é essa a nossa culpa, pedimos perdão a V. Excia.

Postos em liberdade

E respondeu o Governador - suponhamos que os senhores tivessem feito isso


na Holanda? Ao que Broekhuizen respondeu que S. Excia. deveria lembrar-se
de que se tratava apenas de uma carta particular que não era endereçada ao
Governador. Este, depois de alguns momentos de pausa, deu ordem para se
retirarem; daí por diante tiveram plena liberdade de movimentos, mas.
precisavam ter o maior cuidado possível, pois o povo mantinha constante
vigilância sobre eles.

Enviados para a Ilha Terceira

A 7 de abril307 Isaac Zweers e Johannes Broekhuizen foram enviados para


bordo de um iate denominado São Francisco a fim de serem transportados
para a Ilha Terceira, e, como eram os primeiros holandeses a serem enviados
para essa ilha, todos imaginavam que se tratasse apenas de um pretexto para
atirá-los ao mar. Em viagem, o tratamento que receberam foi pior que
anteriormente, pois tiveram que acionar a bomba durante todo o tempo e
chegaram a passar fome a pesar de terem os marinheiros pescado mais do
que poderiam comer. Finalmente chegando à Ilha Terceira, a 28 desse mês,
viram aproximar-se, uma hora depois, um navio holandês que ancorou junto a
eles. Acenaram para o navio até que o Capitão mandou alguns homens a
bordo do São Francisco e os prisioneiros puderam transmitir suas reclamações.
Ficaram satisfeitos por saber que o Capitão do navio, Marten Pietersz Honing,
era natural de Nieuwendam, mas os portugueses não lhes permitiram ir ao
navio holandês.

De lá para Portugal

Quando eles, então, se achavam sós, a bordo, com o piloto 308 e marinheiros,
navegaram para a terra, por vontade própria, contra a ordem do piloto, onde
encontraram o barqueiro Marten Pietersz Honing, que prometeu fazer com que

307
O tradutor inglês escreveu 7 de maio (cf. p. 138, 1a coluna, 7° § da ed. holandesa e p. 99,
1a coluna, 3° § da ed. inglesa).
308
O trecho "Quando eles, então." até "...Governador" foi traduzido do holandês, pela
infidelidade da tradução inglesa. (Cf. p. 138, 2a coluna, 2° § da ed. holandesa e p. 99, 1a e 2a
colunas da ed. inglesa). O tradutor inglês julgou que Moor fosse o nome do governador, talvez
pelo fato de haver Nieuhof escrito Provedor-Moor.
Página 220 de 349

pudessem sair daí. À tarde, o Provedor-Mor de todas as ilhas flamengas (que,


como chefe das mesmas fixara residência na Ilha Terceira) chamou Zweers e
Johannes Broekhuizen e disse-lhes da carta do Governador Antônio Teles da
Silva ordenando que os detivesse no castelo durante doze meses. Entretanto,
o Governador da Ilha declarou não se achar obrigado a obedecer tal ordem,
porque ele não dependia senão do Rei que, não estando interessado nessa
guerra, tinha determinado que se remetessem para Portugal todos os
prisioneiros que viessem ter às ilhas. Disse-lhes que podiam ter confiança, e,
para poderem se sustentar até que houvesse navio para os transportar à
Europa, mandou dar-lhes vinte e dois e meio florins de prata.309

Chegara bem à Holanda

A 13 encontraram o capitão de um navio francês, que se prontificou a


transportá-los gratuitamente para Portugal, o que de bom grado aceitaram. Lá
chegando, encontraram muitos de seus companheiros de prisão que
imaginavam tivessem sido atirados ao mar pelos portugueses. Nesse país
permaneceram até o dia 10 de setembro quando o Senhor Zweers e o Senhor
Broekhuizen tomaram um navio de guerra de nome Prins Hendrik e, finalmente,
a 4 de dezembro, depois de mil perigos e sofrimentos desde sua partida do
Brasil holandês, chegaram sãos e salvos em Mosa.

[Quanto às ilhas Flamengas, trata-se, como se vê do próprio texto, das Ilhas dos Açores. Realmente, as
Ilhas dos Açores foram, durante muito tempo, conhecidos por Ilhas Flamengas. Afonso V doara a ilha do
Faial a sua tia Isabel, duquesa da Burgúndia e, desde então, houve um grande influxo de colonizadores
flamengos. E isso, naturalmente, foi devido ao domínio que o Duque da Burgúndia, Filipe-o-Bom, casado
com Isabel de Portugal, exercia sobre o Brabante e a Holanda, os quais adquirira por herança de sua mãe
em 1433. A Ilha Terceira era assim chamada, por ter sido a terceira a ser povoada.

Josua van den Berge, do condado de Bruges, foi encarregado da sua colonização; e outro flamengo,
Joost van Heurter, sogro de Martin Bahaim, colonizou uma outra dessas ilhas. Sobre essas ilhas,
consulte-se J. Mees: [i]"Histoire de La decouverte des iles Azores et de Vorigine de leur denomination
d'iles flamands". J. Lera 1901,[/i] Cf. sobre o nome A. Montanus, ed. 1671, p. 51 da Nieuwe en
Onbekende Wereld.]

Preparativos do Recife

Voltemos, porém, ao Recife. A inesperada derrota do Coronel Haus pôs todo o


povo do Recife na mais profunda consternação. O Conselho, porém, tudo fez
para colocar a praça, bem como todos os fortes adjacentes, em condições de
oferecer vigorosa defesa, caso fossem atacados pelo inimigo. E, para que tudo
fosse executado da melhor maneira possível, Pieter Bas foi nomeado
comandante em chefe do Recife. O Almirante Lichthart se encarregaria da
artilharia; Hendrik de Moucheron era o comandante da Cidade Maurícia e todos
tinham o pensamento voltado para a defesa de suas respectivas praças, que
pouco tempo antes consideravam inteiramente fora de perigo.

Constituindo não pequeno estorvo para o Forte Ernesto os estábulos, senzalas,


áleas e jardins da residência do Conde Maurício - além de recear-se que,

309
Nieuhof escreveu "9 rijsedaelders" (p. 138, 2a coluna, 3° §). O nome certo é rijkdaalders,
moeda oficial de prata, valendo 2 e meio florins e era curso até a invasão da Holanda pela
Alemanha (1940).
Página 221 de 349

servindo-se dessas dependências, o inimigo desfechasse um ataque de


surpresa contra o forte e a Cidade Maurícia - e também em atenção aos
insistentes pedidos do povo para que fossem demolidos os estábulos, abatidas
as árvores e o mais que pudesse servir de embaraço para a defesa do lugar,
os Senhores Volbergen e Major Bayert, Comandante do forte Ernesto, tiveram
ordem de superintender o plano de demolição, tendo o cuidado de ver que se
estragasse o menor possível o prédio residencial. Ordenou-se igualmente o
arrasamento das construções vizinhas ao Forte Bruin e o rebaixamento das
cornas, a pedido do povo. Empregaram-se, também, numerosos negros sob as
ordens do Major Bex e do Capitão da milícia municipal na demolição de todas
as casas da Cidade Maurícia, que estivessem muito próximas das novas
trincheiras. Os prisioneiros portugueses foram distribuídos pelos navios, e
diversos voluntários que praticaram violências no interior, e por isso estavam
presos, foram postos a trabalhar por três meses. Tendo se propalado a notícia
de que 18 inimigos tinham chegado aos Afogados, organizou-se uma
companhia de civis para lhes dar combate. A informação, porém, era falsa.

Chega da Holanda o navio Orangeboom

No mesmo dia chegou ao Recife, proveniente de Mosa, de onde partira a 21 de


abril310, o navio Orangeboom com 40 recrutas.Na cidade Maurícia, a guarda se
revezava entre o Senhor de Wit e o Senhor Raetvelt (além dos oficiais comuns)
e no Recife entre os senhores Aldrich e Volbergen.Balthazar Dortmont,
Governador de Itamaracá, mandou avisar o Conselho, a 17 de agosto, que
Cavalcanti havia chegado, com forças, a Igarassú e tinha intimado os
brasileiros a se reunirem à sua tropa dentro de quatro dias, sob pena de morte.

O povo pede a demolição da casa de Maurício

A 19 o povo apresentou uma petição demonstrando a necessidade de se


demolir a residência de Maurício, visto como tirava a vista do Forte Ernesto, e,
se fosse tomada pelo inimigo, este poderia daí hostilizar tanto o Forte como a
cidade, com sua artilharia. Tendo conferenciado com os senhores Walbeek,
Almirante Lichthart, Aldrich, de Wit, Raetvelt, Moucheron e Volbergen, o
Conselho decidiu deferir por algum tempo a consideração desse pedido, na
esperança de que o prédio fosse útil para a defesa. Os Senhores de Wit e o
Secretário Hamel tiveram ordem de ir de casa em casa da Cidade Maurícia e
proceder ao levantamento de todos os negros em condições de pegar em
armas e equipá-los com mosquetes e piques. Idêntica ordem foi dada ao
Almirante Lichthart e ao Capitão Bartholomeus Van Keulen, com relação ao
Recife. Todos os doentes que estavam em convalescença no Castelo tiveram
ordem de se armar para sua defesa própria.

Expedição de ordens ao senhor Dortmont

Respondeu-se também, ao Senhor Dortmont, dando-lhe ordem de reunir o


maior número possível de brasileiros na Ilha de Itamaracá bem como prover-se
da maior quantidade de gado e farinha que pudesse obter pelas adjacências.
310
O tradutor inglês escreveu 21 de maio (cf. p. 319, 2a coluna, 1° § da ed. holandesa e p. 100,
1a coluna, 2° § da ed. inglesa).
Página 222 de 349

Entretanto, se não estivesse em condições de manter toda a ilha, nem ao


menos a cidade de Schkoppe, devia retirar-se para o Forte de Orange onde
poderia ser abastecido por mar, e, conseqüentemente, oferecer enérgica
resistência. Também o Senhor Carpentier foi avisado para que se mantivesse
de prontidão e se retirasse, em tempo, para a Ilha de Itamaracá, com seus
soldados e brasileiros, caso percebesse que o povo estava disposto a tomar
armas contra ele.

Na noite de 19 expediu-se uma patrulha de reconhecimento, mas não


encontrou o inimigo. Despacharam-se, também, alguns negros em direção aos
acampamentos adversários, a fim de ter idéia de sua força. Na mesma noite, o
Conselho recebeu, por intermédio do tenente Francisco Mendes, uma carta de
André Vidal de Negreiros em que este se mostrava disposto a preservar a paz
e ao mesmo tempo reclamava contra as violências cometidas pelos nossos
soldados. Era o seguinte o teor dessa carta:

CARTA DE VIDAL AO CONSELHO311

Por intermédio do Tenente Manuel Antônio, já anteriormente


informamos Vs. Excias. de nossa chegada a esta Capitania

Governador Antônio Teles da Silva e a pedido desse Conselho, a


fim de restaurar a tranqüilidade pelos meios mais eficientes que
pudermos encontrar. Representamos também a Vs. Excias. sobre
os inomináveis desmandos de que tivemos notícia através dos
lamentos de diversas nobres donzelas violentadas e das lamúrias
do povo do Rio Grande, onde quarenta pessoas de destaque, entre
as quais um sacerdote - e duas outras em Salinas, há poucos dias -
foram assassinadas a sangue-frio.

Horroriza-me referir-me (e o respeito por todos devido aos lugares


sagrados impede-me de particularizar) às depredações perpetradas
em imagens de santos, especialmente na da Mãe de Deus e os
sacrilégios cometidos pelos soldados de Vs. Excias.

Essas considerações, aliadas ao fato de termos encontrado suas


tropas em pé de guerra, levam-nos, num movimento de defesa
própria que nos vem do hábito de guerrear, a não deixar, à
retaguarda, nenhuma força armada que nos possa ser fatal antes
de decidirmos, juntamente com Vs. Excias., sobre quais as
melhores medidas a serem tomadas para o restabelecimento da
tranqüilidade, objetivo único de nossa vinda.

Com esse espírito pautamos a nossa marcha em direção ao Recife,


até chegarmos a Santo Antônio onde, tendo posto João Fernandes

311
A cópia do original português desta carta encontra-se na Ver. do Inst. Arq. e Geog. Pern.,
1887, n. 35, p. 47-49.
Página 223 de 349

Vieira sob custódia de 12 soldados, surpreendeu-nos o elevado


número de crianças, mulheres e religiosos que, para escapar às
violências e assaltos contra eles cometidos pelo Capitão Blaer na
Várzea, vieram procurar refúgio entre nós.

Contaram-nos como o referido Capitão, não satisfeito com ter


saqueado suas residências, raptou três das mais nobres senhoras
da região, depois de tê-las maltratado miseravelmente.

O povo, desesperado com tais violências, deixou (contra nossa


vontade) o acampamento tão apressadamente que, por mais que
acelerássemos a marcha em seu encalço, não conseguimos evitar
que se empenhasse em combate com forças holandesas, no
Engenho de Isabel Gonsalves, o qual teria sido incendiado se o não
impedissem os nossos homens, interpondo-se entre o povo e o
destacamento batavo e assim expondo-se às descargas de suas
armas de curto alcance cujos projéteis, no geral, consistiam em
balas partidas em quatro.

À medida que se renovavam as hostilidades contra as nossas


tropas, mais se acentuava a revolta popular.

Não podemos, portanto, deixar de invocar a última Proclamação e a


Ratificação da paz entre nós, protestando em nome de Deus, de D.
João IV, nosso Rei, dos Estados Gerais e de todos os nossos
aliados, para que Vs. Excias. não deixem a situação se encaminhar
para uma ruptura, dando motivo para agirmos de maneira hostil ou
declararmos guerra contra Vs. Excias.

Não mais podemos ocultar a nossa opinião de que as reiteradas


queixas do povo podem, até certo ponto, servir de pretexto, senão
de justificativa, para a ação de João Fernandes Vieira cuja primeira
intenção sabemos ter sido a de proteger os inocentes ameaçados
de morte.

Conquanto dispusesse de força para tanto, preferiu ir-se retirando


de um lugar para outro a fim de evitar um encontro com as forças
de Vs. Excias., até que finalmente se viu forçado a repelir a força
com a força. Pedimos a Vs. Excias. que tomem na devida
consideração esta nossa carta, de tão elevada importância para a
segurança de ambas as partes, pois parece que até os Céus se
magoaram com o nosso proceder.

Deus guarde Vs. Excias.

Engenho de São João Batista da Várzea, 19 de agosto de 1645.

André Vidal de Negreiros.


Página 224 de 349

Pelo mesmo Tenente, o Conselho enviou sua resposta, no dia seguinte.

A RÉPLICA DO CONSELHO

Pela nossa resposta à sua carta datada de Serinhaém a 8 de


agosto, terá V. S. percebido claramente que, nem os protestos
apresentados pelo Governador Antônio Teles da Silva nem os
formulados por V. S. no que respeita à manutenção da paz entre
Sua Majestade de Portugal e os Estados Gerais das Províncias
Unidas, jamais foram por nós considerados sinceros ou dignos de
fé, desde que as suas ações nunca se conformaram com suas
palavras.

As propostas desleais feitas a um de nossos deputados, para,


através de vil traição, se apoderarem de uma de nossas melhores
fortalezas; o desembarque de força tão considerável em nossos
territórios, sem consentimento de nossa parte, pretextando uma
interpretação deturpada de nossa carta a S. Excia; a entrada em
nosso porto, de uma possante esquadra; a captura do forte de
Serinhaém; o massacre de tantos brasileiros nossos súditos, a
sangue-frio; o ultimatum enviado ao forte Santo Agostinho para sua,
rendição e o ataque de surpresa à nossa tropa, que era obrigada a
se manter em campo a fim de refrear o povo rebelado; nada disso,
afirmamos, poderá ser considerado por quem, quer que seja,
dotado de imparcialidade, senão como infrações ostensivas ao
tratado invocado e, portanto, como atos de franca hostilidade.

Nós, de nossa parte, podemos declarar positivamente, sem a menor


ofensa à verdade, que as nossas armas não visavam S. Majestade
de Portugal, mas, sim, os rebeldes e seus apaniguados, tendo sido
a isso forçados, diante da numerosa força armada que,
atravessando o São Francisco, invadiu nosso território.

O ataque de surpresa a embarcações nossas, em Salgado; a


captura da Casa Maracaípe e o aprisionamento de nossos guardas,
tanto lá como em Gamboa e diversos outros lugares; os cárceres
construídos especialmente para intimidar nosso povo e induzi-lo a
aderir aos revoltosos; o assassínio de três pessoas em Ipojuca, a
sangue-frio, e o aprisionamento de diversos de nossos soldados e
brasileiros enviados a São Lourenço para buscar farinha; a
pilhagem das residências e lojas de vários comerciantes no interior,
além de muitas outras violências semelhantes, cometidas pelos
revoltosos antes de tomarmos armas e quando ainda tentávamos,
por meio de proclamações de anistia, mantendo-os em suas
propriedades, evitar o perigo, - tudo isso, afirmamos, não pode
admitir outra interpretação senão a de atos francamente hostis.

Como se poderia supor que na situação em que nos achamos e


Página 225 de 349

depois de tantas provocações e desprezo de nossos oferecimentos


de clemência, adiássemos por mais tempo o desembainhar da
espada?

O que quer que se tenha feito, nesse ínterim, em desacordo com as


leis de guerra, o foi sem o nosso conhecimento ou assentimento,
antes pela ação traiçoeira dos revoltosos, e, conseqüentemente,
deve ser considerado como crime a, ser punido e não como fases
de uma guerra justa.

Além disso, nem S. Excia. o Governador Antônio Teles da Silva,


nem V. S., nem ninguém tem direito, perante a lei, de nos pedir
contas com relação à administração ou punição dos súditos dos
Estados Gerais, do mesmo modo que o Rei de Portugal não nos
viria prestar contas do que fez, nesse sentido, em seu reino e nos
domínios.

Não podemos admitir, portanto, que V. S. nos venha lançar em


rosto os mencionados crimes e desmandos. Tanto não é verdade
que tenhamos instigado ou mandado os tapuias matar os
portugueses, moradores de Cunhaú, que há diversos anos vimos
tentando evitá-lo; pois, à vista dos maus tratos que receberam dos
portugueses, os tapuias se exasperaram contra eles e teriam morto
a maioria dos habitantes da Capitania se não tivéssemos imposto a
nossa autoridade e dado ordens para que a guarnição os tomasse
sob sua proteção.

Quanto ao que diz V. S. sobre violências praticadas contra


mulheres, não só isso escapa ao nosso conhecimento como ainda
tomamos todo o cuidado possível a fim de evitá-las pelas
proclamações que fizemos publicar nesse sentido. Todo o mundo
sabe que dispensamos a nossa especial proteção às mulheres do
Engenho do Senhor Arnau de Olanda [Holanda].

Quanto às senhoras que o Capitão Johan Blaer prendeu, ao que


fomos informados, isso foi feito com a única intenção de permutá-
las por sua mulher, ou pelo menos conservá-las como reféns, pois
soube que sua esposa estava senão maltratada pelos lusos,
Serinhaém.

Foram os rebeldes que iniciaram a série de roubos e assaltos desde


então cometidos também pelos nossos soldados, e que, entretanto,
não pode sofrer comparação com os embustes, fraudes e roubos
cometidos pelos rebeldes contra os credores de suas dívidas e
mercadorias; apesar de tudo, dando garantias e outras
providências, fizemos tudo quanto estava ao nosso alcance para
evitar essas violências.

O recente assassínio de moradores de Salinas foi cometido a 17, -


sem nosso conhecimento, e com grande consternação de nossa
Página 226 de 349

parte, - pelos brasileiros fugitivos que, enfurecidos com o massacre


de seus irmãos, homens, mulheres e crianças em Serinhaém, sem
distinção de sexo ou idade, aproveitaram-se da ocasião para se
vingarem. Poderá, também, V. S. facilmente imaginar que os
boletins distribuídos por Antônio Cavalcanti em Igarassú bastante
contribuíram para esse estado de cousas.

Com respeito às balas que V. S. diz terem sido utilizadas no último


encontro, nós temos mais razões de queixa que V. S., pois
recomendamos continuamente que não se deixem de observar as
leis da guerra em casos semelhantes.

Reconhecemos o cavalheirismo demonstrado pelos seus homens,


poupando e acolhendo os nossos soldados e estamos prontos a
retribuí-lo em idênticas circunstâncias, pedindo-lhes desde já que
nos comuniquem sua resolução sobre este ponto, pelo mesmo
tambor.

Senão evidente, pelo que se alegou, que os passados desmandos


devem ser imputados aos rebeldes - entre os quais tentamos, por
todos os meios, restabelecer a paz e a tranqüilidade - tendo eles
persistido em seus subversivos propósitos, merecem eles, das
mãos de V. S., antes o justo castigo que a menor indulgência.

Por esse motivo, protestando perante Deus e todo o mundo contra


o procedimento de Sua Excelência o Senhor Antônio Teles da Silva
e contra o que quer que tenha sido praticado por V, S.
contrariamente ao tratado celebrado entre Sua Majestade de
Portugal e os Estados Gerais das Províncias Unidas, não duvidando
que, ao receber a presente, V. S. retirará as suas forças para a Baía
e porá termo às violações do referido tratado.

Assim, à espera de sua resposta, permanecemos,

De V. S.

Recife, 20 de agosto de 1645

etc. etc.

Preparativos para enfrentar o inimigo que marcha contra o Recife

Na Cidade Maurícia e em outros fortes.

Nessa mesma noite, ante o aviso de que tropas inimigas haviam avançado até
Olinda, expediram-se ordens a todos os fortes adjacentes no sentido de
prepararem uma vigorosa defesa, bem como de se erigirem duas baterias por
detrás da senzala, de onde poderiam dominar as avenidas que, ao longo do rio,
Página 227 de 349

correm em direção ao Recife. Numerosos voluntários recentemente chegados


do interior foram agrupados em uma companhia sob o comando do Secretário
Hamel, no posto de Capitão, e Jerônimo Helman, como tenente. Dispuseram-
se guardas avançadas, sendo uma entre o forte Bruin e o forte Triangular e a
outra entre este e a fazenda do Conde Maurício. A ponte Boa Vista foi
parcialmente demolida a fim de dificultar a passagem do inimigo, e,
considerando-se a importância do forte Triangular, foi sua guarnição
aumentada com um contingente de 26 homens tirados a várias companhias.
Tomaram-se idênticas precauções com relação à segurança da Cidade
Maurícia, da Ilha de Antônio Vaz, do Forte Ernesto, do Forte Quinquangular e
de todos os demais.

O Major Bayert teve ordem de demolir as paredes remanescentes dos


estábulos do Conde Maurício, por impedirem a visão do forte Ernesto. Hendrik
Vermeulen foi incumbido de dirigir uma turma de 30 negros encarregada de
remover todo o entulho tanto da fazenda do Conde Maurício como dos fossos.
O Major Bayert retirou as paliçadas do jardim para instalá-las em torno de seu
forte. O engenheiro Pistor recebeu a incumbência de construir estacadas ao
lado do forte Ernesto, olhando para os jardins do Conde e prolongando-as até
cerca de 5 metros para dentro do rio. Por cima da entrada do Forte Ernesto foi
feita uma casa de madeira pelo chefe de obras, para proteger o flanco dos dois
lados, porque esta fortaleza não tinha os flancos protegidos, ao longo do muro
junto ao rio312. Além disso, não estando bem artilhado esse forte, o Comissário
Stricht deveria nele assentar dois grandes canhões pesados então instalados
ao pé da ponte, colocando em seu lugar duas colubrinas.

A entrada do canal da Cidade Maurícia foi também protegida com paliçadas


duplas. Os membros do Conselho, em companhia dos desembargadores,
inspecionaram novamente os subúrbios da Cidade Maurícia a fim de decidir
sobre a conveniência de mantê-los ou abandoná-los. Entretanto, adiaram
qualquer resolução, para a manhã seguinte. Dois grandes canhões foram
instalados no forte Quinquangular, assestados para o lado do rio, e, à vista da
forte guarnição necessária para defender as cornas desse forte, seu
comandante deu ordem para que os soldados, os brasileiros e 100 negros as
nivelassem. Mandou-se derrubar, pelos brasileiros que ali trabalhavam, o mato
existente entre o forte e os Afogados, e resolveu-se que se concentrassem as
fortificações da Cidade Maurícia num âmbito menor e se reparassem os muros
em torno do Recife.

Assim foi que o Conselho, com seu infatigável cuidado, conseguiu pôr as
fortificações do Recife e suas adjacências em tão boas condições de defesa
que o inimigo, conquanto muito forte, não ousou tentar, então, qualquer ação.
O Senhor Dortmont tinha transportado para Itamaracá cerca de 1400 pessoas,
das quais 700 mulheres e crianças, e, por isso, precisava de abastecimento de
víveres. De resto, dispôs tudo muito bem na Ilha.

Cartas ao Conselho Vindas de Paraíba


312
Este pequeno trecho foi traduzido diretamente do holandês (cf. p. 143, 2-a coluna, 8° § da
ed. holandesa e p. 103, 1a coluna, 2° § da ed. inglesa).
Página 228 de 349

Por sua carta datada de Paraíba, 22, o Senhor Linge comunicou ao Conselho
que, depois da notícia que lhe fora transmitida da derrota do Coronel Haus,
julgara conveniente remover a guarnição e o povo de Frederica para os fortes.
Informava, ainda, o Senhor Linge, que os portugueses continuavam calmos e
que toda sua força consistia em 400 soldados, 100 civis e 50 brasileiros, entre
os quais havia bom número de doentes e feridos. Dizia mais, que os tapuias
haviam assassinado 12 ou 14 camponeses.

Não havia muito tempo que o Major Hoogstraeten, Ley e Hek informaram o
Conselho terem incendiado todas as casas, principalmente o armazém e a
igreja, fora do forte, para facilitar sua defesa e que o inimigo se havia instalado
no morro do Cabo e na Ilha que lhe ficava ao sul.

A 25, após nova revista às fortificações da Cidade Maurícia, ordenou-se o seu


imediato aperfeiçoamento.No mesmo dia o Conselho recebeu cartas do Senhor
Linge, datadas da Paraíba, a 18 e 19 de agosto, via Itamaracá, dizendo que
Willem Barentsz lhe havia comunicado que ele e Roelof Baro tinham, pronta
para nosso serviço, uma tropa de tapuias, e que tudo estava em calma nas
vizinhanças. Que, entretanto, esses tapuias se haviam apoderado de todo o
gado pertencente a Pieter Farcharson, fato esse que provocara não pequena
escassez de carne fresca nas redondezas.

Consulta sobre a remoção de diversas guarnições para o Recife

O Conselho achou indispensável voltar suas vistas para a situação dos fortes
do Rio São Francisco e Sergipe d'El Rei, os quais se achavam apenas
escassamente guarnecidos e tinham interrompidas as comunicações, tanto
entre eles mesmos, como com o Recife, e, portanto, em grave perigo de se
perderem; concluiu por isso o Conselho que, depois da derrota do Coronel
Haus, forçoso era tentar a salvação dessas guarnições, e, conseqüentemente,
de todo o Brasil Holandês, removendo-as para o Recife.

No dia 24 de agosto313,[313] foi solicitado junto ao Assessor Walbeek, em


nome dos Altos e Secretos Comissários, o aviso e aprovação do alto Conselho
de como se deveria proceder nestas circunstâncias, com a fortaleza e os
defensores de Porto Calvo; (pois a fraca guarnição que aí estava não era
capaz de defendê-la contra uma grande maioria); e, além disso, e já que
haviam sido cortadas todas as comunicações por terra e por mar e os
mantimentos não chegariam para muito tempo, quando estes terminassem, a
fortaleza deveria entregar-se ao inimigo; se era preciso retirar daí a guarnição,
o que se julgava não ser possível fazer sem perda de artilharia e sem o perigo
de serem atacados no caminho; ou se deveria fazer com que ela defendesse o
lugar até o fim, na esperança de que ainda chegasse auxílio da pátria: com o
qual poderiam pôr a salvo essa fortaleza.

O mesmo se deliberou acerca das fortalezas do Rio São Francisco e Sergipe


d'El Rei e sua guarnição.
313
[313] O trecho "No dia 24 de agosto." até "..,Sergipe d'El Rei e sua guarnição." foi traduzido
diretamente do holandês (cf. p. 145, 1a coluna da ed. holandesa e p. 104, 1a coluna da ed.
inglesa). Esse trecho, na tradução inglesa, está grandemente resumido.
Página 229 de 349

RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE GUERRA

O Conselho de Guerra é de parecer que, considerando estar a


capital em perigo por falta de força militar e não estarem as
guarnições dos fortes em condições de oferecer resistência
prolongada, sejam estas removidas para o Recife, transportando
com elas a maior quantidade possível de munição e artilharia. Com
relação ao Forte de Porto Calvo, situado muito no interior do país,
onde o rio é por demais estreito e raso, as guarnições do Rio São
Francisco e Sergipe d'El Rei deverão por lá passar a fim de se
reunirem e enterrar ou inutilizar os canhões.

Por ordem do Conselho de Guerra, 24 de agosto de 1645.

(Assinados) Kornelis Bayer,

Albektus Oostermans,

L. Van Harkema,

Jan Denning,

Samuel Lambertsz314[314]

Hendrik Advocaet,

Frederick Pistor,

Haelmeister, Capitão,

René de Mouchy.

De acordo com o parecer acima, duas barcas tiveram ordem de desempenhar


essa missão, no Rio São Francisco.

No último dia de agosto, o capitão de uma das duas barcas voltou e disse que,
tendo avançado pelo Rio São Francisco até cerca de uma milha do dito forte,
recebeu tão tremenda salva de tiros curtos, de um navio português repleto de
mosqueteiros, que se viu forçado a retroceder, já que não poderia prosseguir
rio acima. Disse ainda que, à vista disso, a outra barca não quis se aventurar
até Sergipe, achando melhor voltar com o Zeelandia. Afirmou mais o capitão
que, a menos que os nossos dispusessem de galeões ou iates bem
guarnecidos, seria muito difícil levar a bom termo uma tal missão.

314
[314] Nieuhof varia muito a grafia de Lambertsz: ora escreve Lambartz ora Lambertsz, ora
Lambertz, ora, ainda, Lambert ou Lambertszen. (cf. p. 145, 2ª coluna 2º §; p. 145, 2a coluna últ.
§; p. 146, 1a coluna 2° §; p. 146, 2ª coluna 3° §; e p. 148, 2ª coluna 1° §).
Página 230 de 349

À vista dessa informação, o Conselho deu ordem para que o iate Spreemv, e
três outras barcas se reunissem ao Zeelandia, a fim de tentar a execução do
plano.

Alguns navios enviados para o Rio São Francisco sob o comando de Willem
Lambertsz.

Essas embarcações zarparam do Recife a 2 de setembro, sob o comando do


capitão Willem Lambertsz. A primeiro de outubro, regressou a Recife o capitão
W. Lambertsz com o iate e o Zeelandia, tendo apresentado ao Conselho o
seguinte relato de sua missão:

Relatório da expedição

A 22 de setembro, chegamos à distância de meia hora315[315] do forte São


Maurício, onde encontramos uma barca. Ante o disparo de uma de nossas
peças a embarcação zarpou em nossa frente, rio acima. Enquanto a
perseguíamos, avistamos uma caravela junto à barca de Joan Hoen, ambas
repletas de soldados. Vimos a primeira dirigir-se para a margem e os seus
soldados, ao desembarcar, empenharem-se em luta, com um destacamento
contrário, para defesa da barca. O nosso iate, auxiliado pela artilharia, abordou
a caravela com a intenção de incendiá-la, mas, percebendo que estava
carregada de bagagem, os nossos soldados puseram-se a pilhá-la. Logo
depois surgiu uma canoa, hasteando bandeira branca e navegando a todo
pano em direção aos dois barcos em luta. Nesse navio estavam Papenheim,
antigo comandante do forte São Francisco e o Senhor Hoen, enviados pelo
inimigo para nos dizer que se puséssemos fogo à caravela, eles estraçalhariam
todos os prisioneiros, mulheres e crianças. Ante essa ameaça desistimos de
nosso intento. Esses dois oficiais nos informaram de que o forte fora obrigado a
se render três dias antes, por falta de lenha e provisões, depois de um cerco de
26 dias. Que os portugueses aprisionaram um sargento e quatro soldados da
guarnição de Sergipe, mataram as praças e fizeram voltar o primeiro com uma
escolta de 200 homens para conduzir a guarnição que, já naquela ocasião, só
tinha víveres para quatro dias. Que cerca de oito dias antes da rendição do
forte, o Tenente-Coronel Haus, o Comandante Listry e o Capitão Wiltschut,
passaram por lá a caminho da Baía, de onde seguiriam para Portugal e
Holanda, com os demais prisioneiros, consoante os termos da capitulação,
transportando com eles apenas as respectivas bagagens. Informaram, ainda,
os referidos oficiais que, não havia muito tempo, os portugueses destacaram
200 homens para a Ilha de Belchior Álvares, esperando poder cortar a retirada
dos nossos; chegaram tarde porém, pois a população já havia sido removida.
Disseram que o inimigo havia também ocupado o forte dos Afogados onde o
Senhor Bullestrate fora feito prisioneiro e se achava agora a caminho da Baía.
Ouvindo tudo isso, o Capitão Lambertsz achou melhor retirar-se em direção à
desembocadura de onde, após dois dias gastos no reparo de seus barcos,
regressou ao Recife.

315
[315] O tradutor inglês escreveu meia légua, quando se trata de meia hora, (cf. p. 146, 1a
coluna 2° § da ed. holandesa e p. 104, 2° coluna 4° § da ed. inglesa).
Página 231 de 349

Forçadas a capitular as guarnições dos três fortes

Transportadas para a Baía

Idênticos insucessos nos esperavam em Sergipe e Porto Calvo, pois tendo o


Conselho enviado uma barca com provisões e reforços, ancorou esta à frente
do Rio São Francisco - contrariamente às ordens recebidas - onde foi
aprisionada pelo inimigo. A guarnição de Sergipe, perdidas as esperanças de
socorro, foi obrigada a capitular, depois de já ter gasto todas as suas provisões.
Após esse desastre, não restava a menor probabilidade de salvar a guarnição
de Porto Calvo, situada muito ao interior, onde o rio é por demais estreito e
raso. Além disso, estando o inimigo de posse de toda a região, em ambas as
margens, a guarnição do forte foi obrigada a se render por falta do necessário.
Contrariamente aos termos da capitulação, pelos quais estas guarnições
deveriam ser conduzidas ao Recife, foram elas transportadas prisioneiras, para
a Baía. Aqueles de seus componentes que não puderam seguir com elas, por
estarem doentes ou feridos, foram executados pelos portugueses.

Os portugueses matam todos os holandeses a seu serviço

Muitos dos soldados pertencentes a estas guarnições bem como às tropas do


Tenente-Coronel Haus, temendo os perigos da viagem por terra, à Baía,
concordaram em lutar ao lado dos portugueses. Entretanto, destacado o
Capitão Klaes Klaesz, com 64 desses holandeses, para uma emboscada
contra forças nossas, aproveitou a oportunidade e passou-se de novo para o
nosso lado. O fato exasperou de tal forma o inimigo, que desarmou todos os
holandeses então em suas fileiras e os executou a frio. O mesmo fizeram com
a população holandesa que tinha deixado atrás de si, no campo.

Revolta na Paraíba

O mensageiro foi enforcado

Enquanto isso se passava, a Capitania da Paraíba, dada a habilidade do


Governador Paulus de Linge, permaneceu fiel, pelo menos na aparência, até o
dia 25 de agosto de 1645 quando, informado da derrota do Tenente-Coronel
Haus, da capitulação do forte de Santo Agostinho e, alentado pelo reforço de
cinco ou seis companhias da Baía 316[316] e abundantes remessas de
armamento enviados de Pernambuco por André Vidal, o povo começou a tomar
armas a fim de cortar a comunicação entre a guarnição postada no Mosteiro de
São Francisco, Frederica (lugar não fortificado) e os fortes próximos ao litoral.
Entretanto, tendo percebido a manobra, o Senhor Linge, com o consentimento
da oficialidade, ordenou que o povo se recolhesse aos fortes com seus haveres
e a mencionada guarnição, a fim de evitar que fossem surpreendidos pelos
portugueses, bem como para auxiliar a defesa das praças de guerra. Por
idêntico motivo os brasileiros que com suas famílias habitavam a região tiveram
também ordem de se entrincheirar sob a bateria que servia de defesa externa.
Enfrentado por essa concentração de tropas e vendo frustrados seus planos de
316
[316] O tradutor escreveu 5 companhias (cf. p. 147, 1a coluna, 2." § da ed. holandesa e p.
105, 2a coluna 2° § da ed. inglesa).
Página 232 de 349

conquista da Paraíba pela força, o inimigo recorreu à sua artimanha


costumeira, certo de que poderia comprar os fortes dessa Capitania como
comprara a do Cabo de Santo Agostinho. Com esse fito, em setembro de 1645,
despachou um tal Fernão Rodrigues de Bulhões, Secretário da Justiça da
Paraíba,317[317] levando uma carta dirigida ao comandante em chefe Paulus de
Linge, na qual lhe oferecia a soma de 19.000 florins pela rendição do forte. A
proposta, entretanto, não logrou êxito. Por ordem de Linge o mensageiro foi
feito prisioneiro e enforcado no dia seguinte. Dessas ocorrências Linge enviou
notícias ao Conselho a 16 de setembro. Nesse ínterim, (de acordo com a carta
do Senhor Linge, datada de 16 de setembro) chegaram à Paraíba mais cinco
companhias inimigas que, reforçadas pelos mais valentes dentre os civis, se
colocaram perto do Tiberí onde tinham afixado uma proclamação intimando
todos a que reparassem seus engenhos, sob pena de perdê-los.

Parlamentares enviados aos tapuias

Achando-se muito exposta ao inimigo a passagem entre o forte dos Afogados e


o Quinquangular, onde pastava o rebanho destinado ao consumo do Recife
(boa parte do qual já havia sido apreendida pelo adversário), ordenou-se a
construção de uma pequena fortificação de madeira, no ponto mais
conveniente para a defesa das pastagens adjacentes. Havia já algum tempo,
(precisamente a 26 de julho) que o Conselho expedira instruções a Servaes
Carpentier para desarmar o povo de Goiana. Entretanto, ao ter conhecimento
da ordem, os goianeses pediram ao Conselho que os não privasse de suas
armas, pois 37 portugueses desarmados em Cunhaú pereceram nas mãos dos
tapuias e eles tinham receio de que o mesmo lhes acontecesse, enquanto os
índios não fossem afugentados para longe da povoação. O Conselho
respondeu que o assassínio dos portugueses fora praticado sem seu
conhecimento e contra as suas ordens; que, se mantivessem fiéis, nada tinham
a temer dos tapuias já que estavam sob sua proteção; nem imaginassem que,
com desarmá-los, o Conselho queria torná-los presa fácil dos tapuias. A ordem
visava não só a sua própria segurança, como também fornecer-lhes motivo
justo para evitar que fossem, pelos rebeldes, compelidos a aderir à insurreição.
Reforçou, o Conselho, ao mesmo tempo a ordem dada a Servaes Carpentier,
no sentido de não deixar de desarmar os moradores de Goiana, a pesar de seu
pedido em contrário, e que tivesse o cuidado de ver que nem os soldados, nem
os brasileiros de Maruí lhes fossem pesados. O Conselho destacou também o
Senhor Astetten e o Capitão Willem Lambertsz, aos quais encarregou de levar
cartas a Janduí, rei dos tapuias, e Caracará, comandante de outra tribo de
tapuias, além de presentes a todos os outros chefes militares, a fim de
persuadi-los a se reunirem a nós. Estes últimos, porém, se queixaram por não
terem sido presenteados como o fora Janduí anteriormente. Assim foi que o
Senhor Astetten e o Capitão Willem Lambertsz, tendo-se despedido do
Conselho a 28 de agosto, embarcaram com destino à Paraíba a fim de
seguirem daí para Cunhaú e se porem em contacto com os tapuias.

317
[317] Sobre as atividades de Fernão Rodrigues de Bulhões, convém ler as declarações por
ele feitas e que se encontram na Rev. do Inst. Arq. e Geog. Pern., 1888, n. 35, p. 50-51. Essa
cópia é traduzida do holandês. Nieuhof escreveu Ferdinando Rodrigues de Bulhans ou
Bailloux. (cf. p. 147, 2a coluna 3º §).
Página 233 de 349

Os desembargadores e os membros do Conselho de Guerra juntamente com


os magistrados, representaram ao Grande Conselho demonstrando a
necessidade imperiosa de se demolirem as casas da Cidade Maurícia. À vista
dessa representação, o Conselho fez publicar, a toque de caixa, no dia 29 de
agosto, uma ordem determinando que, dentro de dois dias, o povo procedesse
à demolição das casas, sob pena de qualquer pessoa ter autorização para
fazê-lo em seu proveito. Só deveria ser poupada a casa de Jan Van Rechteren,
que seria convertida em reduto, para a defesa da planície adjacente. Nesse
mesmo dia, Jan Denniger, que havia servido como tenente sob o Coronel
Haus, sucedeu o Capitão Blaer em seu posto de comando, por ter este último
caído prisioneiro do inimigo. Numerosos negros se ofereceram para servir em
uma companhia que seria comandada por um capitão de sua escolha.

O sucesso das negociações

A 30 de agosto, o Capitão Willem Lambertsz regressou da Paraíba ao Recife,


com parte de suas forças, tendo apresentado ao Conselho o seguinte relato
sobre o desempenho da missão que lhe fora confiada: Não sem grande
dificuldade, conseguira, finalmente, do rei Janduí, uma força de 200 tapuias,
pois o rei fingia temer que, durante a ausência de suas tropas, fosse vítima de
alguma incursão de seus vizinhos para massacrá-lo, juntamente com sua
família, exigindo, ao mesmo tempo, que todos os portugueses da Paraíba
fossem passados a fio de espada. Continuando sua informação diz Lambertsz
que, marchando com esses tapuias para a Capitania de Paraíba, exterminaram
eles todos os portugueses que encontraram no trajeto, em número de 100,
aproximadamente, tendo igualmente saqueado suas propriedades; entretanto,
logo que os selvagens perceberam que Lambertsz se dispunha a sanear a
região, metade deles voltou para as selvas, levando os negros aprisionados e o
produto da pilhagem. Continuando a marcha sobre o Recife, através de
Goiana, desconfiados os demais de que encontrariam resistência no caminho,
abandonaram as nossas fileiras e fugiram. À vista disso o Capitão fora forçado
a recolher-se a toda pressa ao forte Margarida na Paraíba, de onde regressara
ao Recife por mar. Ciente do ocorrido, o Conselho enviou, a 16 de setembro,
cartas dirigidas ao rei Janduí no Rio Grande, bem como a Jacob Rabbi e
Roelof Baro, exortando-os a reunir suas forças com as nossas para defesa
mútua bem como para atacar os portugueses que para lá se dirigiam.

Interrogatório do Almirante português feito prisioneiro

A 13 de setembro de 1645,318 Jerônimo Serrão de Paiva, ex-almirante da frota


portuguesa (aprisionado na última batalha naval da Baía de Tamandaré)
compareceu perante o Conselho, e, interrogado sobre a intenção do
Governador, ao despachar uma esquadra e desembarcar forças na Baía de
Tamandaré, bem como sobre a armada comandada por Salvador Correia de
Sá, recusou-se a dar qualquer resposta ou fazer a mínima confissão, limitando-
se a afirmar que tanto a frota como as forças foram enviadas para nos auxiliar
a reprimir a revolta. Pediu também licença para enviar uma carta, por
intermédio de um tambor, aos coronéis Martim Soares Moreno e André Vidal,
318
[318] Na tradução inglesa existe um erro de imprensa, pois está escrito 1685 (cf. p. 107, 1a
coluna 1° §).
Página 234 de 349

com relação à troca de prisioneiros, inclusive de sua pessoa, permissão essa


que foi concedida. À vista de terem alguns cidadãos deixado transparecer a
desconfiança de que a situação difícil em que então se encontravam no Recife,
não fora suficientemente explicada ao Conselho dos XIX, na Holanda, o
Conselho achou melhor revelar-lhes o conteúdo das duas últimas cartas para lá
dirigidas.

Cerca do meio-dia de 19 de setembro toda a nossa frota retirou-se da Baía de


Tamandaré para o porto do Recife, com dois navios de guerra, uma caravela e
um barco menor 319 apreendidos ao inimigo. Há muito já me achava eu no
Recife, pois deixara a esquadra logo depois da batalha. Nessa noite fez-se o
enterro de Servaes Carpentier falecido no dia anterior. Também pela mesma
ocasião foram despachados em missão de patrulhamento para o Cabo Santo
Agostinho o iate Ree e uma das caravelas tomadas ao inimigo, por nós
denominada Recife, a fim de impedir que o inimigo recebesse abastecimento
das adjacências, por via marítima.

Organização de uma companhia de fuzileiros

Sabendo que o adversário fazia grande empenho em conduzir seus rebanhos


para lugares seguros, e também com o fim de impedir o transporte de lenha e
pescado, o Conselho ordenou a organização de uma Companhia de fuzileiros
tirados de outras, que deveria ser confiada ao comando do Capitão Rembagh
com a aprovação do Tenente-Coronel Gartsman 320 e cuja missão seria a de
vigiar constantemente as colunas volantes do inimigo. A 21 de setembro
publicou-se a seguinte proclamação de indulto.

PUBLICAÇÃO DE ANISTIA

Sabendo o Grande Conselho do Brasil Holandês que muitos de seus súditos


feitos prisioneiros, receando a pena capital ou a deportação, engajaram-se nas
fileiras inimigas; sabendo-se que a maioria deles foi enganada por seus
comandantes e talvez esteja a ponto de cair de novo, no mesmo erro, resolveu
pelo presente anistiar a todos que retomarem o nosso serviço, com a promessa
de que terão a vantagem de voltar a ocupar os mesmos postos que tinham
anteriormente entre nós e que, os que desejarem regressar aos seus países de
origem, terão passaporte para esse fim. Deste indulto estão, entretanto,
excluídos Dvrk Hoúgstraeten e outros traidores que no, qualidade de
comandantes de fortalezas nossas, entregaram-nas ao inimigo, por traição. Já
então o inimigo tinha fechado todas as estradas que conduziam ao Recife, na
esperança de nos reduzir à fome, dispondo em forma de meia-lua, de Olinda a
Barreta, tanto as forças portuguesas chegadas da Baía como as tropas
rebeldes; construíram ainda, a meia légua do forte de Afogados, uma trincheira
guarnecida com seis peças de artilharia pesada, trazidas de Porto Calvo.
Entretanto, sabendo que estávamos preparados para resistir, o adversário não
ousou nos atacar.

319
[319] O tradutor inglês escreveu 2 homens de guerra e 2 pequenos navios (cf. p. 107, 1a
coluna 3° § da trad. inglesa e p. 149, 2a coluna da ed. holandesa).
320
[320] O tradutor inglês omitiu "com a aprovação do Tenente-Coronel Garts man" (cf. p. 107,
l." coluna 4° § da ed. inglesa e p. 150, 1a coluna 2° § da ed. Holandesa).
Página 235 de 349

O Senhor Bullestrate enviado para Itamaracá

Por cartas dirigidas ao Conselho, o Senhor Dortmont frisou a necessidade de -


a fim de velar pela segurança de Itamaracá e submeter pela sua autoridade os
brasileiros (1500 entre homens, mulheres e crianças) contra a propaganda de
Camarão que tudo fazia para os atrair às suas fileiras - ser para lá enviado um
membro do Grande Conselho. Atendendo a essa solicitação, o Senhor
Bullestrate foi encarregado de tomar conta dessa Província. Para lá partiu,
portanto, a 23 de setembro, no navio Deventer, e regressando ao Recife a 29
de setembro fez a seguinte comunicação ao Conselho.

Seu relatório

Chegara à desembocadura do rio Maria Farinha, ao meio-dia. Informado por


Jan Vos, comandante de uma barca, que o inimigo havia atacado duas vezes a
cidade de Schkoppe e ainda se achava postado à frente da mesma, Bullestrate
dirigiu-se ao forte de Orange, numa chalupa, com cinco ou seis marinheiros,
mas a guarnição, tão logo o avistou, pediu-lhe que não se aproximasse, pois
ainda estava em contacto com o inimigo, no morro, e era incerto o resultado do
encontro. Despachou então Bullestrate dois marinheiros com uma carta dirigida
a Dortmont, os quais, fazendo jus à recompensa de dois reais espanhóis,
trouxeram, na mesma noite, resposta informando que o inimigo havia sido
rechaçado.

Ao raiar do dia 25 de agosto, o Senhor Bullestrate dirigiu-se à cidade de


Schkoppe numa chalupa e vendo que, fosse pela enérgica resistência
oferecida pela guarnição, fosse de receio do navio, o inimigo havia abandonado
não só a cidade como toda a ilha, ordenou a imediata reparação das
fortificações e a reorganização da defesa.

Os portugueses atacam Itamaracá

Percebendo a inutilidade de nos atacar no Recife, o inimigo enviou contra


Itamaracá, a 20 de setembro, forças consideráveis. Vigorosamente atacadas
de surpresa duas ou três vezes, as nossas forças, que se achavam
entrincheiradas no morro próximo à cidade, (os nossos desertores foram os
primeiros a atacar) foram obrigados a recuar, para instalarem-se no
entrincheiramento da igreja.

Mais ou menos três dias depois, isto é, a 23321, como já ficou dito acima, o
Senhor Bullestrate chegou no Deventer a fim de providenciar a defesa da praça
e manter a disciplina entre os brasileiros. Trouxe com ele alguns voluntários
escolhidos entre os civis, pois a guarnição do Recife estava já tão fraca que
dela não se poderia retirar mais soldados. Além disso, havia em Itamaracá
cerca de 400 brasileiros em condições de pegar em armas. O Senhor
Bullestrate havia recebido do Grande Conselho e do Conselho de Guerra a
incumbência de superintender tudo quanto se relacionasse com a defesa do

321
[321] Nieuhof escreveu dois dias depois, isto é, 23 (p. 151, 1a coluna, últ. §), enquanto o
tradutor inglês corrigiu, escrevendo três dias após. (p. 108, 1a coluna 3° §).
Página 236 de 349

forte Orange que deveria ser mantido a todo custo, caso não fosse possível
conservar toda a parte alta da ilha.

Abandonam de novo a Ilha

Logo que chegou, o Senhor Bullestrate julgou também indispensável manter a


cidade de Schkoppe, por ser aí que o forte se abastecia de lenha; ademais, sua
situação era tal, que, enquanto mantivéssemos o domínio do mar, poderíamos
assegurar a comunicação entre o forte e a cidade Para garantir essa rota, o
iate Gulde Ree teve ordem de ancorar entre o forte de Orange e o morro.
Voltemos, porém, ao cerco da cidade. O inimigo desencadeou três vigorosos
ataques contra as trincheiras do morro, tendo sido rechaçado com a perda de
150 homens, a pesar de que, conforme relatou um barbeiro desertor, o número
de mortos entre os portugueses atingiu a cifra de 450. Camarão e
Hoogstraeten estavam feridos, enquanto que do nosso lado tivemos apenas 15
mortos e 16 feridos322. Os brasileiros para lá transportados recentemente, de
Goiana, Igarassú e outros lugares, portaram-se com extraordinária bravura,
mas a chegada do Senhor Bullestrate abateu-lhes de tal forma o moral, que
abandonaram a ilha na noite de domingo para segunda-feira.

Novas consultas sobre a segurança de Itamaracá

A 2 de outubro o Grande Conselho tratou novamente da defesa de Itamaracá,


pois teve informação de que o inimigo tentara a última expedição contra aquela
ilha, na esperança de ser auxiliado por certos elementos de nosso lado, com os
quais mantinha correspondência secreta. Conquanto o Conselho não pudesse
saber com segurança quem planejava a traição, julgou resolver o problema da
322
[322] A idéia do ataque a Itamaracá foi devida a Dirk Hoogstraeten; como explica Rafael de
Jesus: [i]ele era o mais moderno e a falar primeiro; porém, com ânimo tão fiel, e tão belicoso
que foi seu parecer o último;[/i] imagina seu parecer e afirma, finalmente: [i]De sorte se ajustou
este parecer com o juízo do Governador, e dos Mestres de Campo que estes o confirmaram e
aquele o aprovou[/i] (XLIV, p. 390-392). Vide, também, Varnhagen (LXXIII, p. 302).
Os escritores brasileiros procuraram disfarçar essa derrota, contando-a de um modo confuso
(LXXIII, p. 302). Entre estes, pode-se citar Calado, que atribui a vitória a 450 indígenas que,
receosos de que se não lhes desse quartel, lutaram furiosamente enquanto alguns soldados
nossos, principalmente os vindos da Baía, entregavam-se à pilhagem. (Calado, XVII, p. 268). O
curioso é que, segundo Calado, os holandeses perderam 300 homens (!), fora os índios, e os
restauradores 25 soldados, 12 índios do Camarão e 30 estrangeiros do Mestre de Campo
Hoogstraeten; trouxeram, também, 35 feridos, entre os quais Hoogstraeten. Comparem-se
esses dados com os de Nieuhof. Rafael de Jesus (XLIV, p. 390-399) não foi menos exagerado
em seus cálculos; assim é que afirma que os restauradores tiveram 70 feridos, 60 mortos, 14
portugueses, 12 índios do Camarão, 34 estrangeiros do terço de Hoogstraeten, enquanto os
holandeses perderam 200 soldados e [i]os feridos foram tantos que se lhes não deu número.
Deixou o assalto a todos os flamengos tão medrosos ...[/i]
Já os cronistas do outro lado calculam diferentemente. Assim, Moreau (LIX, p. 85) avalia em
300 os brasileiros e portugueses que perderam a vida. O Diário ou Breve Discurso acerca da
Rebeldia (XXIX, p. 143) afirma que se encontraram no campo 250 mortos, afora os que os
portugueses levaram e enterraram, e que havia mais de 400 feridos; entre os holandeses,
morreram Bivelt, tenente do capitão Sluiter, Jacques Bellan, alferes do Tenente-Coronel, e que
Winsel Smith, antigo Tenente de Hoogstraeten, que se bandeara com este para o lado dos
portugueses, também morrera. O Barão do Rio Branco escreveu que o desembarque efetuou-
se a 20 de setembro e que a luta iniciou-se a 21 de setembro ( LXXV, p. 525, 528). Já o citado
Diário da Rebeldia (XXIX, p. 143) dá o dia 24 como o da luta e que por [i]quatro vêzez[/i] foram
repelidos.
Página 237 de 349

segurança da ilha, de lá retirando o Capitão Sluiter e a companhia sob suas


ordens, substituindo-a pela comandada pelo Capitão Willem Lambertsz, a
quem também seria confiado o comando supremo de todas as forças. Esse
plano foi posto em execução nos dias seguintes. Os entrincheiramentos em
torno da igreja e do forte Orange foram reforçados com paliçadas. Com relação
ao primeiro desses entrincheiramentos e seguindo o parecer de Garstman e
Dortmont ordenei a construção de um contra-forte, atrás do qual seria alojada
uma companhia de brasileiros, com suas mulheres e filhos, sendo os demais
empregados na defesa do forte Orange. Quanto ao reduto que dominava a
praça e de onde provinha o abastecimento de água do forte, dei ordem para
que fosse fortificado, a fim de evitar um ataque de surpresa, pois sem ele o
forte não poderia se manter por muito tempo, nem, talvez, resistir ao embate do
inimigo.

Vidal propõe a troca de prisioneiros

Mais ou menos por essa ocasião, o Conselho recebeu cartas de André Vidal,
por intermédio do Major Agostinho de Magalhães, datadas de 5 de outubro,
propondo a troca de prisioneiros. Dizia Vidal, em sua carta, que, tendo o
Almirante Serrão de Paiva pedido sua libertação, em duas cartas, desejava que
o mesmo fosse trocado por outros soldados ou resgatado por Antônio Teles da
Silva, Governador da Baía. Queria mais, que se fizesse um acordo pelo qual os
prisioneiros civis portugueses pudessem ser postos em liberdade mediante um
resgate razoável. A proposta não foi, entretanto, aceita pelo Conselho.

Quinze portugueses mortos pelos tapuias

Nesse meio tempo, conforme cartas do Comandante do Forte no Rio Grande e


do escolteto Johannes Hoek, datadas de 6 de outubro, ao Supremo Conselho,
Jacob Rabbi, voltando da viagem com o pregador Astetten, com uma pequena
força de tapuias e auxiliado por brasileiros e mais 30 civis holandeses,
ocuparam o sítio de João Lostão, onde assassinaram 15 ou 16 portugueses.
Não foram, porém, tão bem sucedidos em casa de Fernandes Mendes, em
Potigí, onde os rechaçaram, com algumas perdas, os 50 portugueses que a
defendiam323.

Os tapuias eliminam os portugueses do Rio Grande

Perdidas as esperanças de conquistar a Paraíba a traição, o inimigo


concentrou todo o seu poderio em bloquear as comunicações do Recife, na
esperança de reduzir a praça pela fome. Essa operação ocasionou muitas
escaramuças, nas quais os brasileiros, que recebiam do interior a maior parte
de suas provisões, infligiram severos castigos ao portugueses. Para sua
segurança, os lusos construíram um forte em Pernambuco (como também o
fizeram na Várzea, na Paraíba) próximo ao engenho de Jorge Homem
Pinto324;[324] essa defesa, entretanto, era mal fortificada e incapaz de resistir a

323
[323] O tradutor inglês omitiu a referência ao pregador Astetten (cf. p. 152, 2a coluna 4° § da
ed. holandesa e p. 109, 1a coluna 1° § da ed. inglesa). V. nota 261.
324
[324] Nieuhof não especifica, aqui, qual dos engenhos de Jorge Homem Pinto. Este era
judeu, rico proprietário na Paraíba dos engenhos do Tiberí às margens do rio desse nome e do
Página 238 de 349

um ataque enérgico. No Rio Grande, os tapuias bateram os portugueses, pois,


como já disse anteriormente, entraram naquela Capitania, como de costume,
em junho de 1645. Informados de que os portugueses de Pernambuco estavam
revoltados, os tapuias, tomados de ódio inato para com os lusos, atacaram
alguns deles, a 16 de julho, 325[325] no engenho de Cunhaú, matando todos os
que lá encontraram sem que os holandeses das redondezas conseguissem
impedi-lo.

Daí os tapuias marcharam para Monpebú, Goiana e Potosí, localidades essas


também pertencentes ao Rio Grande, onde, encontrando uma força portuguesa
entrincheirada em paliçadas semelhantes a palanques, forçaram-na juntamente
com alguns brasileiros a capitular sob condições de serem poupadas as suas
vidas caso não provocassem mais distúrbios. Todavia, logo depois, alguns
portugueses fugiram para Paraíba e os tapuias tomando esse ato como quebra
do tratado que acabavam de fazer, combinaram com os demais brasileiros
executar os portugueses remanescentes onde quer que os encontrassem, o
que logo fizeram, pois os brasileiros clamavam vingança pelo estrangulamento
de 30 ou 40 de seus camaradas, amarrados às paliçadas de Serinhaém por
ordem de André Vidal. O resultado de tudo isso foi que o Rio Grande ficou
inteiramente expurgado de rebeldes, a exceção de uns poucos sobre os quais
os tapuias não puderam lançar mão. Suas propriedades, inclusive gado, foram
depois vendidas, em benefício da Companhia e de seus credores e os
armazéns públicos foram supridos com boas reservas de carne em boa hora
recebidas. Sabendo os portugueses que recebíamos grandes abastecimentos
daquela região, tentaram os nossos impedi-lo, para lá enviando diversos
expedicionários que, entretanto, foram todos forçados a se retirarem para a
Paraíba, levando com eles todo o gado que conseguiram apreender.

Santo André (cf. Breve Discurso sobre o Estado etc. (XV, p. 156). [i]Os dois engenhos do Tiberí
distam,, entre si, obra, de um tiro de mosquete. Os portugueses chamam o de cima de
engenho de Santa Catarina e o seu proprietário é Jorge Homem Pinto. O outro São Filipe e
Jacó, foi vendido por Manuel Caresmo (Quaresma) Canero (Carneiro) a D. Haen, que o vendeu
a Jorge Homem Pinto. Depois é que, seguindo o Tiberí, encontramos o S. André; é este um
dos principais engenhos desta capitania; fica à margem do Paraíba; o seu proprietário é Jorge
Homem Pinto, Senhor do Tiberí[/i] (p. 251-252, XLI).
Jorge Homem Pinto era um dos grandes devedores da Companhia, não sendo, porém,
considerado como insolvável, por possuir [i]muitos engenhos e por serem seus fiadores
bastante bons.[/i] (Cf. Bolsa do Brasil, trad. por Geraldo Pauwels, Rev. da Sociedade de
Geografia, 1933, T. XXXVII, p. 46). A sua situação não se tornou muito boa mais tarde.
Possuía 9 engenhos (XCLI, p. 335) e tornou-se insolvível, o que motivou o acordo com a
Companhia, de que fala a Bolsa do Brasil.
Em 1645, libertou-se da responsabilidade contraída por esse acordo, passando-se para os
insurretos. (Bloom, XII, pp. 77 e segts.). No apêndice da obra de Bloom se vê que Jorge
Homem Pinto era devedor à Companhia da quantia de 1.245.160 florins, em 1661. (v. também,
p. 139 e segts., XI).
Passou-se para as forças rebeldes por ocasião da proclamação de Vieira, quando este
assegurou aos judeus os mesmos privilégios de que gozavam no período holandês. (Bloom. XI,
p. 140).
Em Vingboons, (XCVII) mapa da Paraíba, vol. II, menciona-se o engenho Tiberí.
Nieuhof confirma, aqui, a retificação que Rodolfo Garcia fez, ao mostrar que a hecatombe de
Cunhaú se verificara no domingo 16 de julho. (cf. Varnhagen, LXXII, Tomo III, p. 34, nota 59).
325
[325] O tradutor inglês escreveu julho de 1645, quando se trata de junho de 1645 (cf. p. 153,
1a coluna 5° § da ed. holandesa e p, 109, 1ª coluna últ. § da ed. inglesa).
Página 239 de 349

De acordo com o depoimento do Capitão Klaes Klaesz, a 15 do mesmo


mês326,[326] interrogado por ordem do Supremo Conselho pelo Assessor
Walbeek, as quatro companhias holandesas aquarteladas na Várzea eram:

Relação das forças inimigas

A Companhia do próprio Capitão Klaes Klaesz, com 63 homens, dentre os


quais 23 mosqueteiros; a Companhia de Alexander Bucholt com 43 homens,
dos quais 36 mosqueteiros; a companhia do Capitão Anthony, que foi
mortalmente ferido no último encontro, composta de 36 homens, dentre os
quais 32 mosqueteiros; a Companhia de Jan de Wit, com 40 pobres
miseráveis, dentre os quais, apenas 12 mosqueteiros. Além dessas, havia duas
outras Companhias holandesas em Goiana, uma comandada por Jorge
Pietersz, com 17 homens armados de piques; a outra, sob as ordens de La
Cour, com 19 homens, quase todos também armados de piques. Na Paraíba,
tinham os lusos, mais duas, sendo uma delas comandada por Pierre Gendre,
de 19 homens, quase todos com piques e a segunda sob as ordens de Eduard
Versman composta de 20 homens, entre os quais havia apenas um
mosqueteiro. Assim é que o total dessas oito companhias não excedia de 257
homens. O Coronel era Hoogstraeten e o Major, Francisco La Tour, ex-
escabino de Serinhaém e inimigo declarado dos holandeses. A maior parte dos
prisioneiros batavos via-se na contingência de ingressar nas fileiras inimigas
para não correr o risco de serem executados a caminho da Baía, como já havia
sucedido a 42 prisioneiros, voluntários e soldados apanhados no forte de Santo
Agostinho, mortos no Engenho Conjaú, próximo a Serinhaém. O capitão Klaesz
declarou, ainda, que as forças inimigas de Várzea compunham-se de 700
homens vindos da Baía, divididos em 9 companhias e bem armados com
mosquetes e arcabuzes. Além desses, dispunham eles de cerca de 1000
homens 327[327] recrutados entre os portugueses, pois haviam obrigado a
todos os moços, desde o Sul de Una até São Lourenço, a pegar em armas; uns
estavam armados de arcabuzes e outros de mosquetes tomados aos
holandeses. Eram, em sua maioria, mulatos e vagabundos indisciplinados,
comandados por João Fernandes Vieira, no posto de Mestre de Campo e
Antônio Dias (vindo da Baía) no de Sargento maior328. [328] Seus capitães,
muito estimados entre eles, eram Simão Mendes, Domingos Fagundes e João
de Albuquerque. Camarão comandava 100 brasileiros armados de bacamartes
e Dias 200 negros (dos quais 50 eram nossos) providos de boas armas, e
alguns tapuias. Cada soldado tinha, como ração diária, meio quilo de carne e
um pouco menos de meio litro de farinha sem nada mais. Ganhavam 12 florins

326
[326] O tradutor inglês escreveu 12 de novembro (cf. p. 109, 2a coluna, 2° § da ed. inglesa e
p. 153, 2a coluna últ. § da ed. holandesa).
327
[327] O tradutor inglês escreveu 100 homens (cf. p. 110, 1ª coluna, 1° § da ed. inglesa e p.
154, 2a coluna, 1° § da ed. holandesa).
328
[328] Nieuhof escreveu (p. 154, 2a coluna, 3° §) Coronel e Major. É um equívoco, pois tais
postos não existiam no século XVII e sim os de Mestre de Campo e Sargento-Mor (ver nota p.
290). Antônio Dias Cardoso era militar de primeira linha do exército, com praça de soldado em
1624 (cf. Biografia da A. J. Melo, Tomo I, p. 109). Foi para a Baía e lá voltou em 1645, com 45
soldados e logo foi nomeado sargento-mor de toda a gente do bando da liberdade (Calado,
XVII, p. 188). Como escreveu Varnhagen (LXXIII, p. 260), Antônio Dias Cardoso deve ser
considerado como o verdadeiro orientador militar da campanha, até a chegada de André Vidal
de Negreiros e, mais tarde, de Francisco Barreto de Meneses.
Página 240 de 349

por mês. Um capitão vencia 120 florins, um alferes 42, um sargento 21 e um


cabo 15 florins por mês. Pagavam em dinheiro as tropas holandesas, enquanto
que, com os portugueses vindos da Baía, só acertavam contas uma vez por
ano. O inimigo estava, por aquela época, ocupado na construção de um forte
com quatro pequenos bastiões e um paiol de pólvora, entre o Engenho
Bierboom e a Casa de Sobrado. Em cada bastião seriam montadas duas ou
três peças de artilharia, sendo que 8 delas tinham sido trazidas de Porto Calvo;
cinco eram de metal. Os soldados vindos da Baía estavam aquartelados em
torno deste forte, com exceção da companhia sob o comando de João
Magalhães que estava aquartelada em Barreta com quatro companhias
holandesas a saber: os holandeses que estiveram no engenho de Bierboom, os
comandados pelo Capitão Pedro Cavalcanti e Antônio Jacomo; duas ou três
Companhias de portugueses provenientes da Baía estavam aquarteladas no
Engenho do Brito329.[329] Os demais eram portugueses, mulatos e vagabundos
que foram obrigados a acompanhar a tropa, do Sul. Estes estavam, em sua
maioria, armados de arcabuzes e mosquetes; os demais com piques. André
Vidal, João Fernandes Vieira e o Major Hoogstraeten achavam-se então na
Casa de Sobrado. Todos esses homens somavam, quando muito, 600.
Próximo ao engenho de João de Mendonça330,[330] estavam aquarteladas três
Companhias; sendo duas outras na casa de Sebastião Carvalho e mais duas
no engenho do Mengao. As demais estavam nas Salinas, em Barreta e na
cidade de Olinda. Algumas das tropas sob o comando de Camarão estavam no
Engenho de Van Schot e na casa de João Cordeiro de Mendonça à margem do
rio e constituíam a guarda avançada. Henrique Dias e sua tropa estavam
aquartelados na casa do Senhor Lufselen. Os redutos de Olinda estavam
guarnecidos com 17 homens.

Em novembro, o Grande Conselho recebeu aviso da Paraíba, por carta de


Paulus de Linge, e por diversos desertores, de que o inimigo havia enviado 400
homens, 200 dos quais eram soldados regulares, e os demais, moradores do
Rio Grande e da Paraíba, para conquistar a região, ou pelo menos para tanger
todo o gado. Resolveu-se então, com o consentimento do Coronel Garstman,
procurar impedir que o inimigo levasse a efeito o seu plano.

O Capitão Klaesz deserta o inimigo

A 12 de novembro, o Capitão Klaes Klaesz, natural de Amsterdã, veio ter


conosco, no Recife, como já ficou dito atrás. Tinha estado entre os prisioneiros
do cabo Santo Agostinho e de lá levado para Santo Antônio, onde se pusera a
serviço do inimigo com a intenção de desertá-lo na primeira oportunidade. Fora
então comissionado no posto de Capitão, tendo sob suas ordens uma
companhia de holandeses que, tendo sido feitos prisioneiros, foram obrigados
a servir nas fileiras inimigas. Hoogstraeten e Albert Gerritsz Wedda
determinaram, a 30 de outubro331[331] com o assentimento de Vidal e João

329
[329] Na freguesia da Várzea existia o engenho de Francisco de Brito (cf. Breve Discurso,
XV, p. 150).
330
[330] O engenho de João de Mendonça estava situado na freguesia da Várzea (cf. Breve
Discurso, XV, p. 150).
331
[331] O tradutor inglês omitiu a data. (cf. p. 155, 2a coluna, 2° § da ed. holandesa e p. 110,
2a coluna, 3° § da ed. inglesa).
Página 241 de 349

Vieira, que Klaesz fosse preparar uma cilada contra forças nossas, em Salinas,
com uma força de 60 holandeses, composta de elementos tirados das quatro
companhias de holandeses a serviço dos portugueses. Como reforço,
destacaram mais quatro Companhias da reserva. Tendo-lhe sido confiado o
comando supremo dessas forças, Klaesz aproximou-se o mais que pode do
forte Bruin, com seus soldados holandeses. Ao raiar da aurora aproveitou a
oportunidade para atravessar o rio passando com seus homens (todos
desejosos de o seguir) para o nosso lado, no dito forte. O Conselho resolveu
então confirmar Klaes Klaesz no comando de sua companhia, que se dispôs a
entrar para o nosso serviço. Entretanto, logo que o inimigo percebeu que fora
traído, desarmou todos os holandeses, a pretexto de enviá-los para a Baía, e
passou-os todos a fio de espada, em caminho, juntamente com suas mulheres
e filhos.

Os holandeses batem os portugueses

A 2 de novembro, o Conselho recebeu aviso do Senhor Linge, datado de 1° do


mesmo mês 332,[332] na Paraíba, no sentido de que André Vidal tinha entrado
naquela Capitania com 200 homens e que Camarão tinha escrito a Pedro Potí
insistindo para que desertasse do nosso serviço, com seus brasileiros;
recebera, também, porém, formal recusa. O Conselho enviou-lhe, como
recompensa de sua fidelidade, duas peças de fino linho.

Quando os portugueses começaram a se armar contra o Governo, procuraram


induzir, por meio de cartas repletas de promessas, os regedores ou
comandantes dos brasileiros a se reunirem a eles. Estes, porém, não
acederam, ao contrário, enviaram ao Conselho, sem abri-las, as cartas
enviadas por Camarão e outros chefes revolucionários, a fim de evitar que
sobre eles pairasse a suspeita de manter correspondência com o inimigo.
Pedro Potí era parente próximo de Camarão. Desde então os referidos chefes
brasileiros se portaram tão corretamente e de tal forma atacaram os
portugueses, onde quer que os encontrassem, matando-os e pilhando-os, que
jamais tivemos ocasião de duvidar de suas sinceridades e intenções.

Os tapuias assassinam muitos portugueses

O mesmo Senhor Linge informou a 04 de novembro que o inimigo nada tentara


até então. A 14 do mesmo mês, informou que 300 dos nossos, auxiliados por
alguns brasileiros da Paraíba, se tinham empenhado em luta com 800 inimigos,
rechaçando-os depois de feroz embate, no qual os portugueses perderam bom
número de homens. Estimulados por essa vitória os brasileiros percorreram
toda a planície, e, encontrando um grupo de portugueses que festejavam a
noite de São Martinho, no Engenho de André Dias de Figueiredo, atacaram-nos
tão furiosamente que, depois de uma fraca resistência, foram todos
massacrados, inclusive um filho do tal Figueiredo e um padre, sem poupar
ninguém, exceto uma linda moça. Esta, a pesar de quase ter perdido a razão
ao assistir a morte de seu pai e ver diversos parentes seus banhados de

332
[332] O tradutor inglês omitiu "de 1° do mesmo mês" (cf. p. 155, 2a coluna, últ. § da ed.
holandesa e p. 111, 1a coluna, 1° § da trad. inglesa).
Página 242 de 349

sangue, exerceu tal influência sobre o coração desses bárbaros, a ponto de


conseguir que a levassem prisioneira ao forte da Paraíba.

Os holandeses atacam os portugueses perto de Cunhaú, com sucesso

À noite de 21 de novembro, 160 soldados holandeses e 200 soldados 333 [333]


provenientes do Recife zarparam em pequenos botes da Baía de Traição e
seguiram viagem durante a noite sob o comando do Tenente Van Berge, do
escabino Hoek e do regedor Paraupaba, rumo a Cunhaú, a fim de atacar o
inimigo recém-chegado ao Rio Grande, procedente da Paraíba. Entretanto,
informado sobre o nosso plano, o inimigo retirou-se de Cunhaú para um
entrincheiramento situado em zona pantanosa. Sendo essa posição acessível
apenas por um lado, os portugueses receberam as nossas forças com intensa
fuzilaria. Mesmo assim, porém, foram obrigados a se retirar para o Castelo de
Keulen, em parte para dar descanso aos seus homens e em parte para evitar
que penetrassem mais a fundo no Castelo.

A 4 de dezembro resolveu-se mandar o navio Over-Yssel e o barco Spreeuw


para a Baía, a fim de ver se conseguiam saber qual a força naval do inimigo e
tentar fazer alguma presa.

Convocação dos chefes brasileiros

A 5 de dezembro o Grande Conselho convocou todos os comandantes


brasileiros para lhes informar que tinha recebido considerável fornecimento de
pólvora, balas e outras munições pelo navio Zwaen, que também trouxera
cartas da Holanda comunicando estar sendo preparada uma grande esquadra
de socorro. Os brasileiros ficaram muito satisfeitos com a notícia. Os
comandantes portugueses, porém, esforçavam-se por persuadi-los de que
nada disso se esperava da Holanda.

Aviso de que todos os holandeses foram mortos pelos portugueses

Na mesma noite, um desertor brasileiro declarou que todos os holandeses


foram mortos pelos revoltosos e que suas mulheres e filhos foram
escravizados. O mesmo afirmou um negro desertor com respeito ao Capitão
Boekholt, que, tendo estado a prestar serviço ao inimigo e depois suspeitado
de traição, foi executado como o tinham feito aos demais holandeses em suas
fileiras, mortos a caminho da Baía.

Organização de 4 companhias de fuzileiros

A 7 de dezembro de 1645, foi resolvido em Conselho que se organizassem


mais 4 companhias de fuzileiros, pois a experiência indicava que tais forças
tinham mais utilidade na campanha. Para tanto, foram aproveitadas as
Companhias do Coronel Garstman, Capitão Juriaen Reembargar, do Capitão
Niklaes Niklaez e do Capitão Snijder, de preferência a qualquer outra.
333
[333] O tradutor inglês escreveu: "360 soldados, dos quais 20 provenientes do Recife" (cf. p.
156, 2a coluna, 1° § da ed. holandesa e p. 111, 2a coluna, 1° § da trad. inglesa)
Página 243 de 349

Ainda no mês de dezembro caiu prisioneiro dos brasileiros na Ilha de Itamaracá


um português de nome Gaspar Gonsalves que fora enviado especialmente
para persuadi-los de que os holandeses pretendiam entregá-los aos
portugueses, mediante certa soma em dinheiro, e depois se retirarem com seus
efetivos para a Holanda. Essa informação produziu não pequena comoção
entre os brasileiros, que começaram a dar crédito ao informante. E, tendo
Gaspar Gonsalves espalhado o boato um pouco antes da chegada de Kaspar
Honighuizen (que a 28 de agosto fora nomeado comandante em chefe dos
brasileiros em Itamaracá em substituição a Johan Listry, aprisionado pelo
inimigo) não sabia este como dissipar esse receio, pois que Jacob Rabbi,
segundo carta de 11 de dezembro, estava se preparando para fazer uma
incursão de 80 milhas à procura dos tapuias, a fim de solicitar-lhes auxílio.
Entendeu-se finalmente com Oype, genro do rei Janduí, que lhe prometeu,
caso os de Ceará nos enviassem suas tropas, tentar mobilizar o maior número
possível de seus vassalos; o rei Janduí escusou-se, porém, alegando que
muitos de seus combatentes haviam morrido de moléstia, no Sertão.

Na noite anterior a 27 de dezembro, o inimigo, servindo-se de uma jangada,


colocara duas bonecas com fogos de artifício, a bordo do navio Zwaen. Logo,
porém, que começaram a queimar, foram descobertas e apagado o fogo sem
causar dano algum à embarcação. O fato serviu, entretanto, para que daí por
diante se mantivesse uma vigilância constante .

Os portugueses tentam incendiar os navios holandeses

A 30 de dezembro, duas idênticas bonecas, encontradas em um pequeno bote


junto ao Forte Bruin foram encaminhadas ao Conselho. Essa jangada, que sem
dúvida fora para lá conduzida com o fim especial de atar as bonecas aos
navios, avistada pelas sentinelas, foi pelos seus ocupantes abandonada
juntamente com as bonecas.

Em sua carta datada do Forte Margarida, na Paraíba a 30 de dezembro, e


recebida a 31,334[334] o Senhor De Linge dizia que certo negro desertado do
inimigo em Santo André declarara que os portugueses tinham construído duas
grandes barcas com capacidade para 300 homens cada uma para com elas
atacar o entrincheiramento de Pedro Potí, comandante dos brasileiros; que
Camarão tinha se demorado cerca de três semanas na Paraíba; que a tropa
inimiga consistia em cerca de 15 ou 16 companhias, mas que havia muitos
doentes por falta de recursos e que todas as forças adversárias do Rio Grande
se haviam retirado.

A missão de Pieter Bas

Informes sobre as intenções do inimigo

A 6 de janeiro de 1646, Pieter Bas, um dos membros do Grande Conselho, por


ordem deste, zarpou com duas caravelas - o Lichthart e o Recife - e uma barca
denominada Blauwe Bôer com destino às Capitanias de Paraíba e Rio Grande.
334
[334] O tradutor inglês omitiu a data do recebimento da carta (cf. p. 158, 1a coluna, 1° § da
ed. holandesa e p. 112, 1a coluna, últ. § da trad inglesa)
Página 244 de 349

Levava instruções para consultar o Senhor Linge, Comandante em Chefe da


Paraíba e demais oficiais, sobre a maneira de pôr em boas condições de
defesa os entrincheiramentos e outras obras dos brasileiros. Daí deveria ir para
o Rio Grande, onde faria uma relação das propriedades de portugueses, as
quais, por estarem seus donos ligados aos rebeldes, deveriam reverter à
Companhia. Cumpria-lhe também tentar recambiar para a Companhia as
mercadorias que pelo mesmo motivo se achassem escondidas ou sonegadas.
Levava, ainda, instruções no sentido de tomar todas as providências que
julgasse conveniente aos nossos interesses, mas principalmente pela
segurança da Capitania. Assim, fora igualmente incumbido de exortar os
habitantes a se consagrarem com firmeza ao cumprimento de seus deveres,
sem descuidar do cultivo da terra e da criação de gado.

Conferência sobre o caso

Sua Resolução

Pieter Duinkerken regressou à Paraíba a 12 de janeiro, depois de fazer um


cruzeiro ao largo do Recife, no navio Hamel, trazendo uma carta do Senhor
Linge, datada do Forte de Santa Margarida, a 11 de janeiro. O Senhor Linge
havia encaminhado ao Conselho o Senhor Pieter Steenhuizen, que fugira ao
inimigo quando este iniciara a matança dos holandeses a seu serviço. Esse tal
Steenhuizen trouxera notícias de que Camarão seguira da Paraíba para o Rio
Grande, à frente de 500 soldados escolhidos, para ocupar o interior da
Capitania e assim impedir que as nossas guarnições de lá recebessem gado e
farinha. Informou também que o inimigo já sofria escassez de carne, azeite,
vinho, e outros gêneros mas, por outro lado, o povo alardeava que, por falta de
provisões, logo teríamos que entregar os nossos fortes aos portugueses.
Confirmada a informação pelo Senhor Linge, em sua carta de 10 de janeiro,
convocou-se um conselho, a reunir-se a 13 de janeiro, ao qual deveriam
comparecer os Senhores Hendrik Hamel e Bullestrate, membros do Grande
Conselho, o assessor Walbeek, o Tenente-Coronel Garstman, os senhores
Raets Vald, de Wit, Alrich Volbergen e Lems, a fim de deliberar sobre a
situação. Considerou-se, então, que, se o inimigo dominasse o interior e nos
privasse do fornecimento de gado e farinha do Rio Grande, justamente numa
ocasião em que Itamaracá e Paraíba também estavam bloqueadas, ser-nos-ia
quase impossível manter a posse do Brasil Holandês, enquanto não
chegassem da Metrópole os socorros esperados. Discutiu-se, nessa reunião,
se seria mais fácil manter esta Capitania por meio de uma poderosa digressão
ou se, ao contrario, seria melhor tentar a expulsão do inimigo. Sabendo-se,
porem, que o adversário estava tão forte, perto do Recife, na Paraíba e em
Itamaracá, a ponto de não se poder atacá-lo, nesses lugares, sem que todo o
Brasil Holandês corresse perigo iminente, resolveu-se que, para tentar a
libertação do Rio Grande, se baixassem ordens ao Senhor Dortmont, para que
mandasse de Itamaracá para o Rio Grande 60 soldados e 100 brasileiros sob o
comando do Tenente Welderen, nas barcas especialmente remetidas para
esse fim. Na mesma ocasião determinou-se ao Senhor Linge, Comandante do
forte Santa Margarida, na Paraíba, que enviasse para o Rio Grande igual
número de homens sob o comando do Tenente Bransma, a fim de encontrar
com as demais forças. Tais tropas, compostas de 120 soldados e 200
Página 245 de 349

brasileiros, consideradas suficientes para cercear os planos do inimigo no Rio


Grande, para lá zarparam a 19 de Janeiro.

Batidos os portugueses

Por carta de 15 de Janeiro os senhores Dortmont e Willem Lambertsz


comunicaram ao Conselho que haviam expedido um corpo de 60 soldados e
100 brasileiros ate Aldeia, perto de Obu e dai para o Engenho Araripe, 335sem
que encontrasse inimigo algum na região, a pesar de ter sido a força alvejada
por disparos de dentro do mato; por isso a tropa regressara a Itamaracá, via
Itapissuma.

Logo depois o Senhor Linge, por carta de 22 de Janeiro, expedida do forte


Santa Margarida, na Paraíba, comunicou ao Conselho que Pedro Potí com 150
brasileiros atacaram o inimigo - constante de 400 homens - na Aldeia de
Miageriba,336 matando 20 e ferindo muitos, com perda de apenas um brasileiro.

A 29 de Janeiro foi resolvido pelos Conselheiros Hamel e Bullestrate trazer


para o porto do Recife os navios Elias, Orangeboom, Deventer, Omlandia e
Zwaen, onde deveriam ficar de prontidão para qualquer eventualidade, caso o
inimigo de novo aparecesse no mar.

O Senhor Bas dá conta de sua missão

Consultas

Consoante sua carta escrita do Castelo de Keulen, no Rio Grande, a 23 de


Janeiro, ao Supremo e Secreto Conselho, devido a uma tempestade, o Senhor
Bas não pôde desembarcar suas forças em Cunhaú a fim de reuni-las às do
Capitão Reinbergh. Só conseguiu efetuar o desembarque nos dias 14 e 15 do
mesmo mês, junto a Pirangí. Nesse ínterim, Camarão logrou romper através da
Mata, e, surpreendendo várias pessoas nas fazendas, massacrou-as, sem
distinção de idade nem de sexo. Colocou-se, depois, com suas forças
compostas de 400 brancos, outros tantos brasileiros e 80 tapuias sob o
comando de Antônio Jácomo Bezerra, na propriedade de Henrik van Hamme,
situada em Monpebú com o propósito de interceptar nossos abastecimentos de
gado e farinha. As forças batavas, compostas de cerca de 1000 soldados,
brasileiros e tapuias, marcharam para o sítio de João Lostão Navarro, a fim de
atacar o inimigo e forçá-lo a abandonar a Capitania do Rio Grande. Além dessa
tropa, Jacob Rabbi e os filhos do rei Janduí com 60 tapuias passaram, a 19
daquele mês, pelo forte Keulen, sendo diariamente seguidos por outros que

335
[335] O engenho de Obu, situado no distrito de Araripe, pertencia a Francisco Lugo Brito; o
[i]engenho Araripe de Baixo, sob a invocação de Nossa Senhora do Ó[/i] pertencia a Francisco
Lopes Osório; também existia o [i]Araripe de Cima, sob a invocação do Bom Jesus,[/i]
pertencendo ao mesmo Francisco Lopes Osório. Nieuhof não precisa, aqui, qual dos dois
Araripes, foi preciso não confundir com o outro Araripe de Cima, que pertencia a Gonçalo Novo
de Lira e demorava em Iguassii (cf. Breve Discurso, XV, n. 34. 1887, p. 1B5, e quanto ao
segundo Araripe de Cima, p. 152; nota 239).
336
[336] Nieuhof escreveu Magrebbe (p. 159, 2a coluna). Pedro Poti era capitão na Aldeia
Miageriba, na Assembléia dos Índios reunidos em Itapesserica (cf. Souto Maior, LXXXVIII, p.
415).
Página 246 de 349

vieram em nosso auxílio. O Senhor Bas solicitou o fornecimento de víveres, de


que estavam grandemente necessitados, pois havia cerca de 1500 brasileiros,
entre velhos, mulheres e crianças, alojados no Castelo. Pediu também algum
dinheiro, munições, linho e sedas com que presentear os brasileiros e tapuias.
Tudo isso lhe mandou o Conselho e mais algumas peças de fazenda vermelha.

Seu resultado

Tomando em linha de conta esse aviso, e sendo de recear que o inimigo, não
resistindo ao assalto no Rio Grande, se retirasse para a Paraíba, ponderou-se,
a 29 de janeiro, se seria aconselhável persegui-lo, até a Paraíba, caso ele para
lá se dirigisse voluntariamente ou impelido pelas nossas tropas, tentando a
seguir, desalojá-lo também daquela Capitania. Entretanto, considerando que,
dada a fraqueza de nossas guarnições, não poderíamos mandar mais reforços
do Recife, de Itamaracá ou da Paraíba, sem que as nossas tropas nesses
lugares corressem grave risco; que, ao contrário, ao inimigo não faltavam
meios de reforçar as suas fileiras com elementos das adjacências; e mais, que
esperávamos a qualquer momento a chegada de socorros da Holanda,
resolveu-se não arriscar, numa empresa dessa ordem, todo o Brasil Holandês.

Expediram-se, por isso, instruções ao Senhor Bas e aos demais comandantes


de nossas tropas, no sentido de agirem com todo o cuidado possível,
contentando-se com a recuperação da Capitania do Rio Grande e não
perseguindo o inimigo até a Paraíba.

O Coronel Garstman é enviado ao Rio Grande

A 30 de abril,337 por ordem especial do Conselho, foi o Coronel Garstman, pela


segunda vez, enviado com alguma tropa para a Capitania do Rio Grande, a fim
de procurar saber se lá havia alguma força inimiga e qual o seu montante.
Levava instruções para, tão logo tivesse informações sobre o inimigo, reunisse
todas as forças que pudesse e tentasse impedir sua marcha. Se, porém, não
se julgasse suficientemente forte para lhe dar combate, que mandasse avisar o
Conselho o mais depressa possível, a fim de lhe serem remetidos reforços
urgentes; e finalmente, que tivesse todo o cuidado possível para que se não
visse forçado a enfrentar o inimigo, antes da chegada de tais reforços. Caso
encontrasse o adversário já solidamente instalado e senhor da região, deveria
concentrar todo o seu cuidado na defesa do forte Keulen, bem como dos
brasileiros, suas mulheres e filhos. E, desde que, estando o forte Keulen em
risco de ser atacado pelo inimigo, seria perigoso manter, abrigadas em suas
fortificações, mulheres e crianças, devido à possível falta de víveres, foi-lhe
cuidadosamente recomendado que as fizesse transportar com tempo para
algum lugar seguro, como Ceará, onde pudessem ser postas ao abrigo do
adversário.

Garstman teve também instruções de, se possível, quando de seu regresso


para o Recife, examinasse, ao passar, as fortificações de Itamaracá e Paraíba,
para informar o Conselho, sobre o seu estado.
337
[337] O tradutor inglês escreveu 30 de março (cf. p. 160, 2a coluna, 2° § da holandesa e p.
114, 1a coluna, 2° § da ed. inglesa).
Página 247 de 349

Os holandeses atacam sem sucesso

Mas, voltando ao Senhor Bas. Dizia ele em sua carta de 30 de janeiro, escrita
do Forte Keulen, que o Capitão Reimbach e sua força tinham atacado o inimigo
diversas vezes forçando-o a se retirar de Monpebú e Cunhaú para uma região
pantanosa sem entretanto ter conseguido forçar as posições contrárias.
Perdemos cerca de 100 homens entre mortos e feridos e as nossas forças se
retiraram para a casa de João Lostão com ordem de obter algum gado que já
se tornara bastante escasso pelas redondezas.338

As nossas forças vinham se alimentando quase que exclusivamente de peixe,


que apanhavam com auxílio de duas grandes redes. Vinte e oito dos nossos
feridos foram transportados para o Recife, na caravela Lichthart, juntamente
com a notícia de que a pesar de ter falhado o nosso ataque o inimigo se
retirara para a Paraíba. O Senhor Bas pedia também novas provisões de
homens e munições a fim de perseguir o adversário na Paraíba. Entretanto, a
solução deste assunto foi deferida até que o Conselho recebesse novas
notícias do Senhor Bas.

A 7 de fevereiro, o Conselho resolveu, com aprovação do Tenente Almirante


Lichthart, equipar os navios Hollandia e Zwaen, bem como o iate Vlught e as
caravelas Hamel, Bullestrate e Lichthart, para viagens de cruzeiro.

Informações do Senhor Linge

A 11 de fevereiro, o Senhor Linge escreveu do forte Santa Margarida, na do


Senhor Paraíba, dizendo que, segundo o depoimento de um negro desertor,
Camarão tinha ido com todas as suas forças atacar os fortes da cidade de
Paraíba. O Conselho respondeu, imediatamente, dando as instruções que
julgou necessárias e despachou uma embarcação especialmente para levar a
carta. Outro correio, enviado pelo Senhor Bas do Rio Grande, informou o
Conselho de que ele ainda estava acampado com sua tropa junto à
propriedade de João Lostão, onde só a custo conseguia obter provisões; o
inimigo ainda estava em Mamanguape, vigiando todos os caminhos do interior;
ele (o Senhor Bas) havia despachado diversos espiões a ver se conseguia
notícias sobre a situação exata do inimigo.

A 17 de fevereiro o Zwaen e a caravela Bullestrate tiveram ordem de partida; a


18 zarpou também, com idêntica missão, o iate Vlught e o navio Hollandia a 20.
Largou, ainda, nesse mesmo dia o navio Over-Yssel, com o fim de patrulhar a
costa da Paraíba.

338
[338] O número de feridos varia muito em diversos cronistas. Em Calado (XVII, ,p. 310 e
311), 74 holandeses mortos, 17 índios e 500 feridos, dos quais a maioria morreu em caminho;
do lado de Camarão, apenas 3 feridos. Rafael de Jesus avalia em 115 mortos e no demais
igual a Calado (XLIV, p. 447). Diogo Lopes Santiago (LXXXII, p. 409-411) afirma que os índios
de Camarão aproveitaram da vitória para o abastecimento de armas e munições. Do lado
holandês morreram o capitão comandante Reimbach, seu substituto Otto der Ville, e o
sucessor deste no comando, Breentsma, que ficou ferido. Segundo Santiago e o Jornal de
Arnhem (XXIX, p. 125), o combate verificou-se a 27 de janeiro. Rio Branco (LXXV, p. 75),
porém, assegura que se verificou a 26 de janeiro.
Página 248 de 349

Destacamentos despachados sem resultado

A 21 de fevereiro os Conselheiros Hamel e Bullestrate receberam comunicação


do Senhor Linge, datada do forte Santa Margarida, a 18 do mesmo mês,
dizendo que nenhuma notícia mais tivera do inimigo. Entretanto, queria que as
forças enviadas ao Rio Grande regressassem o mais rapidamente possível,
para que pudesse empregá-las na defesa de seus fortes, em caso de ataque. A
24 de fevereiro, despachou-se um destacamento sob o comando dos capitães
Killiaen Snijden e Klaes Klaesz, em direção à ilha de Barreta, a fim de escoltar
alguns prisioneiros, sem que, entretanto encontrasse, no trajeto, pessoa
alguma a não ser um homem, isso mesmo a grande distância. Outro
destacamento que se dirigira para Olinda e Braço de São Tiago teve sorte
idêntica, pois o inimigo só apareceu a distância considerável quando nossa
força já voltava para o forte Bruin. A 27 de janeiro339 o adversário surgiu,
numeroso, em Salinas, mas, recebido a tiros de peça pelo forte Bruin, retirou-
se sem nada tentar.

Notícias da Paraíba

Nesse ínterim, conforme carta do Senhor Linge, datada de 2 de março, três


barcaças carregadas de soldados aportaram à Paraíba, procedentes do Rio
Grande, de maneira que o restante das forças sob o comando do Senhor Pieter
Bas, composta de 500 homens, poderia ser esperado no Recife a qualquer
momento. Informava ainda o Senhor Linge que não havia avistado o inimigo
ultimamente, mas, ciente de que em um vale, próximo à Aldeia ou à vila de
Miageriba, se achava acampada numerosa tropa, para lá enviara 120 soldados
e 100 brasileiros a fim de atacá-la e trazer alguns prisioneiros. Com efeito, a 4
de março, chegava Bas ao Recife com sua tropa, composta de 500 homens,
procedente do Rio Grande, e, no dia seguinte, deu contas ao Conselho de sua
expedição.

Diversas escaramuças

Na noite de 9 de março, três corpos inimigos surgiram junto ao forte Príncipe


Guilherme e dispararam diversas salvas de armas pequenas. Entretanto, ante
a pronta resposta de nossa artilharia, retiraram-se imediatamente. No mesmo
dia despachou-se um destacamento de 50 homens sob o comando do Tenente
Mos a fim de colher informações. Tendo, porém, encontrado duas companhias
inimigas, feriu-se vigoroso embate após o qual as nossas forças se retiraram,
para o forte Waerdenburgh, sem grandes perdas, e o inimigo foi forçado a fugir
ante as nossas descargas de artilharia. Por carta de 8 de março, datada do
forte Santa Margarida, na Paraíba, o Senhor Linge transmitiu ao Conselho a
má notícia de que, no Rio Grande, o inimigo havia, por meio de uma retirada
simulada, atraído o Tenente Jan de Wale, com 48 soldados, a uma
emboscada, onde se perderam 30 homens, conquanto, pelo que informaram
alguns desertores que tomaram parte no encontro, também o inimigo tivesse
sofrido pesadas baixas.

339
[339] O tradutor inglês escreveu 27 de fevereiro (cf. p. 162, 1a coluna, 3° ed. holandesa e p.
115, 1a coluna 1° § da ed. inglesa).
Página 249 de 349

Nesse combate estiveram presentes Camarão, André Vidal e outros oficiais


portugueses. Mais ou menos na mesma ocasião, 15 brasileiros surpreenderam
cinco homens, seis mulheres e oito crianças num entrincheiramento
denominado Papecú e situado sete horas340 acima de Igarassú.

Propostas para sair a campo

Entrementes, os tapuias, que costumam descer das montanhas às centenas,


mais ou menos pelos meados do verão, atacaram a Capitania do Rio Grande,
e, depois de se apoderarem de todos os animais que puderam encontrar,
voltaram para suas tabas. O regresso dos índios foi ótimo para nós, pois, sem
nossas guarnições, não nos seria possível subsistir lá. Escasseando dia a dia
as provisões do Recife, o Conselho decidiu a 6 de março mandar para
Itamaracá os brasileiros engajados no Rio Grande, juntamente com uma
companhia de fuzileiros, a fim de transportar as reservas dos nossos armazéns
e conseguir um pouco de mandioca na ilha. Apresentaram-se então ao
Conselho, os Majores Bayert e Pistor para dizer que tendo tido conhecimento
de que o povo começava a murmurar contra o fato de se acharem eles em
casa, a pretexto de guarnecer os fortes - para cujo fim constava que o
Almirante Lichthart havia oferecido 300 homens, - vinham oferecer seus
serviços, declarando estar prontos para sair a campo com as poucas forças
que lhes restavam das guarnições. Protestaram, ao mesmo tempo, os oficiais
não concordarem com a decisão aprovada dias antes, no sentido de que,
devido à pequena força de que dispunham, a empresa seria arriscada e não
teria utilidade no sentido de trazer provisões para o Recife. Interrogado o
Almirante Lichthart sobre se havia feito qualquer oferta desse gênero, declarou
ele nada haver dito a esse respeito e que os seus navios estavam tão mal
guarnecidos que jamais poderia dispensar homens para qualquer outra
finalidade.

Os portugueses atacam um forte de madeira perto do Recife

Na noite anterior a 13 de março, o inimigo apareceu do outro lado do rio e


sobre o dique que conduz ao forte Bruin, até ao tribunal, descarregando seus
mosquetes e bacamartes e arcabuzes contra as sentinelas; entretanto, à
primeira salva dos nossos canhões ele se retirou. Fato idêntico ocorreu no forte
dos Afogados. Nessa mesma noite, entre nove e dez horas, o inimigo
desfechou um ataque contra a fortificação de madeira, para defesa da planície,
situada entre o forte dos Afogados e o Quinquangular. A investida durou uma
hora.

Os portugueses cortaram parte da paliçada e tentaram amontoar, junto a ela,


mato seco a fim de a incendiar; não o conseguiram, entretanto, sendo forçados
a se retirar com perda de alguns homens. De nosso lado tivemos dois mortos e
quatro ou cinco feridos, entre os quais o Tenente Kaspar Ferdinandes van Grol,
que recebeu dois ferimentos graves. Na manhã seguinte foram reparadas as
estacadas estragadas, e deu-se ordem para a construção de outra por fora da
primeira, colocando-se ainda toda a sorte de obstáculos de permeio. No dia 17
340
[340] O tradutor inglês escreveu 7 léguas, quando se trata de 7 horas. (Cf. p. 162, 2a
coluna, 3° § da ed. hol. e p. 115, 2a coluna, 1° § da ed. inglesa).
Página 250 de 349

de março a barca Paraíba procedente de Ceará trouxe a informação de que os


brasileiros tinham se deslocado daquela localidade para Camocim, tendo
recusado seguir para o Rio Grande, de receio que lhes fossem pedidas contas
pelo assassínio de diversas pessoas anteriormente cometido por eles.

Pela mesma condução, o Senhor Linge mandou aviso, datado de 14 de março,


de que o inimigo tinha aparecido em grande número perto da fortaleza do
Norte, mas já se havia retirado e que nada poderia dizer com respeito ao Rio
Grande e a Santo André. Os portugueses estragaram todos os mandiocais da
Aldeia de Mirageriba e adjacências, de maneira que, tendo de abastecer os
brasileiros com as reservas armazenadas, Linge pedia uma remessa de vinho
e óleo. Despachou-se imediatamente uma comunicação a Dortmont,
Comandante em Chefe de Itamaracá, juntamente com alguma munição e 1000
florins em dinheiro. Também para Linge, na Paraíba, remetemos idêntica
importância em dinheiro, uma barrica com aveia, uma pipa de vinho, um barril
com óleo e outra com ervilhas secas, além de boa quantidade de munições.
Dortmont teve, também, ordem de remeter os brasileiros de volta ao Rio
Grande para defender a Capitania e saber se o inimigo tinha para lá se dirigido,
a fim de que se pudessem sustar os seus passos.

Boa remessa de mandioca trazida para Itamaracá.

Enquanto isso o Almirante Lichthart (de conformidade com sua carta de 21 de


março, para o Conselho) embarcara alguns soldados e brasileiros em
Itamaracá, e, dirigindo-se à desembocadura setentrional do rio, subiu-o até a
ilha de Itapessoca,341de onde conseguiu trazer grande quantidade de mandioca
para consumo dos brasileiros, em Itamaracá, e para abastecer os armazéns da
ilha.

Navios despachados em cruzeiro.

A 30 de março, foi resolvido, com a aprovação do Almirante Lichthart,


despachar os seguintes navios em cruzeiro ao largo da Baía: o Vlissingen, o
Ter Veer e os iates Hazewint, Heemstee, Spreeww e Bullestrate. A 6 de abril
despacharam-se, em idêntica missão, ao largo de Santo Agostinho as
caravelas Hamel e Lichthart seguidas dos navios Zoetelandia e Vlucht que
zarparam a 10 de abril.

A 31 de março, o Conselho recebeu cartas do Rio Grande, datadas de 25 de


março, informando que Paulo da Cunha e Camarão entraram em Cunhaú com
800 homens, entre os quais havia 300 mosqueteiros, a fim de levar para
Paraíba todo o gado do lugar.

Notícias do Coronel Garstman

Entretanto, de acordo com as cartas dirigidas ao Conselho pelo Coronel


Garstman, datadas de 4 de abril, o inimigo já havia abandonado o Rio Grande,
sem nada fazer contra as nossas forças que consistiam em 30 ou 40 soldados

341
[341] Nieuhof escreveu Tapesoque. Vingboons (XCVII, vol. II, mapa referente a Itamaracá).
Página 251 de 349

e 200 ou 300 brasileiros342[342] acampados junto à casa de João Lostão;


levou, porém, algum gado.

Mais ou menos pela mesma ocasião, o Conselho recebeu comunicação do


Senhor Linge de que o inimigo tinha dado vários alarmes falsos junto ao forte,
sem, entretanto, tentar ação alguma. De fato, em junho, não mais apareceu
pelas adjacências.

Jacob Rabbi traiçoeiramente morto

Prisão de Garstman

À meia-noite de 5 de abril de 1646, Jacob Rabbi foi traiçoeiramente


assassinado com dois tiros, perto de Potengí, a cerca de três horas 343 [343] do
Castelo de Potengí por instigação do Tenente-Coronel Garstman, quando
regressava da casa de um tal Jan Muller, onde fora recebido essa noite em
companhia daquele oficial. Conforme revelara a amigos seus, havia já tempo
que Rabbi suspeitava da traição de Garstman e, justamente por esse motivo,
estava de partida para o Rio Grande a fim de se refugiar entre os tapuias. O
Conselho chocou-se profundamente com essa vilania, porque Jacob Rabbi era
casado com uma brasileira e gozava de grande estima entre os tapuias, sendo,
pois, de se recear que o crime fizesse com que tanto os tapuias como os
brasileiros se revoltassem contra nós344.Por causa disso, Garstman foi preso
342
[342] O tradutor inglês escreveu 400 soldados e 300 brasileiros (cf. p. 164, 2a coluna 2° § da
ed. holandesa e p. 116, 2a coluna 3° § da ed. inglesa).
343
[343] O tradutor inglês escreveu 3 léguas ao invés de 3 horas. (cf. p. 164, 2ª coluna, 4° § da
ed. holandesa e p. 116, 2a coluna, 5° § da trad. inglesa). A data, segundo Alfredo de Carvalho,
é 4 de abril. For evidente equívoco, no trabalho de Alfredo de Carvalho está escrito 1647, tanto
na edição da Rev. do Inst. Arqu. e Geog Pern., 1912, vol. XIV, p. 657-667, (Um intérprete dos
tapuias), como na edição póstuma dirigida pelo Dr. Eduardo Tavares, sob o título "Aventuras e
Aventureiros no Brasil", Pongetti, 1930, coleção de vários trabalhos de Alfredo de Carvalho,
entre os quais "Um intérprete dos tapuias". Existe, também, uma separata, Recife, 1912, 17
pp., 40. Na ed. de Aventuras e Aventureiros juntou-se o inquérito mandado realizar pelo
Supremo Conselho sobre o assassinato de Jacob Rabbi (p. 177-204), traduzido, também, por
Alfredo de Carvalho, onde a data dos vários depoimentos é 1646. Moreau (LIX, p. 129-133)
relata o caso e os protestos dos tapuias, mas não precisa o dia. O Jornal de Arnhem (XXIX, p.
186, 187, 193) refere-se à chegada de Garstman a Maurícia, aos protestos dos tapuias e a
movimentos de soldados, com o fito de libertar ou enforcar Garstman.
344
[344] Este trecho de Nieuhof vem mostrar-nos que os holandeses distinguiam entre
brasileiros e tapuias. Aliás, já antes de Nieuhof, Marcgrave (LXX, p. 268) distinguira entre os
indígenas brasileiros - Os Tupinambás, Tabajaras, Petiguaras e Tapuias - e entre estes
diversos grupos. Os tapuias foram os mais estudados, porque aliaram-se aos holandeses. Os
Tupinambás, Tabajaras e Petiguaras são tupis (cf. Estêvão Pinto, LXIX, p. 148; Rodolfo Garcia,
XXXVII, p. 249); enquanto que os tapuias janduís são carirís (id., XXXVII, p. 262 e LXIX, p.
151). Barlaeus também os diferençou (cf. VII, p. 132, onde descreve os brasileiros e p. 260 os
tapuias de Janduí). Várias características culturais servem-nos hoje, para diferençá-los. Assim:
1) o uso da rede, própria dos tupis (XXXIV, p. 40 e LXIX, p. 126); 2) a agricultura atrasadíssima
dos tapuias (XXXIV, p. 41). Baro, (IX, p. 273) ao referir-se à rede, distingue, também, os
tapuias dos brasileiros, ao afirmar que os tapuias, menos delicados que os brasileiros,
deitavam-se na própria terra ou em árvores, enquanto que os brasileiros usavam redes. Paulo
Ehrenreich (XXXIV, p. 40-42), ao estudar os retratos de índios brasileiros, demonstrou a
diferença entre os dois grupos tribais. José Higino, ao traduzir o Diário de Mattheus van den
Broeck (XVI, p. 9, nota 2), escreveu "Tapoyas ende Brazilianen. Parece-me que os indígenas,
que o autor designa com o nome de Brazilianen para distingui-los dos Tapuias, eram os
caboclos ou índios Petiguaras".
Página 252 de 349

sob custódia, por ordem dos Altos Comissários da Justiça e Finanças aos 24
de abril e foi conduzido ao navio Hollandia. Entretanto, o Major Bayert, ficaria
no posto de Garstman, Jacob Rabbi, outrora, fora encarregado de estar no
meio dos tapuias, comissionado pela Companhia, para manter os tapuias em
amizade e boas disposições para com este governo; assim como ele já os
tinha, por várias vezes, conduzido das montanhas (onde eles habitavam), em
nosso auxílio. ele morava no Rio Grande, no forte Keulen, e era casado com
uma brasileira, embora fosse de ascendência alemã.

Garstman voltou ao Recife no dia 19 e relatou aos Altos Comissários os seus


feitos 345. Kaspar Honighuizen, comandante dos brasileiros em Itamaracá,
morto no último encontro havido na ilha, foi a pedido daqueles substituído pelo
Senhor Vicent van Drillenbergh, por nomeação do Conselho.

A 17 foram encaminhados ao Conselho alguns boletins distribuídos pelo


inimigo com o fito de desmoralizar nossa tropa. Em resposta, o Conselho fez
publicar proclamações classificando de traidores os súditos nossos que
estavam a serviço do inimigo e exortando-os a retomar os seus deveres.
Decidiu também o Conselho dar a público cópia de uma carta dirigida pelo Rei,
seu Senhor, aos Estados Gerais, em Haia, por intermédio do Embaixador
Português, e da respectiva resposta. Pois, uma vez que o Rei de Portugal
desaprovou a guerra e o procedimento de Antônio Teles da Silva, enviando
tropas para o Brasil Holandês, o Conselho achava que assim abriria os olhos
dos portugueses, para que estes não se louvassem em vãs esperanças de
auxílio proveniente de Portugal. Além disso, esperava o Conselho semear a
desconfiança entre eles e os comandantes portugueses da Baía.

Um tal Mars feito prisioneiro

Seu depoimento

A 24 de abril, duas companhias portuguesas comandadas pelo Capitão


Lourenço Carneiro e Pedro Cavalcanti, compostas de cerca de 50 homens346
cada uma, partiram respectivamente de Várzea e de Olinda, para Igarassú.
Encabeçavam essa força André Vidal e Hoogstraeten em pessoa, que foram
informados de que o Almirante Lichthart e Jan Klaesz haviam se dirigido a
Itamaracá a fim de conseguir provisões de mandioca. A 25 de abril, quando
saíam de Igarassú, certo cirurgião alemão chamado Kristoffel Mars - que
anteriormente foi por eles feito prisioneiro - atrasando-se um pouco foi
surpreendido por uma de nossas patrulhas, próximo a Itapissuma. Interrogado
pelo Assessor Walbeek declarou que não muito tempo antes estacam
aquarteladas em Barreta, nos engenhos de Bierboom e Brito, nove companhias
inimigas, cada uma composta de 40 ou 50 homens, sem as tropas que
estavam na Várzea. Que nas Salinas havia mais cinco companhias de igual

345
[345] O texto desde "Por causa disso." até "...os seus feitos" foi traduzido diretamente do
holandês. Além de omissões, contém erros como o de escrever 24 de março ao invés de 24 de
abril. (cf. p. 164, 2a coluna e 165, 1a coluna da ed. holandesa e p. 116, 2a coluna da ed.
inglesa).
346
[346] O tradutor inglês escreveu 40 homens (cf. p. 165, 2a coluna, 2° holandesa e p. 117, 1a
coluna, 3° § da trad. inglesa). da ed.
Página 253 de 349

número de soldados, além de Henrique Dias com 200 mulatos e negros,


acantonados em casa de Kaspar Kox. Disse, ainda, o cirurgião, que depois que
Klaes Klaesz voltara para o nosso lado com sua tropa, Martim Soares Moreno
havia feito executar uma companhia da milícia nacional, no caminho da Baía,
dentro da mata de Tabatinga, situada entre Sibiró347 e Deriba, 260 holandeses,
tanto soldados como voluntários (entre os quais cinco ou seis mulheres e duas
crianças),348 além dos que foram mortos por sua ordem em outros lugares, num
total de 300 pessoas.

Os holandeses saem à procura de farinha, mas sem sucesso

Por essa época começou-se a sentir grande escassez de carne no Recife, e, a


pesar disso, as guarnições das fortificações externas, bem como os brasileiros
de Itamaracá, suas mulheres e filhos, tinham que ser abastecidos pela Capital.
A mandioca existente ou fora totalmente apreendida pelos nossos ou destruída
pelo inimigo na ilha de Itamaracá. A fim de suprir essa urgente necessidade, o
Conselho resolveu mandar um destacamento de 400 homens em barcas, para
São Lourenço da Praia, ou Tejucupapo, a fim de trazer farinha ou mandioca de
lá. Esse destacamento foi composto da seguinte forma:

Da Companhia comandada pelo Capitão Klaes Klaesz ..... 9 homens;

Do forte Quinquangular .................................................. 25 "

Do forte dos Afogados .................................................... 25 "

De Itamaracá, 349[349] sob o Comando do Capitão Willem

Lambertsz ........................................................................ 50 "

Voluntários de Itamaracá ................................................ 30 "

Brasileiros ........................................................................ 150 "

A 29 de abril, o Conselho foi informado por carta, de Itamaracá, que a nossa


força expedicionária havia expulsado o inimigo de dois ou três
entrincheiramentos e que, tendo concentrado suas forças retirantes em outra
fortificação cercada por um fosso, foi ele aí igualmente atacado com grande
vigor pelas nossas tropas, que, entretanto, foram forçadas a retirar-se com
perda de 17 mortos e 26 feridos entre os quais o Capitão Willem Lambertsz e 2
tenentes. Também o inimigo350 teve vários mortos. Portanto, desejando o
Senhor Dortmont, Comandante em Chefe de Itamaracá, reabastecer de farinha
347
[347] Havia, no século XVII, vários engenhos denominados [i]Sibiró.[/i] Assim, existia em
Serinhaém o Sibiró de Baixo; em Ipojuca, o Sibiró de Baixo e o Sibiró de Cima. (cf. Diário ou
Breve Discurso, XV, p. 143, 145).
348
[348] O tradutor inglês omitiu "tanto soldados como voluntários" e escreveu seis mulheres
(cf. p. 165, 2a coluna últ. § da ed. holandesa e p. 117, 2a coluna 2° § da ed. inglesa).
349
[349] O tradutor inglês omitiu Itamaracá (cf. p. 166, 1a coluna, 3° § da ed. holandesa e p.
117, 2a coluna 4° § da ed. inglesa).
350
[350] O tradutor inglês escreveu 10 mortos e omitiu entre os feridos dois tenentes (cf. p. 166,
1a coluna 4° § da ed. holandesa e p. 117, 2a coluna últ. § da ed. inglesa).
Página 254 de 349

os seus armazéns, quase vazios, o Conselho para lá remeteu 20 barricas


desse gênero, duas de aveia, duas de ervilhas secas, uma pipa de vinho,
aguardente e 1000 florins em dinheiro para os brasileiros.

Abafado um motim de brasileiros

A 3 de maio, o Conselho recebeu aviso do Diretor Dortmont, de Itamaracá, por


carta da véspera, que o inimigo havia apreendido 6 negros, do Senhor Seulijn,
quatro de propriedade da Companhia e mais quatro de particulares351 e que os
brasileiros, desmoralizados pela intriga, se haviam retirado para as matas,
recusando-se a se reunir novamente à nossa tropa, a pesar de convocados por
duas vezes. Dizia, finalmente, que, enviado o Senhor Apprisius, Pastor dos
brasileiros, para reconduzi-los ao dever, quer fosse por meios suasórios, quer
por meio de ameaças, conseguiu ele com sua argumentação, demover os 25
amotinados,352 trazendo-os pacificamente de volta e alegando, em sua defesa,
que foram obrigados a procurar as selvas, devido à escassez de alimentação.

Pediu então o Senhor Dortmont novos abastecimentos para os seus depósitos,


uma pessoa que dispusesse de autoridade para auxiliá-lo e a substituição da
companhia sob o comando do Capitão Van Vosterman, cujos homens estavam
inclinados a se revoltarem.

O Senhor Bullestrate enviado para Itamaracá

Para resolver todas essas dificuldades, foi decidido a 3 de maio, 353[353] que se
despachasse imediatamente para lá o Senhor Bullestrate, membro do Grande
Conselho, com a missão de combinar com determinados particulares o
fornecimento de peixe à guarnição, bem como de tomar qualquer outra
providência que julgasse conveniente para os interesses da Companhia.

Dá conta de sua missão

O Senhor Bullestrate partiu a 4 de maio na fragata Hazewint e no mesmo dia à


tarde chegou a Itamaracá, de onde regressou ao Recife a 10 daquele mês,
depois de se ter desempenhado de sua missão. O Senhor Bullestrate fez ao
Conselho o seguinte relato de seu trabalho: Inspecionara a cidade de
Schkoppe e o forte de Orange, tendo ordenado o reforço de ambos.
Determinara igualmente a fortificação com paliçadas, da velha casa de pedras,
que era antigamente a Casa do Conselho, a fim de evitar qualquer ataque de
surpresa. Convocara todos os comandantes dos brasileiros e lhes assegurara
que estávamos esperando, a qualquer momento, poderosos reforços

351
[351] O tradutor foi infiel neste trecho, (cf. p. 166, 2a coluna, 2° § da ed. holandesa e p. 118,
1a coluna 1° § da trad. inglesa).
352
[352] O tradutor inglês omitiu o número de brasileiros amotinados. (Cf. p. 166, 2a coluna 2°
§ da ed. holandesa e p. 118, 1a coluna 2° § da trad. inglesa).
353
[353] O tradutor inglês omitiu a data. (cf. p. 166, 2a coluna últ. §, da ed. hol. e d. 118, 1ª
coluna 2° § da trad. inglesa).
Página 255 de 349

provenientes da Holanda, tendo-os exortado a se manterem firmes em seus


postos e a velarem pela disciplina de seus comandados.

Presenteara, ainda, os comandantes com fazendas e os demais com vinho e


dinheiro, que aceitaram prazerosamente. De passagem, visitara a fazenda de
Konraed Pauli onde encontrara cerca de 160 coqueiros abatidos pelos
brasileiros que, acossados pela fome, lançaram mão dos cocos. O mesmo
fizeram em diversos outros lugares.

Disse ainda o Senhor Bullestrate, que havia tentado contratar, com diversos
particulares, o fornecimento de pescado para o Recife, mas não o conseguira,
pois ninguém se dispusera a aceitar a encomenda, alegando que, tendo os
negros fugidos ou sido apanhados pelo inimigo, não mais podiam pescar, e o
pouco que apanhavam, vendiam prontamente na ilha, sem despesa de sal e de
transporte. O Senhor Bullestrate propôs, também, ao regedor dos brasileiros,
fornecer-lhes, de futuro, dinheiro ao invés de farinha e três redes com que
pescar para seu consumo próprio; ao que o comandante respondeu que ia
consultar sua gente, tendo-lhe dado esperanças de aceitar a oferta.

Desenvolvimento da pesca

A fim de remediar a escassez de víveres, que se acentuava cada dia mais em


Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Recife, - já que se as esperadas remessas
da Holanda não chegavam e estávamos bloqueados por terra - julgou-se
conveniente estimular o mais possível a indústria da pesca. Com esse fito em
mira, dois membros do Conselho - Senhores Hamel e Bas - tiveram ordem, a 7
de maio, de comprar todo o fio de rede que pudessem encontrar, o que muito
nos serviu mais tarde.

João Vieira acusado de traição

Em princípio de maio,354[354] certo português criminoso de morte em Angola, e


refugiado no Recife, acusara João Vieira d'Alagoas, sendo este detido.

Sua execução

Esse português declarou que o dito Vieira lhe havia entregue certo pergaminho,
escrito em linguagem cifrada, bem como uma caixa contendo diversos outros
papéis, para serem entregues ao inimigo, papéis esses que exibiu ao
Conselho. Rejeitando sua culpabilidade, João Vieira foi submetido à tortura.
Negou sempre, até que, encontrando-se entre os papéis a chave do código, as
cartas foram decifradas por um judeu. Nelas o autor fazia, ao inimigo, completo
relato de nossa situação e dava instruções para a conquista do Recife. Vendo-
se descoberto, o acusado confessou que havia escrito e entregue esses papéis
cifrados ao português, sendo por isso executado a 29 de maio.

354
[354] O tradutor inglês omitiu a data. (cf. p. 167, 2a coluna, 3° § da ed. hol. e p. 118, 2a
coluna 3° § da trad. inglesa).
Página 256 de 349

Ração de pão

Visto355 que os mantimentos dos armazéns se tornavam escassos e o


racionamento continuava em vigor, e dentro de algumas semanas acabariam
os suprimentos de farinha e carne, ficou resolvido, a 9 de maio, pelos Altos
Comissários Hamel e Bas (porque nem o pão nem batata podiam ser
diminuídos sem que os soldados se revoltassem - e a carne, naquela época,
podia ser poupada, porque se pegava muito peixe), que se fizesse uma
proposta aos Majores Bayert e Pistor de dar a cada soldado 6 soldos em
dinheiro, em lugar de uma libra de carne, a razão fixada, a fim de que, deste
modo, havendo, ainda, uma certa provisão de carne, se mantivessem melhor
os soldados. Os Majores, convencidos da necessidade dessa medida,
concordaram em fazer todo o possível para que a comida se tornasse
agradável e em dar-lhes 6 soldos em dinheiro, em lugar de uma libra de carne.

E como a carestia se tornasse cada vez maior e os socorros continuassem a


faltar, pelo que ficaram privados de tudo, resolveu-se, no dia seguinte, fazer o
pão à razão de uma libra por semana, em lugar de uma libra e meia; e que
cada burguês,, assim como os Altos Comissários e todas as pessoas ao
serviço da Companhia só receberiam dois pães por semana; também os
marinheiros só receberiam duas libras por semana, da mesma forma que os
capitães, tenentes e os porta-bandeiras; mas todos os soldados, bem como os
sargentos, receberiam três libras como ração.

TRAJES DOS HABITANTES DE PERNAMBUCO DO SÉC. XVII

355
[355] Este trecho, devido a omissões e lapsos foi traduzido diretamente do holandês desde:
"Visto que os mantimentos." até "... receberiam três libras como ração", (cf. p. 168, 1a coluna,
3° e 4° §§ da ed. holandesa e p. 119, 1a coluna da trad. inglesa).
Página 257 de 349

Garstman convoca os tapuias sem ordem

A 5 de maio,356[356] o Senhor Linge comunicou, do Forte Santa Margarida, na


Paraíba, que o inimigo nada havia tentado contra os fortes e que um
destacamento de brasileiros se dirigira para Tapoa, na esperança de conseguir
prisioneiros. Mais ou menos ao mesmo tempo o Conselho recebeu informação
de que o Coronel Garstman, sem ordem daquele órgão administrativo, havia
tentado, por meio de presentes, atrair os tapuias ao Rio Grande, sob pretexto
de mantê-los à mão a fim de organizar uma confederação com os novos
conselheiros esperados da Holanda. O Conselho surpreendeu-se
profundamente com esse fato, pois a entrada dos tapuias naquela Capitania
iria privá-lo de considerável soma de abastecimentos de lá provenientes. O
Conselho mandou, por isso, recado a Roelof Baro para não poupar esforços no
sentido de reconduzir os tapuias às suas aldeias, por meios suasórios, e que
se eles quisessem enviar ao Recife alguns de seus chefes, aí lhes seriam
dadas todas as satisfações possíveis pelo assassínio de Jacob Rabbi. E, para
mais conquistar as boas graças de Baro, o Conselho enviou-lhe presentes de
vinho, aguardente e quinquilharias de Nuremberger, pois, à vista da situação,
tornava-se absolutamente necessário que mantivéssemos o domínio do Rio
Grande, até a vinda dos socorros da Holanda. O grande número de brasileiros
recolhidos a Itamaracá consumiu toda a sorte de víveres lá existentes, de tal
forma que não só aquela ilha não mais podia remeter provisões para o Recife,
mas, ainda, a maioria das mulheres e crianças de lá tinha que se valer das
reservas acumuladas nos celeiros.

A importância do Rio Grande para os holandeses

O Rio Grande era, portanto, a única região de onde se recebiam quantidades


ponderáveis de farinha e gado que minoravam em parte a escassez de
gêneros reinante no Recife, cujo estado sanitário só devido à orientação
prudente do Conselho podia ser mantido em situação passável, enquanto não
chegavam os socorros provenientes da Metrópole. De outra forma teria sido
humanamente impossível conseguir esse estado de coisas. E, sem dúvida, o
Rio Grande teria conseguido fornecer ainda por muito tempo as guarnições do
Sul, se não fosse o acidente que passamos a narrar.

Detidos pelo inverno e pelos ventos contrários os socorros procedentes da


Holanda, os brasileiros de Goiana, que com suas mulheres e filhos se haviam
refugiado em Itamaracá, ficaram reduzidos à extrema penúria por falta de
alimentos. Depois de terem consumido tudo quanto a ilha lhes poderia
proporcionar para sua subsistência e com todos os caminhos de terra
interrompidos pelo inimigo, não dispunham de outros recursos que não os
provenientes dos armazéns. Estes, porém, estavam de tal maneira vazios que
cada cidadão só tinha direito a uma libra de pão por semana (e mesmo assim
não tinham suprimento para mais que duas semanas) . À vista disso, o
Conselho viu-se obrigado a propor aos brasileiros que se' retirassem com suas
mulheres e filhos (1200 ao todo) para o Rio Grande, onde poderiam subsistir
por algum tempo com os recursos da região. Nesse sentido, escreveu o
356
[356] O tradutor inglês escreveu 1." de Maio (cf. p. 168, 1a coluna, 1° § da ed. holandesa e
p. 119, 1a coluna 2° § da trad. inglesa).
Página 258 de 349

Conselho ao Senhor Dortmont a 1° de maio e mandou para Itamaracá o


Senhor Walbeek em pessoa, a fim de persuadir os brasileiros a remeterem pelo
menos 500 ou 600357 [357] mulheres e crianças, acompanhadas por alguns
homens, para Ceará e Rio Grande. Era de cerca de 1500 o número de
brasileiros refugiados na ilha, entre homens, mulheres e crianças. Dentre
esses, 500 estavam em condições de tomar armas sob o comando de Kaspar
Honighuizen, mas sua alimentação consistia em uma única libra de pão por
semana.

Consultas sobre a escassez de provisões

À vista da escassez de víveres, que se agravava a cada momento devido à


demora dos socorros da Holanda, detidos além de qualquer expectativa pelos
ventos contrários, foi convocado um Conselho Geral para, com a presença de
três membros do Grande Conselho, Senhores Hendrik Hamel, Bullestrate e
Bas, além do Almirante Lichthart e os Majores Bayert e o Pistor, discutir os
seguintes pontos.

Em primeiro lugar, reputada inadiável a remessa dos brasileiros de Itamaracá


para o Rio Grande, expediram-se ordens imediatas para se aprestarem os
necessários navios. Considerou-se, também, se não seria possível reunir força
suficiente das guarnições dos fortes para, juntamente com os brasileiros, atacar
algum lugar de onde pudéssemos conseguir abastecimento de farinha. A isso,
porém, objetaram os Majores Bayert e Pistor, alegando que as guarnições não
poderiam ser enfraquecidas na mínima parcela, sem corrermos graves riscos.
Além disso, seria muito difícil haver algum lugar onde se pudesse obter farinha,
pois naturalmente o inimigo já a teria consumido, destruído ou transportado.
Assim, teríamos que expor os nossos homens a um risco certo sem
probabilidade tangível de sucesso, pois, supondo que tudo corresse bem, a
quantidade de farinha que conseguiríamos não seria suficiente para manter
nossas guarnições por tempo considerável. Concordou-se, entretanto, em
levantar uma relação minuciosa de todas as nossas guarnições, a fim de ver se
poderia empreender alguma cousa no interesse do Estado. Tendo os Majores
Bayert e Pistor apresentado ao Conselho, no dia seguinte, uma lista dessas
forças, concluiu-se não ser possível retirar tropa alguma dos fortes, exceto do
dos Afogados, onde, entretanto, era pequena a guarnição. Ficou também
resolvido, nessa ocasião, mandar o Capitão Denniger, com sua Companhia e
os brasileiros, para o Rio Grande, tendo-se dado ordem para que o navio
Omlandia e a fragata Hazewint zarpassem imediatamente para Itamaracá a fim
de os transportar.

Novos debates sobre a conveniência de atacar o inimigo

A 30 de maio o Conselho, o Almirante, e os dois Majores, reuniram-se


novamente a fim de deliberar sobre a possibilidade de atacar o inimigo e qual o
ponto onde deveria ser desfechado o ataque. Contra esse plano, alegou-se que
a força principal se achava então na Várzea e que, mesmo que assim não
fosse, lá não se conseguiria farinha, porque essa cidade recebia de longe os
357
[357] O tradutor inglês escreveu 500 mulheres e crianças (cf. p. 169, 1a coluna § da ed.
holandesa e p. 119, 2a coluna 2° § da ed. inglesa).
Página 259 de 349

seus abastecimentos desse comestível; que os campos onde se produzia


farinha, mais próximos do Recife, estavam nas adjacências de São Lourenço, e
a pelo menos cinco milhas de distância. Para o lado do sul, as plantações mais
próximas estavam perto de Santo Antônio e Muribeca onde, dada a força do
inimigo e a grande distância que teríamos de percorrer, não havia
probabilidade de conseguirmos o nosso intento. Ao norte, perto de Ingariba, as
plantações de mandioca estavam também tão afastadas do litoral, que de nada
nos poderiam valer. Considerou-se, também, se de Itamaracá não se poderiam
retirar algumas forças, mas concluiu-se pela negativa, pois, uma vez que os
brasileiros estavam prestes a partir para o Rio Grande, não era aconselhável
expor ao perigo o restante de nossas tropas da ilha. Depois de cuidadosa
consideração sobre que forças poderiam ser desviadas dos fortes (essas
mesmas devendo ser substituídas por civis), concluiu-se que os Afogados
poderiam fornecer entre 70 ou 80 homens, o Forte Quinquangular e a Cidade
Maurícia igual número, e o forte de Antônio Vaz cerca de 50, ao todo uns 280
homens. Considerando, porém, que a Milícia Municipal do Recife consistia de
apenas 6 companhias da burguesia, de 70 homens, ou no máximo 80, e que
era obrigada a montar guarda todas as noites (pois que a praça não dispunha
de guarnição), se número considerável desses homens fosse empregado nos
fortes, a capital ficaria exposta a sério perigo, já que constituía o objetivo
principal do inimigo. Nem os marinheiros, que mal somavam 250, poderiam ser
empregados nesse serviço, a menos que deixássemos os nossos navios
desguarnecidos e inativos. Assim é que, depois de apresentados vários
argumentos de parte a parte, resolveu-se adotar o caminho mais seguro, e, de
acordo com as ordens do Conselho dos XIX, na Holanda, esperar com
paciência pelos socorros da Metrópole, procurando, enquanto isso, aumentar a
segurança dos nossos fortes.

Os brasileiros resolvem deixar Itamaracá

No dia em que se tomavam essas deliberações, o Conselho recebeu cartas do


Senhor Walbeek, comunicando que alguns brasileiros de Itamaracá haviam
desertado, à vista do boato, que entre eles se divulgou, de que era intenção
abandoná-los à mercê dos portugueses. Isso produziu grande consternação
entre eles, mas o Senhor Dortmont conseguiu persuadi-los do contrário. Nesse
meio tempo o Senhor Walbeek e o Senhor Dortmont haviam feito ver aos
brasileiros que, sendo eles numerosos, e, por isso mesmo, muito mal providos
de tudo, nessa conjuntura, seria melhor que fossem para o Rio Grande, por
algum tempo. A princípio mostraram-se contrários à idéia, pelo receio de que
nós os abandonássemos. Todavia, não só à vista da necessidade urgente em
que se achavam de prover o seu sustento, como também para demonstrar
acatamento às ordens do Governo, resolveram eles partir para o Rio Grande,
contanto que se lhes fornecesse transporte adequado, víveres, alguma
munição para sua defesa e 50 homens de tropa regular. Atendendo a novo
pedido do Senhor Dortmont, remeteram-se-lhe imediatamente algumas
provisões (o suficiente para 14 dias) bem como pólvora, mechas, e outras
munições.

Assim foi que, para mais de 1200 brasileiros, em sua maioria mulheres e
crianças, cujos maridos e pais for am mortos em defesa da nossa causa,
Página 260 de 349

embarcaram a bordo do navio Omlandia e de alguns iates, com a ração de uma


libra de bacalhau salgado, por pessoa, sem pão, durante a viagem, de
Itamaracá ao Rio Grande. Quando lá chegaram tal era o abatimento em que se
achavam, que mais pareciam cadáveres que viventes. Atiravam-se avidamente
a tudo quando encontravam na ânsia de satisfazer seus estômagos famintos,
e, dentro de pouco tempo, tinham consumido toda a farinha lá existente.

Em cartas de 2 e 5358[358] de junho, comunicou o Senhor Linge ao Conselho


que por essa época não se via o inimigo na Paraíba, mas, que dez tapuias,
vassalos do rei Janduí, chegados ao Rio Grande, mostravam-se muito
aborrecidos com o assassinato de Jacob Rabbi, pelo que se decidiu
reconquistar as boas graças daquele rei para com nossa causa, presenteando-
o com o seguinte:

Presentes ao rei Janduí

200 florins em dinheiro corrente,

1000 varas de linho Osnabrugh,

400 canadas de vinho espanhol,

2 barris de aguardente,

2 galões de óleo,

1 moio de vinagre e

uma barrica contendo carne.359 [359]

Os brasileiros deixam os fortes próximos ao Recife

Os brasileiros das guarnições dos fortes Bruin, Quinquangular e outros,


aborrecidos por estarem detidos ha mais de oito meses, pediram ao Conselho,
a 12 de junho, que os mandasse de volta para o Rio Grande.

Ouvidos os dois majores, foram estes de parecer que, a vista de não prestarem
eles nenhum serviço extraordinário nos fortes, poderiam ser dispensados.
Assim e que a 14 de junho, o Conselho resolveu pagar-lhes os atrasados e
enviá-los de volta a Paraíba e ao Rio Grande, para seus antigos aldeamentos.

No forte Quinquangular, a companhia de negros comandada por Manuel de


Barros teve ordem de montar guarda, em substituição aos brasileiros

358
[358] Por engano de impressão ou do tradutor, esta escrito, na edição inglesa, 25 de junho
(cf. p. 171, 2a coluna 3° § da ed. holandesa e p. 121, 1a coluna 3° § da tradução inglesa).
359
[359] O tradutor inglês foi inteiramente infiel na enumeração dos presentes oferecidos a
Jandui. Assim, escreveu: 1) 100 canadas de vinho espanhol; 2) omitiu 2 galões de óleo; 3)
omitiu 1 moio de vinagre; 4) inventou 40 galões de óleo. (cf. p. 171, 2° coluna 5° § da ed.
holandesa e p. 121, 1a coluna 3° § da trad. inglesa).
Página 261 de 349

dispensados a 20 de junho. Nas noites de 11, 12, 13 e 14 de junho, o inimigo


atirou com violência contra o forte dos Afogados, contra o reduto denominado
Kijk e contra a Casa Boa Vista.

No dia 15, o Almirante Lichthart e os Majores Bayert e Pistor propuseram-se,


perante o Conselho, atacar o inimigo entrincheirado na casa de Manuel
Cavalcanti e em Barreta e Curcuranas com a seguinte força:

A companhia do Capitão Killian de Snijder, composta de 40 homens; e a


companhia do Capitão Klaes Klaesz, com 70 homens, as quais deveriam ser
engrossadas com trinta homens sob o comando do Capitão Denniger, do forte
Frederico, 10 homens sob o tenente Mos do forte Ernesto e 20, às ordens do
tenente Katnar, do forte Príncipe Guilherme. Duzentos homens ao todo.

Projeto de ataque aos arraiais do inimigo

Esperava-se reunir cerca de 100 voluntários, dentre os civis, sob o comando do


Coronel Walbeek, além de Manuel de Barros, com seus cinqüenta negros.
Essas forças, somadas aos duzentos homens acima, formariam um corpo de
350 homens sob o comando supremo do Major Pistor, o qual, pelo Almirante
Lichthart, seria conduzido por via marítima até os pontos de desembarque a
saber: as tropas regulares ao sul de Barreta e os negros ao norte da ilha, de
onde convergiriam sobre os Afogados, através dos pântanos e daí até a casa,
do outro lado do rio, onde deveriam distrair o inimigo, enquanto as forças
regulares, desembarcadas em Barreta, atacavam-no pela vanguarda. O
Almirante, com seus navios-transporte, deveria estar sempre pronto para
receber de volta toda tropa a bordo e garantir a retirada.

É abandonado o plano

O plano foi aprovado pelo Conselho, em parte para animar os nossos militares
e em parte para conseguir, pelo menos, algumas provisões para os doentes. A
execução do projeto foi marcada para o dia seguinte; entretanto, devido aos
ventos adversos, e posteriormente, às marés que não favoreceriam o
desembarque da tropa, a tentativa foi abandonada, principalmente quando se
verificou que em vez de 100 voluntários burgueses, apenas 25 se
apresentaram, a pesar de haver-lhes o Conselho prometido tratamento idêntico
ao dos soldados regulares, em caso de ferimento ou outro contratempo
qualquer.

Entretanto, tendo tido conhecimento, por alguns desertores de nosso lado, que,
com a partida dos brasileiros, as guarnições de Itamaracá ficaram
consideravelmente enfraquecidas, o inimigo resolveu aproveitar-se da
oportunidade e desembarcar naquela ilha uma força tal que jamais
pudéssemos expulsar.

Ao raiar do dia 15 de junho o nosso navio patrulha Spreeuw foi surpreendido,


na entrada denominada Passo ou Marcos, por 3 botes e uma jangada. O
inimigo conseguiu aprisionar três dos nossos; os demais escaparam com perda
de dois homens.
Página 262 de 349

Os portugueses desembarcam em Itamaracá

O navio estacionado à frente de Itapissuma foi incendiado pelos nossos que


deixaram ao inimigo o galeote avariado, depois de terem recolhido todos os
tripulantes ao dogre Gulde Ree, que estava ancorado ao norte da entrada. Os
portugueses desembarcaram cerca de 2000 homens, por meio de chalupas e
outras embarcações, e, na mesma noite, André Vidal e João Fernandes Vieira
escreveram a seguinte carta ao Senhor Dortmont, comandante em chefe de
Itamaracá, a qual enviaram por intermédio de um rapaz aprisionado a bordo do
dogre Spreeuw.

CARTA AO SENHOR DORTMONT

Honrado e valente Senhor,

Sem dúvida V. S. está ao par da decisão em que se acham os habitantes deste


país, de recobrar sua liberdade. Para isso não lhes faltam meios, nem força.
Desejando, porém, o povo conseguir seu objetivo sem efusão de sangue,
achamos conveniente informá-lo que estamos prontos para o atacar nesta ilha,
com todas as nossas forças, a menos que V. S. prefira chegar a um
entendimento. Sabendo que para V. S. não há esperança de socorro,
sugerimos-lhe que trate conosco de acordo com as normas da guerra em
casos semelhantes, a fim de que, se depois as cousas lhe correrem ao
contrário de suas expectativas, dada a fúria da espada conquistadora, não nos
lance V. S. a culpa em rosto. Por esse motivo, oferecemos a V.S.e aos demais
comandantes todos os atrasados devidos pela Companhia e esperamos sua
resposta amanhã.

Do nosso acampamento, 15 de junho de 1646.

André Vidal de Negreiros

João Fernandes Vieira.

Examina-se a possibilidade de socorro a Itamaracá.

A 17 de junho, o Conselho recebeu do Senhor Dortmont comunicação do


desembarque de tropas e pedido de socorro imediato, sem o que ele não
poderia manter a ilha. Discutiu-se então a possibilidade de reunirmos força
capaz de, sem muito risco, expulsar o inimigo de Itamaracá; entretanto,
concluiu-se pela negativa. Pois, sem expor ao perigo os fortes do Recife, não
se poderia tirar de suas guarnições mais que 200 homens e esse número era
insuficiente para enfrentar o inimigo que já se havia entrincheirado, com
esperanças de êxito. Além disso, dada a necessidade de se transportar essa
força por via marítima, faltavam-nos os navios (na ocasião só havia duas
barcas no Recife) não só para o comboio como ainda para cortar as
comunicações do inimigo com o continente. Ainda mais: a expedição precisaria
de víveres para 14 dias pelo menos, caso o inimigo resistisse, e, na situação
em que nos achávamos, tal aprovisionamento seria de todo impossível a
menos que deixássemos o Recife a nenhum.
Página 263 de 349

Se seria possível a defesa dos fortes do morro

Não havendo possibilidade de se tentar socorrer a ilha, considerou-se a seguir


se as fortificações do morro poderiam ou não ser defendidas. Contra isso
objetou-se que, sem novos abastecimentos, o forte não poderia resistir uma
semana, principalmente porque o inimigo, cortando a adutora que o abastecia
de água, forçaria a guarnição a uma rendição rápida. Além do mais, o
adversário evidentemente se colocaria entre o forte Orange e o morro, evitando
assim que esse recebesse qualquer abastecimento do primeiro.

Considerou-se, ainda, que sendo o morro de grandes dimensões, a nossa força


teria dificuldade em guarnecê-lo; o forte era irregular e mal defendido,
principalmente do lado em que o muro da igreja, constituindo parte da cortina,
não oferecia proteção contra a artilharia inimiga, e, conseqüentemente, exporia
o forte inteiro e sua guarnição, ao fogo dos contrários. Portanto, não havendo
dúvida sobre a possibilidade do inimigo interceptar as comunicações entre as
fortificações do morro e o forte Orange, ficou unanimemente resolvido que se
abandonassem ditas fortificações, retirando para o forte Orange a guarnição
bem como todos os víveres e munições que lá existissem, antes que lhe fosse
cortada a retirada, pois era fora de dúvida que, se os nossos conseguissem se
manter no forte de Orange e dominar a região, poderiam reconquistar o morro
e toda a ilha.

Artilheiros fazem-se traidores e são enforcados

O Conselho apressou essa resolução ao receber notícias de que o inimigo,


conhecendo a importância do forte de Orange, havia subornado, por meio de
presentes, alguns artilheiros e voluntários do forte, os quais se comprometeram
a indicar-lhe o lugar mais fácil de atacar, bem como de carregar os canhões
apenas com pólvora a fim de facilitar o assalto. A 23 de junho dois dos
artilheiros foram enforcados por esse ato de traição; os demais bandearam
para o inimigo. Portanto, para melhor manter o forte, os nossos abandonaram
as fortificações da montanha, a 21 de junho, e, logo depois, o inimigo lá
instalou considerável porção de suas forças.

O Conselho determinou, também, que o iate Heemstee patrulhasse a entrada


norte da ilha, a fim de manter as comunicações com a nossa guarnição e evitar
que o inimigo recebesse socorros por ali. Enviaram-se, ainda, provisões para a
guarnição.

Terrível fome no Recife

Entretanto, enquanto as cousas se desenrolavam com fortuna vária - no geral,


porém, de maneira desfavorável para nós - e os socorros da Holanda
tardavam, a penúria se acentuava diariamente no Recife; a tal ponto que tudo
quanto se considerasse comestível, quer nos armazéns, quer na posse de
particulares, era requisitado para uso comum. Contudo, não sendo de mais de
uma libra, per capita, a ração semanal de pão, muita gente morria de inanição.
O indício de morte próxima consistia na inchação das pernas. Os gatos e
cachorros, dos quais tínhamos então abundância, eram considerados finos
Página 264 de 349

petiscos. Viam-se negros desenterrando ossos de cavalo, já meio podres, para


devorá-los com incrível avidez. Nem era menos insuportável a falta de água
potável, devido ao rigor do verão e ao uso constante de carnes salgadas; todos
os poços que se abriam minavam água salobra. Os miseráveis escravos que
só conseguiam a pior parte das sobras tinham o olhar tão esgazeado e o
queixo tão trêmulo, que causavam pavor mesmo aos mais destemidos.
Finalmente (a despeito de todos os cuidados do Conselho) a situação se
agravou de tal sorte que mesmo a ração de uma libra de pão por semana foi
suspensa ao povo, para ser concedida aos soldados que, induzidos pelos
portugueses e atraídos por uma ração dobrada (enquanto existissem recursos),
começaram a desertar rapidamente. Finalmente, quando tudo já havia sido
consumido sem que se encontrasse qualquer saída dessa situação calamitosa,
o Conselho propôs - e todos aceitaram unanimemente - que se preferisse a
morte com bravura, à inanição e que, portanto, se tentasse abrir passagem por
entre as forças inimigas. Os soldados regulares formariam a vanguarda; as
mulheres, as crianças, os doentes e inválidos, marchariam no meio, e,
finalmente, os membros do Grande Conselho e o povo defenderiam a
retaguarda. Os judeus, mais que os outros, estavam em situação
desesperadora, e, por isso, optaram por morrer de espada na mão ao invés de
enfrentar seu destino sob o jugo português: a fogueira.

Chegada de socorros

Finalmente, quando já tínhamos atingido ao auge da penúria e devorado todos


os cavalos, gatos, cachorros e ratos, e um alqueire de farinha chegou a ser
negociado à razão de 80 e 100 florins360[360] cada um, sem que a quantidade
total fosse suficiente para mais que dois dias de consumo, finalmente, a 22 de
junho (data de que jamais nos esqueceremos) avistamos dois navios
desfraldando o pavilhão do Príncipe, que rumavam para o Recife a todo pano.
Logo que lançaram ferro e deram o sinal convencional de três tiros de peça
cada um, para indicar que procediam da Holanda, podia-se ler no semblante de
todos nós o intenso júbilo que esse socorro representava, chegando
justamente no momento em que nos achávamos na mais penosa situação.
Ninguém mais se podia firmar sobre as pernas, tal a fraqueza a que nos
reduzira a falta de alimentação; mesmo assim, porém, todos se arrastavam até
o cais onde, de longe, se podia perceber que o povo chorava de alegria. Esses
dois navios, denominados Valk e Elizabeth foram fretados pela Câmara de
Amsterdã e haviam zarpado de Texel a 26 de abril. Trouxeram-nos a boa
notícia de que o restante do comboio chegaria a qualquer momento. O Capitão
do Elizabeth contou-me que, certo dia, percebendo vento à feição, disse à sua
tripulação: "tenho certeza de que estão sofrendo penúria no Recife. Deus nos
dê vento e tempo favoráveis, para que possamos socorrê-los a tempo".
Felizmente foi isso que se deu. Os capitães de ambos os navios receberam
medalhas de ouro com a seguinte inscrição: O Falcão e o Elizabeth salvaram o
Recife361.[361]

360
[360] O tradutor inglês escreveu: "um quarto por 80 a 90 florins". (cf. p. 175, 2ª coluna 1° §
da ed. holandesa e p. 123, 2a coluna 2° § da tradução inglesa).
361
[361] Sobre isso, consulte-se "Moedas obsidionais cunhadas no Recife em 1645, 1646,
1654". Rev. do Inst. Arq. e Geog. Pern., 1906-1907, vol. XII, p. 160-168. Esta foi a primeira
Página 265 de 349

O Senhor Bas enviado a Itamaracá

A 23 de junho, o Senhor Pieter Bas, membro do Conselho, foi enviado para


Itamaracá a fim de auxiliar a defesa do forte. Por carta de 28 do mesmo mês,
mandou dizer que o inimigo continuava em sua posição no morro e que tinha
despachado alguns espiões à cata de informação. A 7 de julho o Senhor Pieter
Bas regressou ao Recife com as companhias comandadas pelo Capitão
Blauwenhaen e Koenraet Helt, deixando duas companhias, a do Capitão
Reinier Sikkema e Capitão Dignus Bysterman, na guarnição.

Os portugueses deixam Itamaracá

Dois dias antes os portugueses, depois de destruírem o forte do morro,


deixaram a ilha levando consigo toda a artilharia, inclusive duas peças de
bronze. Pois, quando viram que recebemos reforços da Holanda, em diversos
navios, não acharam prudente continuar na ilha até que cortássemos a retirada
com nossa esquadra. Sabiam, também, os lusos que, sem capturar o forte de
Orange, não podiam esperar conservar a posse de Itamaracá, pois a entrada
meridional era dominada por aquele forte, e a passagem Norte pela nossa
frota.

A 29 de junho, o Conselho recebeu informação do nosso quartel-general


instalado na casa de João Lostão, no Rio Grande, dizendo que lá haviam
chegado dois filhos de Janduí, com 23 tapuias, enviados pelo pai, a fim de nos
assegurar de suas boas intenções e auxílio; que, entretanto, se recusavam vir
até o forte Keulen, antes de falar com Roelof Baro, que para isso fora enviado.
Mais ou menos por essa época, diversos comerciantes despacharam
embarcações, mas, como isso não se conseguia senão com grandes despesas
e como havia poucos navios portugueses no mar, a empresa não produziu
resultados, e, por isso, pouco durou.

Mais ou menos por essa ocasião, deu-se comigo estranho acidente: havendo
os navios da Companhia apreendido uma barcaça carregada de vinho, os
marinheiros se embriagaram a tal ponto que, ao procederem ao
descarregamento, no Recife, mal podendo fazer o seu trabalho, deixaram cair
um barril de vinho, do que resultou a morte de um homem, ficando vários
outros feridos. Dirigi-me ao local, a fim de restabelecer a ordem e impedir que
bebessem durante o trabalho e para prevenir outras desgraças. Logo que
entrei no navio, notei que todos os galões de prata do meu casaco negrejaram
e pouco depois fiquei inteiramente cego, para minha grande aflição. Depois de
alguns dias, a cegueira foi pouco a pouco desaparecendo e recuperei a vista.
Atribuo o fato à forte exalação do vinho, que tinha estado fechado por muito
tempo.362[362]

medalha batida no Brasil e precedida de pouco menos de um ano pelas famosas moedas
obsidionais, hoje das mais valiosas raridades numismáticas, conquanto os pormenores da sua
cunhagem até agora tenham permanecido quase ignorados, (id., p. 161).
362
[362] Este trecho, desde "Mais ou menos por essa ocasião." até "...por muito tempo", foi
traduzido diretamente do holandês, (cf. p. 176, 2a coluna 3° § da ed. holandesa e p. 124, 1a
coluna últ. § da trad. inglesa).
Página 266 de 349

Por essa ocasião surgiu uma divergência entre oficiais do Exército e da Milícia
Municipal com relação ao comando supremo da Guarda do Recife, que os da
Milícia reclamavam para si a sua instituição.

Uma esquadra armada para socorrer o Brasil

Voltemos, porém, aos nossos demorados socorros

As repetidas cartas dirigidas pelo Conselho do Brasil Holandês aos Estados


Gerais e aos diretores da Companhia, relatando a posição melindrosa em que
nos achávamos, causaram tal impressão nos círculos oficiais da Metrópole que
aconselharam os diretores da Companhia a enviar um reforço de 5000 ou 6000
homens além de boa armada. Para tanto os Estados Gerais forneceram 25
companhias de tropas regulares e deram licença à Companhia para engajar
outras tantas, perfazendo um total de 4.000 soldados, sem contar os
marinheiros e voluntários.

Essa frota, composta de numerosos e ótimos navios, estava pronta para


zarpar, em novembro de 1645, mas, devido a uma violenta tempestade de
neve, ficou detida no porto de Vlissingen até fevereiro de 1646. Comandava-a o
Senhor Bankert, Almirante da Zelândia, e os cinco senhores adiante
mencionados que também seguiam com a armada, pois que foram nomeados
diretores do Grande Conselho do Brasil Holandês, em substituição aos que
estavam em exercício. Eram eles o Senhor Walter Schonenburgh, Presidente,
Michil Van Goch, Pensionario de Vlissingen, Simon van Beaumont, Advogado
Fiscal da cidade de Dordrecht, Hendrik Haecxs e o Senhor Trouwels, dois
grandes comerciantes de Amsterdã, aos quais fora ordenado que observassem
os negócios da Companhia, além do Senhor Heremijt, advogado de Dordrecht,
que seguia na qualidade de secretário dos novos diretores.363[363] O Senhor
Sigemundt Schkoppe que, anteriormente, no governo do Conde Maurício,
detivera o comando geral das forças de terra, do Brasil Holandês, foi
novamente enviado para o mesmo cargo. Era um militar de larga experiência,
que mantinha sempre disciplina exemplar entre os seus comandados.

Nenhuma outra frota jamais despachada da Holanda encontrou em sua rota


maior cópia de acidentes durante os seis meses em que esteve no mar. Dois
dias depois que a armada deixou a costa batava, foi forçada a ancorar junto
aos baixios fronteiros a Newport, onde perdeu dois navios devido ao mau
tempo. Três dias mais tarde, tendo se acalmado um pouco o vento, a flotilha
sob o comando do Senhor Van Goch velejou de novo, mas, depois de apenas
48 horas de viagem, foi obrigada a ancorar em Santa-Helena, na ilha de

363
[363] O cargo de Advogado ou Pensionário era da maior importância política. Michiel van
Goch era pensionário de Vlissingen e, portanto, sua influência era restrita a este Estado. Mas o
Grande Pensionário era o diretor virtual e o árbitro da política do Estado. Duas grandes figuras
na história holandesa foram pensionárias da República: Oldenbarneveldt e Johan de With (cf.
XXXIII, p. 116). Heremijt era filho do conhecido navegante holandês. (Moreau, LIX, p. 104,
Varnhagen, XL1, p. 48); (cf., também, nota 163). Nieuhof escreveu Wolter Schoonenburgh (p.
177, 1a coluna últ. §) e depois Walter Schonenburgh (p. 179, 2a coluna 1° §). A relação
publicada em 1655 em Middelburgh e da autoria do mesmo traz escrito Wouter Schonenburgh.
Página 267 de 349

Wight.364[364] Três dias antes de sua chegada, um magnífico navio holandês,


avaliado em dois milhões de libras, recentemente chegado do Brasil,
despedaçou-se entre as rochas, de tal forma que, de 300 passageiros, apenas
30 foram salvos. Aí, a armada ficou detida pelo mau tempo e ventos adversos,
durante sete semanas, até que outro navio batavo, procedente do Brasil, por
coincidência lançou âncora junto a ela, tendo informado os nossos marujos que
os holandeses do Recife estavam passando as mais negras necessidades e
que talvez já por essa época a cidade tivesse capitulado, pois que, quando o
navio partiu do Brasil, não tinham víveres para mais que dois meses. À vista
dessa informação resolveu-se continuar a viagem com qualquer vento.
Entretanto, nova tempestade apanhou a frota holandesa, ao largo de Portland,
onde naufragou um navio escocês com 200 pessoas a bordo. Com muita
dificuldade, a frota de Van Goch conseguiu ancorar atrás de um penhasco,
onde permaneceu até que diminuísse a fúria da tormenta e pudesse prosseguir
a viagem. Todavia, apenas a esquadra deixara o Canal e começara a velejar
pelo mar de Espanha, surgiu uma desinteligência entre o Senhor Van Goch e o
Senhor Beaumont, com respeito à bandeira. Os Zelandeses (em Conselho de
Guerra convocado para esse fim) deram a precedência ao Senhor Van Goch.
Os holandeses, porém, pretendiam que a mesma pertencesse ao Senhor
Beaumont, mas, como o Senhor Van Goch insistisse a pesar de tudo em
reclamar a precedência, o Senhor Beaumont deu um sinal aos navios
holandeses para que o acompanhassem e despediu-se do Senhor Van Goch.
Este, depois de uma tediosa viagem, na qual perdeu muitos de seus homens
por moléstia, especialmente o escorbuto, arribou à meia hora de 14 de julho no
porto do Recife, sendo o primeiro dos cinco novos membros do Grande
Conselho a chegar ao Brasil Holandês. A 31 de julho de 1646, os navios
Blaewwen, Haen e Vlissingen, da Zelândia, chegaram também ao Brasil. No
primeiro veio o Senhor Trotfwels e no último, pela segunda vez, o Coronel
Sigemundt Schkoppe.

A 6 de agosto, o Coronel Sigemundt relatou aos membros do Conselho como


foi que, cumprindo as ordens de Hamel, Bullestrate, Bas e Trouwels, havia
avançado com 450 homens até o forte de Olinda, para sondar o inimigo e
capturar prisioneiros. Disse que os portugueses fizeram menção de atacar sua
força, mas, depois de algumas escaramuças ligeiras, retiraram-se, e, com
apenas parte de sua força, marcharam através do Braço de São Tiago, a fim de
cortar nossa retirada. Entretanto, os nossos, mais uma vez, os forçaram a
364
[364] Nieuhof escreveu Nieuport e o tradutor inglês Newport (cf. p. 177, 2a coluna 5° § da
ed. holandesa e p. 125, 1ª coluna 1° § da trad. inglesa). Parece que se trata de New Haven.
Naturalmente, Nieuport tanto pode ser, em inglês, Newport, como New Haven e, por isso, o
tradutor inglês escolheu a primeira forma. Mas acontece que na costa atlântica da Inglaterra
existem tanto Newhaven como Newport, sendo que aquela demora um pouco para o norte da
Ilha Wight, enquanto Newport está situada na própria ilha. A cidade de Santa Helena está
situada no interior da ilha; assim, não é possível que, vindo de Newport, alcançassem, depois
de 48 horas o mesmo Newport. Não há dúvida de que, na época, o porto conhecido sob esse
nome era o que acabamos de apontar. Moreau (LIX, p. 182) confirma isso ao escrever [i]Dix
iours durant nous navigeasmes dans le grand canal entre la France & VAngkterre, & auprés de
l'isle de Vvicht, ou le defunt & dernier Boy d'Angleterre estoi lars detenu prisonnier dans la tour
de la, ville de Nieuport au milieu d'isle;[/i] e também o mapa de Janssonius, onde Newport está
situada na ilha. Assim, parece-nos que Newhaven é o primeiro porto de que fala Nieuhof; esta
hipótese encontra apoio na tradução da palavra, pois Nieuhof teria escrito Nieupoort para
significar New haven.
Página 268 de 349

retirar-se com a perda de diversos mortos e feridos. Do nosso lado, porém, só


tivemos um ferido durante toda a ação, além do próprio Coronel Schkoppe que
recebeu leve ferimento na perna.

Mais navios chegam da Holanda

A 8 de agosto surgiu ao largo do Recife um navio Het Wapen van Dordrecht, no


qual viajava o Alto Conselheiro Simon van Beaumont, fiscal advogado de Dort.
Foi comboiado com toda a dignidade, para dentro do porto.

Tarde da noite de 12, os Senhores Walter Schonenburgh, novo presidente do


Conselho, e Hendrik Haecxs chegaram ao Recife em uma barca, procedente
do Norte, tendo sido recebidos pelo povo e pelas forças armadas. Haviam sido
forçados a abandonar o navio Middleburgh à frente da entrada Norte de
Itamaracá, bem como o Dolfijn, ambos carregados de víveres por conta da
Câmara de Zelândia. Esses dois navios haviam sido avistados ao largo de
Olinda a 31 de julho365, mas, forçados pelos ventos contrários a retroceder, o
último deles só ancorou junto ao Recife a 13 de agosto.

Nesse mesmo dia um negro desertor chegado ao Recife trouxe a notícia de


que o inimigo pretendia construir um forte no Passo de Barreta, a fim de
impedir as nossas sortidas pelo interior. Resolveu-se então, por consenso
unânime do Presidente Schonenburgh e de todo o Conselho, com aprovação
do Coronel Schkoppe e do Tenente-Almirante Lichthart, impedir que o inimigo
levasse a efeito esse plano, executando, nós, a fortificação desse Passo que
constituía a única saída por onde poderíamos tentar a restauração do Brasil
Holandês. As outras estavam fortemente guarnecidas pelo inimigo e não
poderiam ser forçadas sem grandes riscos.

O Coronel Schkoppe marcha, para Barreta

Nessa mesma noite o Coronel Schkoppe marchou com toda a força que
conseguiu reunir, tendo dado ordem para que as embarcações carregadas com
o material necessário para a construção das fortificações planejadas,
seguissem com a maré seguinte. Logo após sua chegada, o Coronel expulsou
o inimigo e tomou posse da Casa da Barreta. Imediatamente mandou pedir
instruções ao Conselho sobre se deveria permanecer nessa posição a noite
toda. O Conselho, com a aprovação do presidente Senhor Schonenburgh, para
lá mandou o Senhor Bullestrate a fim de inspecionar o lugar e apresentar seu
relatório. Este regressou na noite de 14 e informou o Conselho que encontrou
os trabalhos já tão adiantados e as fortificações em condições tais, que logo
estariam em condições de resistir aos ataques do inimigo.

A 13 de agosto Roelof Baro, que como já relatamos, fora incumbido de levar


alguns presentes a Janduí, rei dos tapuias, trouxe uma carta desse chefe
indígena, datada de 1.° de julho, endereçada ao Conselho, na qual agradecia
os presentes e pedia que lhe enviasse armas de ferro, pois estava em guerra

365
[365] O tradutor inglês escreveu 30 de julho (cf. p. 178, 2a coluna, 4° § da ed. holandesa e
p. 125, coluna 3° § da tradução inglesa).
Página 269 de 349

com os Paiacús366,[366] e, logo que os tivesse subjugado, marcharia com todas


as suas forças contra os portugueses.

FORTE PRÍNCIPE GUILHERME

Por essa ocasião tendo o presidente, Senhor Walter Schonenburgh e demais


membros do novo Grande Conselho chegados ao Recife, entregue os títulos
pelos quais Sua Alteza o Príncipe de Orange, os Estados Gerais e o Conselho
dos XIX os nomearam governadores conjuntos do Brasil Holandês, os antigos
conselheiros, Senhores Hendrik Hamel, Bullestrate e Pieter Bas convocaram
seus colegas e pessoas gradas para assistirem a posse dos novos membros.

O antigo Conselho transmite o Governo.

Reuniram-se, portanto, os conselheiros da Justiça e Finanças, em seguida os


escoltetos, escabinos e comissários e mestres de órfãos da Cidade Maurícia,
depois os pastores e membros do Conselho Eclesiástico, oficiais de terra e
mar, os maiorais judeus e, finalmente, os guarda-livros da Companhia. O
Senhor Walbeek, fazendo uso da palavra, em nome do Conselho, disse que os
senhores Hendrik Hamel, Bullestrate e Pieter Bas haviam convocado essa
reunião a fim de, em presença de todos, transferir o poder ao Senhor Walter
Schonenburgh e demais conselheiros recentemente nomeados por Sua Alteza
o Príncipe de Orange e pelo Conselho dos XIX, para a suprema direção do
Brasil Holandês. Exprimiu seus sinceros agradecimentos a todos, pelos
serviços prestados ao Governo, em seus respectivos setores, bem como pela
constante lealdade demonstrada durante a comoção intestina, exortando-os a
que se mantivessem fiéis ao novo Conselho. Depois de receber os
cumprimentos dos antigos conselheiros, bem como dos presentes, o novo
Conselho, pela voz de seu Presidente, disse que, conquanto assumisse, daí
em diante, a responsabilidade integral do Governo, não deixaria de se
aconselhar com os antigos membros enquanto permanecessem, estes, no
Brasil.

Para isso pedia que, a partir de 20 de agosto, comparecessem eles,


diariamente, à reunião das 8 horas a fim de, com o fruto de sua experiência,
cooperarem para a boa marcha dos negócios da Companhia. A 19 de agosto,
noite alta, falecia o Senhor Trouwels.

Revista Geral

O dia 3 de setembro fora escolhido para uma revista geral das forças que
guarneciam os fortes, nas adjacências do Recife. O Senhor Haecxs e o
366
[366] Nieuhof escreveu Pojukus (p. 179, 1a coluna, 1° §). Trata-se de grafia estropiada, pois
o nome certo é Paiacús, do grupo Carirí. [i]Os Paiacús dominavam desde a ribeira do
Jaguaribe até a fronteira do Rio Grande do Norte, com a Paraíba, a serra Cirité. Revoltaram-se
mais tarde várias vezes e no século XVIII estavam aldeados em Jaguaribe.[/i] Alguns outros
chamavam-lhes Baiacús (cf. Rodolfo Garcia, XXXVII, p. 265). Estêvão Pinto, no mapa da
distribuição dos principais grupos indígenas do Brasil, localiza-os próximo dos Janduís,
também Carirís (cf. LXIX, entre as p. 150-151 e p. 151). Consulte-se sobre as sublevações
desses índios Pedro Carrilho de Andrade - Memória sobre os índios do Brasil, [i]in[/i] Rev. do
Inst. Hist. e Geog. do Rio Grande do Norte, vol. VII, 1909.
Página 270 de 349

comissário Zweers tiveram ordem de inspecionar as forças dos fortes Ernesto,


Waerdenburgh e Boa Vista; os senhores Beaumont e Moucheron as dos fortes
Antônio Vaz e da Cidade Maurícia; os senhores Van Goch, Hamel e Aldrich as
do Recife e as das baterias; os senhores Raetvelt e Kraeyvanger, as de Barreta
e adjacências; o Senhor Volbergen e o Comissário Stricht, as dos fortes
Guilherme e Frederico Henrique; os senhores Bullestrate e de Wit as dos
castelos de Terra e Mar no forte Bruin.

Por consenso unânime do velho e do novo Conselho, concedeu-se, a 4 de


setembro, uma anistia que foi comunicada ao inimigo, a 6 do mesmo mês, por
um tambor, o qual também levava uma carta aos comandantes portugueses da
Baía, pedindo que retirassem suas tropas. Tendo-se realizado, a 10 de
setembro, uma revista da milícia do Recife e da Cidade Maurícia, constatou-se
que se compunha ela de 700 homens. A milícia recebeu os agradecimentos do
antigo Conselho, pelos bons serviços prestados durante a presente guerra
intestina e a corporação, por sua vez, agradeceu ao Conselho a orientação
prudente que havia imprimido ao Governo.

A 13 de setembro, foi lida no Grande Conselho uma carta escrita por certo
Coronel português a 11 daquele mês, em resposta à nossa do dia 6, repleta de
inverdades e invencionices. Alegava que o povo impedia as forças portuguesas
de se retirarem para a Baía; que precisavam de navios para o seu transporte,
pois que os seus estavam detidos na Baía de Tamandaré, e, finalmente, que
precisava aguardar ordens do Rei, nesse sentido.

Tiveram também cuidado especial em exagerar sua força. A 12 e 13 de


setembro, os portugueses distribuíram diversas cartas escritas por João
Fernandes Vieira e dirigidas ao escabino Daems, a Matias Beck, Baltasar da
Fonseca, Duarte Saraiva e Gaspar Francisco da Costa.367[367]

367
[367] Sobre as atividades de Matias Beck, como explorador, consultem-se os "Diários da
Expedição de Matias Beck ao Ceará em 1649", [i]in[/i] Rev. Trimensal do Instituto do Ceará,
1903, Tomo XVIII, p. 331-405, traduzido por Alfredo de Carvalho. Esse trabalho foi publicado
também no livro "Tricentenário do Ceará", 1903 (p. 333-417, com um mapa). Além disso,
Alfredo de Carvalho, em Minas de Ouro e Prata, [i]in[/i] Estudos Pernambucanos, Recife, 1907,
p. 31-34, ou [i]in[/i] Aventuras e Aventureiros, Pongetti, Rio, 1930, p. 123-125, referiu-se às
explorações de Matias Beck. À p. 124, nota 1 deste trabalho, na edição de Aventuras e
Aventureiros, afirmou Alfredo de Carvalho ter adiantada a tradução da correspondência de
Beck. Infelizmente, não sabemos se conseguiu terminar essa tradução antes de sua morte.
Consulte-se, também, Wätjen (XCVI, nota 283, p. 210). Sem nenhuma importância é o artigo
de Alfredo de Carvalho "Jazidas Auríferas do Ceará", [i]in[/i] Rev. Trimensal do Ceará, 1905,
Tomo XIX, p. 123. Nieuhof escreveu Matthias Bek (p. 180, 4° §).
Baltasar da Fonseca era um engenheiro judeu. Na célebre polêmica entre liberdade de
comércio e monopólio, Baltasar da Fonseca assinou, com outros judeus, um requerimento
dirigido ao governo, pleiteando a liberdade comercial, (cf. Bloom, XI, p. 127), Wätjen, XCVI, p.
448-475). Foi o construtor da ponte que ligava o Recife a Maurícia (cf. nota 44).
Duarte Gomes da Silveira era rico proprietário de engenhos. Não só na Descrição da Paraíba
de Herckmans (XXXIV, p. 265) como no Breve Discurso (XV, p. 157), fazem-se referências aos
engenhos em Herckmans e ao engenho [i]Inobi[/i] no Breve Discurso. Na relação dos engenhos
vendidos em 1637, (Rev. do Inst. Arqueológico e Geográfico Pernambucano, 1887, vol. 6, p.
196-197) consta, também, várias vezes o nome de Duarte da Silveira como comprador. Assim
é que comprou a Antônio de Sá, em 17 de junho de 1637, por 10.000 florins, o engenho Velho
de Beberibe, mais tarde denominado Eenkalchoven. (cf. também Pereira da Costa, O passo do
Página 271 de 349

Nessas cartas o autor exagerava, novamente, o número de seus homens e se


referia com desprezo aos nossos. Dizia que se fossem forçados a deixar o
país, destruiriam tudo a ferro e fogo como já tinham feito em certos lugares da
Paraíba. Era o seguinte o teor dessas cartas.

CARTA DE VIEIRA A ALGUNS COMERCIANTES DO BRASIL HOLANDÊS

Os fatos, sem dúvida, já os devem ter convencido das razões que nos levaram
a empreender esta guerra, e v sucesso que vimos obtendo prova à saciedade
que a Deus aprouve infligir esse castigo aos nossos inimigos pelas muitas
violências cometidas contra o povo deste país. Esse sucesso, entretanto, pode
ser, em grande parte, atribuído ao auxílio do povo, que, sacudindo o jugo de
seus opressores, espera de mim - que, indigno embora, sou o chefe supremo
desta guerra - apoio para sua heróica resolução. Não quero que V. S. ignore o
nosso poderio o qual, comparado ao seu, excede a tudo quanto se possa
imaginar. Direi apenas que, com a evacuação das Capitanias de Paraíba e
Goiana, as nossas fileiras foram consideravelmente engrossadas, e, assim, o
povo prefere antes perder seus haveres que suportar por mais tempo as
ignomínias que pesam sobre ele e que constituíram a verdadeira causa de sua
insurreição e não (como se faz crer entre os holandeses) porque não
pudessem satisfazer os seus credores, pois eles abandonaram mais do que
seria necessário para saldar seus compromissos.368[368] Todavia, se

Fidalgo, Rev. Inst. Arqueológico Geog. Pern., 1902, n. 56, vol. X, p. 61). A 17 de junho, o
engenho chamado Bom Jesus ou do Tripicho, pertencente a Dona Isabel de Moura, foi por ele
comprado por 60.000 florins e, finalmente, a 23 de junho, o engenho Novo, pertencente a Pais
Barreto, por 42.000 florins.
Duarte Saraiva foi também um dos que assinaram o pedido para que Nassau permanecesse
no Brasil, no qual pedido se oferecia a Nassau o estipêndio de 7.000 florins anuais, (cf. Bloom,
XI, p. 138).
Gaspar Franco da Costa foi um dos judeus que compraram carga de dois navios espanhóis
apreendidos pelos holandeses. Gaspar Franco da Costa comprou 338:2 florins. (cf. Bloom, XI,
p. 134).
368
[368] Tudo leva a crer que seja exata a afirmativa de que João Fernandes Vieira deixou-se
levar muito mais pelas dívidas que lhe pareciam insolváveis do que pelo programa de idéias de
liberdade divina. Depois da descoberta dos papéis inéditos relativos a fraudes e má fé de João
Fernandes Vieira, feita por Alberto Lamego, ficou comprovado o interesse econômico como
causa principal de ter Vieira se tornado restaurador. [i]Depois de pôr na Baía em mãos de
Antônio de Freitas da Silva, quantidade de dinheiros, jóias, prata, ouro, convidou alguns
homens nobres[/i] e [i]ambiciosos,[/i] devedores remissos da Companhia, a se levantarem
contra o domínio holandês. Os principais chefes são devedores da Companhia. Logo que
assumiu o poder militar, João Fernandes Vieira tornou-se um déspota. Explorava de maneira
pouco digna os moradores pernambucanos, fazendo-os trabalhar para ele, obrigando-os a
pagar para o sustento da guerra. (Cf. especialmente pp. 35 e 43 de LI).
Deste modo tornou-se claro que Vieira fez guerra para ele e para os de seu partido; isto é os
que queriam se libertar das dívidas assumidas.
Todas as desonestidades de Vieira foram expostas por Pereira da Costa e podemos resumi-las
nesta frase: "Converteu sua banca de despachos em balcão de bater moeda".
Varnhagen (LXXIII, p. 242); Oliveira Lima (Cartas aos papéis, inéditos, LI, p. 21; Afonso
Taunay, Anais do Museu Paulista, 1927, vol. II, P'. Manuel de Morais; todos foram unânimes
em atribuir a João Fernandes Vieira intuitos de ganho e não fé ou patriotismo. Aliás, comprova-
se facilmente que a guerra foi, para Vieira, um formidável roubo. Sobre isso, Pereira da Costa
publicou uma magnífica e bem documentada monografia, onde estuda a fabulosa riqueza que
logrou acumular João Fernandes Vieira. Trata-se do estudo: "João Fernandes Vieira à luz da
história e da Crítica", [i]in[/i] Rev. do Inst. Arq. e Geog. Pern., vol. XII, n. 67, 1906, p. 169-275.
Sobre as causas econômicas que levaram os senhores de engenho à luta, vide nosso capítulo:
Página 272 de 349

acontecesse que o povo não se pudesse manter pela força das armas, estaria
disposto a deixar as outras capitanias na mesma desoladora condição.

Tendo pesado cuidadosamente os motivos que nos levam a esperar a vitória,


senti-me na obrigação de avisá-lo, como amigo, que o nosso lado - apoiado
pela razão e pelo consenso de tantos milhares de pessoas - conta com, pelo
menos, 14.000homens, além dos negros e tapuias, disseminados por diversas
regiões do Rio Grande, até o Rio São Francisco. Camarão comanda 600
mosqueteiros, Henrique Dias 500 negros, 200 minas e 700 tapuias. 369[369]
Além disso, no sertão, todos estão do nosso lado e apenas à espera de que os
chamemos; mas, acima de tudo, Deus está conosco. Sabemos que antes da
chegada do Senhor Sigemundt van Schkoppe, toda a sua força não
ultrapassava 600 homens e que os socorros por ele trazidos não vão além de
1200 homens, dos quais a maior parte é constituída por adolescentes e os
demais estão doentes ou já mortos. Como vê V. S., estou bem informado de
sua força, pois já abatemos ou aprisionamos 2,600 de seus melhores soldados
e 500 brasileiros, além dos feridos que foram transportados para o Recife
quando as nossas tropas não dispunham de outras armas que chuços e
cacetes. Esses feitos constituem verdadeiros prodígios do céu, pois se
conseguimos fazer tudo isso sem, pólvora nem balas, o que se não poderá
esperar de nossas forças, agora que estão revigoradas por tropas de primeira e
bem municiadas ?

Dou-lhe a minha palavra em como tudo quanto disse não é senão a pura
verdade. E, não fora o respeito devido aos Coronéis vindos da Baía e à Sua
Majestade de Portugal, por esta época eu já estaria senhor do Recife e de
alguns dos fortes, ou pelo menos teria feito muito maiores estragos. Entretanto,
se as cousas não terminarem bem, estou resolvido a agir como um
desesperado e a não deixar nenhum engenho, gado ou negro no país. Porei
tudo em ruínas antes de ser de novo obrigado a render obediência aos
batavos. Servindo a presente de aviso, espero que V. S. e os demais

"A queda do domínio holandês", p. 275-307, [i]in[/i] LXXVII. Vide, também, "Verbas Inéditas do
testamento de João Fernandes Vieira", [i]in[/i] Rev. do Inst. Arq. e Geog., Pern., 1903-1904,.
vol. 11, p. 766-768, n. 25, p. 18-32; n. 26, p. 144-149 e Rev. do Inst. Hist. Geog. Bras., vol.
XXIII, p, 387-398.
Sobre atividades de Vieira posteriores à restauração, vide o artigo de Pereira da Costa, onde
se mostra como João Fernandes Vieira apropriou-se, no governo da Paraíba e de Angola, de
bens de ausentes, faltou ao pagamento de impostos, apoderou-se de moradas de casas
pertencentes à fazenda real (casas grandes, senzalas) e finalmente deixou de pagar o imposto
lançado pela Coroa para o pagamento estipulado no acordo entre Portugal e os Países Baixos.
Vide, ainda, "Deposição de Jerônimo de Mendonça Furtado, Governador de Pernambuco, Ano
1666, Anais de Bib. Nac. do Rio de Janeiro, 1935, vol. LVIII, 1939, p. 114. V., ainda, Carta dos
moradores de Pernambuco ao Dr. Pedro da Silva Sampaio, Rev. do Inst. Arq. e Geog. de
Pern., n. 35, p. 32-34.
Do lado holandês, consulte-se o vol. III dos Documentos holandeses, [i]in[/i] Inst. Hist. Geog.
Bras., onde se encontram várias referências às dívidas e a João Fernandes Vieira; e também a
Bolsa do Brasil, onde se encontra estipulado o abatimento feito pelo governo holandês às
dívidas do mesmo (Rev. da Soe. de Geog. do Rio-de Janeiro, Tomo XXXVII, 1933, p. 50).
Constitue documento importantíssimo a carta escrita por Hoogstraeten a Hondius, depois de
bandeado para os portugueses, e que se encontra traduzida em Mattheus van de Broeck. (XVI,
pp. 24-25).
369
[369] O tradutor inglês escreveu 800 negros (cf. p. 181, 2a coluna, 1° § da ed. holandesa e
p. 127, 2a coluna 1° § da tradução inglesa)
Página 273 de 349

comerciantes não se demorem em fazer conosco um acordo capaz de


preservar seus haveres. Devo lembrar-lhes que muitos engenhos estão
atualmente em tal estado, que não poderão ser utilizados pelos próximos 10
anos. A Várzea não está em melhores condições que Paraíba e Goiana e o
gado (sem o que os engenhos não podem, subsistir) destruído por quase toda
parte.

Supomos que o Coronel Sigemundt pretende manter o domínio dos campos,


como na última guerra. Desta vez, porém, verá que se enganou redondamente,
pois o povo não estará a seu lado, e, se eu souber de um que lhe seja
simpático, fa-lo-ei enforcar imediatamente. Os holandeses alegam que nós
somos vassalos das Companhias. Mas, quando foi uma nação conquistada,
tratada como fomos, pior que vis escravos? E disso V. S. sabe tão bem quanto
nós. Portanto, tendo sido forçados a romper as correntes que nos prendiam,
não lhes devemos mais obediência. Se não tivéssemos agora esperanças, de
há muito teríamos pedido auxílio ao Rei da Espanha ou da França, e, se esses
falhassem, teríamos recorrido aos turcos ou aos mouros. Peço-lhe que não
atire fora esta carta porque a experiência o convencerá da verdade que ela
encerra, bem como de que manteremos aqui os mesmos métodos empregados
em outras paragens. Não desejaria, portanto, que V. S. desse crédito a não ser
àqueles que vêm, em pessoa, desses lugares. Nada mais lhes disse que a
pura verdade e V. S. o constatará no seguinte: no prosseguimento desta
guerra, espero que V. S. pondere de que lado está o seu interesse, no que
estou pronto a auxiliá-lo, pois, conquanto os seus governantes não dirijam a
mim sua correspondência, sou eu quem tem o comando supremo da
campanha; estão sob minhas ordens os Coronéis que vieram da Baía e cuja
autoridade não ultrapassa as tropas que com eles vieram.

Arraial do Bom Jesus, 11 de setembro de 1646.

A 10 deste mês os referidos Coronéis mandaram, por um dos nossos capitães,


resposta a uma carta que lhes fora dirigida pelo seu Conselho. Diversas
perguntas capciosas foram propostas a esse oficial, com respeito à presente
guerra, e, não tendo, talvez, as suas respostas correspondido às expectativas
dos batavos, retrucaram estes, mais como bêbados covardes que como
soldados. Se se dignarem eles a vir dizer essas cousas a mim, teremos
ocasião de ver se suas espadas são tão ligeiras como suas línguas e, então,
lhes ensinaremos a respeitar, como se deve, os mensageiros dos que aqui
detêm o supremo comando. Isto, estou-lhes escrevendo agora, mas
oportunamente farei boas as minhas palavras à força da espada cujos efeitos o
seu povo sente cada vez que ousa sair fora dos fortes. Rogo-lhes que não se
deixem enganar, pois o Brasil não está reservado para Vs. Ss.. Não há dúvida
de que Deus abençoará as nossas armas, mas, se morrermos, teremos
perdido nossa vida em defesa de nossa sagrada religião e de nossa liberdade.
Todos aqueles que se recusarem a aceitar as nossas ofertas, pagarão com
suas vidas, haveres e créditos.

Arraial, 12 de setembro de 1646.

(assinado) João Fernandes Vieira


Página 274 de 349

A 14 de setembro chegou ao Recife, depois de uma viagem de 14 semanas, o


navio de guerra Ter Veer, armado pela Câmara de Zelândia, a cujo bordo
viajava o Coronel Hinderson.

A 24 de setembro, o inimigo fez distribuir panfletos, prometendo em termos


enfatuados anistia e novo acordo sobre suas dívidas, caso deixássemos a ilha.

Aos 24 dias do mesmo mês, foram feitas pelo inimigo proclamações de anistia,
em termos arrogantes, propondo um acordo acerca das dívidas; e muitas
outras indignidades, especialmente a de que os nossos deveriam deixar o país.

O Coronel Schkoppe regressa de Goiana

A 27 de setembro o Coronel Schkoppe regressou da Goiana, via Itamaracá,


com alguma tropa. Eu não tinha ainda encontrado o inimigo, mas os engenhos
que visitei na primeira dessas localidades estavam todos queimados.
Entretanto os canaviais e as plantações de mandioca aparentavam boas
condições. Soubemos mais tarde que os engenhos de Goiana não estavam
completamente incendiados.

Conferência entre o antigo Conselho e o Senhor Goch

A 27 de outubro realizou-se uma conferência entre os antigos membros do


Conselho e o Senhor Van Goch, tendo os primeiros dado seu parecer com
relação a vários assuntos administrativos relativos ao Brasil Holandês,
principalmente no que respeita ao plantio da mandioca e à matança de gado,
que aconselharam fosse feito com a maior parcimônia, pois o Brasil não
poderia subsistir sem um grande número de bois, pois estes eram
constantemente empregados no transporte de cana, lenha e outras cousas
indispensáveis aos engenhos.

Quanto ao plantio de mandioca, propuseram que fosse feito em Itamaracá, no


Rio Grande e na Paraíba, regiões essas que reputavam suficientes para
atender ao consumo de então, se as plantações fossem procedidas antes de
passar o tempo próprio.

Os holandeses tentam a reconquista do Rio São Francisco

Nesse ínterim, o Coronel Schkoppe fez diversas investidas infrutíferas contra o


inimigo, e, com isso, as nossas forças ficaram de tal forma reduzidas que não
mais estavam em condições de tentar qualquer operação contra os
portugueses, perto do Recife. Tal fato levou o Conselho a decidir que se
tentasse a reconquista do Rio São Francisco, plano esse cuja execução foi
confiada ao Coronel Hinderson. Nessa empresa as nossas armas foram mais
afortunadas, pois encontraram fraca resistência na região.

Consoante essa resolução, a 24 de outubro zarparam para o Sul sob o


comando do Almirante Lichthart e do Coronel Hinderson os seguintes navios:
como capitânia, Graef Enno, como vice-capitânia, Loanda, Het Wapen van
Página 275 de 349

Dordrecht, Schout by naeht, De blaeuwe Haen, Waekende Hont, Hazewint,


Arent, Ster, Heemsteãe, Vlucht, acompanhados por oito barcas.

No dia 17 de novembro o Conselho recebeu notícias de que as nossas tropas


sob o comando do Coronel Hinderson desembarcaram em Corasipa sem
serem molestadas. Marchando daí para o Rio São Francisco e o Forte São
Maurício, não encontraram oposição do inimigo, que tinha iniciado a demolição
do dito forte. Depois de atravessar o rio nossas tropas foram acompanhadas
pelos navios menores, navegando rio acima. Prosseguindo a marcha para
Sergipe d'El Rei, deixaram para trás turmas encarregadas de reformar o forte.
Diziam mais, as notícias recebidas, que quatro portugueses haviam solicitado
anistia.

Enquanto as nossas forças operavam na região, tive ordem de para lá seguir a


fim de superintender ao aprovisionamento da tropa (e felizmente havia, então,
grande fartura). Determinei o embarque da carga que me fora confiada, a bordo
do navio Bruinvisch comandado por Frans Fransz.

O Senhor Nieuhof recebe ordem de partir

Zarpamos a 24 de novembro. Fomos levados por vento forte em duas horas


até ao pé da cadeia que o povo chama Serra da Cangalha, devido à sua
conformação. O litoral e as adjacências são cobertos de dunas de areia branca.
Cerca de meia hora depois do sol posto, achávamo-nos ao largo da Baía de
Tamandaré, e, continuando a rota com vento à feição, dois dias mais tarde
ganhávamos a desembocadura do grande rio. É tão larga a sua foz, que uma
peça de grosso calibre não seria capaz de atravessá-la. A corrente ingressa
suavemente no oceano; durante o inverno suas águas são baixas; no verão,
porém, aumentam de volume, talvez devido ao degelo que o sol ocasiona. A
cerca de 50 léguas de sua desembocadura, há uma enorme catarata
circundada por muitas ilhas. Em ocasiões de tempestade, é tão impetuoso o
mar, na foz do rio, que mesmo os mais experimentados marujos deixam-se
tomar de pavor. A corrente carrega, então, em seu dorso, grandes blocos de
terra desagregada. Vencemos a desembocadura do caudal, mas, logo depois
do pôr do sol, fomos forçados a lançar ferro, pois o vento este, que nos deveria
levar rio acima, só começa a soprar por volta das três da madrugada. A região
parecia muito amena de ambos os lados, e, nas margens, conseguimos avistar
grande quantidade de animais selvagens bem como algumas cabanas feitas de
palha. Ficamos detidos quase um dia em um banco de areia, e, depois de o
termos vencido, atingimos a vila denominada Penedos, a cavaleiro de uma
elevada montanha.

Aí desembarcamos com auxílio de nossos botes e encontramos diversas


casas reconstruídas pelos nossos; as demais haviam sido incendiadas pelo
inimigo em retirada. No tempo dos portugueses existia no forte uma igreja que
transformamos em arsenal, era circundada por um bom muro junto ao qual o
rio passava, ao norte, onde a montanha é abrupta.
Página 276 de 349

Forte Maurício, no Rio São Francisco em Penedo – Alagoas - 1671 - Arnoldus Montanus

Morte do Almirante Lichthart

A 30 de novembro o Almirante Lichthart foi acometido por violenta moléstia que


contraiu por ter bebido grande quantidade de água fresca quando estava com o
corpo muito quente. O Almirante foi transportado rio abaixo em um bote, com
três soldados, sob o comando de um oficial, mas logo ao início da viagem
perdeu os sentidos e expirou em minha presença. No dia seguinte, seu corpo
foi colocado em um ataúde e transportado para bordo do Gulde Sterre. O
féretro foi conduzido pelos oficiais maiores e escoltado por quatro companhias,
até a barranca do rio. Aí, os soldados deram três salvas de mosquetes, o
mesmo fazendo a artilharia do forte e dos navios 370.

O senhor Nieuhof por pouco não se afoga

À noite, quando me dirigia para bordo, o bote em que eu viajava virou devido à
violência da corrente, e não fosse eu bom nadador, por certo ter-me-ia
afogado. O capitão mandou atirar um cabo ao rio, com cujo auxílio, e mercê de
Deus, pus-me a salvo no navio.

370
[370] Na manhã de 9 de dezembro de 1646 chegou do Rio São Francisco a fragata
[i]Sterre[/i] com o cadáver do Almirante Jan Cornelisz Lichthart, que morreu repentinamente a
18 de novembro, estando em seu iate, naquele rio. (cf. XXIX, p. 213).
Página 277 de 349

Incêndio no acampamento

Enquanto esses acontecimentos se desenrolavam os nossos soldados deram


uma batida pelos arredores e conseguiram arrebanhar, para o nosso
acampamento, 700 reses e 300 bezerros que encontraram pastando numa ilha
fluvial, sob a guarda de alguns soldados. O gado não estava lá muito gordo,
mas a carne era bem passável. As tendas dos soldados foram, em sua maioria,
plantadas na face norte do morro; entretanto, tendo sido construídas com
galhos e folhas de árvores, incendiaram-se, acidentalmente, no dia 3 de
dezembro, com tal fúria que, num quarto de hora, todo o acampamento estava
em chamas, a pesar de que os tambores e cometas tocaram alarme
imediatamente. Soldados que se estavam banhando no rio perderam, no
sinistro, todas as suas roupas. Foi bom que o incêndio tivesse ocorrido durante
o dia. À noite, ter-nos-ia posto em grande consternação, pois, segundo voz
corrente, o fogo foi ateado propositadamente. Nos campos adjacentes havia,
então, abundante safra de tabaco que ainda não estava no ponto de ser
colhida, pois a colheita só se processa antes das regiões baixas se inundarem.

O Coronel ordenou-me que fornecesse novas roupas aos que tudo perderam,
fazendo o desconto relativo em seus soldos. Respondi-lhe, porém, que sendo
apenas um cumpridor de ordens, não poderia fazer tal fornecimento sem
autorização expressa do Conselho, pois alguns soldados pouco tinham a
receber. A 25 de dezembro fomos informados de que o inimigo começava a
Página 278 de 349

surgir em número considerável. À vista disso, deu-se ordem às Companhias


comandadas pelos capitães Kosin, Schut, Gyseling, La Montagne e por um
capitão brasileiro de nome Tome, para que fossem ao encontro do adversário,
incendiassem suas cocheiras e trouxessem todo o gado para o nosso
acampamento. Na segunda-feira seguinte, tivemos notícia de que as nossas
tropas estavam tão estreitamente cercadas pelo inimigo, que se receava fosse
ela completamente aniquilada. Quando nos achávamos nesse estado de
apreensão, sem saber que resolução tomar, um brasileiro nos trouxe a má
notícia de que toda a nossa força havia sido batida e dispersada, tendo os
Capitães Schut, Kosin e La Montagne perecido no local. Mal tínhamos recebido
essa lutuosa informação, chegou um soldado alemão, ferido, que conseguira
escapar à carnificina, e confirmou tudo quanto nos havia sido dito pelo seu
antecessor, acrescentando, porém, que o tenente da Companhia do Capitão
Gyseling, o Alferes do Capitão La Montagne e os de Schut e Kilmet, à frente de
30 soldados tinham conseguido abrir caminho entre as linhas inimigas, e logo
chegariam ao acampamento. Por causa desta má condução da guerra e desta
derrota, ter-se-ia dito que os nossos, contra a ordem do Coronel Hinderson,
aproximavam-se rapidamente do inimigo e atiravam com os seus arcabuzes e,
em seguida, atacavam com o punhal na mão, lutando todos ao mesmo tempo,
sem desfalecimento; o que induziu o inimigo, vendo a estúpida coragem dos
nossos, a cercá-los e derrotá-los.

Ao anoitecer, ainda chegavam vários outros soldados ao quartel, os quais, em


geral, se encontravam feridos e atravessados por flechas. Alguns, que tinham
lançado longe a sua arma, deviam pagá-la com a própria vida: o que aconteceu
a um alemão e a um brasileiro. Mas quando eles estavam amarrados ao
tronco, para serem mortos, o Coronel deu-lhes graça. O Tenente que servia
sob as ordens do Capitão Gyseling, chegando ao forte sem suas armas, foi
imediatamente enviado ao Recife onde lhe partiram a espada sobre a cabeça
declarando-o indigno do serviço da Companhia, conquanto a tivesse servido
com lealdade durante nove anos371.

371
[371] No Diário ou Breve Discurso sobre a Rebeldia (XXIX, p. 215, 216) consta que a 27 de
dezembro deu-se o combate no qual morreram os Capitães Killian, Snijder, La Montagne, os
tenentes Jeronimus Halleman, Bailjaert de Flessinga, Cornaus de Haya, e o Alferes
Middelburgh de Swol; foram aprisionados Gyseling e o pregador Astetten (Moreau, LIX, p. 143);
entre os soldados mortos contam-se 19 da companhia do Capitão Schut; 34 da do capitão
Koin; 14 da do Capitão Kiliaen; 22 da do capitão Gyseling; 14 da do Capitão La Montagne; dois
índios e 9 oficiais, sendo ao todo 114 as perdas holandesas nessa luta. O tenente Jan Jansz
van Yssendijck, da companhia do capitão Gyseling e Adriaen Mebus, alferes do Capitão Schut,
largaram as armas em campo e, por isso, a 29 de dezembro as armas lhes foram quebradas
aos pés e eles condenados, como desleais, a voltar para a Holanda.
Esta derrota é lançada à conta do comandante La Montagne, que a ocasionou em razão da má
ordem que deu. Os Alferes La Pleur, Cornelis van der Voorde e Thomas Rames foram
considerados como bravos pelas ações cumpridas.
O trecho desde: "Por causa desta má." até "...o Coronel deu-lhes graça" foi traduzido
diretamente do holandês (cf. p. 185, 2a coluna 1° § da ed. holandesa e p. 130, 1a coluna 1° §
da tradução inglesa).
O tradutor inglês escreveu 7 anos (cf. id., id.). Nieuhof escreveu Lamontanje, Lamontagne, (p.
185, 1a coluna), e à p. 189, 1 1. La Montagne, e o Diário sobre a Rebeldia, La Montagne.
Varnhagen e Rodolfo Garcia seguindo o relato do Diário adotaram a grafia La Montagne. Em
face da variedade da grafia de Nieuhof preferidos seguir a do Diário.
Página 279 de 349

O Senhor Niuhof volta ao Recife

Recebi então ordem de seguir para o Recife, e, depois de me despedir do


Coronel e do Senhor Dames e outros amigos, embarquei a bordo do Vleermuis,
a 16 de dezembro, e, na mesma noite, impelido por uma brisa favorável e
auxiliado pela correnteza, o barco deslizou em direção à foz. Com uma noite
esplêndida e um luar magnífico, conseguimos apanhar grande quantidade de
Zaggers, um peixe delicioso, e prosseguimos viagem com forte vento à feição.
Não muito acima da desembocadura, encontramos quatro navios holandeses
que nos informaram estarem incumbidos de ir à cata de provisões. Entretanto,
caso não fossem possível obtê-las, tinham ordem de regressar imediatamente
ao Recife. No dia 18 avançamos pouco, e os navios se mantiveram à vista,
próximo à foz; apanhamos, porém, mais peixe do que poderíamos consumir. A
20, estivemos, também, em calmaria e observamos um eclipse lunar que durou
duas horas. No dia seguinte passamos tão perto de Santo Antônio que
podíamos avistar gente andando na praia. À noite divisamos Porto Calvo a
cerca de 30 milhas do Rio São Francisco. Imobilizou-nos várias vezes a
acalmia, mas apanhamos grande quantidade de peixe-rei e bacalhau. Na costa
avistamos fogo em vários lugares. A 24 de dezembro chegamos perto do Cabo
Santo Agostinho, tendo avistado cinco navios e sete barcas a remo no porto.
Poderíamos ter atingido com nossos tiros os que se dirigiam para terra, não
fora o banco de areia que nos impedia de mais nos aproximarmos. Por volta do
meio-dia chegamos à frente, do Recife, mas era tal a neblina, que mal
podíamos perceber a linha d'água. A pesar de tudo aventuramo-nos a entrar.
Desembarquei imediatamente a fim de comunicar ao Senhor Schonenburgh os
acontecimentos do Rio São Francisco. Fui conduzido à presença do Presidente
do Conselho pelo Coronel Schkoppe, com quem me encontrei logo depois do
desembarque.

O inimigo arma uma emboscada

A 27 de outubro, o inimigo armou duas emboscadas no caminho do forte


Príncipe Guilherme, além do reduto Kijk. O adversário não se moveu até que,
pelo meio-dia, percebendo uma Companhia nossa que marchava sobre o
dique, atacou-a tão bruscamente que matou 11, feriu 11 ou 12 e fez três
prisioneiros; mesmo assim, porém, o inimigo perdeu alguns homens.

Os tapuias nos abandonam

Enquanto isso, os tapuias, exasperados pelo assassínio de seu comandante,


Jacob Rabbi, abandonaram-nos. O Conselho fez o que pôde para os acalmar
aprisionando e desterrando Garstman, o autor do delito e confiscando seus
haveres. Contudo, não se conseguiu persuadir os tapuias que se reunissem a
nós como antes.

Discute-se a iniciativa do ataque

A 18 de novembro, o Senhor Van Goch conferenciou com os membros do


antigo Conselho, sobre se seria possível embarcar em nossos maiores navios
todas as forças de que pudéssemos dispor e tentar uma forte digressão,
Página 280 de 349

atacando o inimigo em algum ponto. O antigo Conselho, entretanto, foi


unânime em apontar o perigo de semelhante tentativa, caso falhasse, enquanto
estivéssemos bloqueados no Recife; a discussão foi transferida para o dia
seguinte. Examinado novamente o assunto, sugeriu-se que, se fosse possível
reunir todas as nossas forças, talvez se pudesse tentar algum golpe de
envergadura, sem grande risco, pelo qual se obrigasse o inimigo a retirar suas
forças do Recife. Todavia, compreendendo o Senhor Van Goch o grande
perigo que correríamos, caso a tentativa falhasse, nenhuma resolução foi
tomada nessa ocasião.

Novos debates sobre a recusa de anistia

Tendo-nos ensinado a experiência que as nossas promessas de perdão


haviam sido inúteis, perguntou o Senhor Van Goch se não seria melhor de
futuro negar anistia. A isso respondeu-se que muito raramente concedíamos
clemência, que fizéramos poucos prisioneiros e que o inimigo também havia
executado a maioria dos nossos sobre os quais tinha conseguido lançar mão.
Não achávamos, entretanto, conveniente recusar perdão a todos, sem
distinção, pois isso poderia induzir os que até então se haviam mantido
afastados da luta, a tomar armas também.

A 23 de novembro, armamos uma emboscada ao inimigo, junto ao forte dos


Afogados; para isso destacamos alguns de nossos homens, que provocaram
uma escaramuça. Perseguindo com energia os nossos soldados o adversário
veio colocar-se sob as baterias do forte que sobre eles descarregou nutrido
fogo, matando e ferindo diversos deles.

A 12 de dezembro foi sepultado o corpo do Almirante Lichthart. Nessa ocasião,


uma companhia de burgueses e duas do exército prestaram as honras
fúnebres, dando três salvas de mosquete.

Os antigos Conselheiros lamentam-se a Van Goch das calúnias ao seu


governo

Aos 28 de dezembro372,os senhores do antigo governo expuseram a Van Goch


que de há algum tempo tinham ouvido certas calúnias e maledicências que os
difamavam. Disseram que isso os admirava, pois eles bem sabiam com quanto
zelo e dedicação o Advogado Fiscal trabalhado, como também outros, aos
quais não competia fazê-lo. Tinha-se chegado, até, a convidar essa gente em
casa e feito promessas de promovê-los em cargos, e dar-lhes moratória,
contanto que nada dissessem, quanto ao antigo governo. E quando eles
declaravam nada saber, eram ameaçados, para que, assim, manifestassem
alguma cousa. Tinha-se também escondido essa gente em quartos, a fim de
prestar atenção ao que eles diriam. Além disso, uma pessoa tinha estado junto

372
[372] O trecho desde: "Aos 28 de dezembro..." até "...Jeronimus Hellemans" foi traduzido
diretamente do holandês, pois a tradução inglesa omitiu duas colunas e meia (p. 187, 1a
coluna últ. § até p. 188, 2a coluna 1° § da ed. holandesa). Além disso, o tradutor inglês
cometeu erros de datas, de nomes e resumiu os trechos que traduziu (cf. p. 187, 1ª coluna últ.
§ até p. 189, 1a coluna, 1° § da ed. holandesa e p. 131, 1a coluna últ. § e 2a coluna, 1° e 2°
§§).
Página 281 de 349

dos prisioneiros portugueses para que eles falassem alguma cousa e quando
eles disseram de nada saber, foram igualmente ameaçados e intimados, pois o
novo governo fazia questão de tudo saber. Caso não o dissessem, a isso
seriam obrigados por meio da golilha. Declaram-lhes, igualmente, que Rodrigo
de Barros Pimentel já tinha sido inquirido e até castigado dessa forma.

Van Goch respondeu-lhe que já tinha ouvido, muitas vezes, tais calúnias, mas
que, até hoje, não tinham aparecido provas. ele julgava oportuno que fossem
citados por meio de cartazes todos aqueles que pudessem fazer algum
depoimento, para, deste modo, chegar-se a uma solução. Os senhores do
antigo governo responderam que eles não eram obrigados a isso e que nem
sequer era necessário expô-los ao escárnio do mundo; se, entretanto, alguém
tivesse qualquer cousa contra eles, podia depor e ser interrogado.

No dia 31, os senhores do antigo governo disseram a Van Goch que tinham
ouvido dizer que um certo Elbert Krispijnsz e Paulus Vermeulen tinham dito, na
noite passada, na praça, em companhia de Jacob, Quirijn Spranger e outros
que os altos comissários tinham deixado de prender João Fernandes Vieira e
outros; que eles tinham mandado prender Vieira por intermédio do Capitão
Denniger, mas que, posteriormente, haviam reformado a ordem, razão pela
qual Vieira escapara. E como fosse esta uma questão de grande importância e
não pudesse passar sem castigo, foi consultado pelo novo governo, a esse
respeito, o Capitão Denniger, que respondeu que nunca ouvira falar tal cousa,
mas que ele e outros, conforme o relatório apresentado, tinham sido, várias
vezes, enviados para prender Vieira e outros, conforme a ordem que lhes fora
dada pelos altos comissários. Tinham, para esse fim, aplicado todo o zelo e
dedicação. Nunca, porém, os encontraram, embora os houvessem procurado
em todos os lugares.

Ao amanhecer, Elbert Krispijnsz foi ter com Bullestrate e desculpou-se


declarando que nunca falara sobre isso, mas que se haviam imaginado
algumas discussões acerca do modo de se proceder para com eles nos
debates; se se podia acusar essa gente sumariamente. Disse, também, que
nunca tinha ouvido tal cousa do Capitão Denniger e o que é mais, que não
conhecia o mesmo nem jamais ouvira falar dele. Em seguida, foi intimado a
perguntar ao Capitão Denniger e seu porta-bandeira Capitão Helt, ao Tenente
Kattenaer, Capitão La Montagne, Major Reyer e seu Tenente Hartsteen o que
se passara.

Denniger tinha dito a esse Krispijnsz, a 2 de janeiro de 1647, que ele estava
admirado pelo fato de se levantarem tão vis calúnias. Que não somente ele
com a suas tropas, mas ainda muitos outros oficiais, tinham percorrido os
campos e as florestas da região para investigar e encontrar gente. Que ele,
Denniger, testemunhava, assim como todos os outros oficiais, que os altos
comissários haviam feito todo o possível, constantemente, para manter boa
ordem em tudo e nunca haviam deixado de procurar os rebeldes e de fazer
todos o necessário para isso; ele e seus oficiais estariam sempre prontos a
prestar declarações, quando fossem solicitadas. Isso declarou Denniger diante
do notário Indijk, no Recife, no ano de 1647, a pedido dos altos comissários
Hendrik Hamel e Adriaen Bullestrate.
Página 282 de 349

Aos 30 de dezembro aportou ao Recife o iate d'Arent, vindo do Rio São


Francisco com cartas do mesmo mês, nas quais se dizia que numa ilha pouco
acima do forte havia desembarcado o Coronel Rebelo, com 200 soldados
procedentes da Baía. E que ainda esperava mais reforços da Várzea. Dizia
também a carta que, tendo os nossos se dirigido mais para cima do rio,
atacaram tropas inimigas, mas estas conseguiram fugir para o outro lado,
deixando armas e bagagens. A 2 de janeiro do ano de 1647, voltou ao Recife o
Coronel Schkoppe, que tinha estado em Goiana e em todos os lugares
adjacentes, com cerca de 300 arcabuzes e que eles tinham procurado em
todos os rios, mas em nenhuma parte tinham encontrado qualquer inimigo.

No dia 5 do mesmo mês, o Conselho recebeu outra carta do Rio São Francisco
que dizia: como a nossa gente dali tinha enviado uma tropa de 5 companhias
de brasileiros para Orambú, para atacar uma tropa inimiga, que ali estava
acampada; dizia também que logo à chegada dos nossos, apareceu uma tropa
inimiga de cerca de 100 cabeças, a qual foi atacada pelos nossos e fugiu. Mas
perto desse lugar, o inimigo tinha um acampamento com algumas centenas de
homens, que atacaram os nossos e fizeram com que recuassem, deixando
para trás cerca de 150 homens, cinco capitães, três tenentes e alguns outros
oficiais, dos quais morreu um capitão. Os capitães prisioneiros eram Samuel
Lambert, La Montagne, Gerrit Schut, Kiliaen Snijder, Daniel Koin; o tenente
Joost Koyman, Antony Baliart, Jeronimus Hellemans, com um porta-bandeira.

Consultas sobre a situação da Paraíba

A 8 de janeiro o Senhor Van Goch, em nome do novo Conselho, comunicou-se


com os membros do antigo, no sentido de que, tendo ficado resolvida a
remessa de numerosa força a Paraíba, em importante missão, o novo
Conselho desejava ser informado sobre a atual situação daquela capitania,
bem como se as cidades de Paraíba e Santo André poderiam ser defendidas
por pequena guarnição. Os membros do antigo Conselho responderam que a
Cidade Frederica não dispunha de água potável, sendo esta transportada de
meio quarto de hora de distância. Nessas condições, o seu suprimento poderia
ser facilmente obstado pelo inimigo. O mesmo poderia acontecer com a
passagem que conduzia à margem do rio.

Além disso não havia fortificações na cidade; as que existiam pertenciam ao


mosteiro e não eram de grande monta; também a igreja de Duarte Gomes
havia sido fortificada pelo inimigo, durante a guerra. Quanto a Santo André,
essa localidade nada mais era que um engenho de açúcar situado na barranca
do rio a quatro horas de viagem da cidade de Paraíba. Disseram ainda que as
comunicações entre essa localidade e o forte Santa Margarida poderiam ser
facilmente interceptadas pelo inimigo, pois a distância entre a fortaleza e a
cidade era de quase 4 horas.373[373] Contudo a posição poderia ser socorrida
sem dificuldade pelo rio. O Senhor Van Goch prometeu apresentar um relatório
ao Conselho.
373
[373] O tradutor inglês escreveu 4 léguas (cf. p. 189, 1a coluna, 4° § da ed. holandesa e p.
131, 2a coluna penúltima linha da tradução inglesa).
Página 283 de 349

A 12 de janeiro, o Conselho recebeu informação de que o inimigo tinha


invadido a Paraíba com poderosa força e tendo avançado até próximo ao
engenho de Santo André, surpreendeu à noite cerca de 50 holandeses e
brasileiros, entre os quais mulheres e crianças. Em sua fúria, os soldados
haviam aberto a barriga das mulheres.

No dia seguinte o inimigo fez novamente distribuir panfletos dizendo, em


resumo, que, desde que o povo do Recife não mais tinha esperança de
reforços, o melhor seria chegar a um acordo, pois os portugueses estavam
dispostos a tudo tentar antes de abandonar seu objetivo. Se porém o acordo
não fosse possível, eles destruiriam todo o país antes de abandoná-lo. Os
folhetos insinuavam ao povo que se não deixasse enganar por pessoas ligadas
à Companhia que os chamavam rebeldes. A eles essa classificação não cabia
melhor que aos próprios holandeses cuja liberdade usavam contra o Rei da
Espanha.

Notícias da Paraíba

A 17, quatro negros de propriedade de Isaac de Rassier que haviam sido


aprisionados dias antes, na Paraíba, de lá vieram para o Recife, informando
que o inimigo depois de se demorar um pouco na Capitania, onde matou cinco
holandeses e alguns brasileiros, retirou-se finalmente.

Ataque ao forte de madeira.

Pelo alvorecer do dia 22 de janeiro, o adversário iniciou o seu ataque ao forte


de madeira próximo a Barreta, partindo de uma bateria situada à margem
meridional do rio. A ação prosseguiu durante o dia todo e só cessou à noite. A
guarnição desse forte foi reforçada, mais ou menos ao meio-dia, por cinco
companhias e alguma provisão, porque o Senhor Hamel, um dos membros do
velho Conselho, representou ao Senhor Van Goch dizendo que, conquanto o
forte em si não valesse a pena, não seria aconselhável abandoná-lo justamente
quando o inimigo iniciou o seu ataque, para que isso não o estimulasse a
atacar também outras fortificações nossas. Pelo contrário enquanto o inimigo
encontrasse forte resistência, não seria tão pressuroso em tentar o ataque dos
outros. Além disso, tínhamos a vantagem de poder socorrer a nossa guarnição
por meio de botes, na maré alta, e, na baixa, por sobre os bancos de areia.
Podíamos também atacar o inimigo em suas trincheiras, com nossas baterias
de bordo, como o tínhamos feito naquele dia.

Para melhor elucidar o Conselho, ordenou-se a confecção de um mapa do


Recife e suas adjacências, até Barreta, mostrando os rios tortuosos e
pântanos.

Levantamento do cerco

Na manhã de 24 de janeiro, correu a notícia de que o inimigo tinha levantado o


assédio do forte de Barreta na noite anterior, retirando com toda sua artilharia,
Página 284 de 349

pois convencera-se de que enquanto pudéssemos atacá-lo da costa e reforçar


diariamente a nossa guarnição com tropas frescas, não poderiam esperar
senão sucesso relativo. Além de ter o nosso povo de lutar contra o inimigo e a
fome, era constantemente afligido com novas deserções: muitos de nossos
soldados, os próprios sargentos e alguns oficiais bandearam para o inimigo
quando já os navios Valk e Elizabeth estavam à vista do Recife.

Os antigos membros do Conselho pedem permissão para regressar

Os antigos membros do Conselho iniciaram, então, seus preparativos para a


viagem de regresso à Holanda, tendo já, em 24 de dezembro de 1646, 374[374]
solicitado do Senhor Schonenburgh, novo Presidente do Conselho, que
ordenasse o aprestamento de navios que os transportassem. Para isso fora
destacado o Vlissingen. Entretanto, como esse barco não regressasse da
missão de que fora incumbido, os antigos conselheiros comunicaram-se com o
Senhor Van Goch a 25 de janeiro de 1647, alegando que não obstante sua
nomeação estipular que deveriam regressar à Metrópole em três anos, tinham
permanecido no Brasil seis. O Senhor Kodde de fato tivera permissão para
regressar, mais ou menos por aquela época, mas, não lhe tendo sido dado
substituto, faleceu antes que pudesse regressar. Diziam, ainda, os antigos
membros do Conselho que durante os três últimos anos haviam insistido em
seu pedido de permissão para regressar à Holanda, tendo-lhes sido prometido,
dois anos antes, que seriam substituídos. Essa promessa, entretanto, não se
havia efetivado senão poucos meses antes, com grandes inconvenientes para
eles e suas famílias. O Senhor Van Goch prometeu, então, aos antigos
conselheiros, providenciar para que fossem aprestados os navios bem como
ordenar que o Vlissingen voltasse a fim de que pudessem eles regressar à
Metrópole.

Relação dos fortes em mãos dos holandeses

No tempo em que o novo Conselho assumiu o poder e os antigos conselheiros


senhores Hendrik Hamel, Adriaen Bullestrate e Pieter Bas voltaram à Holanda,
os seguintes fortes 375[375] ainda se achavam na posse da Companhia das
índias Ocidentais:

O forte Keulen, na desembocadura do Rio Grande, artilhado com 28 canhões


de bronze e um de ferro.

374
[374] O tradutor inglês omitiu a data 24 de dezembro (cf- p. 190, 2a coluna, § da ed.
holandesa e p. 132, 2a coluna 3° § da tradução inglesa).
375
[375] Na edição holandesa o autor enumera os fortes e a sua localização, e, depois,
enumera-os de novo, declarando, então, o seu equipamento. O tradutor inglês, com o fito de
evitar a repetição, enumerou-os, dando-nos a localização e o equipamento de uma só vez. (cf.
p. 191, 1ª e 2a colunas da ed. holandesa e p. 131, 1a coluna da trad. inglesa). Cometeu,
porém, o tradutor inglês um equívoco ao escrever sobre o forte Triangular que "o segundo era
provido de 14 canhões de bronze", pois tal não existe na ed. holandesa, (cf. p. 191, 2a coluna
2a linha da ed. holandesa e p. 133, 1ª coluna 31a linha da trad. inglesa).
Encontra-se no Breve Discurso (XV, p. 179-189) outra minuciosa descrição dos fortes em
posse dos holandeses
Página 285 de 349

O reduto de Santo Antônio, do lado norte do Rio Paraíba, dispondo de seis


canhões de ferro;

O forte Restinga, situado na ilha do mesmo nome, no Rio Paraíba, armado com
quatro canhões de bronze e cinco de ferro;

O forte Margarida) à margem meridional do Paraíba, guarnecido com 14 peças


de bronze e 24 de ferro;

O forte de Orange, na Ilha de Itamaracá, que contava com seis peças de


bronze e sete de ferro;

A velha bateria de Nossa Senhora de Conceição, a cavaleiro do morro de


Itamaracá, com 2 peças de bronze e 8 de ferro;

O reduto denominado Madame de Bruin, artilhado com 3 canhões;

O forte de Bruin, com 14 canhões de bronze;

O forte Waerdenburgh, e o Forte Triangular, situados entre a fortaleza de Bruin


e o Recife; o primeiro provido de 4 peças de bronze e cinco de ferro;

O Forte da Terra, aliás Forte São João, com 11 peças de ferro;

O Forte d'Água, na foz do Rio Recife, dispondo de 7 canhões de bronze;

O Forte Ernesto, artilhado com cinco canhões de bronze e três de ferro, e o


Forte Bateria, com 5 peças de bronze e 2 de ferro;

No Recife:

A cidade Maurícia, na Ilha de Antônio Vaz;

O forte Frederico Henrique, aliás, forte Quinquangular;

O Reduto da Pedra, junto ao forte Frederico Henrique;

O reduto Kijk, entre o forte Frederico Henrique e o forte Príncipe Guilherme;

O Forte sobre o Rio Afogados.

Fortes em mãos dos portugueses

Os fortes conquistados pelos portugueses aos holandeses e então na posse


dos primeiros eram:

Sergipe d'El Rei, Rio São Francisco e Porto Calvo, reduzidos pela fome, foram
demolidos pelos portugueses cientes de que os nossos não poderiam lá se
manter sem construir novas fortificações o que não se conseguiria sem
grandes despesas. Junto a ponta de Tamandaré, onde os portugueses
Página 286 de 349

procedentes da Baía primeiro desembarcaram seus homens e mais tarde sua


frota foi desbaratada pela nossa, o inimigo lançou as fundações de um forte
para defesa do porto onde navios de grande porte podiam ancorar com
segurança.

Conferência sobre o Rio São Francisco e sobre Barreta

A 23 de janeiro o Novo Conselho determinou que o Senhor Beaumont


conferenciasse com os antigos conselheiros a respeito da situação do Rio São
Francisco, bem como sobre o que seria melhor fazer lá. Os velhos membros do
Conselho responderam ao Senhor Beaumont da mesma forma por que já
anteriormente o haviam feito, isto é, como estava o forte, pouco serviço poderia
prestar e que, portanto, seria ocasião de considerar se a proposta que haviam
feito por escrito deveria ou não ser posta em prática. Perguntou mais o Senhor
Beaumont se não seria necessário construir um reduto de terra para a defesa
de Barreta. A isto os do velho Conselho responderam que, considerando a
grande despesa a ser feita e os parcos resultados que se podiam esperar
dessa obra, seria mais conveniente construir tal defesa em outro lugar que
facilitasse a nossa passagem para o interior. O Senhor Beaumont achava que
assim o inimigo estaria impedido de avançar até o forte Quinquangular.

Entretanto, os antigos conselheiros ponderaram que, a despeito de termos


agora um forte em Barreta, não poderíamos impedir que o inimigo penetrasse
naquela ilha, junto ao forte, a menos que para tanto mantivéssemos lá força
considerável. Disseram mais que não deveríamos temer que o inimigo
transportasse artilharia para essa posição, porque sua retirada poderia ser
cortada na cheia; nem poderia o adversário de lá hostilizar por demais o Recife,
pois nem mesmo os tiros das nossas maiores peças instaladas no forte
Quinquangular376 [376] poderiam atingir aquela ilha.

Na mesma noite os senhores Van Goch e Haecxs informaram os antigos


conselheiros que o Hollandia e o Vlissingen - logo estariam prontos para
conduzi-los à Holanda. De fato esse último navio tinha tido ordem de regressar
imediatamente da Baía, para onde seguira em serviço de patrulhamento.

O Recife rigorosamente bloqueado

Por essa ocasião o inimigo tinha já de tal forma apertado o cerco do Recife, por
terra, que mal podíamos arriscar um olhar para fora dos portões. Certo cidadão
português havia nos preparado surpresa ainda pior, pois convidara todos os
nossos chefes militares para o casamento de sua filha, a fim de que, durante a
cerimônia, o inimigo surpreendesse a cidade. Todavia, o plano foi descoberto
em tempo por alguns portugueses e judeus que o fizeram frustrar.

376
[376] O tradutor inglês escreveu Frederick William (p. 133, 2a coluna, 2° §); não existiu forte
algum com este nome, pois havia o forte Frederick Hendrik ou Quinquangular ou o Forte Prins
Willem (Príncipe Guilherme). O autor escreveu Vijfhoek, isto é, Quinquangular (p. 192, 1a
coluna)
Página 287 de 349

Os portugueses reconstroem um forte

Mais ou menos a 15 de outubro os portugueses iniciaram a reconstrução do


forte Bom Jesus - que nós chamamos Altena - do outro lado do rio. Tivemos
notícia do fato por intermédio de desertores; entretanto, não pudemos
averiguar a verdade visto como, com os tiros de suas peças, os portugueses
nos impediam de aproximar do lugar que, além disso, era todo cercado de
matas. Logo, porém, que abateram a vegetação, não só vimos o forte como
sentimos os seus efeitos através do trovejar contínuo da artilharia contra a
cidade. O bombardeio causou tal desalento no povo, que se torna difícil
descrever. Muita gente chegou a se esconder dentro de túmulos, para evitar a
fúria do canhoneio inimigo.

Medonha cena

Foi então que tive ocasião de assistir uma cena horripilante: certa moça,
sobrinha do falecido Almirante Lichthart, quando em visita a uma sua
conhecida recentemente casada, teve ambas as pernas decepadas por uma
bala de canhão que, ao mesmo tempo, matou no lugar a recém-casada. Aos
primeiros gritos das vítimas, corri ao local - pois morava nas vizinhanças - e
presenciei o martírio dessas pobres criaturas. A moça agarrou-se às minhas
pernas com tal fúria, que dificilmente consegui tirá-la. Era um espetáculo
compungente ver-se o soalho coberto de membros dilacerados dessas pobres
vítimas. A moça também morreu três dias depois. Logo após essa
impressionante ocorrência, por pouco escapei de idêntica sorte, pois,
conversando com algumas pessoas, quando estava de ronda, duas delas
foram atingidas por um tiro de canhão que as abateu imediatamente. Uma
terceira teve ambas as mãos decepadas, no momento em que acendia o
cachimbo. Removemos do porto todos os navios, receando que fossem os
mesmos postos a pique. Por essa época o Coronel Schkoppe havia
conquistado e arrasado Itaparica de onde apenas 2000 portugueses
conseguiram fugir. Contudo, os vários encontros mal sucedidos que tivemos
com os portugueses reduziam diariamente as nossas forças, ao passo que as
deles aumentavam. O Coronel Schkoppe teve ordem de determinar ao Coronel
Hinderson que abandonasse o Rio São Francisco e fosse se ajuntar a ele em
Itaparica. Entretanto, de pouco valeu o expediente, pois logo tivemos que
abandonar Itaparica para socorrer o Recife.

Os holandeses tentam uma sortida geral

Todo o nosso poderio militar consistia agora em 1.800 homens, concentrados


no Recife, onde não haveria provisões para mais que sete meses. Pois isso
discutiu-se várias vezes sobre o que seria melhor fazer em tais circunstâncias.
O Coronel Schkoppe e outros oficiais foram de opinião que se não arriscasse
um novo encontro, pois as nossas forças eram de tal forma inferiores às do
inimigo, que deveríamos esperar por melhor oportunidade. Entretanto a maioria
opinou que se experimentasse uma sortida em massa, para libertar o Recife. O
comando supremo da empresa foi confiado ao Coronel Brink, porque o Coronel
Schkoppe ainda se não havia restabelecido dos ferimentos recebidos durante o
Página 288 de 349

último encontro. À noite as nossas forças marcharam até Guararapes,377[377]


lugar que já no ano anterior nos havia sido fatal pela derrota que as nossas

377
[377] Nieuhof deixou de relatar a primeira batalha de Guararapes, fazendo apenas
referência à derrota que, no ano anterior, haviam sofrido os holandeses. O tradutor inglês
inventou, porém, a data de 15 de janeiro de 1647 (cf. p. 195, - está 195, mas deve ser 193 - 2a
coluna 3° § da trad. inglesa).
A primeira batalha verificou-se no domingo da Páscoa, dia 19 de abril de 1648. As forças
brasileiras compunham-se de 2.200 homens dirigidos por Francisco Barreto de Meneses e os
holandeses, chefiados por Sigemundt Schkoppe, de 4.500 homens. Essa é a melhor cifra,
aceita por Netscher (LXIII, p. 158), Barão do Rio Branco (LXXV, p. 291), Wätjen (XCVI, p. 264),
Souto Maior (LXXXVIII, p. 382), Varnhagen (LXXII, p. 59, 61). Souto Maior (LXXXVIII, 382-391)
mostra-nos que Haecxs calculou as forças holandesas em 5.000 e as nossas em 3.000. De
With, em 5.500 as holandesas e as nossas em 2.350 (cf. Relatório do Presidente e
Conselheiros aos Altos e Poderosos Senhores, 22 de abril de 1648, Liassen Staten-General
Westindische Compagnie, n° 5775). O relatório de Haecxs foi publicado por Naber (cf.
Prefácio). Entre os nossos, Rafael de Jesus (XLIV, 369-570) calcula em 7.400 soldados, 1.400
negros, 700 gastadores, ao todo, com escravos, etc, 12 a 13.000 homens e os nossos em
2.500. Fernandes Pinheiro (LXVIII, p. 317) calcula em 4.500 soldados e 150 tapuias da parte
holandesa.
Variam, também, os cômputos dos feridos e mortos; mas o certo é, sem dúvida, o dado por
Varnhagen (LXXII, p. 62), isto é, 515 mortos e 523 feridos, sendo 74 oficiais fora de combate.
Rodolfo Garcia confirmou a relação dada por Varnhagen, ao transcrever o ofício do Supremo
Conselho no Recife aos Estados Gerais, datado de 22 de abril de 1648; esse documento
encontra-se entre os Documentos Holandeses coligidos por Caetano da Silva na Holanda;
encontram-se aí especificados os nomes dos oficiais mortos e os soldados pertencentes às
respectivas companhias (LXXII, p. 75-79, nota VII de Rodolfo Garcia). O Barão do Rio-Branco
aceita o mesmo relato. Wätjen e Netscher (XOVI e LXIII, pp. 264 e 158 respectivamente)
calculam em 470 mortos e 523 feridos. Handelmann (XL, p. 247-248) avalia em 400 mortos e
500 feridos; finalmente, o sempre inexato e hiperbólico Rafael de Jesus (XLIV, p. 594) em
1.200 mortos, entre os quais 180 oficiais. Entre os brasileiros, 84 mortos e 400 feridos (Barão
do Rio Branco, LXXV, p. 291). Rodolfo Garcia (LXXII, p. 79, nota VII) baseou-se no relato oficial
de Francisco Barreto (Rev. do Inst. Hist. e Geog. Bras., 56, parte 1, 71/75). J. F. Pinheiro
(LXVIII, p. 321). Handelmann exagerou as nossas perdas, calculando-as em 500 brasileiros
entre feridos e mortos (XL, p. 248).
Quanto à segunda batalha de Guararapes, que Nieuhof datou de 16 de abril, laborando em
erro, verifica-se que o tradutor inglês piorou o erro, marcando-lhe a data de 16 de maio (cf. p.
193, 2a coluna 4." § da ed. holandesa e p. 134, 2a coluna 23ª linha da trad. inglesa). Sobre
essa segunda luta, variam também os cálculos sobre os efetivos e os mortos, parecendo-nos,
porém, que os melhores foram os feitos por Varnhagen e Rodolfo Garcia. Segundo o Barão do
Rio Branco (LXXV, p. 146, 147), as nossas forças compunham-se de 2.750 homens e as dos
holandeses de 4.200 ou, segundo os escritores portugueses, 6.000. Rafael de Jesus (XLIV, p.
618) calcula em 5.000 homens; as perdas foram em número de 1.800, contando com índios,
pretos, marinheiros e feridos; e os brasileiros 60 mortos e 250 feridos. Essas cifras de mortos e
feridos estão exageradas, pois, segundo Varnhagen (LXXII, p. 94), os holandeses perderam
1.045 homens e os nossos 45 mortos e duzentos feridos. Rodolfo Garcia, nota II a p. 128-39)
mostrou que as perdas holandesas montaram a 1.044 e as nossas ele as calculou no mesmo
número que Varnhagen. Segundo documento Lyste vande hoge ende lage Officieren
mitsgaders de gemeene soldaten dewelcke in Batalie teghens de Portugiesen aenden Bergh
van den Guararapes (3 mijl varít Redf) doot zijn gebleven op den 19 Fehruarius 1649 (isto é
Relação dos Oficiais, sub-oficiais e soldados rasos que caíram mortos a 19 de fevereiro de
1649, na batalha contra os portugueses no monte dos Guararapes (3 milhas do Recife),
existente na Bib. Nacional, Miscelânea, IV, 428, n° 139 do Catálogo da Exposição Nassoviana,
1929, vol. LI, 1938, o número das perdas holandesas foi de 1.043. Do lado holandês, deve-se,
portanto, comparar esta lista (Anexo II) pela primeira vez publicada, com a que se encontrava
nos Documentos Holandeses, vol. 4, fls. 198-201, publicada por Rodolfo Garcia LXXII (nota II a
p. 128-139). Do lado brasileiro, a Relación de Ia Victoria que los portugueses de Pernambuco
Alcançaron de los de la Compania dei Brasil en los Garerapes a 19 de Febrero de 1649,
Traducida dei Aleman, publicada en Viena de Áustria, Ano 1649 (B. Nacional, IV-211,2,19 (3),
Página 289 de 349

forças sofreram. Os campos adjacentes ainda estavam cobertos de ossos de


soldados holandeses. Logo que os portugueses perceberam o movimento de
nossas tropas, abandonaram o Forte Altena, que imediatamente ocupamos,
arrancando assim um estrepe de nosso pé. Todavia, o dia 16 de Abril foi, para
nós, o pior de quantos no Brasil experimentamos em muitos anos, pois, a pesar
da bravura com que o nosso exército atacou o inimigo e da firmeza com que,
durante algum tempo, sustentou a luta, o adversário, animado pelos últimos
sucessos e confiante em sua superioridade numérica, conseguira finalmente,
com 2500 de seus melhores soldados, forçar nossas linhas.

São derrotados

Obrigado a desistir da luta o exército holandês bateu em retirada perseguido


por 150 cavalarianos. Tanto na luta como na fuga, as nossas perdas
ultrapassaram de 1.100 homens, entre os quais o Coronel Brink e quase todos
os demais comandantes. Perdemos ainda 19 bandeiras bem como toda a
artilharia e munição que havíamos levado. Somente depois de cinco dias
conseguimos permissão para enterrar os mortos que, já processos de franca
putrefação, devido ao calor causticante do sol, exalavam um cheiro
nauseabundo, terrível.

Essa foi a última tentativa que poderíamos ter feito em campo aberto. Todos os
nossos cuidados futuros se concentrariam na manutenção e defesa do Recife,
a menos que recebêssemos novos reforços da Metrópole. Entretanto, sendo
assaz demorada a remessa de recursos, começou-se a recear que, se Deus
Onipotente não nos enviasse algum alívio repentino, seríamos finalmente
forçados a abandonar também aquela praça à mercê do inimigo. O Grande
Conselho atirou a responsabilidade dos últimos desastres sobre o Conselho de
Guerra e este, por sua vez, alegou que a tropa estava mal equipada e há
tempos não recebia soldo. Quanto a mim, vendo que as cousas iam de mal a
pior, achei que o melhor seria pedir um passaporte para voltar à Holanda,
documento esse que só com grande dificuldade consegui. Pus-me então a me
preparar para a viagem.

Entretanto, antes de deixar o Brasil, desejo dar ao leitor rápida notícia dos
produtos do país.

FLORA BRASILEIRA

A raiz de mandioca

Sendo rica a Capitania de Pernambuco e o Brasil, em geral, não só em gado,


mas, também, em diversas qualidades de ervas, árvores e frutos, daremos de
tudo informação sucinta. Começaremos pela Mandiiba e sua raiz, denominada
mandioca, na qual os brasileiros têm o seu principal gênero alimentício.

10 pp., publicada na Rev. do Inst. Hist., Geog. Bras., vol. 22, p. 331-337; e nos Anais da Bib.
Nacional, vol. 20, p. 153-157.
Página 290 de 349

A maior parte da América desconhece até agora o trigo ou qualquer outro


cereal. A natureza, porém, lhes deu certo arbusto, cuja raiz, depois de seca e
assada, como fazemos ao nosso pão, constitui o alimento comum aos
habitantes da América. Esse arbusto viceja por toda parte em quantidade e é
chamado pelos brasileiros Maniiba e Mandiiba; à sua raiz chamam mandioca.
Há diversas variedades desse vegetal às quais os brasileiros dão diferentes
nomes. À raiz de todas elas, porém, chamam mandioca. Suas folhas são
pequenas, longas e pontiagudas, desenvolvendo-se em compridas hastes ou
ramos, cada um dos quais tem seis ou sete folhas agrupadas, lembrando o
formato de uma estrela, a que os brasileiros chamam Maniçoba 378.[378] O

378
[378] Nieuhof não foi absolutamente original neste trecho referente à Mandioca. Em alguns
trechos se baseia em Marcgrave ou em Piso, e, em outros, copia literalmente o que
escreveram os mesmos. Os capítulos plagiados são: De Piso:Capítulo II do livro IV - De
Mandioca (p. 52-55); de Marcgrave: o capítulo IV do livro II (p. 65-68). Indicaremos nos
respectivos lugares os trechos plagiados. Não sabemos o motivo que terá levado Wátjen
(XCVI, p. 445) a afirmar que a melhor descrição da Mandioca foi a feita por Nieuhof. O curioso
é que ele não desconheciao trabalho de Piso e não ignorava a descrição de Barlaeus. Pondo
de lado o trabalho de Barlaeus, que se utilizou de material acumulado por outros, é de se
admirar tal afirmação, pois melhor do que a descrição de Piso, só a de Marcgrave. E isso
admitindo ainda a originalidade de Nieuhof, que, como sabemos, é inexistente. Cabe,ainda,
acrescentar que a tradução alemã feita por Wätjen da descrição da Mandioca de Nieuhof, além
de resumida, contém lapsos (cf. p. 283-284 da ed. alemã Das [i]hollandische Kolonialreich in
Brasilien.[/i] Haia e Gotha, 1921, ou p. 445-446 da trad. Brasileira, XCVI). Em Piso (LXX, 52),
Maniiba & Mandioca: em Marcgrave (LXX, 65), Mandijba & Maniiba, Mandioca; (Vide sobre os
nomes diferentes Hoene,CHI, p. 205). Em Soares, Mandioca (LXXXVI, p. 186-188); em
Gandavo (XXXVI,p. 43 e 95); Cardim (XIX, p. 60). Em Abbeville (XXXVIII, p. 46), Manioch; era
Léry (LII, p. 112), Maniot; segundo Batista Caetano não é fácil explicar a etimologia desta
Página 291 de 349

caule, que se caracteriza por numerosos nós, não excede de uma polegada de
diâmetro, mas atinge a seis e às vezes sete pés de altura: daí brotam diversos
ramos que, por sua vez, produzem galhos mais finos de onde nascem as folhas
já descritas. A planta dá uma florzinha amarelo-claro, com apenas cinco
pétalas, dentro das quais se notam tênues filamentos que, finalmente, se
transformam em sementes. A raiz, mandioca, assemelha-se ao nabo em
formato, mas tem dois ou três pés de comprimento e mais ou menos a
grossura de um braço. Sua casca parece-se com a da aveleira, mas sua polpa
é branca e produz um suco que faz mal aos animais. Essa planta prolifera em
terreno seco, adusto e arenoso, e tal é a sua natureza, que se torna necessário
plantá-la somente durante o verão, quando mais se beneficia do efeito solar.
Para o seu plantio, abatem o mato, tanto no morro como nas planuras, por
meio de queimadas, e depois preparam o solo. Essas plantações são
denominadas, pelos brasileiros Co, pelos portugueses Roça ou Chokas e pelos
nossos Rossen. As plantações desenvolvem-se em montículos como os que
fazem as toupeiras; a eles chamam os portugueses Monte de Terra Cavada, e
os brasileiros Cujo 379.[379] Esses pequenos cômoros distanciam-se cerca de
dois pés e meio um do outro e têm mais ou menos três pés de circunferência
por meio de altura, de maneira que as águas pluviais se escoam facilmente.
Em cada um desses montículos, plantam-se, geralmente, três hastes de
mandioca, de 9 ou 10 polegadas de comprimento, ou mesmo de um pé, sem
folhas. Essas hastes logo brotam e dão novas folhas, produzindo, finalmente,
outras raízes que não podem ser transplantadas, porque, tão logo são
desenterradas, apodrecem e cheiram mal. Cerca de 10 dias depois de fincadas
no chão, essas hastes produzem tantos novos ramos quantos nós têm. Os
novos galhos têm o comprimento de um dedo e deles brotam muitos outros
menores, arroxeados. As plantações precisam ser capinadas três ou quatro
vezes ao ano, pois o mato cresce em abundância no mandiocal, asfixiando-o
antes que se desenvolva completamente. Os galhinhos e as folhas da
mandioca são, em geral, terrivelmente infestados de formigas. Também as
cabras, o gado, os cavalos e os carneiros apreciam as folhas da mandioca, e,
por isso, as plantações precisam ser cuidadosamente cercadas com moirões e
ramos de árvores. As abelhas e vários outros insetos brasileiros também
atacam esse arbusto que, entretanto, ainda mesmo quando totalmente despido
de sua folhagem, nada sofre, desde que fiquem intactas as raízes. Estas não
atingem o seu desenvolvimento máximo antes de um ano; entretanto em caso
de necessidade, podem-se desenterrá-las com seis meses de idade, mas,
nesse caso, é reduzido seu rendimento em farinha. Cada pé produz duas, três,
quatro e até vinte raízes, conforme a fertilidade do solo, e quando estão
maduras conservam-se por dois ou três anos em baixo da terra. Entretanto, ao
cabo de um ano é bom colhê-las, pois, caso contrário, muitas delas podem se

dicção, que se acha modificada em outras línguas; não resta dúvida que vem do abafieenga;
os vocabulários não a registram (III, p. 216, 127). Mandiiba segundo o mesmo autor (XLVI, p.
216) é nome da árvore da mandioca; registra também (III, p. 217) manib - como árvore de
mandioca.
Maniçoba em Piso (LXXI, p. 116). Segundo Batista Caetano (III, p. 216), mandiiçob ou maniçob
= folha de mandioca.
379
[379] Em Marcgrave (LXX, p. 66) qui Brasiliensibus vocatur Co, Lusitanis Eoza. Cô,
segundo o Dicionário Português-Brasiliano (XXX, p. 223), significa roça,quinta, sítio.
Em Marcgrave (LXX, p. 66), [i]Terra elaborata efformatur in monticulos, Lusitani voeant[/i]
Monte de terra cavada, Brasilienses Cujo.
Página 292 de 349

deteriorar. Se o ano for muito chuvoso, torna-se necessário desenterrá-las


ainda que só estejam meio amadurecidas. Depois de arrancada, a raiz não
dura mais que três dias, pois, a pesar de todo cuidado que se tenha com ela,
deita mau cheiro. Por esse motivo, em geral não se colhe mais que a
quantidade necessária para se fazer farinha. A raiz chamada Mandybumana
cresce e amadurece mais rapidamente que qualquer outra e produz a melhor
farinha. Prefere terreno arenoso e regiões quentes. Entretanto a variedade
mais generalizada é a denominada Mandükparata ,380[380] que se desenvolve
em qualquer terreno.

Preparação da farinha

A farinha prepara-se da seguinte maneira: depois de colhida, a raiz é


descascada e lavada em água limpa. Aplica-se então a extremidade da mesma
contra uma grande roda de quatro ou cinco pés de diâmetro, coberta por uma
chapa de cobre ou de ferro repleta de furos com bordos cortantes, qual ralo
para noz-moscada. O movimento contínuo da roda rala a mandioca em
pequenas partículas que vão caindo em uma gamela. Essa roda é chamada,
pelos brasileiros, Ibecém Babaca, e, pelos portugueses, Roda de
Farinha.381[381] O recipiente é denominado Meekaba, pelos brasileiros, e,
pelos portugueses, Cocho de ralar mandioca382.[382] Todavia, as pessoas mais
pobres têm de se arranjar com um ralo manual a que chamam Tapiti383.[383] A
raiz, depois de ralada, vai para um saco tecido de fibras vegetais, medindo
cerca de quatro polegadas de largura a que os portugueses chamam
Espremedouro de Mandioca384.Depois de cheio o saco, é o mesmo colocado
em uma prensa onde a mandioca já ralada perde todo o sumo (dotado de
propriedades tóxicas), chamado Manipuera ou Manipueira pelos brasileiros e
água de mandioca 385pelos portugueses. A próxima fase do processo consiste
em fazer a massa passar por uma peneira a que os brasileiros dão o nome de
Urupema 386.Daí a farinha vai para um recipiente de cobre, ou forno, que é
levado ao fogo. A farinha é então constantemente revolvida com uma pá ou

380
[380] Em Marcgrave (LXX, p. 66) Mandiibimana e Mandiibparata.
381
[381] Em Marcgrave (LXX, p. 66) Rota haeo vocatur Brasiliensibus Jbecem Babaca
Lusitanis Roda de farinha.Etim. talvez de Ibecê = aquilo que rala ou lima (Batista Caetano, III,
p. 188) + babaca, ger., revirando, ou para revirar (B.Caetano, III, p. 56) = aquilo que rala
revirando.
382
[382] Em Marcgrave (LXX, p. 66) [i]Linter qui excipit rasurum vocatur Brasiliensibus
Mieecaba Lusitanis Coche de ralar Mandioca.[/i] Deve ser cocho de ralar mandioca. Em Batista
Caetano (III, p. 265), Mêguâ - o que se introduz, s. o receptáculo.
383
[383] Em Piso (LXX, p. 53), Tapiti. Em Staden (LXXXIX, p. 141), tippiti. Em Soares (LXXXVI,
p. 189), tapeti; segundo Varnhagen (LXXXVI, p. 458, nota 114), a pronunciação tipeti ou
aportuguesadamente tipitim, temo-la por mais conforme à dos indígenas do que a de tapeti,
tapetim. Segundo Batista Caetano (III,p. 529) tipiti - prensa.
384
[384] Em Marcgrave (LXX, p. 66) Miamiama dos Brasileiros e Espremedouro de Mandioca
dos Lusitanos. Em Batista Caetano (XLVI, p. 267), a etim. da palavra é miami, espremido,
ordenado, daí miamiama, prensa, espremedouro de mandioca em tupi.
385
[385] Em Marcgrave (LXX, p. 67) também Manipoera dos Brasileiros e Água de Mandioca
dos Lusitanos. Em Piso (LXX, p. 53), Manipuera. Em Schmie del, Mandeboere [i](in[/i] Hoehne,
XLII, p. 70). Manipuera é o suco tóxico extraído da mandioca ralada, quando se faz farinha.
Segundo Batista Caetano (III, p. 216), Mandiopuera e mandípuera em tupi, vulgo manipuera.
386
[386] Em Marcgrave (LXX, p. 67) Vrupema dos Brasileiros e Joeira dos Lusitanos. Em
Soares (LXXXVI, p. 193) urepema "que é como joeira". No Dicionário Brasileiro (XXX, p. 291)
peneira; Varnhagen (LXXXVI, p. 458, nota 114) anotou outras grafias.
Página 293 de 349

espátula de madeira, até secar perfeitamente. A esse algidar os brasileiros


chamam Vimovipada, e à espátula denominam Vipucuitaba. Antes de bem
seca, os brasileiros chamam a farinha Vitinga e os portugueses Farinha
Ralada. Quando, porém, já está completamente seca e pronta para ser
guardada, os brasileiros chamam-na Viata e Vicica, e os portugueses farinha
seca ou farinha de guerra 387 por ser muito usada nessas ocasiões. Quanto
mais seca mais tempo dura; entretanto, dificilmente se conserva por mais de
um ano. A mínima umidade estraga-a. Por esse motivo tanto nós quanto os
portugueses, seguindo o exemplo dos brasileiros, torramos a farinha em
cestos, sobre brasas, para depois guardá-la. Bejús chamam-no os
brasileiros388.

O caldo que escorre da mandioca prensada, deixado a decantar, produz,


dentro de duas horas, um depósito a que os brasileiros chamam Ti-pioja,
Tipiaka e Tipiabika. Posto a secar, esse resíduo constitui uma farinha muito
alva chamada Tipiocui com a qual preparam um bolo assado a que chamam
Tipiacika389 e que tem tão bom paladar quanto o pão branco. Esse caldo pode
ser cozido até adquirir a consistência de uma papa que se pode comer ou usar
para goma. Os portugueses adicionam a esse angu, açúcar, arroz e água de
flor de laranjeira preparando assim um doce delicioso. Chamam-no Marmelada
de Mandioca 390.O caldo, Mandiga ou Manipuera 391,tem paladar adocicado; por
isso os animais o apreciam, mas, freqüentemente, morrem depois de tê-lo
ingerido; é nocivo e tóxico mortal tanto para os homens como para os animais.
Conservado durante 1 dia ou 2, esse caldo produz uns vermes chamados

387
[387] Em Marcgrave (LXX, p. 67), Vimovipada dos Brasileiros, e Forno de Farinha dos
Lusitanos. Em Batista Caetano (III, p. 553) ui moyípáb, forno de farinha. Em Hans Staden
(LXXXIX, p. 143), yneppaun. Teodoro Sampaio (LXXXIX, p. 143, nota 118) explica a palavra,
como significando forno. Dicionário Bras. (XXX, p. 290), Vipucuitaba. Em Marcgrave (LXX, p.
67), a espátula Vipucuitaba dos Brasileiros.
Vitinga - Em Marcgrave (LXX, p. 67). Vitinga dos Brasileiros, farinha ralada dos Lusitanos.
Segundo o Dicionário Bras. significa Vitinga ou Uitinga, farinha meio moída, branca. Batista
Caetano (III, p. 553) registra uiti, farinha branca, farinha torrada. Era, segundo Marcgrave,
usada contra a úlcera.
[i]Viata e Vicica.[/i] Em Marcgrave (LXX, 67) [i]Viecacoatinga, integre autem decaia, ita ut
durare possit vocatur Viata & Vicica, Lusitan. farinha seca, farinha da guerra...[/i] Hans Staden
(LXXXIX, p. 142) registrou V. y. than, que foi anotado por Teodoro Sampaio: uitã = farinha dura.
A farinha de guerra foi descrita por Soares (LXXXVI, p. 194). Cardim (XIX, p. 61). Gandavo
(XXXVI, p. 44 e 95). A farinha de guerra não era somente usada pelos índios quando faziam
algumas jornadas, mas também como matalotagem pelos navios que da Baía seguiam para
Portugal (LXXVIII, p. 38).
388
[388] Em Staden byyu (LXXXIX, p. 142). Teodoro Sampaio (id., id., nota 116) explicou que a
palavra vem do tupi mbeyú, que quer dizer o enroscado, o enrolado. Hoje, vulgarmente, beijú.
Em Vicente Salvador (LXXVIII, p. 37), beijús "que é muito bom mantimento e de fácil digestão".
Em Soares (LXXXVI, p. 189): afirma que é mantimento que se usa entre gente de primor, [i]o
que foi inventado pelas mulheres portuguesas, que o gentio não usava deles.[/i] Gandavo
(XXXVI, p. 44 e 95). Cardim (XIX, p. 62). Batista Caetano (III, p. 229) registra mbeyú, s. bolo ou
filo de farinha torrada. Existia uma espécie mais grossa, muito torrada de beijús, que
costumavam levar para o mar (LXXXVI, p. 195). Em Marcgrave (LXX, p. 67), Bejü.
389
[389] Este trecho foi, talvez, copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67), que também registra:
"Tipioja, Tipiaca & Tipiabica; Tipiocui".
390
[390] Marcgrave (LXX, 67) registra a Marmelada de Mandioca, feita com adição de arroz e
açúcar, enquanto que Nieuhof acrescenta ainda água flor de laranjeira. Piso (LXX, 54) fala
também na flor de laranjeira. Isso faz crer que o arroz fosse usado no nordeste no séc. XVII.
391
[391] Este trecho foi, talvez, copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67). Piso(LXX, p. 54).
Página 294 de 349

Tapurú, pelos brasileiros392. Entretanto, sabe-se por experiência, que ele perde
as qualidades daninhas depois de 24 horas. Muitos brasileiros fervem-no e o
consomem livremente. Pode-se também cortar a raiz da mandioca em fatias,
logo depois de colhida, e deixá-las de infusão em água durante três, quatro ou
cinco dias até começar a amolecer. Chamam-se então Puba, Mandiopuba ou
Mwniopuba393 .Os selvagens que habitam os desertos e as florestas, torram na
cinza essas fatias e comem-nas, sem muito trabalho. A mesma Mandiopuba,
torrada ao fogo, é chamada Kaarima, e depois de moída em pilão de madeira
toma o nome de Kaarimaciu 394.Com esta farinha fazem uma papa em água
fervente que, temperada com um pouco de pimenta brasileira, chamada Quiya
ou flor de Nhambi, constitui delicioso prato, principalmente quando servido com
carne ou peixe, caso em que se chama Mingui-pitinga395 e é considerado pelos
brasileiros uma de suas mais finas iguarias. E' também muito saudável, pois
essa Kaarima cozida juntamente com flor Tipiaka 396 em água de flor da
laranjeira e açúcar até adquirir a consistência de um xarope constitui um bom
antídoto. Fazem, também, uma espécie de goma, com a farinha chamada
Kaarima, a que dão o nome de Mingaupomonga397 preparam, ainda, bolos
magníficos a ela adicionando água, manteiga e açúcar. Com os resíduos da
mandioca, ou raiz Mandiopuba de infusão na água, preparam uma farinha
semelhante ao miolo do pão, a que os brasileiros chamam Vipuba e Viabiruru e
os portugueses farinha fresca e farinha d'água398 . É muito saborosa, mas, não
dura mais que 24 horas. Se, entretanto, se fizerem bolas ou rolos umedecidos,
deixando-os depois secar ao sol, a farinha d'água conserva-se por muito
tempo. A esta última forma chamam Viapuâ e Miapeteka. Os tapuias, e quase
todos os outros brasileiros, preparam-na assim, e depois misturam-na com
outra farinha chamada Viata 399,que lhe dá um paladar ainda mais agradável.

Prepara-se ainda a raiz de mandioca da seguinte maneira: depois de lavada e


cortada em fatias, são estas trituradas com uma "mão" de madeira
espremendo-se, em seguida, a pasta com as mãos a fim de extrair-lhe o caldo;
depois de seca, essa preparação chama-se Tina e Mixa-kuruba 400.

Outra maneira de preparar a raiz da mandioca consiste em cortá-la em


pedaços de aproximadamente dois dedos de comprimento, por duas polegadas
de largura, e expô-los ao sol, sem espremê-los. Depois reduzem-se tais

392
[392] Este trecho é, também, copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67), que registra: Tapurü.
393
[393] Este trecho é, talvez, copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67), que registra: Mandiopuba
& Maniopuba. Piso (LXXI, p. 116) registrou Puba; e (LXX,p. 54), Mandiopiba.
394
[394] Este trecho é, talvez, copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67), que registra:
"Mandiopuba; Caarimâ e Caarimâciu". Piso (LXX, p. 54).
395
[395] Este trecho referente ao Mingau é copiado de Marcgrave (cf. LXX, p.67), que registra:
"Quiya e Minguipitinga". Em Piso (LXX, p. 54), Mingau-petinga; Piso (LXXI, p. 116) registra a
flor Nhambi.
396
[396] Marcgrave (LXX, p. 67) não a menciona; Piso (LXX, p. 54) registra Tipioca.
397
[397] Este trecho foi copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67), que registra:farinha de Caarima
e Mingaupomonga.
398
[398] Este trecho foi, também, copiado de Marcgrave (f. LXX, p. 67), que registra:
Mandiopuba; Vipuba & Viabiruru; Farinha fresca & Farinha d'água. Em Piso (LXX, p. 54),
Vipeba.
399
[399] Este trecho foi copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67), que registra:Viapuâ, Miapeteca
e Viatâ.
400
[400] Este trecho foi copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67); Tina & Mixacuruba.
Página 295 de 349

pedaços a pó, em um pilão de madeira. A esse produto os brasileiros chamam


Tipirati e os portugueses dão o nome de farinha de mandioca crua. Antes de
reduzidos a pó, os pedaços de mandioca são muitos alvos e podem ser usados
como giz. Com essa farinha preparam um ótimo pão branco e biscoitos
chamados Miapeta, sendo que estes últimos são muito usados nos
acampamentos, porque se conservam por muito tempo401.

Da raiz Aipim macaxeira, os brasileiros preparam agradável licor


esbranquiçado que se assemelha ao nosso soro de leite e ao qual chamam
Kavimakaxera. A mesma raiz, mastigada e misturada com água, produz outra
bebida a que chamam Kaon Karaxu402.Os bolos preparados com esta farinha,
postos numa vasilha a fermentar com água, proporcionam-lhes também uma
espécie de cerveja forte.

Todas essas diferentes espécies de mandioca, se ingeridas ao natural, são


fatais ao homem, exceto a denominada Aipim macaxeira que, torrada, pode ser
consumida sem perigo e tem bom paladar. Entretanto, todos os animais,
domésticos ou não, alimentam-se tanto das folhas como da raiz da mandioca
que não só não lhes faz mal algum, mas ainda os faz engordar bastante, a
pesar de que o suco é tóxico, tanto para o homem como para os animais 403.Os
negros e os brasileiros trituram as folhas em um pilão e, depois de cozê-las,
adicionam-lhes gordura ou manteiga e delas se servem como nós do espinafre.
Os portugueses, e até os holandeses, às vezes usam esse prato; preparam,
também, uma espécie de salada com essas folhas. Os brasileiros preferem o
pão de mandioca ao nosso, mas o europeu não se dá bem com ele, pois
quando usado longamente esse pão faz mal ao estômago, aos nervos e
corrompe o sangue. Cerca de meio alqueire404dessa farinha, que, às vezes,
custa 4, 6, 8, 12 e mais florins por alqueire, basta para manter um operário
robusto durante um mês, e, quando plantada a mandioca da mesma forma que
o trigo, produz quatro vezes mais. Existe uma variedade de mandioca a que os
brasileiros chamam Pitinga405,[405] cuja farinha cura úlceras antigas. Essa raiz
é igualmente encontrada na Ilha de São Tome, na de Hispaniola, em Cuba e
nas ilhas vizinhas, bem como na maior parte do continente americano, cujos
habitantes chamam-na Yuka e Kas-save. No México é conhecida por
Quauhkamotli; ao pão feito com a farinha, chamam Kazabis, Kazabi ou Kakavi.
A raiz de mandioca é originária do Brasil; daí foi transplantada para outras
regiões americanas e para a África406.É com sua farinha que os brasileiros bem
como portugueses, holandeses e negros crioulos fazem pão, que, depois do de
trigo, é de todos o melhor. Tanto assim que os nossos soldados preferiram

401
[401] Este trecho foi copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67), que registra: Tipirati; Miapeatâ.
402
[402] Este trecho foi copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67), que registra: Aipimacaxera;
Cavimacaxera; Caon Caraxu.
403
[403] Este trecho foi copiado de Marcgrave (cf. LXX, p. 67) que registra: Aipimacaxera.
404
[404] O tradutor inglês não foi fiel (Cf. p. 202, 2a coluna da ed. holandesa e p. 138, 1a
coluna da trad. inglesa).
405
[405] Trata-se da Vitinga, pois Marcgrave (LXX, p. 68) ao escrever sobre o uso da mandioca
na Medicina afirma que a [i]Vitinga[/i] sara as úlceras.
406
[406] Compare-se com o cap. VII, p. 68, de Marcgrave (LXX), onde ele dá os diferentes
nomes da planta em diversos países (Yuca, Cazave, Quauhcamotli) e afirma que a planta é
originária do Continente Americano. A mandioca é nativa no Continente Americano e tem o seu
centro no Brasil meridional e central. Cf. Hoehne, p. 30, XLII.
Página 296 de 349

receber em nossos celeiros sua ração em pão de mandioca a recebê-la de


trigo.

Desde a guerra de 1645, o preço da farinha subiu para seis, sete, oito, nove,
dez ou onze florins por alqueire, e, como essa situação levaria à ruína os
engenhos, o Grande Conselho baixou ordens rigorosas para que cada
habitante da zona rural, de acordo com suas possibilidades, plantassem - sob
penalidades severas - cerca de mil covas de mandioca por ano. Assim foi que o
preço da farinha caiu a ponto de ser vendida no Recife à razão de quatro
schellingen por alqueire, e por menos ainda no interior407.

Kaaeo ou Herba viva

Há, no Brasil, certa erva a que os naturais denominam Kaaeo e os europeus


chamam pelo nome latino Herba viva, 408[408] porque parece murchar quando
tocada; o mesmo acontece ao pôr do sol. Levaram-se sementes desse vegetal
para a Europa onde viceja perfeitamente.

407
[407] O tradutor inglês escreveu três ou quatro florins por [i]bushels;[/i] omitiu as mil covas
de mandioca e, mais adiante, escreveu dois [i]shillings[/i] por três [i]bushels.[/i] (Cf.p. 138, 1a
coluna, l.o § da ed. inglesa e p. 201, 1a coluna, 3° e 4° §§ da edição holandesa)- [i]Schelling:[/i]
antiga moeda de prata, no valor de seis [i]stuivers.[/i] O [i]stniwr[/i] vale 0,05 florins.
408
[408] Em Marcgrave (LXX, p. 73, cap. XII) Caaeo dos Brasileiros; Herbaviva do vulgo; Em
Gandavo (XXXVI, p. 100-101). Em Cardim (XIX, p. 69).
Página 297 de 349

Cabaças

Cabaças409são uma espécie de abóbora cuja casca, depois de seca, é tão


resistente e forte que serve de vasilhame, como sejam, copos, tigelas etc. O
admirável, porém, é que adquirem sempre formato diverso; umas são
redondas, outras ovais, umas grossas na ponta, outras na extremidade. Essa
planta floresce e frutifica uma só vez por ano. A flor é amarela mesclada de
verde; a polpa do fruto é branca a princípio, depois torna-se violácea. Seu
paladar é passável, mas a fruta não é saudável por ser muito adstringente.

A árvore Imakaru

A árvore a que os brasileiros chamam Imakaru, é de tamanho médio. Tem o


tronco redondo e a casca cinzenta e recoberta de pequenos espinhos. Os
ramos crescem para cima e deles brotam grandes folhas ovaladas igualmente
guarnecidas de espinhos. Existe ainda outra qualidade de Imakaru, muito maior
que a primeira, a que os brasileiros denominam Kaxabu e os portugueses
chamam Kardon 410; cresce, inicialmente, no formato de uma grande folha
octogonal, da qual saem muitos espinhos; essa primeira folha produz outras
iguais, tendo cada uma três e às vezes seis de comprimento e a grossura de
um braço. Aos poucos a primeira folha vai-se transformando em um corpo
lenhoso, esverdeado, mas um tanto esponjoso. As folhas que nascem dessa
primeira, fazem as vezes de ramos e produzem outras folhas. O tronco dá uma
única flor grande e o fruto, de formato oval, tem o volume de aproximadamente
dois ovos de galinha; sua cor é castanho-escuro e é comestível. Esse vegetal
atinge grande altura. Há, ainda, outra variedade de Imakaru ou Kardon que se
assemelha bastante a acima descrita, tanto no porte, como na flor e no fruto,
diferindo apenas em que as folhas são triangulares.

Paço Caatinga

Prolifera ainda no Brasil um caniço a que os indígenas chamam Paço Caatinga


e os portugueses dão o nome de Cana do Mato 411. A haste é semelhante às
dos outros caniços; tem cerca de uma polegada de diâmetro e sua polpa é
adocicada. Suas folhas atingem oito ou nove polegadas de comprimento, têm o
formato de língua, e enquanto que de um lado são verde-claro, lisas, de outro
apresentam-se cobertas por uma penugem branca. O fruto que essa planta
produz não diverge muito do abacaxi e mede cerca de 10 polegadas de
comprimento. Nasce no topo da haste e é dividida em diversos gomos, os

409
[409] Nieuhof escreveu Kalabassen (p. 201, 2a coluna, 1° §).
410
[410] Em Marcgrave (LXX, 125) [i]Iamacurú[/i] (árvore de tamanho médio) e(LXX, 126)
[i]Imacuru,[/i] árvore de grande tamanho, chamada pelos brasileiros [i]Caxabu[/i] e pelos
Lusitanos Cardon. Marcgrave (id., 23) registra também a planta
411
[411] Em Marcgrave (LXX, p. 102 a árvore e p. 48 a planta) Paço Caatingados Brasileiros e
vulgarmente Cana do Mato.
Nieuhof escreveu - emissão de sêmen - ao invés de gonorréia e o tradutor holandês escreveu
emissão involuntária de sêmen. (cf. p. 40, 2a coluna e p. 202, 1ª coluna da ed. holandesa e p.
139, 1a coluna da trad. inglesa). V. nota 171.
Nieuhof extraiu este trecho de Marcgrave (cf. LXX, 48), onde se verifica que a cana do mato
era empregada contra a gonorréia ou esquentamento, como já era chamada pelos
portugueses, segundo afirma Marcgrave. Em Piso (LXX, 98), Paço caatinga.
Página 298 de 349

quais, abrindo gradativamente, exibem uma flor cinza claro que esconde, por
baixo, vinte ou mais sementes pretas, brilhantes. O talo, mastigado, age como
expectorante e dissolve as pedras da bexiga. É considerado, pelo Brasil todo,
excelente remédio contra a gonorréia, distúrbio que regulariza em oito dias.

O pé e o fruto do Caju

Por todo o território brasileiro, mas especialmente na Ilha de Itamaracá,


floresce uma árvore chamada Cajui ou Caju,412que produz um fruto do mesmo
nome. Suas folhas são verde-escuro, largas, redondas e cortadas por
numerosas nervuras. Esse vegetal dá duas qualidades de flores e de frutos: a
flor branca que surge dos ramos inferiores produz um fruto esponjoso, rico em
sumo, que se assemelha à maçã e tem qualidade altamente refrigerantes e
adstringentes. Entretanto, a flor vermelha do topo dá uma espécie de castanha.
Os nativos tiram largo proveito dessa árvore. Das maçãs, fazem uma excelente
bebida denominada Kasjouvi, de paladar um tanto acre; entretanto,
adicionando-se-lhe açúcar, assemelha-se a um agradável vinho do Reno;
embebeda rapidamente, mas o efeito é passageiro e não deixa conseqüências.
O outro fruto come-se da mesma forma que a nossa castanha.

Pinoguaçú ou Papaia

Entre os vegetais que proliferam tanto nas índias Ocidentais como nas
Orientais, acha-se o que os japoneses e holandeses chamam Papaia e os
americanos apelidam Mamoeiro, e Pinoguaçú 413;os nossos às vezes chamam
árvore de melão dada a semelhança de seu fruto com o nosso melão. Há. duas
qualidades dessa árvore: macho e fêmea. Cresce e morre em curto espaço de
tempo. Seu tronco é de tal forma esponjoso que se pode cortá-lo com a mesma
facilidade com que se corta um talo de couve. As folhas são grandes e largas e
assemelham-se às da videira, desenvolvendo-se na ponta de longas hastes em
torno do topo, onde protegem os frutos, que nascem agrupados. Estes, verdes,
quando novos, tornam-se finalmente amarelos e têm o formato de uma pêra;
seu porte, entretanto, é o de um melão pequeno cuja polpa também lembra,
tanto em cor como em paladar, quando maduros. Quando verde, coze-se com
a carne a fim de dar-lhe certo gosto picante.

Chili Lada ou pimenta brasileira

A pimenta vermelha, conhecida pelo nome de pimenta brasileira e à qual os


brasileiros denominam Chili Lada, cresce em hastes nodosas de cinco ou seis
pés de altura. A casca é verde-escuro e ornada de anéis brancos; daí brotam

412
[412] Nieuhof escreveu Kasjoui ou Kasjou (p. 202, 2a coluna). Em Cardim (XIX, 50). Em
Soares (LXXXVI, 205). Em Marcgrave (LXX, 94), Acaiaiba & Acaiuiba dos Brasileiros, cujo fruto
chamam Acuiü e vulgarmente caju. Em Piso(LXX, 57), Acaju e Acayaiba: Em Léry (LII, 159),
Acauí. Batista Caetano (III,p. 21) registra acavu, por ser desconhecida no Sul só é registrada
nos Dicionários tupis. Segundo Plínio Ayrosa (LII, p. 159, nota 382), provém de aká, caroço e
jú, sufixo, ou júm amarelo. Sobre a expansão do fruto e do nome e os seus derivados,vide Artur
Neiva, Estudos da Língua Nacional, vol. 178, 1940, Brasiliana.
413
[413] Em Marcgrave (LXX, 102-104), Mamaoeira dos Brasileiros, vulgarmente Papay, cujo
fruto os Lusitanos chamam Mamão. Em Piso (LXXI, p. 159) se lê; [i]Utraque Pinoguaçú,
Mamoeira Lusitana dicitur, vulgo Papay, cujos fructum Mamam vocant...[/i]
Página 299 de 349

pequenos galhos tortuosos de um palmo de comprimento, dos quais surgem


florzinhas brancas. Estas produzem um frutozinho verde que, quando
amadurece, se torna vermelho. Tanto o fruto como sua semente são tão
ardidos como a pimenta castanha, comum. Nas índias Orientais preparam com
a pimenta uma conserva a que chamam Aetzaer e usam-na no molho de peixe.

No Brasil cortam duas ou três pimentas verdes e misturam-se em azeite e


vinagre ou caldo de limão para servir de aperitivo; é, porém, muito quente para
os que não estão acostumados a este molho, e para suavizá-lo adiciona-se
certa quantidade de sal. Esta qualidade de pimenta prolifera também nas índias
Orientais, na Ilha de Java, na Bengala e em diversos outros lugares. Via
também em alguns jardins, na Holanda.

Há ainda outro arbusto, encontradiço das índias Orientais, que não difere muito
do acima descrito, tanto na conformação como no tamanho, e que produz
flores amarelas; os árabes chamam-no Halikakabus ou Alkekengi e é bastante
conhecido nestas paragens. A flor produz uma pequena vesícula que encerra o
fruto e as sementes. Não é tão grande quanto a nossa pimenta. Os indianos e
chineses misturam-na com certa fruta a que os portugueses chamam a Poma
d'Oro e Tamatas [tomates] e os italianos Melansana [berinjela – talvez tenha
ocorrido um equívoco em italiano pomodoro = tomate]; comem-na, também,
com pimenta brasileira. Os portugueses cortam a pimenta brasileira em fatias
finas, a que adicionam óleo e servem como salada. Esse prato é considerado
ótimo remédio para as convulsões estomacais, tão comuns nessas paragens.
Tanto os naturais do país como os holandeses mastigam essa pimenta, pura,
mas é um cáustico terrível para a língua414.

Cana de açúcar

A cana de açúcar, a que os brasileiros chamam Viba, prolifera tão bem nas
índias Ocidentais quanto nas Orientais. No Brasil, dá em quantidade prodigiosa
por todo o país, mas, especialmente na Capitania de Pernambuco. São duas
as variedades aí conhecidas: uma de folhas pequenas e outra de folhas
maiores. A última, considerada a melhor, desenvolve-se em um longo caule da

414
[414] Nieuhof cometeu um engano ao escrever que os brasileiros chamam apimenta de Chili
Lada. Em Marcgrave (LXX, 39) Quiya dos Brasileiros, pimentados Lusitanos. À pimenta
malagueta chamavam de Quiyaqui. Marcgrave registra 4 espécies: a primeira, já citada acima;
a segunda, Quiya cumari; a terceira, Quiya apua; a quarta, Quiya uca, pimenta grande ou
pimentões. Em Piso (LXX,107), Quiya, ou pimenta da terra. Registra também Quiyagui,
Malagueta dos Lusitanos; Quiya apua ou pimenta redonda; Quiya cumaci & Quiya-carapo; e a
pimenta dolce (sic).
Talvez do nome indígena mexicano Chili venha a confusão de Nieuhof Aliás, Piso, na
"Mantissa Aromática" (LXXI, p. 180), descreve a [i]De Lada, aliis Molanga, sive Pipere
Aromatico Maré & Foewdna[/i] (índias Orientais)- Trata-se, portanto, de uma confusão de
Nieuhof, juntando Chili, nome que os mexicanos dão à pimenta e Lada, nome indígena de
Málaca, Java ou Sumatra.
Em Jacob Bontius (LXXI, p. 149), Halicabo ou Alke-kingi, nome árabe e Poma d'oro dos
Lusitanos; Piso (LXXI, p. 183) registra Acha e Marcgrave (LXX, p. 40), Axi. Em Herckmans
(XLI, p. 275), Achy. Soares (LXXXVI, p. 203-205) registra cuihem, juquiray, cuihemoçu, cuieniá,
sabãa, cuihejurimu, cumari. Em Batista Caetano (II, p. 438), qulyi - pimenta. No Dicionário Port.
Bras. (XXX, p. 248), Kyynha; Kyynha avi = pimenta malagueta, Kyynha cobaigoara = pimenta
do Reino, Herckmans (XLI, p. 276) descreve a Piger longum.
Página 300 de 349

espessura de um braço de criança e as folhas brotam todas no topo da cana,


em forma de capucho ovalado e de cor azul-escuro. A casca desta variedade
distingue-se por certas juntas ou nós. A outra produz folhas desde baixo até em
cima. A cana de açúcar propaga-se pelos seus brotinhos que, plantados como
a nossa videira, crescem até atingir a altura de doze pés, quando lançados em
solo fértil e limpo. Seis meses depois de plantada a cana, aparece-lhe no topo
uma semente de cor castanha; está, então, no ponto de ser cortada, pois, se
ficar mais tempo na terra, o caldo seca e azeda. Se ingerido logo depois de
extraído, o caldo de cana solta os intestinos. Os terrenos baixos são muito mais
convenientes que os morros para a cultura da cana de açúcar. O ideal é plantá-
las nas regiões ribeirinhas, facilmente inundáveis por ocasião das enchentes.
Existe um certo verme negro alado a que os nativos dão o nome de
Guirapeakoka e os portugueses chamam Pau de Galinha, que infesta os
canaviais415.Quando o terreno é úmido, esse inseto ataca e destrói as raízes. O
açúcar proveniente da cana não se consegue sem grande esforço e trabalho,
e, no seu fabrico, empregam-se numerosos escravos que trabalham sob às
vistas dos feitores a serviço dos senhores de engenho. Estes eram, na maioria,
portugueses, pois os holandeses jamais conseguiram se aperfeiçoar na
produção do açúcar.

Na Capitania de Pernambuco foram instalados numerosos engenhos, ótimos,


junto aos canaviais, especialmente para a produção de açúcar. O número
desses engenhos excede de 100, e os escravos africanos que nelas trabalham
montam a perto de 40.000. A produção anual de açúcar, no Brasil Holandês, é
calculada entre 200.000 e 250.000 cestos.

Índigo

No ano de 1642, um tal Gillis Venant trouxe das ilhas das índias Ocidentais,
para o Brasil, algumas sementes de índigo, e, tendo-lhe sido designado um
terreno perto do riacho Mercera e concedidas, por ordem especial do Grande
Conselho, todas as facilidades, fez diversas plantações de anil ou índigo.

Vendo que as formigas devoravam a maioria das folhas, o senhor Venant com
auxílio de numerosos camaradas e negros deu-lhes tão eficiente combate,
queimando-as e enterrando-as, que o solo ficou inteiramente livre dessa praga
e o índigo atingiu à sua perfeição máxima, tanto que diversos exemplares
foram remetidos para a Holanda.

O Senhor Venant tinha feito um acordo com o Senhor Kristoffel Ayerschettel


para que o instruísse no processo de coagulação do índigo e já estava em
negociações com o Grande Conselho sobre as terras onde plantá-lo - havendo,
portanto, probabilidade de se desenvolver consideravelmente essa cultura no

415
[415] Em Marcgrave (LXX, p. 82): Vvbae & Tacomaree dos Brasileiros, Al-feloa da Zuquere
ou Cana d'azuquere dos Lusitanos. Piso (LXX, p. 50), Viba dos Brasileiros. Em Batista Caetano
(III, p. 549) : Ubá em vez de ulb - á, s., cana; e p. 553 - uíb - á, mais próprio ulbae, s espécie de
cana; uíbâ = uimâ - cana.
Em Marcgrave (LXX, p. 83) Guirapeacojâ dos Brasileiros e Pau de galinha dos Lusitanos; Piso
(LXX, 50) Guirapeacoca dos Brasileiros e vulgarmente Pau de galinha.
Página 301 de 349

país - quando a guerra intestina veio impedi-lo de pôr em execução o seu


plano.

O anil nativo, que se encontra em grande quantidade no Brasil, tem bastante


semelhança com o verdadeiro índigo, mas não proporciona uma boa cor.

Há quem afirme ter visto também no Brasil uma espécie de cochonilha


selvagem. As terras brasileiras poderiam também produzir grande quantidade
de algodão, mas o povo prefere a plantação de cana de açúcar porque dela tira
mais proveito.

Remédios

Planta-se também no Brasil algum gengibre, mas não em quantidade que dê


para exportar. O mesmo se pode dizer da Mechoakanna, Radix China e de
outras raízes medicinais assim como da erva de cobra ou erva de Nossa
Senhora, esta considerada infalível no tratamento de cálculos. Temos ainda a
Ipecacvjanha416que é o remédio generalizado dos índios. Muitas outras plantas
foram para lá transportadas de outras paragens, tais como o gengibre, o
tabaco, o arroz, o algodão, o trigo turco, o anil ou índigo e a cana de açúcar
que foi a primeira cultura introduzida pelos portugueses, na Ilha das Canárias.
As frutas comumente usadas no Brasil são o ananaz, a banana, a mangaba o
caju, o aracú grande e pequeno, a goiaba, diversas qualidades de maracujá, a
ibapiranga, o mazaxanduba, o cajá, o ariticú, o guitakory, a berinjela, o mamão,
o coco e diversas variedades de figos selvagens. As principais raízes em uso
são: a batata, o nhambi, o umbi, e as que os indígenas chamam Munduy, de
delicioso paladar417.

416
[416] Em Marcgrave (LXX, 41): Ieticucu dos Brasileiros, raiz Mechoacan, Batata de purga
dos Lusitanos. Em Piso (LXX, p. 93) Ieticucu ou Mechuacan;Batata de purga ou Mechoacan
dos Lusitanos e íiticucu dos Brasileiros.
Em Herckmans (XLI, p. 276) [i]Mechoacana: é aí tão abundante que ninguém se dá ao trabalho
de a secar; era empregada como purgativo.[/i]
Radix Chinae, em Piso (LXX, p. 99). Herckmans (XLI, 276): Radix china ou a mesma raiz, posto
que não seja da China, dá em abundância no Brasil, e certamente é tão vigorosa e própria para
a cura da bexiga, para a purificação do sangue e para combater outras moléstias quanto a da
China. Tem-se-lhe dado o nome de Radix Brasílica para distingui-la da China.
Paquoquanha como escreve Nieuhof é a Ipecacuanha (Marcgrave, LXX, p. 17). Piso (LXX,
101), Ipecacuanha. Piso escreveu (LXX, 102): Quamobrem religiose à Brasiliensibus
reservatur, qui illius virtutes primi nobis revelarunt.
417
[417] Nieuhof escreveu novamente Akaju (p. 205, 1a coluna, cf. nota 412); Marcgrave (LXX,
p. 105) registra: Aracaiba dos brasileiros, cujo fruto chamam Araca-guacü, semelhante a
Guayabo; e Araca-miri (fruto). Em Cardim, Araçá (XIX, p. 52). Os nomes iniciais conservam a
grafia de Nieuhof.
[i]Guaiaba[/i] em Piso (LXX, 75). Em Marcgrave (LXX, 104) [i]guayaba, granaet peeren[/i] dos
Belgas. Em Herckmans (XLI, 273), Choabes.
[i]Murucuja[/i] em Piso (LXX, 106-107), registrando sete espécies silvestres: Murucuja satà, Eté,
Mixira, Peroba, Piruna, Ternacuja, Vna; menciona ainda a Murucuja-guacu e, em capítulo
especial (cap. LXXXIV, p. 107), Murucaja-mirim.
Em Marcgrave (LXX, 70-71), Murucuya ou flor das paixões. Murucuia guacu & Guainumbi
Acaiuba. Registra 4 espécies.
[i]Ibapiranga.[/i] Em Marcgrave (LXX, 116) Iba Puruga.
[i]Akaja.[/i] Em Soares (LXX, 211); em Margrave (LXX, 129), Acaja (no título). e Acaia (no
texto); em Piso (LXX, 68), Acaja.
Página 302 de 349

Fertilidade do Brasil

O solo brasileiro é todo ele extremamente fértil, agradável e irrigado por muitos
rios e lagos, a maioria dos quais procede das montanhas e atravessa vastas
planícies pantanosas (a que os portugueses denominam várzeas) onde se
encontram numerosas variedades de frutas, mas especialmente cana de
açúcar. Os prados e as pastagens não são tão agradáveis no verão como na
estação chuvosa, época em que sua verdura refulge. O trigo e o centeio
desenvolvem-se rapidamente, em parte devido à natureza do solo e em parte
ao calor do sol. Portanto, a fim de evitar o crescimento excessivo, põe-se areia
no solo ao invés de estrume. O mesmo pode dizer-se com respeito a todas as
outras sementes alienígenas que precisam ser mantidas em baixo da terra por
tempo considerável. Em fevereiro e março, fim do verão, época das chuvas e a
estação úmida procedem-se às semeaduras à noite, não durante o dia ou às
últimas horas da noite418. Tem-se o cuidado de não enterrar as sementes fundo
demais, pois tudo quanto escapa ao alcance dos raios solares raramente
produz frutos; e isso o nosso povo aprendeu por experiência. Há grande
disparidade quanto à época de maturação das diversas sementes e frutas
produzidas em terras altas e as que crescem nos pantanais. Contudo, o
coqueiro e as palmeiras são aqui transplantadas sem a menor consideração
pelo tamanho, idade ou estação e se desenvolvem bem. Quase todos os
arbustos e árvores dão flores durante o ano todo, de forma que se podem
gozar ao mesmo tempo os encantos da primavera, do verão e do inverno. O
mesmo se observa com relação à videira, à cidra, ao limão e outras árvores
trazidas de Angola pelos portugueses e com respeito a diversas raízes,
hortaliças e árvores frutíferas transplantadas pelos holandeses. Quem quiser
obter uvas maduras durante o ano todo terá apenas que podar a vinha em
épocas diversas, conseguindo assim uvas excelentes e vinho tão doce como o
de Malvasia. Infelizmente, porém, as formigas atacam furiosamente as vinhas,
sugando todo o néctar e deixando ao viticultor apenas a casca. Diversas
espécies de árvores frutíferas foram transplantadas da Holanda para o Brasil,
onde se desenvolvem perfeitamente e produzem frutos excelentes.

[i]Aratiku.[/i] Em Marcgrave (LXX, 93-94), Araticu dos Brasileiros; menciona três espécies:
Araticu ponhe; Araticu pana; Araticu ape. Piso só registra Araticu pana (LXX, 48). Cardim (XIX,
53) e Rodolfo Garcia anota (XIX, p. 107) que o araticu pana é o Anona palustris, L.; de étimo
incerto. Em Soares (LXXXVT, 217), Araticu. Em Abbeville (XXXVIII, p. 21), Araticou. Segundo
Batista Caetano (III, p. 48), é nome genérico das anonas, de a - rati - cui = cuia ou vaso de
bagaço ou sabugo de frutas.
[i]Guitokory.[/i] Em Marcgrave (LXX, 114), Guiti-coroya dos Brasileiros, outra espécie guiti. Em
Piso (LXX, 66), Guiticoroja; registra guetijs de várias espécies, guetitoroba, guiti-miri e
Gueticoroya. Em Soares (LXXXVI, 215), guti. Em Ayres de Cazal (XXVI, p. 57 do 2° vol.),
Goyty. E Frei Vicente do Salvador (LXXVIII, p. 32), gyitis.
[i]Nhambi.[/i] Em Marcgrave (LXX, 49), Nhambi dos Brasileiros. Em Piso (LXX, 89), Nhambi. Em
Soares (LXXXVI, p. 224) nhamby;
[i]Umbi.[/i] Marcgrave (LXX, 108), lua vumbu. Em Piso (LXX, 77) Umbu. Em Cardim (XIX, 321).
Soares (LXXXVI, p. 462, nota 127) registra as seguintes variantes: ambu, imbú, ombú ou
umbu- Hoehne (XLII, p. 335) escreve que ela é o recurso dos viajantes do nordeste brasileiro e
o mata-fome dos cearenses.
[i]Munduy.[/i] Piso (LXX, 83) registra Munduy-guacu, Pinhões do Brasil dos Lusitanos. Em
Marcgrave (LXX, 96) Mundubiguacu dos Brasileiros, Pinhones dos Lusitanos e Nux cathartica
do próprio Marcgrave.
418
[418] O tradutor inglês escreveu: "estação chuvosa e o inverno deste clima" (cf. p. 205, 2a
coluna, 2° § da ed. holandesa e p. 140, 2a coluna últ. § da trad. inglesa). Vide nota 425.
Página 303 de 349

As águas paradas são, no Brasil, em sua maioria, cobertas de ervas e


arbustos, de maneira que mais dão a impressão de terra que de água e
alimentam tanto a fauna terrestre como a aquática. À entrada dos rios (onde se
encontra prodigiosa quantidade de ostras e caranguejos) o terreno é de tal
forma coberto por certa espécie de árvore chamada pelos brasileiros
Guaparaba, ou Mangue419, que barram a passagem ao viajante. Em resumo,
todo o território brasileiro é rico em árvores, arbustos e madeiras úteis,
dificilmente encontrando-se um pedaço de chão, seja nos vales, seja nas
serras, que não produza algo de útil e em tal abundância, que os portugueses,
ao chegar, tiveram de abrir caminho através do arvoredo, vencendo
dificuldades tremendas e enfrentando despesas enormes.

Pau-Brasil

As montanhas produzem, também, grande quantidade de certa madeira que


exala aroma muito agradável e é usada em tinturaria; trata-se do pau-brasil
usualmente exportado para a Europa.

O tronco dessa árvore é nodoso e dotado de agradável aroma, atingindo às


vezes a grossura de três toesas; suas folhas são verde-escuro e levemente
espinhosas nos bordos, desenvolvendo-se sobre pedúnculos curtos. A casca,
que tem a espessura de duas ou três polegadas, é geralmente retirada do
tronco antes de ser este posto à venda. Essa árvore brota de suas próprias
raízes e não produz nem flores nem frutos. A região onde prolifera está
geralmente de 10 a 12 milhas do litoral. Aí é abatida, despida de sua casca e
transportada em carreta para a costa de onde é exportada, principalmente para
uso dos tintureiros. Dada a sua excelência os nativos chamam-na
Ibirapitanga420. Quando os holandeses conquistaram parte do Brasil,
encontraram grande quantidade dessa madeira já preparada e pronta para ser
utilizada. Essas partidas foram, porém, pelos portugueses, vendidas à
Companhia holandesa.

Desde então tanto portugueses como holandeses passaram a cortar pau-brasil


em larga escala, e tal foi a quantidade de madeira exportada em 1646 e 1647,
que os membros do Grande Conselho do Brasil Holandês, Senhores Hendrik
Hamel, Bullestrate e Kodde, conhecedores dos ruinosos métodos adotados no
corte dessa árvore - e que com o correr do tempo poderia acarretar o seu
extermínio - fizeram publicar uma proclamação coibindo tais abusos.

Existem outras madeiras de excelente qualidade no Brasil, como as que os


portugueses chamam Pau Santo, Gitayba, Pau violeta, Massarandiba, cedro e
tantas mais próprias para marcenaria. A árvore a que os lusos denominam
Tatajiba, cuja madeira tem o nome de Pau Amarelo, produz uma tinta dessa
cor, para tinturaria. A casca da Araiba é cor de cinza, mas, quando fervida,

419
[419] Em Marcgrave (LXX, 118), Guapereiba ou Mangue vereadeiro (sic)dos Lusitanos. Em
Piso (LXX, 114), Mangue Guaparaiba (3a espécie de Mangue). Em Soares (LXXXVI, 241)
Quaparaiva. Varnhagen (LXXXXVI, p. 466,nota 139) escreve Guaparaiva.
420
[420] Em Marcgrave (LXX, 101), Ibirapitanga dos Brasileiros e Pau Brasil dos Lusitanos. Em
Gandavo (XXXVI, p. 99). Em Cardim (XIX, 60). Em Barlaeus (VII, 134). Ibírá (Batista Caetano,
III, 192), pau, madeira pítâ oupítang = pytang (III, p. 397), vermelho, rubro, sangüíneo.
Página 304 de 349

produz tinta vermelha. A Jacaranãá, gaturiba, ou cedro branco, bem como


diversas outras árvores, fornecem material resistente e durável para
construção. Os brasileiros fazem tochas e uma espécie de cânhamo, com a
casca de certas árvores421.

O Timbó ou Tipo

Mesmo as zonas mais estéreis do Brasil produzem uma espécie de árvore


chamada Timbó e Tipo422 com a qual fabricam arcos, em razão de sua
flexibilidade. Sua casca substitui o cânhamo na carpintaria naval.

Combustível

Os naturais do país acendem fogo friccionando dois pedaços de certas


madeiras a que chamam Caraguatá Guaçu e Imbaiba423 como fazemos com a
nossa pedra de isqueiro. A primeira dessas é uma árvore de natureza
admirável. Seu tronco sobe a 14 ou 15 pés de altura, e, tendo atingido o seu
desenvolvimento total, produz uma flor amarela na ponta e grande quantidade
de folhas grossas e espessas. Os nativos utilizam-se dos ramos para neles
pendurar suas flechas. As folhas, além de segregarem um líquido untuoso que
faz as vezes de sabão, proporcionam ao pescador excelente fibra com que
fabricar redes."

As árvores, e mesmo as matas brasileiras, jamais se mostram inteiramente


cobertas de folhagem; enquanto que umas derrubam as folhas outras brotam
de novo; chega-se mesmo a ver uma árvore coberta de folhas de um lado e
despida de outro. O Brasil é também rico em arbustos e trepadeiras, algumas
das quais estendem-se pelo chão enquanto que outras, enroscando-se, galgam
o topo das mais altas árvores, proporcionando uma linda vista à distância e
sombra agradável, tanto para os animais como para o homem cansado do
calor, da caça ou de qualquer outro exercício.

Laranjas

Entre outras frutas, o Brasil produz excelentes laranjas de diversas qualidades.


Os vegetais que, além da mandioca, servem para o sustento de seu povo são

421
[421] Em Marcgrave (LXX, 106), Arariba; refere-se à cor vermelha era água fervida. Em Piso
(LXX, 5) Tatajba ou Pao Amarello. Em Soares,(LXXXVL 249) Tatajiba e Varnhagen anota
(LXXXVT, p. 468, nota 144) Tatajiba ou Tatajuba (juba é amarelo). Em Marcgrave (LXX, 136),
Icacaranda dos Brasileiros. Em Cardim (IX, 60) jacarandá. Em Soares (LXXXVI, 253),
jacarandá. Batista Caetano (III, p. 565) menciona yacarandá = yacârâtâ, adj., o que tem cabeça
dura; também, talvez, o que é galho duro. Em Piso (LXX, 120) Massarandiba. Em Herckmans
(XLI, 273), Massaranduba. Em Soares (LXXXVI,219) Maçarandiba. Em Frei Vicente do
Salvador (LXXVIII, 32) Mussurunduba.
422
[422] Em Piso (LXX, 115) Timbo e tipi. Registra várias espécies Timbo-guacu; timbo de
cono; guaiana Timbo; e timbo ou cipó (LXX, 5). Soares(LXXXVI, 258) Timbó. Batista Caetano
(III, 527), tímbó = tímbór = vara;e (p. 529) tipo do qual cipó
423
[423] Em Marcgrave (LXX, 87) Caraguatá guacu; assim em Piso (LXX,111-112). Em Soares
(LXXXVI, 288) Embaiba. Varnhagen (LXXXVI, p. 464,nota 133) registra as seguintes variantes:
embauba, imbaiba, ambaiba e ambayva. De suas folhas se alimenta a preguiça. Batista
Caetano (III, 31) averbaambaíb = embaíb, nome genérico das cecrópias, dado também a
alguns [i]ficus.[/i] Em Frei Vicente do Salvador (LXXVIII, 30), Caragatá.
Página 305 de 349

arroz, milho, batatas, ananás, bananas, melão, abóbora, melão d'água, pepino,
feijão, figo, maracujá, mangaba, araticú, ape424, couve, rabanete, alface,
portulaca, cenoura, etc.

O caju

Nada é tão procurado entre os brasileiros como o caju, espécie de maçã


selvagem que lhes proporciona ao mesmo tempo alimento e bebida, pois que é
muito suculento. Essa árvore parece ter sido plantada no Brasil para conforto
de seus habitantes. Espalha seus ramos em grande âmbito, mas não cresce
tanto quanto as outras árvores. Sua madeira é muito resistente e presta-se
muito para construções navais; no verão o caule segrega uma resina clara.
Suas folhas vermelhas lembram as da nossa nogueira, principalmente na
primavera, quando novas. Desprendem, porém, aroma muito mais agradável, o
qual só perdem quando destiladas. A flor tem cinco petalazinhas e desenvolve-
se em cachos de cerca de cem. Cada uma delas tem um pedúnculo com uma
protuberância no meio. Quando brotam, em setembro, são muito brancas, mas
logo depois adquirem cor rosada. São tão aromáticas a ponto de embalsamar o
ambiente em redor. A árvore produz um fruto duplo, que consiste em uma
maçã e uma castanha. A maçã tem formato oval e é muito suculenta; sua polpa
é esponjosa, cheia de caroços e de gosto picante. O caldo deixa na roupa uma
nódoa cor de ferrugem que se não pode tirar e que se reaviva cada vez que a
árvore floresce. O suco apresenta uma cor esbranquiçada logo depois de
espremida a fruta, mas, pela fermentação, muda tanto de cor como de gosto e
torna-se muito forte. A casca da maçã é finíssima, branca e pontilhada de
vermelho. A castanha que se desenvolve muito em cima da maçã tem o
formato de um rim de carneiro e é coberta por uma película muito fina, sobre a
qual se forma uma casca grossa, cinzenta, cheia de um óleo forte e quente que
pega na língua. Prepara-se a castanha torrando-a em cinza e depois
quebrando-se a casca com martelo. Come-se a polpa cujo sabor é melhor que
o da castanha comum e conserva-se perfeita durante vários anos. Os
brasileiros gostam tanto dessa fruta, que chegam a brigar por sua causa.
Acampam-se então entre as árvores e a menos que o inimigo os expulsem daí
não se afastam enquanto não consomem toda a fruta da região. Os nativos
contam a idade por essa árvore que frutifica apenas uma vez por ano; a
maturação de seus frutos dá-se em fins de dezembro ou princípios de janeiro.
Depois de fevereiro não se encontra um só fruto nos cajueiros de Pernambuco.
Mais ou menos pela época em que o sol volta do Trópico de Capricórnio, em
geral chove no Brasil e, a esse fenômeno, os brasileiros chamam "as chuvas
do caju"425, pois, se estas forem moderadas, haverá grande abundância da
fruta. A castanha do caju é quente no segundo grau. Comida crua, com sal e

424
[424] Em Soares (LXXXVI, 218) apé é "uma árvore do tamanho e feição das oliveiras".
425
[425] Marcgrave (LXX, 95) registrou esse fato, ao escrever que a árvore começa a florescer
no fim do mês de agosto, atingindo o máximo em setembro. Chove muito nos meses de agosto
e setembro, quando caem as flores, e os frutos começam a nascer em novembro e dezembro,
atingindo em dezembro e janeiro o máximo de frutos maduros. Depois começam as chuvas e o
aspecto das árvores é triste. Marcgrave registra também o fato de os brasileiros contarem os
anos pelas castanhas de caju. Piso registrou, também, o mesmo fato (LXX, 58); e Morisot (LIX,
nota 9) cita a tábua astronômica de Marcgrave (LXX, 265-267), onde ele afirma que em 1640,
41 e 42 a máxima de chuva foi atingida nos meses de fevereiro, março, abril, maio, junho, julho
e agosto.
Página 306 de 349

vinho, lembra a castanha, pelo sabor, mas, quando torrada e conservada em


açúcar é verdadeiramente saborosa. O óleo retirado da casca é ótimo remédio
contra certos vermes; é quente no terceiro e quarto graus, sendo
freqüentemente aplicado no câncer e em outras úlceras malignas. A resina,
pulverizada e ministrada em veículo conveniente, cura as obstruções do útero.
O caldo da maçã dá um bom refresco.

Palmeiras

Encontram-se no Brasil diversas espécies de palmeiras, algumas das quais


selvagens e outras cultivadas pelo homem. Dentre as primeiras, a que os
nativos chamam Pindoba é a mais conhecida. Cresce muito e, no interior do
país, há verdadeiras florestas dessa palmeira. Nos lugares mais remotos e
ermos existe outra a que os brasileiros chamam Caranaíba e Anachekariri e os
portugueses denominam Tamara426- palavra árabe - ou dedo que é o que a
fruta lembra. A árvore cresce tanto quanto a desta fruta; sua madeira é
vermelha, muito sólida, mas, de pouca utilidade. A casca é cinzenta e, desde o
chão até certa altura, caracteriza-se por grande quantidade de escamas que
são grandes, rentes ao solo e vão diminuindo até desaparecerem mais ou
menos pelo meio da árvore. Tais escamas, nada mais sendo que restos dos
ramos que vão caindo, espalham-se em torno do tronco como na datileira
africana, muito mais finas, porém. Os ramos têm cerca de 2 ou 3 pés de
comprimento, são achatados dos lados e cobertos de pequenos espinhos;
desenvolvem-se até grande espessura. Na extremidade de cada ramo abre-se
uma única folha muito grande e verde, pregueada como um leque e que se
divide mais ou menos pelo meio em diversas outras folhas, como a datileira;
cada um destas últimas tem cerca de 2 pés de comprimento. Entre os ramos
em que se desenvolvem as folhas, crescem outros com quatro e cinco pés de
comprimento, dos quais saem brotos brancos, onde se abrem flores de três
pétalas amarelo-claro. Estas produzem frutos do tamanho de uma azeitona,
verde, ardidos e que não são comestíveis. Quando esses frutos amadurecem,
em fevereiro, ficam pretos. Os brasileiros chamam Tirade 427a essa fruta e
comem-na crua; os nossos, porém, jamais se afeiçoaram a ela. Os nativos
cobrem suas cabanas com as folhas dessa árvore e com elas fabricam cestos.
A palmeira denominada Pindoba tem, em lugar da casca, uma substância
lenhosa que produz uma secreção esponjosa e sulfurosa com a qual os nativos
preparam uma forte bebida. De resto, esta árvore é de pouca utilidade, sendo
principalmente usada para fins decorativos, por causa de sua altura e de seus
ramos dispersos que, entretanto, fornecem ao nativo folhas com que cobrir
suas cabanas e fabricar cestos. Os portugueses plantam-na nos logradouros
públicos e portos, bem como em volta das igrejas. As folhas dessa árvore não
ficam pendentes como as do coqueiro; antes conservam-se verticais. Junto a
essas folhas brotam pedúnculos dos quais pendem cachos de flores que,
426
[426] Em Marcgrave (LXX, 133), Pindoba; em Piso (LXX, 61, 62). Pindova.Em Piso (LXX,
62), Caranaibam & Anachecariri dos Bárbaros e Tamar dos Lusitanos. Em Marcgrave (LXX,
130), Caranaiba e Ananachicariri dos Brasileiros.
427
[427] Compare-se com o seguinte trecho de Piso (LXX, 62): Post flosculos illos proveniunt
fructus, figura & magnitudine olivae, primum virides, amari, non edules; mox maturi
nigresoentes evadunt dulces mense Febmario, & licet nostratibus nullius usus, gentilibus tamen
tam crudi quam praeparati in deliciis habiti, Tirade nuncupantur. Tarde crescit haec Arbor.
Página 307 de 349

finalmente, produzem frutos do formato e do tamanho de um ovo de galinha;


são pontudos numa das extremidades e achatados do lado do cacho, como o
abacaxi. O exterior apresenta uma cor verde amarelada, tocada a castanho e é
formado por uma substância fibrosa como a do coco, conquanto não tão
espessa e pouco mais grossa que a casca de um ovo. Sob essa casca existe
uma polpa amarela, insípida, que, entretanto, é usada pelos negros, com
farinha. Dentro da polpa encontra-se um caroço resistente, ovalado, que não
difere muito do coco, tem idêntica espessura, mas não tem poros, e cuja polpa
é tão clara como a da noz e igualmente branca, mas não tão doce como a do
coco. Esse fruto é usado tanto pelos naturais como pelos estrangeiros e dá
durante o ano todo. Os brasileiros chamam-no Inajámirim, isto é, coquinho. A
polpa desta castanha fornece também um óleo branco, refrigerante que tem a
mesma aplicação que o nosso óleo de rosas, e, enquanto fresco, pode ser
utilizado para saladas, mas, depois de velho, só serve para iluminação. A
casca dá um óleo de natureza idêntica, mas não tão refrigerante. Do topo da
árvore corre uma resina fina e aromática, que pode ser usada como goma-
arábica. Daí tiram também uma espécie de medula que tem o paladar da nossa
noz, e usada com pão e sal constitui poderoso alimento.

Coqueiros

Há, também, no Brasil coqueiros a que os naturais chamam Inajárguacuiba; à


fruta chamam Inajáguaçu428.São, porém, muito diferentes da Pindoba que
acabamos de descrever. Seu tronco raramente é reto; apresenta-se em geral
tortuoso e às vezes de 7 a 14 pés de espessura e 50 de altura. Não têm
galhos; apenas no topo há cerca de 15 ou 20 folhas, cada uma com 15 pés de
comprimento. Existe também grande quantidade de tamareiras, tanto machos
como fêmeas.

A prodigiosa quantidade de formigas que infesta o Brasil constitui séria ameaça


para toda a espécie de produtos do solo. Dá-se combate a esse inseto pela
água e pelo fogo. Observa-se também que alguns animais e frutos na Europa
considerados venenosos, são comestíveis no Brasil. Por outro lado, alguns dos
animais e frutos que são venenosos no Brasil, na Europa não o são. Há, por
exemplo, certas variedades de rãs e peixes tidas como extremamente
venenosas; enquanto que algumas qualidades de formigas, cobras, vermes e
ratos silvestres são consumidas pelos naturais sem nenhum inconveniente.

Alimentação dos brasileiros

O alimento mais comum entre os brasileiros é a farinha de mandioca a que


chamam Vi429 e da qual já nos ocupamos largamente. Além disso alimentam-se
de diversos animais e aves selvagens, caranguejos, frutas e ervas. A carne,

428
[428] Em Piso (LXX, 63), o fruto da Pindova é a Inaia miri, que são cocos pequenos;
Inajaguacuiba as árvores (coqueiro) e Inajaguacu (ao fruto); em Marcgrave (LXX, 138), [i]Inaia
Guacuiba[/i] (árvores) e [i]Inajaguacu[/i] (o fruto); e acrescenta que no Congo chamam-na de
[i]Ejaquiambutu[/i] e aos frutos [i]Quitiinga, quiambtu;[/i] os lusitanos chamam-no de coquiero
(sic). Marcgrave não registra Inaiamiri; Soares (LXXXVI, 221) Anajámirim.
429
Marcgrave (LXX, 273) escreveu: Universale Brasiliensium alimentum est Vi Lusitanis
Farinha de Mandioca dicta.
Página 308 de 349

quer seja cozida ou assada, consomem-na quase crua. Cozinham em panelas


de barro, por eles mesmo fabricadas, às quais dão o nome de Kamu430. Para
assar carne, procedem da seguinte maneira: cavam um buraco no chão,
forram-no com folhas sobre as quais colocam a carne que vão preparar;
cobrem-na com folhas da mesma espécie e depositam sobre uma camada de
terra ou areia. Sobre essa arrumação acendem uma fogueira, que deixam
arder até que presumam estar a carne suficientemente assada. Se acertam o
ponto, a carne fica excelente, melhor que a preparada por qualquer outro
processo. A esse sistema de preparar chamam Biaribi. O peixe, quer seja
assado ou cozido, comem-no com Inquitaia 431, uma mistura de sal e pimenta.
Cozem-no, porém, em sal. Os peixes pequenos são enrolados em folhas e
postos a assar na cinza. Apanham a farinha de mandioca com três dedos da
mão direita e atiram-na para dentro da boca. O mesmo fazem com feijão e
outros alimentos semelhantes. Alimentam-se freqüentemente, tanto de dia
como à noite, pois não há horário para as refeições. Raramente usam colheres;
comem com a mão ou servem-se de conchas ou outro utensílio qualquer. A
carne de certos animais selvagens, como por exemplo a dos vários porcos do
mato, é muito apreciada pelos naturais. Esse animal tem um calombo nas
costas, qual o do camelo, e cuja vianda é verdadeiramente saborosa.

A melhor bebida e a mais generalizada entre os nativos é a água de fonte ou


de rio que, pela sua frescura, constitui valioso refrigério para quem está
cansado. Isto pode dizer-se especialmente com relação à água de fonte que,
mesmo ingerida em grande quantidade, jamais produz eólicas intestinais ou
qualquer outra perturbação. Ao contrário, abre o apetite e é facilmente expelida
pela transpiração.

As águas dos rios Paray Paratyb 432i são consideradas excelentes remédios
contra cálculos e gota. Isso explica porque muitas pessoas que só bebem
dessas águas, passam às vezes dos cem anos sem qualquer moléstia ou
distúrbio. As pessoas de idade distinguem tão bem o paladar dessas águas
como os europeus o de seus vinhos e consideram inábeis os que usam
qualquer água indiscriminadamente. Nascendo a maioria das fontes, de que se
servem os naturais, nas elevadas montanhas orientais, não sofrem elas nem a
influência do degelo nem de substâncias metálicas, e, constantemente
purificadas pelos raios solares, suas águas são muito límpidas e agradáveis.
Entretanto, é preciso que se diga que durante os meses de inverno, algumas
águas não são tão leves e frescas como durante o verão, devido às chuvas. Os
negros fazem, às vezes, uma mistura detestável de açúcar preto e água, sem a
mínima fermentação, à qual dão o nome de Garapa433.Bebida barata, os
negros usam-na em suas festas que chegam a durar 24 horas entre danças,
cantos e beberagem. Só brigam, nessas ocasiões, por ciúmes. Às vezes
430
arcgrave (LXX, 273) registra Camu, como as panelas redondas de terra, onde se cozinha a
carne
431
Em Marcgrave (LXX, 273), Biaribi (carne assada). Em Marcgrave (LXX, 273), Inquitaya.
Comiam peixe assado e caranguejos cozidos com Inquitaya cum simplice sale, vel Inquitaya,
Lusitanis Sal-pimenta.
432
Em Piso (LXX, 11) Paray paratybi. Afirma Piso as propriedades da água no combate aos
cálculos e doenças das articulações
433
Em Marcgrave (LXX, 84); Piso (LXX, 51) diz em que consiste e à p. 12 refere-se sobre o uso
entre os africanos e a mistura com folhas de caju.
Página 309 de 349

adicionam à garapa, folhas de cajueiro que, dada a sua natureza quente, torna
a bebida mais forte. Os portugueses e holandeses preparam um refresco com
água, açúcar e limão. Às vezes põem de infusão certas ervas, outras vezes
usam apenas água com limão. Além disso, os naturais preparam bebidas com
diversas raízes e frutas, que servem em suas ruidosas festas. Dentre as frutas
usadas para esse fim contam-se principalmente Pacovas, Ananás, Mangaba,
Jenipapo, Caraguatá, etc.,434 pois, conquanto a videira produza, no Brasil, três
safras ao ano, a quantidade não é suficiente para o fabrico do vinho.

Do fruto do caju, os naturais preparam uma bebida a que dão o nome de


Cauim. Para fabricá-la trituram a fruta num pilão de madeira e espremem-na
com as mãos para tirar-lhe o suco, que é coado depois de decantado. O caldo,
a princípio, parece leite, mas, dentro de poucos dias, descora. Depois de algum
tempo azeda e torna-se um bom vinagre.

O vinho ou licor a que os brasileiros denominam Aipy é fabricado por dois


processos diferentes. O primeiro consiste em cortar em fatias a raiz do Aipim
macaxeira(uma variedade de mandioca). Essas fatias são mastigadas pelas
velhas até ficarem reduzidas a uma papa a que chamam Karaçu. Nesse
estado, o material é colocado numa vasilha e fervido com certa quantidade de
água, sendo continuamente agitado até atingir o ponto de ser espremido. Feito
isto temos o que denominam Kavikaraku e que se serve morno. O segundo
sistema de fabricar essa bebida, consiste em tomar a raiz da mandioca
descascada e cortada em fatias, que a seguir é triturada e fervida em água,
como ficou dito acima, produzindo uma bebida esbranquiçada que lembra o
soro de leite. Também esta é servida quente e tem paladar bastante agradável.
Chamam-na Kacimacaxera, conquanto ambas as bebidas sejam abrangidas
pela designação comum de Aipy. A bebida denominada Pakoby é preparada
com o fruto da árvore Pakobete ou Pakobuçú. O que os portugueses chamam
Vinho de Milho, é uma bebida feita de cevada ou trigo turco, que os índios
chamam Maiz. O licor Nanâi também deriva seu nome da excelente fruta
denominada Nana ou Ananás e constitui a bebida mais forte dos nativos. Há
outra espécie de bebida chamada pelos portugueses Vinho de Batatas porque
é preparado com batatas. Os nativos chamam-no Jetici. As bebidas chamadas
Beeutingui e Tipiaci são ambas de farinha de mandioca, ou seja do Beju e da
Tepioja.

434
Em Marcgrave (LXX, 137), Pacoeira dos Lusitanos; não é natural do Brasil; no Congo
chamam-na Quibuaaquitiba e ao fruto Quitiba ;Pacobete dos Brasileiros e Pacoba dos
Lusitanos. Em Cardim (XIX, 63), Facoba. Em Léry (LII, 159), Pacoére e Pacó. Em Soares
(LXXXVI, 207), Pacobeiras e Pacobas.
Segundo Plínio Ayrosa (LII, p. 159, nota 388), opá + oba = tudo folha.
Ananás. Em Piso (LXX, 87), Ananás, ou Nana. Em Cardim (XIX, 62), Nana; em Soares
(LXXXVI, 225), Ananás. Segundo Rodolfo Garcia (XIX, 113), na - nã, cheira cheira.
Em Marcgrave (LXX, 121), Mangabiba ou Mangaiba, fruto Mangaba. Em Piso (LXX, 76),
Mangaiba. Soares (LXXXVI, 210). Cardim (XIX, 51). Segundo Teodoro Sampaio (LXXXI, 138),
manguaba, cousa de comer.
Em Piso (LXX, 67) Ianipaba. Em Marcgrave (LXX, 92), Ianipaba dos Brasileiros e Ienipapo dos
Lusitanos. Em Cardim (XIX, 58), Genipapo. Soares (LXXXVI, 214). Frei Vicente do Salvador
(LXXVIII, 32), janipapos. Segundo Batista Caetano yandipáb, s, genipapo (III, p. 569).
Sobre Caraguatá, cf. nota 423. Sobre Cauim vide Hoehne XLII, p. 145 e Léry LII, p. 118 e p.
105 nota 187 de Plínio Ayrosa.
Página 310 de 349

Os brasileiros são também grandes apreciadores do conhaque francês ou do


Reno, que chamam Kacitata, bebem-no com grande avidez quando
conseguem obtê-lo. Apreciam também o tabaco, cuja planta chamam Petima, e
Petimoaba 435 às folhas. Estas, depois de secas ao vento, são expostas ao
calor do fogo para ficarem melhor de cortar. Os naturais fumam em cachimbos
feitos de casca das castanhas chamadas Pindoba ou Urwkuruiba ou Joçara, ou
Aque,436 etc. Para isso fazem orifício na extremidade da castanha, retiram a
polpa, e, depois de polir a casca, adaptam ao furo de um canudo de madeira
ou pedaço de caniço. Os tapuias usam cachimbos enormes, feitos de pedra, de
madeira ou de barro, e sua cavidade é tão grande a ponto de conter u'a
mancheia de tabaco.

Às vezes os brasileiros fazem uso dos nossos cachimbos europeus a que,


chamam Amrwpetuntuaba; os portugueses chamam Katunbaba Quebrada a
esses cachimbos, e os holandeses Katgebouw.

Quando os tapuias (principalmente os que moram nas aldeias e descendem


dos tapuias chamados Carirís) preparam seus licores Akavi e Aipii fazem-no
simultaneamente. Depois combinam uma reunião geral. Nesse dia reúnem-se
pela manhã, na primeira cabana da taba, bebem quase todo o licor e divertem-
se dançando. Feito isto passam para a cabana seguinte e assim
sucessivamente até que não haja mais o que beber ou eles não possam ingerir
mais nada. Quando estão fartos de bebida, vomitam e põem-se a beber
novamente, de maneira que aquele que consegue lançar e beber mais é
considerado o campeão.437

NO LITORAL BRASILEIRO

Salinas

Na costa Noroeste do Brasil existem várias salinas. A que fica perto da casa
denominada "Deserto" está a cerca de 3 ou 4 milhas de distância do Rio
Aguarama, do qual um braço se estende para Leste e deságua nesta salina,

435
Pety = petim, tabaco (III, p. 372). Cf. Plínio Ayrosa (LII, p. 163, nota 400)
436
] Urucuri é nome dado a palmeiras (III, p. 559) e iba, árvore (III, p. 184)
437
Êste é todo plagiado de Marcgrave (LXX, 274). Parece-nos tratar-se de tradução para o
holandês do texto latino de Marcgrave. É necessário registrar pequenas diferenças de grafia:
assim, Nieuhof escreve sempre com k quando Marcgrave usa c ; com j (letra que não existe no
tupi), o i de Marcgrave, com u a inicial V; y final em vez de i. Além disso, notam-se as seguintes
diferenças: Nanaî (Marcg.), Nanâi (Nieuh.); Tipiacî (Marc), Tipiaci (Nieuh.); Amrupetimbuaba
(Marc), Amrupetunbuaba (Nieuh.); Acauì (Marc), Akavi (Nieuh.);Aipiî(Marc), Aipii (Nieuh.).
Soares (LXXXVI, 206), Cardim (XIX, 51) e Staden (LXXXIX, 145) referem-se à bebida, mas não
a denominam. Em Léry (LII, 118), Cauim. Soares (LXXXVI, 376) escreve que os Tupinambás
usavam-na em suas festas. Segundo Batista Caetano (III, 72) caú = v. beber vinho; e escreve:
"como se tem u de comer e uí farinha, é possível também caú, beber vinho e cauí, vinho.
Em Piso (LXX, 52), Macaxera é a nona espécie de Mandioca. Segundo Marcgrave (LXX, 66),
aipi macaxeira é uma das espécies de aipi, que por sua vez é espécie de Mandioca.
Caracú em Batista Caetano (III, 68) é vinho de raízes de batatas; cavicaracú deve ser formado
de cui (B. Caetano, III, 72), beber vinho caracu (B. Caetano, 68), vinho de batatas. Soares
(LXXXVI, 199) refere-se ao vinho de milho. Cardim XIX, 63) menciona o vinho de naná, e
também Soares (LXXXVI, 226). O nome indígena do milho é avati ou abati e não [i]maiz[/i]
como escreve Nieuhof. Cf. LII p. 115, nota de P. Ayrosa e III, p. 16.
Página 311 de 349

nas altas marés, tão comuns em ocasião de lua nova. Esta salina fica a cerca
de 500 ou 550 passos438 da orla marítima e não recebe água de qualquer outra
fonte senão do Rio Aguarama. Não existe, nas proximidades, qualquer baía ou
porto; apenas uma região onde, por cerca de meia légua, o fundo do mar é
arenoso e chato e onde se pode ancorar a três braças de profundidade. O
terreal, que sopra constantemente nessa região, cessa geralmente à noite, de
maneira que os navios aproveitam a calmaria para o embarque de sal. Tais
salinas podem produzir uma quantidade certa de sal por mês, desde que se
tenha o cuidado de fechar as comportas logo que estejam cheias, pois, caso
contrário, a maré alta que se seguir poderá inutilizar quanto se tenha
conseguido anteriormente. A leste destas salinas acham-se as famosas rochas
conhecidas pelo nome de Baixos, que daí podem ser vistas durante a vazante.
Essas pedras estendem-se por cerca de três milhas, mar a dentro, mas só
começam a cerca de uma milha da praia, deixando, assim, livre uma passagem
onde a profundidade é de dez pés na maré baixa. Mesmo nas vazantes
extremamente pronunciadas, essa passagem dá cerca de 8 pés de calado,
mas, quando sopra o vento Oeste-Sudeste, o canal atinge sua profundidade
máxima. A cerca de cinco ou seis milhas ao poente da casa denominada
"Deserto", acha-se a grande salina Karwaratama [Canguaretama], que recebe
água do mar e, retendo-a por meio de comportas, produz ótimo sal em três
semanas. Mais cinco léguas para o ocidente passa o Rio Maritouva, o segundo
em importância, nessa região ocidental; mesmo assim, porém, não dispõe de
mais que 12 pés de água, na cheia. Em sua extremidade oriental, a cerca de
meia légua do desaguadouro, existe ótima salina. Ao que se diz, aí trabalham
10 ou 12 brancos, 10 ou 12 negros e cerca de 20 ou 30 brasileiros.439 Sua
produção é de 2.000 toneladas de sal por ano, podendo ser transportada,
durante o verão, para todas as regiões do Brasil Holandês, em pequenas
embarcações. A cerca de meio caminho entre Rio Grande e Ceará, existe,
ainda, diversas salinas junto ao Rio Wapanien.

Comércio brasileiro

Os principais artigos brasileiros de comércio são açúcar, pau-brasil e outras


madeiras, tabaco, couros, conservas, gengibre e algodão nativo. Antes de
minha partida plantou-se também algum índigo, mas as mercadorias principais
continuam sendo o açúcar e o pau-brasil. Desde que a Holanda começou a
importar tabaco das ilhas, descurou-se de seu plantio no Brasil, pois, sendo
excessivamente elevados os salários dos operários rurais, muito mais lucrativa
era a produção de açúcar que, conforme as estatísticas, nos bons anos
chegava a safra a 20.000 e 25.000 cestos, só nos engenhos do Brasil
Holandês.

População brasileira, homens livres

A população do Brasil pode ser atualmente dividida em indivíduos livres e


escravos. Entretanto, mesmo essas classes são compostas por indivíduos de

438
O tradutor inglês escreveu 550 (cf. p. 213, 1ª coluna, da ed. hol. e p.145, 2a coluna da trad.
inglesa).
439
O tradutor inglês escreveu 10 a 12 negros, 10 cristãos e cerca de 30 brasileiros, (cf. p. 213,
2a coluna da ed. holandesa e p. 146, 1a coluna da trad. inglesa).
Página 312 de 349

diversas nações, tanto nativas como alienígenas. Os homens livres do Brasil


eram os holandeses, os portugueses e os brasileiros, sendo estes últimos
nativos do país. Os portugueses, porém, não só excediam os demais, na
proporção de pelo menos dez por um, durante minha permanência no Brasil,
mas ainda detinham a propriedade de todos os engenhos de todas as terras
com exceção das poucas em mãos dos holandeses que se dedicaram ao
plantio da cana. Estas mesmas, porém, foram depredadas durante a guerra
civil e seus proprietários obrigados a abandoná-las. Além dos homens livres
que se ocupavam do amanho da terra, havia muitos comerciantes,
intermediários e artífices. Os comerciantes, em geral, vendiam seus artigos
com grandes lucros, e, sem dúvida, teriam feito fortuna, se não tivessem
vendido a crédito aos portugueses, dispostos que estavam a não pagar suas
dívidas, como o provaram os acontecimentos. Os artífices conseguiam fazer
três, quatro, cinco e até seis florins por dia, e, portanto, diversos voltaram ricos
para a Metrópole.

Os estalajadeiros e armadores fruíam também grandes lucros no Brasil e,


portanto, acumularam grandes somas de dinheiro. Os funcionários a serviço da
Companhia, civis ou militares eram também pontualmente pagos e isso fez que
muitos dos que para ela trabalharam, no Brasil, antes da guerra, voltassem de
novo ao seu serviço, já que se lhes davam cargos condizentes com suas
qualidades e antigas posições.

Os judeus

Entre os homens livres do Brasil, que não trabalhavam para a Companhia, os


judeus se sobressaíam em número, vindos quase todos eles da Holanda.
Mantinham intenso comércio, e, por isso, conseguiram adquirir engenhos de
açúcar e construir suntuosas residências no Recife. Eram todos comerciantes,
o que teria sido um bom negócio para o Brasil, se tivessem se conduzido
dentro das regras costumeiras do comércio e não tivessem chegado a tais
excentricidades e excessos.440

Escravos

Os escravos eram negros ou nativos. Os indígenas cativos ou eram comprados


no Maranhão, dentre prisioneiros de guerra, ou adquiridos aos tapuias que
também os escravizavam ou executavam, segundo seus costumes guerreiros.
Logo após a entrada dos holandeses no Brasil, ficou decidido que não se
escravizassem os indígenas (salvo quando comprados aos tapuias ou trazidos
do Maranhão); por isso os naturais do país se estabeleceram em vilas a fim de
desfrutar a liberdade que lhes era concedida sob certas reservas. Tiveram,
então, licença para auxiliar os portugueses no trabalho dos engenhos e dos
campos, mediante salários estipulados. Foi assim que diversas aldeias ou vilas,

440
O tradutor inglês não foi fiel (cf. p. 215, 2a coluna da ed. hol. e p. 146, 2a coluna da trad.
inglesa).
Sobre os excessos judaicos no comércio, cf. Wätjen (XCVI, 365-376), especialmente p. 371,
onde se documentam os absurdos das especulações dos mercadores judaicos. Vide também o
capítulo "A queda do domínio holandês", in Civilização Holandesa no Brasil (LXXVII, 274, 307)
e, finalmente, Bloom (XI, especialmente pp. 128-144).
Página 313 de 349

tanto na Paraíba como no Rio Grande, encheram-se de brasileiros, que,


durante a vigência de nosso governo, gozaram das doçuras de uma completa
liberdade. Grande quantidade de negros de diversas nações trabalhava, tanto
no Recife como no interior, no amanho da terra e nos engenhos dos
portugueses, que não os podiam dispensar, não só devido ao calor extremo,
mas, também, pela incrível resistência dos africanos. Assim é que, por várias
vezes, o número de negros a serviço dos engenhos, entre o Rio Grande e o
Rio São Francisco, atingiu a perto de 40.000. A maioria deles provém dos
reinos do Congo, Angola e Guiné. A beleza dessa gente resume-se em sua
pele negra, lustrosa, nariz chato, lábios grossos e cabelos curtos e
encarapinhados. Os mais fortes e laboriosos eram, no Brasil, vendidos, nas
ocasiões de alta de preço, por 70, 80 ou 100 e mais "peças de oitava" e até
mesmo 1.400 ou 1.500 florins, em casos excepcionais. Todavia, quando o
comércio começou a decair, os escravos eram vendidos a 40 "peças de
oitava". Dificilmente se encontrava holandês de algum recurso que não
possuísse diversos escravos. Os cativos eram brutal e miseravelmente tratados
pelos portugueses, conquanto sejamos forçados a admitir a necessidade de
mantê-los em rigorosa disciplina, pois são vadios, supersticiosos e
macumbeiros ao extremo. Era comum pretenderem eles adivinhar quando
chegariam os navios que haviam partido da Holanda para o Brasil, embora
estivessem ao outro lado do Equador. Queriam também nos ensinar como
reaver mercadorias roubadas. Lembro-me de certa vez em que me achava em
casa de um amigo, quando vi entrar pela cozinha um negro que vinha tratar de
um escravo doente que, segundo nos afirmou, havia sido vítima de feitiçaria. O
curandeiro fez o doente levantar-se da cadeira, e, tomando um tição do fogo,
mandou que o escravo o lambesse três vezes, justamente no ponto em que as
brasas mais brilhavam. Depois apagou o tição numa vasilha de água e
esfregou nela o carvão até que ficasse negra como tinta. A seguir mandou que
o doente ingerisse a água dum trago. Sorvida a beberagem o escravo sentiu
imediatamente uma ligeira dor no ventre. Feito isso, o curandeiro friccionou
ambos os lados do paciente e segurando com a mão um pouco de carne e
gordura acima do quadril, aí fez, com uma faca que trazia no bolso, uma
incisão de duas polegadas de profundidade, de onde extraiu uma maçaroca de
cabelo e trapos. Lavou a ferida com um pouco da água preta que ainda
restava, e logo depois a ferida estava fechada e o doente curado.

Os negros são muito hábeis em natação e mergulho. São capazes de trazer à


tona uma simples moeda atirada ao fundo do mar. São também ótimos
pescadores, e, com isso, fazem bom dinheiro. Amarram três pedaços de pau
um ao lado do outro e, servindo-se de apenas um remo, avançam longe, no
mar, apanhando grande quantidade de peixe, com anzol. Aconteceu, durante a
minha estada no Brasil, que certo negro, habilíssimo em pescaria, foi vendido
duas ou três vezes em curto espaço de tempo; isso aborreceu-o tanto que, na
primeira vez que saiu a pescar, atou uma pedra aos pés e afogou-se. Outro
negro, tomado de ódio pelo senhor, degolou-o, arrancou-lhe a língua e entupiu-
lhe a boca. Confessado o crime, o negro foi triturado vivo na roda, suplício que
sofreu com incrível firmeza. Ainda no meu tempo, uma negra deu à luz uma
criança cuja pele e cabelos não eram negros, mas vermelhos.
Página 314 de 349

Dança de negros
Página 315 de 349

Vi, também, um garoto, filho de pais negros, que tinha pele branca, cabelos e
sobrancelhas claros, mas, encaracolados, e nariz chato como o dos pretos.
Tive ocasião de ver negros velhos com longas barbas brancas e cabelos
grisalhos, apresentando aspecto nobre.

Indígenas

Os nativos do Brasil agrupam-se em diversas nações, que se distinguem pelos


seus nomes próprios: Tubinambás, Tobajaras, Petiguarás e Tapuias e
Tapuyers ou Tapoeyers 441. As três primeiras nações usam a mesma língua
que difere apenas nos dialetos. Todavia, a última se subdivide em diversas
tribos que se distanciam tanto nos costumes quanto na língua. Os brasileiros
que viviam entre nós e os portugueses eram de estatura mediana, fortes, bem
conformados e espadaúdos. Tinham olhos negros, boca rasgada, cabelos
pretos, encaracolados e nariz chato. Esse achatamento não lhes é natural,
mas, considerando-o traço de beleza, os pais praticam-no nas criancinhas,
quando ainda muito tenras. Os selvagens pintam o corpo e o rosto de diversas
cores, e, em geral, são imberbes, conquanto alguns tenham barba preta.

As mulheres têm igualmente estatura mediana, membros bem torneados e não


são feias. Também elas possuem cabelos pretos e não nascem escuras; o sol
é que lhes dá, aos poucos, uma cor amarelo-bronzeada. Os aborígines chegam
logo à maturidade e atingem a idades avançadas, em perfeita saúde. Também
raramente ficam grisalhos. Vêem-se, igualmente, europeus aí residentes
atingirem a 100 e 120 anos. Atribui-se esse fato à temperatura, à água, ao
clima que, de fato, é tão bom, a ponto de espanhóis, que não passavam bem
na Espanha ou nas índias Orientais, virem para o Brasil a fim de desfrutar o ar
excelente e a água magnífica. É verdade que a maior parte das crianças filhas
de estrangeiros sofrem de moléstias prolongadas, a tal ponto que, dificilmente,
uma em três consegue sobreviver. Isso, porém, não se atribui ao clima e sim à
má alimentação. Poucos são os aleijados, entre os aborígines; são
desempenados e ágeis, o que é realmente de admirar, porque não costumam
enfaixar as criancinhas - a não ser os pezinhos - por considerar pouco
saudável. Antes de os holandeses se firmarem no Brasil os portugueses
haviam escravizado os indígenas, pensando ser essa a melhor maneira de os
exterminar, e, de fato, conseguiram realizar o seu intento com tal eficiência
que, enquanto que há cerca de 80 ou 90442[ anos, só na Capitania do Rio
Grande, seria possível mobilizar 100.000 guerreiros, em 1645 e 1646,
dificilmente se conseguiriam 300. Isso gerou, entre os naturais, um ódio mortal
aos portugueses. É preciso que se diga, também, que a última guerra e as
moléstias epidêmicas dizimaram grande número de selvagem. Os
sobreviventes viviam em aldeias ou vilas especialmente designadas. Aí podiam
eles fazer suas plantações e trabalhar para os portugueses mediante salário

441
Compare-se com Marcgrave (LXX, 268), donde Nieuhof tirou essa classificação. Tabbajarás
em Ayres do Cazal (XXVI, 198). Em Cardim, (XIX, 171) Potyguaras e Pitiguaras. Afora os
cronistas portugueses, do lado holandês o trabalho de Marcgrave é o mais importante. (V, cap.
IV, De Incolis Brasiliae, p. 268-279, afora o texto de Rabbi e Herckmans).
442
O tradutor inglês escreveu 100 anos (cf. p. 217, 1a coluna da ed. hol. e p. 148, 1a coluna da
trad. inglesa).
Página 316 de 349

mensal que lhes facultava a aquisição de roupas e outras cousas de que


necessitavam.

As aldeias dos brasileiros estavam em Goiana, Paraíba e Rio Grande, (embora


uma estivesse perto de Igarassú), onde eles tinham escolhido lugares
apropriados, perto dos rios443. Suas cabanas são construídas apenas de
estacas, cobertas de folhas de palmeiras. Não suportam o jugo da escravidão,
nem qualquer fadiga por menor que seja. Vivem muito quietos, a menos que
bebam; nessas ocasiões cantam e dançam dia e noite. A bebedeira avassala
os indivíduos de ambos os sexos e dá lugar a brigas, bem como a vícios
abomináveis. Também apreciam muito a dança, que chamam Guau; têm
diversas maneiras de bailar, uma das quais denominam Vrukapi. Em geral
cantam enquanto dançam. As crianças divertem-se com várias modalidades de
jogos, por exemplo: o Kurupirara, o Guabipaie e o Guaibiguaibibuku444. Às
vezes os índios dormem dia e noite consecutivamente e só levantam quando
sentem fome. Perto de suas redes mantém continuamente acesa uma fogueira.
Durante o dia é nela que preparam os alimentos e, à noite, serve para aquecer
o ambiente, mais frio aí que na maior parte do território europeu, pois o dia e a
noite têm duração quase igual durante o ano todo.

Vestes

Os silvícolas do interior andam completamente nus, tanto homens como


mulheres. Todavia, os do litoral, que mantêm contacto com os holandeses e
portugueses, usam uma camisa de algodão ou linho. Durante o tempo em que
estive no Brasil, alguns dos principais aborígines procuravam imitar os
europeus na maneira de vestir. A mulher segue constantemente o marido, onde
quer que este vá, mesmo na guerra. Ele nada leva a não ser armas; entretanto,
a pobre companheira vai carregada qual animal de carga. Além de um grande
cesto que traz às costas (ao qual chamam Patigua), leva outro à cabeça, com
todos seus utensílios domésticos, ou então uma cesta enorme com farinha.
Carrega, ainda, várias outras vasilhas menores, pendentes de ambos os lados,
nas quais leva água para beber. A criança é transportada num pedaço de
algodão atado em torno do busto e pendente do ombro direito. O bebê fica ali
acomodado, com as perninhas abertas, uma esticada diante do ventre materno
e a outra sobre o quadril. Como se tudo isso ainda não bastasse, a índia leva
um papagaio ou macaco empoleirado na mão e puxa um cachorro atado a um
cordel. Assim parte a família das selvas para suas viagens, sem mais provisões
que pequena reserva de farinha. Os campos fornecem-lhe alimento; as fontes e
os rios dão-lhe de beber. Também o vegetal denominado Caraguatá, lhes alivia
a sede, pois conserva sempre um pouco de água pluvial no recesso de suas
folhas: verdadeiro refrigério para os viajantes que, em regiões estéreis, são às
vezes forçados a percorrer 10 ou 12 milhas ou mais sem encontrar qualquer
espécie de água. À noite os aborígines penduram suas redes em árvores ou
estacas, acendem fogo para preparar a comida e abrigam-se da chuva com
folhas de palmeiras. Quando estão em casa, o marido geralmente sai pela

443
O tradutor inglês omitiu este trecho (cf. p. 217, 2a coluna, 3° § da ed. holandesa e p. 148, 1."
coluna da trad. inglesa).
444
Em Marcgrave (LXX, 278) está escrito Guau, Urucapi, Curupirara,Guaibipaie,
Guaibiguaibiabucu. Também neste trecho Nieuhof plagiou Marcgrave.
Página 317 de 349

manhã munido de arco e flecha para a caça, ou então vai pescar, no mar ou no
rio, enquanto a mulher se ocupa das plantações. Algumas delas seguem seus
maridos a fim de apanhar as presas. Dão caça aos animais selvagens de
diversas maneiras. Matam alguns a flechadas, apanham outros em covas feitas
a propósito e disfarçadas com ramos e folhas de árvore, dentro das quais
colocam alguma carniça para atrair o animal que pretendem apanhar. A essa
armadilha chamam Petaku. Constroem também mundéus de madeira e
empregam diversos métodos para agarrar animais selvagens, a cada um dos
quais dão nome diferente. Para caçar pássaros, usam três qualidades de
arapucas a que dão o nome de Jukana. A primeira delas - a Jukanabiprara -
segura as aves pelos pés; a segunda prende-as pelo pescoço e é conhecida
por Jukanajuprara; e, finalmente, a terceira apanha-os pelo corpo e tem o nome
de Jukanapiteraba. Matam os peixes com flechas ou pescam-nos com
ganchos, usando para isca vermes que chamam Kanduguaku, minhocas,
caranguejos ou peixinhos. Preparam o pesqueiro pondo na água folhas de
Japikaj, Timpotiana, Tinguy ou Tinguirri.

Outras vezes empregam uma fruta chamada Kururuape, ou a raiz denominada


Magwi, ou ainda a casca da árvore Anda, a fim de obrigar o peixe a nadar pela
tona, como morto; apanham-no, então, com uma espécie de peneira
denominada Vrwpema, feita de taquara ou caniços e, neste caso, chamam-na
Vruguiboandipia. No mar, pescam com anzóis de ferro e usam carne para isca.
Afoitam-se bastante no oceano, servindo-se apenas de três toras de madeira,
atadas, a que chamam Igapeba e que os portugueses chamam jangada. A
madeira de que para isso se servem, é, geralmente, a Apeiba445. Os brasileiros
não possuem grande variedade de utensílios domésticos e seu maior cuidado é
com a rede a que dão o nome de Ini. Estas são fabricadas de algodão, tecido
em malhas, e têm, em geral, de 6 a 7 pés de comprimento e quatro de largura.

Utensílios domésticos

Quando vão dormir, amarram a rede a duas traves de sua tenda, ou em duas
árvores, ao ar livre, a certa altura do chão, para evitar os animais daninhos e as
exalações pestilíferas da terra. Os tapuias denominados Carirís fazem redes
bem grandes, de doze e quatorze pés de comprimento, capazes de conter
quatro pessoas. As portuguesas também fabricam lindas redes decoradas.

Em lugar de pratos e copos, os aborígines usam Calabaças (cabaças) cortadas


ao meio e pintadas por fora com uma tinta vermelha a que dão o nome de
Uruku, e, por dentro, com tinta preta. Usam, também, calabaças, em lugar de
latas, copos e canecas, a que dão os nomes de Kuite, Jaroba e Kribuka. As

445
Este trecho de Nieuhof desde: "A mulher segue constantemente o marido." até "...Apeiba"
parece-nos ser uma tradução do texto latino de Marcgrave (LXX, 272-273). Como acentuamos
na nota 437, há pequenas diferenças de grafia.
Marcgrave escreve Timbopotiana e Nieuhof grafou Timpotiana; Apeiba (Marc) e Apiba (Nieuh.).
Em Soares (LXXXVI, p. 251) Apeyba.
O tradutor inglês omitiu o trecho "vermes que chamam Kanduguaku" (p. 149, 1ª coluna).
Jucana (XXX, 246) o laço; (XXX, 246) jucanabipiára - o laço dos pés; jucanaiurípiára - o laço do
pescoço, jucanapiteréba, o laço do meio corpo.
Anda (XXX, 205), certa árvore. Segundo Batista Caetano tem diversas significações: contr. de
anta, fruto duro, nome dado a vários frutos e cocos (III, p. 34).
Página 318 de 349

maiores dessas calabaças têm capacidade para 30 ou 35 quartilhos; a estas


dão o nome de Kuyaba; quando, porém, são cortadas ao meio, têm o nome de
Kuipeba. Os indígenas mais atrasados fabricam uma espécie de faca de pedra,
chamada Ituque; fazem-na também de taquara e chamam Taquoaquia. Os
mais desenvolvidos, porém, usam facas holandesas. Fazem cestos de folhas
de palmeira e chamam-nos Patigua; possuem também cestos feitos de taquara
ou caniço a que chamam Karamemoa. Confeccionam, ainda, grandes cestos
de ramos e juncos entretecidos; a estes chamam Panaku e são principalmente
empregados no transporte de mandioca. Em suas viagens, usam sempre o
Patigua, mas o Panaku é usado pelos negros e escravos do Recife, para
transporte de mercadorias446.

Armas

As armas dos brasileiros resumem-se no arco e flecha e tacape. Os arcos,


chamados Guirapara e Vrapara, são feitos de madeira muito dura denominada
Guirapariba ou Virapariba. A corda é de algodão torcido e tem o nome de
Guirapakuma. As flechas, Uba, são de taquara silvestre, com pontas de
madeira endurecida, dente de peixe Iperu, osso, ou, ainda, de taquara
pontiaguda. Algumas setas têm várias pontas; outras têm apenas uma 447.

Como contam a idade

Não tendo a menor noção de aritmética, os aborígines contam a idade por meio
da castanha do caju a que chamam Acaguakaya, Acajuti ou Itimabara. Essa
árvore frutifica apenas uma vez por ano, entre dezembro e janeiro e os nativos
guardam, então, uma castanha de cada colheita. Começam o cômputo da
idade ao nascer de determinada estrela - Teixu ou estrela da chuva - o que se
verifica no mês de maio. Chamam o ano pelo mesmo nome448.

446
Este trecho parece-nos ser também plagiado de Marcgrave (LXX,271 e 272). As diferenças
de grafia são, afora as citadas na nota 437, as seguintes: Itaque (M) - Ituque (N); Taquoaquice
(M.) - Taquoaquia (N); Patiguâ(M.); - Patigua (N); Kuite (N) - Cuieté (M); Kribuca (N) - Cuibuca
(M).
O trecho de Nieuhof apresenta ordem diversa da de Marcgrave.
No Dic. Brasiliano XXX, 272), Panacú - carro, cesto. Secundo Batista Caetano (III, 362) Patigua
contr. de patuá = pataná, s., cesto que as mulheres traziam às costas amarrado à cabeça com
os pertences da rede. Cuieté (III, p. 80), s., vaso real, cuia grande ou capaz, cuia boa.
Taquice (III, 484), faca de taquara cortante ou perfurante.
447
Este trecho parece-nos ser também plagiado de Marcgrave (cap. X: De Armis Brasiliensium,
& exercitiis illorum, p. 278). Marcgrave anota que os portugueses chamam aos arcos
nomeados pelos brasileiros Guirapariba & Vrapariba, Pau d'arco. Em Batista Caetano (III, p.
549), Ubá = cana de flecha, cana, caniço; (III, 205); Marcgrave escreveu Vúba (p. 278); íperú =
peixe, tubarão.
448
Este trecho parece-nos plagiado de Marcgrave (LXX, 269, cap. V). Marcgrave escreveu
Acajû; Nieuhof Akaju. Acajûacaya (M.) - Akajuacaya (N.); Acaiuti & Itemboera (M.) - Akajuti &
Itimabara (N.); Ceixu (M.) Teixu (N.); o tradutor inglês escreveu Taku (p. 150). Em Morisot (IX,
p. 276) [i]Ceixu.[/i]
Acajú - o ano (XXX, 156).
Acajucaia, a amêndoa ou a castanha do caju. .
Cejuçú - setestrelo, as Pléiadas (XXX, 220). Em Batista Caetano (III, p. 115) êichú - nome dado
à constelação das Pléiadas ou Setestrelo.
Página 319 de 349

Parto das selvagens

As mulheres são muito férteis, têm parto fácil e raramente abortam. Logo que
uma delas dá à luz, vai ao rio e lava-se, sem auxílio de ninguém. Enquanto
isso, o marido permanece deitado pelo menos por 24 horas, compenetrando-se
tanto de seu papel como se estivesse de fato doente. As mães lamentam a
morte de seus filhos chorando e gritando durante três ou quatro dias
consecutivos.

Um brasileiro
Página 320 de 349

Religião

Os nativos mais atrasados, no interior do país, pouca idéia fazem da religião ou


de um ente superior. Conservam noção remota de um grande dilúvio e
acreditam que, por essa ocasião, toda a humanidade tenha perecido, a
exceção de um homem e sua irmã que, estando grávida, aos poucos povoou
de novo a Terra. Os indígenas não têm idéia de Deus, e, por isso, não
possuem, em sua língua, palavra com que exprimi-la, a não ser Tupã, que
significa alguma cousa melhor que tudo o resto. Assim é que ao trovão,
chamam Tupakununga, isto é, um ruído produzido pela Excelência Suprema,
pois a palavra Akunung quer dizer ruído.

Não têm noção do Céu, nem do Inferno, conquanto seja crença generalizada
entre eles que a alma não deixa de existir, com a morte do corpo; ao contrário,
ou transforma-se em demônio, ou espírito, ou, então, vai desfrutar existência
feliz dançando e cantando em um prado delicioso, que acreditam estar situado
além das montanhas. Essa felicidade está reservada aos bravos - homens e
mulheres - que, em vida, mataram e devoraram muitos de seus inimigos. Ao
contrário, os negligentes que jamais praticaram atos de valor serão, noutra
vida, torturados pelo demônio a que dão vários nomes, como: Anhanga,
Jurupari, Kurupari, Taguaiba, Temoti e Taubimama. Entretanto, os aborígines
têm, em suas tribos, uma espécie de sacerdote, cuja função é sacrificar e
predizer o futuro. Esses indivíduos são consultados principalmente antes de ser
[empreendida qualquer viagem ou guerra. A eles chamam Payê e Pay. Os
nativos temem horrivelmente os espíritos a que chamam Kuripira, Taguai,
Macachera, Anhanga, Jurupari e Marangigoana, conquanto cada um desses
nomes tenha significação diversa. Por exemplo: Kuripira significa o deus do
espírito ou do coração; Macachera, o patrono das viagens; Juripari e Anhanga
significam o demônio; e Marangigoana quer dizer manes, ou os remanescentes
da alma depois da morte.

É tal o pavor que aos brasileiros inspira este último que se dão casos de morte
repentina ante a aparição imaginária desse espírito. Não rendem culto nem
praticam cerimonial de qualquer espécie a tais espíritos; apenas indivíduos
isolados imaginam aplacar o ódio desses seres por meio de presentes que
deixam pendurados em estacas fincadas no chão. Alguns dos brasileiros
admitem o trovão como sendo o ente supremo, outros, a Ursa-menor, e,
finalmente há, ainda, os que veneram outras estrelas. A tribo dos Potiguaras é
tida como feiticeira a ponto de causar a morte a seus inimigos através da
magia. A tal prática chamam Anbamombikoab 449.

449
Este trecho parece-nos tirado de Marcgrave (cap. XI, p. 278-279 De Brasiliensium religione).
As diferenças de grafia são: Tupa (M) - Tuba (N); o tradutor inglês escreveu Tubacununga (p.
150) e Akununga (p. 150), ao invés de Tupakununga e Akunung, como estava na ed.
holandesa (p. 221, 2,a coluna)- São de se notar as diferenças de grafia com Marcgrave, que
são as já observadas na nota 437 Segundo o Dic. Brasiliano (XXX, 288), Tupã = Deus. Em
Batista Caetano (III, 544), tupã = Deus.
Acunúng (XXX, 173), fazer qualquer estrondo, troar, produzir som.
Anhanga - fantasma, alma que passa fugidia, o Diabo. Em Batista Caetano (III, 37), anang =
aiang = afia, s., diabo, demônio.
Jurupaii (XXX, 247), o diabo, demônio, anjo mau.
Página 321 de 349

Os brasileiros que viviam entre portugueses e holandeses seguiam, até certo


ponto, a doutrina cristã, mas de maneira tão tíbia, que poucos perseveravam
em seu zelo até idades avançadas. Isso principalmente porque somente
enquanto crianças, longe de seus pais, aceitavam os artigos principais da
nossa Fé. Todavia, diversos ministros holandeses, notadamente o senhor
Doreslaer, e, mais tarde, o senhor Thomas Kemp - ambos versados na língua
dos selvagens - conseguiram converter muitos brasileiros, nas aldeias onde
pregaram. Destacaram-se, também, na catequese dos infiéis, Dionisius
Biskareta, velho e honesto castelhano, bem como o noviço Johannes Apricius.
Houve igualmente três mestre-escolas que se ocuparam em ministrar as
primeiras letras às crianças aborígines, mas foram obrigados a abandonar as
aldeias durante a última comoção intestina provocada pelos portugueses.

Doenças e remédios

Várias moléstias comuns na Europa são desconhecidas no Brasil. Os nativos


usam remédios muito simples e riem-se das nossas poções. São muito hábeis
em ministrar seus remédios, principalmente no que respeita a antídotos.
Praticam a sangria sugando através de um chifre sobre uma escarificação ou
sobre uma veia aberta. Em lugar de lanceta usam o dente de certa lampreia
chamada Kakaon, que todos trazem consigo. Logo que algum conhecido cai
doente, todos se reúnem para oferecer o remédio que a experiência lhes
ensinou ser bom. Põem-se, então, a fazer incisões nas partes mais carnudas
do corpo, quer com espinho de Carnaiba, quer com dente de peixe, até que
tenham extraído do doente quantidade de sangue que julguem suficiente.
Sugam, também, a ferida, com a boca, pretendendo assim remover os maus
humores da região afetada. Provocam vômito introduzindo na garganta do
paciente folhas de Camaiba torcida. Quando nenhum desses remédios dá
resultado, não procuram outros, e, se depois de tentar vários tratamentos,
perdem a esperança de ver o doente restabelecido, abrem-lhe a cabeça com o
tacape, pois para eles é muito mais glorioso libertar dessa forma o paciente de
seus sofrimentos, que deixá-lo esperar pela morte até o último instante.

Os selvagens praticam, com cadáveres de amigos, tantas barbaridades


quantas fazem com os dos inimigos; com os primeiros, por amor, com os
segundos por vingança, pois arrancam os pedaços com os dentes e comem a
carne humana como se fora saborosa vianda.

Como recebem seus amigos

Depois de uma longa viagem, recebem os amigos de braços abertos e com


lágrimas nos olhos. Batem com a testa no peito do recém-chegado
pretendendo assim recordar os sofrimentos por que passou durante sua
ausência. Conquanto se suponha que todos os brasileiros descendem de raças
antropófagas, devido ao contacto conosco bem como com indivíduos de outras
nações, muitos dos nativos abandonaram essas práticas bárbaras e se
tornaram tão afáveis e civilizados quanto a maioria dos europeus.

Tembioti (III, 507) contr. de tetemoti - diabo; e taguaib ou taguaùb (III, 472), fantasma, visão;
taubimâ, s., fantasma, duende velho ou o velho das visões; em tupi taubimana (III, 490).
Página 322 de 349

Tapuias

Os tapuias450 habitam o interior, ao poente das regiões que se acham sob o


domínio dos portugueses e holandeses, entre o Rio Grande, o Rio Ceará e o
São Francisco. Dividem-se eles em diversas nações que se distinguem tanto
pela língua como pela denominação: os tapuias que viviam nos limites
extremos de Pernambuco chamavam-se Carirís e eram governados pelo rei
Ceriou Keiou; seus vizinhos eram os Caririvasu cujo chefe se chamava

450
O trecho desde: "Os tapuias habitam o interior." até "Cuaçumandiiba" pouco pertence a
Nieuhof. Assim, desde "Os tapuias" até "Kara-kara" o trecho é talvez inspirado em Herckmans,
por intermédio de Marcgrave, do pequeno resumo que este deu do trabalho "Breve Descrição
dos Costumes dos Tapuias", [i]in[/i] Descrição Geral da Capitania de Pernambuco. O texto de
Herckmans saiu no cap. XII, pp. 282-283, de Marcgrave: [i]Alia quaedam de Tapuys ab Elias
Herckmanns descripta.[/i] O texto completo se encontra na Rev. do Inst. Arq. e Geog. Pern.,
tomo V, 1886, p. 279 e sgts. O trecho desde: "outras tribos" até "...Dremmenge" é tirado de
Marcgrave (LXX, p. 269). O texto "Os súditos." até "...é considerado entre eles como
ornamento todo especial" é, talvez, igualmente, inspirado em Herckmans, (cf. p. 279-280 da
Revista citada). O trecho que vai de "Ambos os sexos." até "...Guará ou Kaninde" é semelhante
ao de Herckmans (cf. p. 281 da referida Revista).
O trecho referente a trajos é tirado de Marcgrave - cap. VI, p. 270-271, [i]De Vestitio & Ornatu
Virorum, & Mulierem Brasiliensium[/i] - até a palavra Miapapacaba, com omissão do nome
português dado por Marcgrave - Alpargatas (alpercatas) . Neste passo cometeu Nieuhof, ao
traduzir, um engano, pois ao ornato que consiste no ajuste dos corais com as penas, é
chamado [i]Papixoara[/i] e não [i]Aracoya,[/i] como ele escreveu. Marcgrave escreve (LXX, p.
271, linha 25): "Ligam, também, muitas penas de Avestruz ou penas de Araras, formando
quase um círculo, e reúnem-nas com um fio grosso, ajustando-as à região lombar e cobrindo
com elas o ânus; e a esse ornato, que pende quase até os joelhos, chamam [i]Aracoaya,".[/i]
Nieuhof descreveu o ornato [i]Papixoara[/i] como se fora o Aracoaya, e omitiu a descrição
deste, embora se encontre o nome Aracoya e esteja omitido o nome Papixoara.
O texto referente às armas é também copiado de Marcgrave - cap. X, p. 278, [i]De Armas
Brasiliensium, & exerdtiis illorum[/i] -. Finalmente o trecho sobre alimentação é inspirado em
Piso (LXX, p. 55, parte final do cap. II - De Mandihoca).
Afora as citadas diferenças gráficas já apontadas na nota 437, convém notar os seguintes
enganos e diferenças de grafia: Tararijou (N) - Tarairyou (M); Arigpaygh (N) - Arigpoygh (M);
Arara ou Kamud em Nieuhof (p. 223) - Arara ou Caninde (M., p. 271); Kazinde (N., p. 223) -
Carinde (M., p. 271); Apiyati (N. p. 224) - Apiyatê (M., p- 271); Miapakabas (N., p. 224, 2a
coluna) - Miapapacaba ou Alpargatas (alpercatas) dos Lusitanos (M., p. 271): Nhumbugaku (N.,
p. 225) - Nhumbugoacu (M., p. 278); Meumbrapara (N., p-225) - Membiapara (M., p. 278);
Cuaçumandiiba (N. 225) - Cuacümandijba (Piso, p. 55).
Os índios tapuias assim chamados pelos holandeses eram os Carirís. Os tupis denominavam-
nos tapuias, o que significa - estranhos à sua tribo, que não falavam o tupi. Os Janduís eram
Carirís, assim como os Paiacús e as outras tribos. Foram os indígenas que mereceram maiores
cuidados dos estudiosos, como Marcgrave e Herckmanns, e dos aventureiros como Rabbi e
Baro. Os Janduís habitam os ribeiros do Assú, Mossoró e Apodi (cf. Rodolfo Garcia, p. 266).
Paul Ehrenreich (XXXIV, p. 42), depois de um minucioso estudo baseado no material
acumulado pelos cronistas holandeses e nos retratos que Wagner e Eckout deixaram, chegou
à conclusão de que os tapuias pertenciam ao grupo Gês. Mais tarde, no trabalho "Etnografia"
(Die. Hist., XXXVII, p. 249-277), Rodolfo Garcia afirmava à p. 261 que os tapuias deviam ser
considerados como proto gês e, à p. 262, como Carirís. O mesmo fez Estevão Pinto (LXIX),
que à p. 127 afirma que os tapuias, tão estudados pelos holandeses, eram gês, e à p. 451, na
qual explica o mapa de distribuição dos principais grupos indígenas, coloca os Janduís e
Paiacús entre os Carirís.
Trata-se, evidentemente, de lapso proveniente da grande confusão dos autores da época,
Nieuhof, Marcgrave, Herckmans falam em Carirí.
Sobre os outros tapuias do Rio Grande e os do Rio São Francisco, consulte-se Marcgrave -
cap. IV, p. 268, especialmente a nota 2 de Morisot, que fala em 76 nações tapuias (cf. IX, p.
247).
Página 323 de 349

Carapoto; a seguir vinham os Caririjou e depois os Tararijou, muito conhecidos


nossos. Seu rei era Janduís, não obstante alguns deles viverem sob a
autoridade de um tal Kara-kara. Outras tribos eram governadas por vários reis
a saber: Prityaba, Arigpaygh, War nasewajug, Tsering e Dremenge. Os súditos
do rei Janduí moravam ao poente, além do Rio Grande, mas mudavam
freqüentemente de morada. Entre os meses de novembro, dezembro e janeiro,
quando o caju começava a amadurecer, eles vinham para o litoral, pois raros
deles eram encontrados no interior. Os tapuias são altos e fortes,
ultrapassando brasileiros e holandeses, tanto em força quanto em estatura.
Sua cor é morena escura, têm cabelos pretos pendentes sobre as espáduas,
pois aparam-no apenas na testa, até às orelhas. Alguns cortam os cabelos à
maneira européia. De resto, arrancam todo o pêlo do corpo, até mesmo as
sobrancelhas. Os reis e as pessoas de destaque distinguem-se dos demais
pelos cabelos e pelas unhas; os primeiros cortam os cabelos em forma de
coroa e conservam unhas longas nos polegares. Entretanto, os parentes do rei
e outros indivíduos de destaque na tribo têm unhas compridas em todos os
dedos, menos nos polegares, pois este detalhe é considerado entre eles
ornamento todo especial.

Os tapuias são muito fortes. Certa vez o Príncipe Maurício, estando de bom
humor, quis experimentar a força e a agilidade dos indígenas, em luta contra
um touro bravio. Mandou então que trouxessem o animal para um recinto
cercado, onde dois tapuias, para isso escolhidos, deveriam enfrentá-lo. Houve
grande afluência de curiosos para assistir o espetáculo. Em dado momento
surgiram os dois tapuias inteiramente nus, sem outras armas que seu arco e
flecha. Logo que o touro os percebeu arremeteu-se contra eles que,
extremamente ágeis, esquivaram-se das marradas e crivaram de flechas os
flancos do animal. Urrando horrivelmente e espumando de raiva, o touro
lançou-se de novo com todo furor, contra os indígenas. Mais uma vez os
tapuias se esquivaram, escondendo-se atrás de uma árvore existente no meio
da arena, de onde chefe se chamava Carapoto; a seguir vinham os Caririjou e
depois os Tararijou, muito conhecidos nossos. Seu rei era Janduís, não
obstante alguns deles viverem sob a autoridade de um tal Kara-kara. Outras
tribos eram governadas por vários reis a saber: Prityaba, Arigpaygh, War
nasewajug, Tsering e Dremenge.

Os súditos do rei Janduí moravam ao poente, além do Rio Grande, mas


mudavam freqüentemente de morada. Entre os meses de novembro, dezembro
e janeiro, quando o caju começava a amadurecer, eles vinham para o litoral,
pois raros deles eram encontrados no interior. Os tapuias são altos e fortes,
ultrapassando brasileiros e holandeses, tanto em força quanto em estatura.

Sua cor é morena escura, têm cabelos pretos pendentes sobre as espáduas,
pois aparam-no apenas na testa, até às orelhas. Alguns cortam os cabelos à
maneira européia. De resto, arrancam todo o pêlo do corpo, até mesmo as
sobrancelhas. Os reis e as pessoas de destaque distinguem-se dos demais
pelos cabelos e pelas unhas; os primeiros cortam os cabelos em forma de
coroa e conservam unhas longas nos polegares. Entretanto, os parentes do rei
e outros indivíduos de destaque na tribo têm unhas compridas em todos os
Página 324 de 349

dedos, menos nos polegares, pois este detalhe é considerado entre eles
ornamento todo especial.

Os tapuias são muito fortes. Certa vez o Príncipe Maurício, estando de bom
humor, quis experimentar a força e a agilidade dos indígenas, em luta contra
um touro bravio. Mandou então que trouxessem o animal para um recinto
cercado, onde dois tapuias, para isso escolhidos, deveriam enfrentá-lo. Houve
grande afluência de curiosos para assistir o espetáculo. Em dado momento
surgiram os dois tapuias inteiramente nus, sem outras armas que seu arco e
flecha. Logo que o touro os percebeu arremeteu-se contra eles que,
extremamente ágeis, esquivaram-se das marradas e crivaram de flechas os
flancos do animal. Urrando horrivelmente e espumando de raiva, o touro
lançou-se de novo com todo furor, contra os indígenas. Mais uma vez os
tapuias se esquivaram, escondendo-se atrás de uma árvore existente no meio
da arena, de onde continuaram a atirar seus dardos contra a fera, até que,
quando esta já se esvaía em sangue, um dos bugres saltou-lhe sobre o dorso
e, tomando-a pelos chifres, atirou-a por terra. Ajudado por seu companheiro,
matou o animal. A seguir prepararam a carne, assando-a enterrada, segundo o
costume selvagem, e com ela banquetearam-se em companhia dos demais
tapuias presentes.

Os tapuias de ambos os sexos, desde o chefe até o mais simples dos


selvagens, andam inteiramente nus. Os homens apenas escondem as partes
íntimas, em uma espécie de saquinho ou cesto feito de casca de árvore,
atando-o com um amarrilho. Quando precisam, retiram esse estojo, e, nisso,
mostram mais recato que alguns europeus. Hábito idêntico tem os demais
brasileiros que habitam o interior. As mulheres escondem suas partes íntimas
com um punhado de ervas ou com um ramo de árvore atado a um cordel que
passam sobre os quadris. De idêntica maneira procuram velar as nádegas,
mas fazem-no tão descuidadamente que, tanto na frente como atrás, parte do
que pretendem esconder continua exposto. Os homens usam, ainda, uma
espécie de corda feita de penas de Guará ou Kaninde, da qual pendem sobre
as costas penas da cauda da Arara ou Kamud; alguns atam na mão um fio de
algodão, no qual amarram penas vermelhas ou azuis; a esse ornato chamam
Akanbuaçada.

Os aborígines têm também mantos tecidos com fio de algodão, como rede. Em
cada furo enfiam uma pena vermelha de Guará, acompanhada de penas
pretas, verdes e amarelas de Aakukaru, Kazinde e Arara, arrumando-as de
maneira semelhante às escamas de peixe. Dentro dessa capa existe uma
espécie de boné que cobre a cabeça, deixando que o manto caia sobre os
ombros e o corpo, de forma a cobri-lo até mais ou menos o meio. Assim é que
esse abrigo pode ser usado tanto para ornamentar como para agasalhar, pois a
chuva não o atravessa. Tal capa é conhecida na língua dos selvagens pelo
nome de Guará, Abuku. Os aborígines colam, ainda, com mel silvestre sobre a
testa, a crista de certas aves, e a esse ornato dão o nome de Aguana.

Se a um índio morre o pai ou a mãe, arranca ele todo o cabelo da cabeça. No


lóbulo das orelhas os aborígines costumam fazer furos tão grandes que neles
se pode introduzir um dedo. Em tais orifícios usam atravessar um osso de certa
Página 325 de 349

espécie de macaco a que denominam Nambipaya ou um pedaço de madeira


coberto de algodão. No lábio superior os homens fazem furos onde engastam
pedaços de cristal, esmeraldas ou jaspe do tamanho de uma avelã. A essa
pedra chamam Metara, mas, se for verde ou azul, seu nome é Metarobi; em
geral preferem pedras verdes.

Os selvagens fazem também perfurações no rosto, de ambos os lados da


boca; aí os casados usam um pedaço de madeira do tamanho e da grossura
de haste de uma pena de ganso. Às vezes usam nesse orifício uma pedra
chamada Tembekoareta. Nos furos que praticam nas narinas, os selvagens
usam também pedaços de madeira semelhantes aos que chamam Apiyati.
Pintam todo o corpo com certo suco castanho extraído do Jenipapo; tal hábito
estende-se às mulheres e crianças. Além disso, colocam em diversas partes do
corpo, com mel silvestre ou resina, penas de várias cores que, a grande
distância, lhes dão a aparência de aves. Essa maneira de ornamentar chama-
se, entre eles, Akamongui. Assim é que adornam os braços com pulseiras de
penas vermelhas e amarelas, dando a isso o nome de Aguamiranga. Às vezes
entremeiam corais com as penas, e o ornato passa a chamar-se Arakoaya. Os
selvagens fabricam também braceletes com as sementes de um fruto
denominado Aguay os quais usam nas pernas para fazer barulho quando
dançam. As sandálias que adotam são feitas da casca de Kuragua e têm o
nome de Miapakaba. Algumas nações de tapuias não usam arco e flecha;
limitam-se a atirar seus dardos à mão; os Carirís, porém, trazem arcos.

Os tacapes são feitos de madeira muito dura e largos numa das extremidades,
onde também fincam agudos dentes e ossos pontiagudos. Enrolam no cabo um
cordel ou outra cousa qualquer e atam, na extremidade, um punhado de penas
da cauda da Arara; no meio, colocam mais uma ordem de penas. A essa arma
dão o nome de Atirabebe e Jatirabebe. As trombetas, a que chamam
Kanguenka, são feitas de ossos humanos; todavia, as chamadas Nhumbugaku,
de tamanho muito maior, são de chifre. Existe ainda outra modalidade de
cometa feita de taquara e chamada Meumbrapara.

Os tapuias não são tão bons guerreiros quanto os demais brasileiros, pois
quando a luta é dura eles fogem com incrível rapidez. Não semeiam nem
plantam qualquer outra cousa que não a mandioca, e sua alimentação usual é
constituída de frutos, raízes, ervas, animais selvagens e, às vezes, mel
silvestre, que colhem do oco das árvores. Dentre todas as outras raízes os
nativos apreciam de maneira particular uma variedade de mandioca nativa que
atinge o porte de uma árvore pequena. Seus galhos e folhas lembram os da
mandioca comum, mas nem de longe se lhe assemelha em qualidade. A essa
variedade os brasileiros do interior chamam Cuguaçuremia e os do litoral
Cuaçumandiiba.

Os aborígines também comem carne humana. Se acontece de uma mulher


abortar, eles imediatamente devoram o feto, alegando que não podem dar
melhor túmulo à criança, que as entranhas de onde veio. Os tapuias levam vida
nômade como a dos árabes, conquanto permaneçam sempre mais ou menos
numa certa área dentro de cujos limites vão mudando de morada, conforme as
diferentes estações do ano.
Página 326 de 349

Vivem de preferência no mato, alimentando-se de caça, em cuja atividade eles


talvez se avantajem aos de qualquer outra nação. Chegam a flechar uma ave
em pleno vôo.

Logo que uma mulher concebe, afasta-se de seu marido. Quando dá à luz vai
para o mato onde corta com uma concha o cordão umbilical do recém-nascido.
Depois cose o umbigo juntamente com a placenta e come tudo. Lava-se,
juntamente com a criança, pela manhã e à tarde. Enquanto a mulher estiver
amamentando, o companheiro a ela se não une a menos que só tenha uma
esposa. Se a mulher prevarica, o marido a repudia; mas, se os culpados são
apanhados em flagrante, o esposo ofendido pode matá-los. As mães têm
extraordinário cuidado em impedir que se consume o matrimônio das filhas
antes do primeiro catamênio [menstruação]. Verificado o aparecimento do
mênstruo, a mãe da noiva informa o curandeiro e este ao rei que então dá
permissão para que a moça e o noivo coabitem. Este, então, agradece à sogra
o cuidado que teve com a filha. Se uma jovem em idade de casar não é
cortejada por nenhum rapaz, sua mãe pinta-a com tinta vermelha em torno dos
olhos e leva-a à presença do rei que faz a moça sentar-se numa esteira e
sopra fumaça de tabaco sobre o rosto. Depois deflora a rapariga e se esta
perde sangue o rei o suga, o que é considerado honra singular entre os
selvagens.

De resto os tapuias são piores que todos os outros brasileiros e ignoram tudo
quanto se relaciona com Deus e a Religião. Também não aceitam instrução de
qualquer espécie. Há entre eles sacerdotes, ou antes, feiticeiros que têm a
pretensão de predizer os acontecimentos e invocar espíritos que, segundo
afirmam, lhes vêm em forma de moscas e outros insetos. Quando esses
espíritos desaparecem, as mulheres gritam horrivelmente e se lamentam, nisso
consistindo o seu principal exercício de devoção. Evitam viajar à noite com
receio de cobras e outros animais venenosos; também não viajam enquanto o
sol não faz secar o orvalho da manhã.

Diversas nações tapuias, principalmente as que estavam sob a autoridade de


Janduí, mantinham boas relações com os holandeses com os quais prestaram
bom auxílio em várias ocasiões, conquanto se não submetessem a estes.
Janduí ou Jan Dwwy na época em que o vi tinha 120 anos. Ele tinha cinqüenta
mulheres e sessenta filhos, apesar de que às vezes não tinha mais que
quatorze mulheres. Os tapuias alimentavam ódio mortal pelos portugueses e,
por isso, onde os encontravam, matavam-nos na certa.

O que ficou dito acima sobre costumes, modo de vida, indumentária etc. dos
nativos do Brasil, é o bastante. Passarei agora a descrever minha viagem de
regresso à Holanda.

A volta do autor à Holanda

Sabendo, como já disse anteriormente, que as coisas pioravam diariamente do


nosso lado, consegui, com muito custo, permissão para partir. Assim é que a
23 de julho de 1649, embarquei na fragata D'Eendracht (A Concódia), tripulada
por 80 marinheiros sob o comando do Capitão Albert Jansz, natural de
Página 327 de 349

Groeningen. Largamos velas no mesmo dia, em companhia do navio Blauwe


Engel[Anjo Azul] e de um iate denominado Brasiliaen. Deixamos a cidade de
Olinda à noite, rumando para sudoeste.

A 25, estávamos a 3° 6' no rumo Nor-Noroeste, tendo percorrido, naquele dia,


48 milhas.451 No dia seguinte, atravessamos o Equador com bom tempo e
vento à feição. A viagem decorreu sem incidentes dignos de nota, até o dia 1°
de agosto quando, ao meio-dia, nos achávamos a 9°46', tendo percorrido 29
milhas nas últimas 24 horas. Na mesma noite vimos a Estrela Polar pela
primeira vez, depois de termos atravessado o Equador. No dia 2 fizemos 23
milhas com brisa fresca, tendo atingido 11° 13', Continuamos nossa rota com
vento favorável até 16 de agosto, quando encontramos calmaria; até aquele dia
não tínhamos avançado mais que 6 milhas, estando então a 26°, latitude em
que o calor era terrível452. A 20 de agosto, com um Sudoeste muito fraco,
atingimos os 29°45' mas era tal o calor por falta do terreal, que ninguém podia
pegar nas facas, dentro da cabine, tão quentes estavam elas. Nem se podia
tocar no tombadilho com as mãos ou os pés descalços. Prosseguindo a viagem
atingimos, no dia 29, 38° 46', tendo feito cerca de oito milhas aquele dia.

A 3 de setembro, estando a 40° 18' avistamos as velas de um navio que,


depois, soubemos ser o Virginjes. À noite, fomos forçados a parar um pouco
porque o iate Brasiliaen havia perdido um dos mastros. No dia seguinte
divisamos a Ilha de Corfú, ou do Corvo, para a qual rumamos.

As Ilhas Flamengas. O autor chega a Flussingen

Corvo e Flores são duas das nove ilhas a que os portugueses chamam ilhas
Açores e os holandeses chamam ilhas Flamengas. A maior delas é a Terceira,
que tem um perímetro de 16 léguas. É muito rochosa, mas, apesar disso,
produtiva, pois lá existe grande quantidade de gado. E' rica, também, em
canários e outros pássaros. Aí existe uma fonte que transforma pau em pedra e
diversas águas termais onde se pode cozer um ovo. Parece que o solo está
cheio de concavidades, o que explica os numerosos terremotos que destroem
casas, homens e animais. A ilha denominada Pico tem uma rocha que atinge
às nuvens, ao que se supõe, talvez seja comparável ao pico da Ilha das
Canárias. Entre a costa do Brasil e essas ilhas a bússola indica precisamente o
Norte-Sul. Tínhamos avançado oito graus mais para Leste do que
pretendíamos. Por volta do meio-dia, encontrávamo-nos a 40° 34'.

Continuamos viagem sem novidade até 16 de setembro quando supúnhamos


não estar muito longe de terra; de fato, avistamo-la, nessa mesma noite, a
nornordeste do navio.

A 17 encontramos calmaria e apanhamos mais peixes do que podíamos comer.

451
O tradutor inglês escreveu "28 léguas" (cf. p. 154, 2ª coluna da ed. inglesa e p. 226, 2a
coluna da ed. holandesa).
452
O tradutor inglês escreveu "60 léguas" (cf. p. 226, 2acoluna da ed. holandesa e p. 154,
2acoluna da trad. inglesa)
Página 328 de 349

A 18 avistamos a Ilha de Wight ao Norte, e, por essas alturas, um dos nossos


navios se separou de nós. Logo mais divisamos a ponte de Dover.

A 19 passamos ao largo de Dunquerque e Ostende impulsionados por vento


ligeiro, e, mais ou menos pelo meio-dia, entrávamos a salvo na Baía de
Vlissingen. Desembarquei imediatamente e, depois de um descanso de cinco
dias, fui para Middleburgh, onde permaneci por igual espaço de tempo. Daí,
segui viagem para Dordrecht, Roterdã, Delft e Haerlem e, finalmente,
Amsterdã, de onde, em 1640, havia iniciado a viagem para as índias
Ocidentais. De Amsterdã fui para Zwol, terra natal de meu pai Joan Nieuhof, e
daí para o Condado de Benthem, onde, depois de tantas fadigas de tão tediosa
viagem, encontrei meus pais com saúde. Quando estava aí em 1651, meu pai
faleceu a 15 de maio, com a idade de 85 anos. Seu passamento foi muito
lamentado, dadas as altas virtudes de que ele era dotado.

[Joan Nieuhof, nascido em Ulsen, no condado de Benthem, na Westfália, veio para o


Brasil em 1640, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, e aqui chegou aos 15 de
dezembro daquele ano. Ficou em Pernambuco até 23 de julho de 1649, quando
embarcou de volta para a Holanda, lá chegando a 19 de setembro. Ficou no Brasil 8
anos e 5 meses, “o suficiente para dar ao seu livro o caráter fidedigno que ele possui
como a melhor fonte do lado holandês, dos quatro anos do governo nassoviano, e do
pós-nassoviano constituído por um triunvirato incompetente.]

Assim, depois de uma viagem transatlântica de algumas semanas, voltei


novamente do Brasil, o lugar mais abençoado do mundo, um verdadeiro
paraíso terrestre que, agora, foi reduzido a estado deplorável devido ao
incêndio da guerra. E desta forma, achei-me novamente na Holanda e, em
seguida, na minha pátria453.

Algumas pessoas, mal intencionadas e imperitas, atribuem a culpa da


decadência do Brasil Neerlandês aos Altos Comissários Hendrik Hamel,
Adriaen [van] Bullestrate, Pieter Jansz Bas, os quais, no ano de 1647, tinham
partido daí com os navios Hollandia e Vlissingen, chegando à pátria no mês de
agosto. Entre as pessoas que faziam muitas acusações aos Altos Comissários,
encontravam-se, especialmente, Abraham de Vries, Pieter Verhagen e
Johannes Greving, outrora mordomo do Conde Maurício, que lançavam mão,
como homens desmiolados que eram, de toda sorte de indignidades, palavras
baixas, calúnias e, em parte, de boatos.

As acusações que faziam aos Altos Comissários eram no sentido de que estes,
com louvável perícia, inventavam e realizavam contratos dos quais resultavam
para eles, como recompensa, não só grandes regalias, como até vantagens
pecuniárias. Diziam, também, que a Companhia teria sido prejudicada pelos
referidos contratos e que os contratantes, endividados por causa disso, teriam
pensado numa revolta ou pilhagem, a fim de, assim, subtrair-se ao governo

453
Cf. nota 1. O trecho desde: "Assim, depois de uma viagem." até o fim foi traduzido
diretamente do holandês, pois o tradutor inglês omitiu 12 pp. e meia, ou sejam 25 colunas da
ed. holandesa, resumindo-as em 2 colunas e um terço de coluna, ou sejam 1 p. e 1/3. (Cf. p.
228 a 240 da ed. holandesa e p. 155-156 da trad. inglesa).
Página 329 de 349

holandês, pagando pequena parte de suas dividas ou nada e indo colocar-se


sob a proteção da Coroa de Portugal.

De Vries apresentou, como acusação aos Altos Comissários, em primeiro


lugar, cópia de uma notícia que - conforme sustentava - lhe fora entregue por
João Fernandes Vieira, contendo exagerada e caluniosa enumeração, ou uma
lista de honrarias de que teriam gozado os Senhores Altos Comissários, por
haverem realizado os contratos. Com relação à referida notícia, os Altos
Comissários, tendo já passado o governo, bem compreendiam que João
Fernandes Vieira e alguns holandeses que só procuravam alimentar o fogo da
discórdia haviam inventado algumas injúrias com o fito de dar aparência de
verdade às suas palavras; daí proveio, finalmente, aquela notícia, sobre a qual
nenhuma prova fora produzida nem poderia sê-lo.

Esta era a mesma notícia que passara por todos os colégios respeitáveis do
governo, que dela tinham tomado conhecimento e lhe haviam dado a mesma
interpretação que os Altos Comissários perante o Grande Conselho do
Presidente Schonenburgh e os novos comissários. Tal notícia foi, mais tarde,
levada ao Brasil pelo próprio Presidente e pelos citados comissários, com
ordem expressa do Conselho dos XIX de examinarem esta e outras acusações
semelhantes e de, em seguida, informá-lo a respeito. Chegou-se, mesmo, ao
ponto de não deixar partir o Alto Comissário Hendrik Hamel e os outros Altos
Comissários, até que o Presidente e os novos Comissários tivessem obtido
instruções completas; após o que, se encontrassem qualquer cousa contra
eles, deveriam castigá-los, uma vez provada a culpa.

A seguir, o Presidente e os Altos Comissários mandaram citar todas as


pessoas que - segundo tinham ouvido dizer - sabiam desses contratos, as
quais depuseram sob juramento. Nada, entretanto, ficou apurado contra eles,
conforme se vê dos depoimentos prestados, a saber, no dia 6 de novembro de
1646 e no mês de fevereiro de 1647. Havia, até, pelo contrário, várias pessoas
que declaravam lhes terem sido feitos oferecimentos de honrarias, tendo sido,
por isso, castigadas pelos Altos Comissários. Pode-se verificar, além disso, que
os Altos Comissários não tinham gozado de tais regalias, nem quiseram aceitá-
las, mas que, em todos os seus atos, se comportaram de acordo com os seus
cargos e conforme deveriam proceder. Uma dessas atas foi, até, assinada pelo
próprio Vieira. Por aí, pode-se ver que essa notícia foi exagerada e que está
cheia de inverdades. Em conseqüência, os Altos Comissários puderam voltar
às suas casas, livres e independentes, porque foram julgados inocentes, não
obstante todas as falsas acusações.

A prova, entretanto, de que os contratos haviam sido vantajosos para a


Companhia e não prejudiciais e danosos - conforme tinham afirmado os citados
caluniadores - está em que nas Nótulas Diárias de 21 de novembro de 1645,
feitas pelos Altos Comissários, vemos anotado que havia probabilidade de se
fazer, embora o Brasil Holandês continuasse em ruínas, uma remessa especial
de açúcar à Companhia, tanto dos engenhos de Jorge Homem Pinto como dos
outros contratantes. A revolta e a sublevação dos residentes portugueses,
primeiramente incitada, e mais tarde abertamente ajudada, e incentivada pelo
Rei dos portugueses, os impediu de fazê-lo. Além disso, os próprios
Página 330 de 349

governantes consentiram e aprovaram, na reunião dos XIX, conforme se diz,


por extenso, nas páginas 83 e seguintes, o contrato com Jorge Homem Pinto,
que, sozinho, importava quase na mesma cousa que todos os outros contratos
posteriormente feitos. Os próprios portugueses não pretendem nem alegam no
manifesto que publicaram - contendo, ao que dizem as razões de sua revolta -
os contratos como motivos da mesma. Por outro lado, segundo ficou mais tarde
esclarecido, essa revolta havia sido pensada e planejada em Portugal, muito
antes da feitura desses contratos.

Revoltas semelhantes haviam começado em Angola, na África, e na Ilha de


Ceilão, nas índias Orientais, mas ou menos na mesma época em que
começara a do Brasil, embora naqueles lugares não tivessem sido feitos
quaisquer contratos. Donde se pode concluir, claramente, que os contratos não
provocaram essas revoltas, de vez que as mesmas foram pensadas e
planejadas muito antes da feitura dos mesmos. Porque, do contrário, não era
possível que em seis ou sete meses, que mediaram os contratos e a revolta,
tivesse sido planejado e forjado tal trabalho e preparado tanta gente e tantas
provisões, cousas necessárias, conforme se evidenciou mais tarde. E isso ao
mesmo tempo em todas as partes, até mesmo nas índias Orientais, onde mal
se podia chegar, indo de Portugal, em cinco ou seis meses.

Muitos poderiam admirar-se da coragem dos portugueses de se levantarem


contra os nossos, não obstante as nossas várias fortalezas, guarnecidas por
tropas, e, por isso, atribuir aquele levante antes à imprevidência e à má
administração do governo do que ao poderio e à força dos residentes
portugueses. Mas, aos que pudessem admirar-se disso, poder-se-ia responder
e objetar que a fraqueza dos residentes portugueses era suficientemente
fortalecida pelo grande socorro - em relação aos que podíamos receber - que
lhes vinha da Baia de Todos os Santos, tanto de portugueses comandados por
Martim Soares e André Vidal, quanto de brasileiros dirigidos por Camarão e de
negros chefiados por Henrique Dias.

Razões da revolta dos portugueses

Os motivos e as causas que moveram os residentes portugueses a se


levantarem contra os nossos e a entrar novamente em guerra, diz-se que são
vários: entre os quais aqueles que, geralmente, movem e incitam povos
dominados a apoderar-se de seus castelos e quartéis e a libertarem-se.
Acrescente-se a isso a diferença de religião, de língua e de costumes, que os
nossos quiseram introduzir, não obstante a sua fraqueza relativamente aos
portugueses.

Estas causas, tomadas em conjunto com as outras, fizeram com que eles não
deixassem passar a ocasião de valer-se da fraqueza dos nossos,
principalmente porque estavam certos do auxílio de Portugal e do da Baía.
Além disso tinham a impressão não só de que o nosso Estado se encontrava
no fim de seus recursos, e impotente, portanto, para mandar, durante mais
tempo, alguns socorros ao Brasil, como a de que esses ataques constituiriam
motivo de alegria e satisfação para o nosso país, porque este procurava livrar-
se, com honra, do pesado fardo brasileiro.
Página 331 de 349

Acresce também que. nenhum homem sensato poderia acreditar que esta
guerra (que foi feita aos nossos sem declaração ou aviso, mas, até, contra
várias promessas e declarações feitas pelo Governador da Baía Antônio Teles
da Silva aos nossos deputados, quebrando um tratado feito tão solenemente
entre o Rei de Portugal e os Altos Comissários) tivesse começado sem o
conhecimento e ordem expressa do Rei de Portugal, pois que essas mesmas
pessoas podem avaliar e compreender, suficientemente, que um governador,
como Antônio Teles da Silva, não teria coragem de empreender tal cousa sob
sua própria responsabilidade e autoridade. Por aí se vê como alguns estavam
grandemente enganados em acreditar que, prendendo e detendo uns poucos
residentes portugueses, poderia ter sido evitada pelos Altos Comissários,
daquela época, esta guerra ou revolta. A única vantagem que os portugueses
conseguiram e obtiveram, depois da sua aberta revolta, sua apostasia e
inimizade em relação aos nossos, de nenhum modo se originou da sua
coragem e combatividade, mas somente de que os socorros e auxílios
enviados do nosso país para o Brasil aí chegavam num ritmo muito lento e
separadamente, de tempos a tempos.

De Vries e outros mal intencionados acusaram, também, os Altos Comissários


de terem enviado a João Fernandes Vieira a própria carta da descoberta da
traição, que lhes fora mandada por Sebastião de Carvalho. A falsidade dessa
acusação resulta, claramente, da narração feita às paginas 114 e seguintes. Os
Altos Comissários, pelo contrário, empregaram todo o zelo e diligência com o
fito de deter a própria pessoa de Vieira, se tal fosse possível. Mas Vieira já se
havia escondido e ocultado, previamente, como antes relatamos por extenso,
evitando mostrar-se em público, onde quer que fosse, a fim de obstar a sua
prisão. Algumas pessoas mal intencionadas suspeitavam dos Altos
Comissários, dizendo que eles não tinham dado atenção aos avisos que lhes
haviam sido feitos por várias pessoas e que, mais tarde, quando o fato se
tornou público, apenas deram mostra de querer prender o chefe da rebelião,
denotando que o tivessem feito só aparentemente, devido não tanto aos
citados contratos quanto aos presentes que haviam recebido.

A prova, entretanto, de que nada faltou ao zelo e à diligência dos Altos


Comissários de lançar mão de todos os meios para prender, a tempo, os
chefes da rebelião, se fosse possível, decorre do que se lê à página 112.
Dizem, entre outras coisas, que Gaspar Francisco da Costa teria solicitado uma
audiência do Alto Conselho para denunciar a traição que estava sendo tramada
pelos portugueses e quais os chefes que deviam ser presos, e que, no entanto,
os Altos Comissários o haviam despedido com palavras grosseiras e
indecentes, sem dar a mínima atenção às suas declarações.

A prova de que isso é ficção e falsidade decorre do que se lê nas Nótulas do


dia 13 de dezembro de 1644, pois a acusação do citado Costa e as dos seus
dois confrades, todos eles anciãos da nação judaica, não só mereceram a
atenção dos Altos Comissários como foram, também, por eles anotadas. Além
disso, disseram os citados três anciãos, em suas declarações de 30 de junho
de 1646, de como os Altos Comissários os ouviram e interrogaram sobre este
detalhe, conforme exigiam a importância e o valor do fato. Acrescentaram que
os Altos Comissários, como homens diligentes e cuidadosos, tinham
Página 332 de 349

considerado e disposto tudo, de modo a poder assistir, pessoalmente, a


reforma das fortalezas, determinando também que elas permanecessem de
prontidão, embora o inimigo ainda não tivesse aparecido em campo.

Declararam, igualmente, que eles lhes haviam recomendado que se


esforçassem por saber qual era a verdadeira intenção dos portugueses, de que
modo projetavam sua rebelião e apostasia e quais eram os seus chefes e
cabeças. Embora tivessem feito tudo que era de sua obrigação, jamais
conseguiram saber todas essas coisas de modo completo. E quando chegava
ao seu conhecimento algo do que se tratava secretamente, informavam disso
os Altos Comissários, que agiam, então, em todos os casos, como governantes
cuidadosos e diligentes. Além disso, a sala de conselho dos Altos Comissários
estava sempre aberta para eles, sem qualquer impedimento, atendendo os
Altos Comissários as informações que traziam e aos projetos que faziam.
Ademais, para dizer a verdade, os Altos Comissários não eram tão amigos dos
portugueses, a ponto de não querer ver a revolta, de vez que, neste caso,
estes últimos não teriam planejado começar a execução de seus desígnios e
de sua revolta matando os Altos Comissários, agindo como se fossem seus
amigos, conforme mais tarde se soube. Os portugueses ligavam, também,
grande importância à morte dos Altos Comissários e convidavam todos
abertamente a fazê-lo, prometendo uma recompensa de 6.000 florins àquele
que tivesse coragem de iniciar, executar e levar a termo esse empreendimento.

De Vries e seus companheiros acusavam, igualmente, os Altos Comissários,


dizendo que eles não tinham intenção de punir devidamente os culpados.
Assim é que teriam restituído a liberdade a um certo João Carneiro de Morais e
a Francisco Dias Delgado, os quais, conforme se dizia, sabiam da traição e
logo que chegaram junto aos seus foram nomeados cabeças e chefes dos
rebeldes. E que mesmo depois disso, lhes teriam sido vendidos escravos a
prazo. Isso, porém, parece ser contraditório. Pois se se tinha a intenção de não
punir convenientemente os culpados, não se teriam prendido e detido os
mesmos a fim de tornar a soltá-los depois, mas dever-se-ia tê-los deixado
passar despercebidos. É certo que várias pessoas suspeitas, em número de
mais de trinta, foram detidas por ordem dos Altos Comissários, sem que se
possa provar que qualquer uma delas tivesse sido libertada sem estar inocente.
Ao contrário, vários detidos, de diferentes lugares, considerados culpados no
julgamento do Conselho da Justiça, foram punidos com a morte de várias
maneiras, cada um conforme merecia, segundo se vê pelos julgamentos
enviados ao Conselho dos XIX, pelo Advogado Fiscal.

Verdade é que João Carneiro de Morais e Francisco Dias Delgado foram


libertados depois de se ter verificado, num rigoroso inquérito, que não eram
culpados de traição; mas, depois de libertados e de haverem chegado junto
aos seus, não foram nomeados, imediatamente, chefes e cabeças dos
rebeldes. E isso era tanto mais improvável, quanto os mesmos eram
considerados cristãos-novos, isto é, judeus, os quais, entre os portugueses,
não eram tolerados publicamente e muito menos mereciam confiança para
ocupar algum cargo.
Página 333 de 349

Aliás, eram eles dos homens mais abastados que viviam em fazendas desta
região, e, das investigações procedidas, nada ficou apurado contra eles.
Naquela época, a revolta não atingira, ainda, várias regiões, como o Rio
Grande, Paraíba, Goiana e outros lugares, cujos habitantes tinham renovado, a
17 de julho de 1645, o juramento de fidelidade. Paulus de Linge, da Fortaleza
Frederica, situada na Paraíba, nos informara desse juramento e de que, aí,
tudo estava em paz e sossego, embora fosse difícil conservar a ordem entre os
brasileiros das Aldeias, a fim de evitar que os mesmos pilhassem os residentes
portugueses. Informava, mais, que para evitar essas pilhagens fizera tudo
quanto lhe fora possível. Diante disso, havia, então, esperanças fundadas de
que, brevemente, se restabelecesse a ordem ou, pelo menos, de que o conflito
se não alastrasse. A Companhia estava, então, em dificuldades, devido ao
excesso de escravos, e recebera ordem expressa do Conselho dos XIX de
vendê-los em três prestações, já que não se podia esperar vendê-los à vista,
pois, devido ao grande número de escravos, o seu preço caíra de 100 oitavos a
25 ou 26 oitavos. Por conseguinte, não se podia imaginar o motivo pelo qual
João Carneiro de Morais e Francisco Dias Delgado haviam ido se reunir aos
rebeldes, de vez que eram ambos idosos, tinham sempre se mantido em paz,
haviam sido acusados falsamente por pessoas que, como outras, não
mereciam, então, mais confiança, e que costumavam vir comprar negros.
Neste momento, a Companhia precisava vender escravos, pois não podia
mantê-los sem grandes prejuízos, conforme ficou provado mais tarde. Os
negros não vendidos eram levados para as Ilhas Caraíbas, livrando-se deles,
assim, a Companhia. Reinavam grande preocupação e descontentamento
entre a população e a burguesia do Recife, e os que acusavam os Altos
Comissários alimentavam esses sentimentos com considerações sobre a ruína
e a decadência do Brasil Holandês. Pode-se crer que alguns elementos da
população se preocupassem com os rumores que então corriam, vendo que
seria difícil abafá-los. Isso se evidenciou no dia 13 de outubro de 1645, quando
alguns comissionados escabinos e outros da milícia da burguesia, bem como
alguns dos principais burgueses, propuseram aos Altos Comissários, para
maior tranqüilidade e contentamento dos burgueses, que alguns dos mais
importantes membros tanto do Colégio dos escabinos como da burguesia
fossem adidos ao Conselho dos Altos Comissários durante a crise, com o fito
de servirem de Conselheiros de todos os negócios e para prover à proteção de
todos e ao bem comum. A isto responderam os Altos Comissários que eles
sabiam de como, em casos importantes, relacionados com a manutenção do
Brasil Holandês, os Altos Comissários se tinham servido não somente do
Conselho dos Senhores da Justiça, das Finanças e do Alto Comando Militar,
mas também dos escabinos e da milícia burguesa; e que eles estavam
dispostos a continuar este uso e ouviriam de bom grado todos aqueles que
propusessem algo para o bem deste Estado.

Divulgou-se, também, que o comércio, em Angola e numa parte da Guiné,


assim como o envio dos alimentos necessários, tinham sido prejudicados pelos
citados contratos, embora isso fosse evidentemente falso e invocado contra os
Altos Comissários sem motivo algum e aparência de verdade, de vez que todos
os contratos foram feitos em fins do ano de 1644, enquanto que o referido
comércio já decaíra anteriormente por causa da guerra feita tanto nos quartéis
da Bahia como de Portugal.
Página 334 de 349

A primeira vista a presença de um índio de corpo bem proporcionado, munido de arco e


flecha em atividade de caça remete ao mito do bom selvagem, em contrapartida, ao
fundo as práticas de canibalismo, que intimidavam e aterrorizavam aos europeus.

Além disso, o comércio da Guiné não estava em piores condições depois de


feitos os contratos do que já estava há muitos anos. E, também conforme
dissemos longamente é claro que Abraham de Vries e seus asseclas
procederam mal para com os Altos Comissários, Hendrik Hamel, Pieter Bas e
Adriaen Bullestrate, atacando sua reputação e fama. Por conseguinte, os Altos
Comissários foram mal recompensados por seus esforços dedicados e leais,
que nunca deixaram de empregar no serviço da Companhia, quando, com a
bênção de Deus e com tão pouca gente (que tinha decrescido, no final, até o
número de 1.692 cabeças, inclusive duas companhias de negros e todas as
crianças e doentes no hospital), se mantiveram em 20 lugares. No começo da
guerra, quando não tinham mais de 2.700 pessoas, inclusive crianças e
doentes, deviam ocupar cerca de 160 a 170 milhas de comprimento, nas quais
havia de 28 a 30 lugares ocupados por guarnições e que deviam ser protegidos
contra o inimigo. Afora várias patrulhas que deviam ser empregadas, aqui e
acolá, no interior, contra as tropelias de guerrilheiros. Mais tarde, quando
alguns residentes portugueses pegaram em armas, juntamente com as tropas
do Rei de Portugal, sob o comando de Pedro Cavalcanti, Henrique Dias,
Camarão e outros, que, ocultamente, tinham vindo para esta região em junho
de 1645, pelo Rio São Francisco - nada conseguiram e foram rechaçados pela
pequena força de que os nossos podiam dispor e isso em várias ocasiões,
como em Ipojuca, Santo Antônio, perto de São Lourenço, e em outros lugares.
Página 335 de 349

Posteriormente, os portugueses da Baía chegaram a Tamandaré com uma


esquadra de navios a vela e aí desembarcaram 1.800 a 2.000 homens,
recebendo um auxílio dos residentes portugueses que, até esta época, se
haviam mantido em paz, mas que, agora, também se revoltavam.
Conseguiram, assim, reunir uma grande força, com a qual atacaram a Várzea,
pondo em debandada o Coronel Haus, que comandava 700 soldados, tanto
holandeses quanto brasileiros. Esta derrota foi mais um terrível golpe para os
nossos e muito os prejudicou, porque não tinham gente para defender todos os
lugares por eles ocupados. Foram, por isso, obrigados a abandonar as regiões
de Sergipe d'El Rei, São Francisco e Porto Calvo, para poderem reservar a
gente necessária à proteção das principais fortalezas em redor do Recife e de
outros lugares de importância. Não puderam reunir o pessoal necessário,
porque as nossas belonaves e o navio para lá enviados a fim de buscar os
soldados encontraram, no caminho, o inimigo, com a sua esquadra, em
Tamandaré, pelo que se fizeram ao mar, no intuito de procurar o Almirante
Lichthart, com os navios por ele comandados e para informar do resultado.
Nessa parte foram felizes os nossos, pois, juntos, destroçaram inteiramente a
esquadra inimiga, detendo-se, porém, por tanto tempo que chegaram com dois
dias de atraso para buscar os soldados da fortaleza. Não obstante,
conseguiram manter, com a bênção de Deus, os 20 lugares, conforme já foi
dito, e expulsar, depois de todas as perdas sofridas pela Companhia, por duas
vezes, o inimigo da Capitania do Rio Grande, da qual ele procurava apoderar-
se. Ajudados pelos Altos Comissários, repeliram o inimigo também de
Itamaracá, onde este tinha desembarcado com cerca de 3.000 homens,
infligindo-lhe graves perdas. A verdade é que todo o Brasil Neerlandês deve
reconhecer que os Altos Comissários não pouparam fadigas nem trabalhos
durante todo o tempo de seu governo, estando presentes em todos os lugares,
da mesma forma que os simples soldados, e mantiveram-se firmes até não
haver mais provisões e até estarem a tal ponto desfalcados, que não havia
mais do que 1.700 homens, conforme foi dito, para a defesa dos lugares em
redor do Recife, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande. Por aí se pode ver,
claramente, que os Altos Comissários cumpriram o seu dever e sempre
empregaram extrema diligência e zelo no combate e impedimento da revolta e
contra os levantes que, de tempos a tempos, surgiam tanto no mar quanto em
terra. Tudo isso, não obstante o pequeno número de guerreiros de que
dispunha a Companhia, no Brasil, de alguns anos para cá.

Em primeiro lugar, eles atenderam, muito diligentemente, à conservação das


fortalezas, como se vê claramente do que ficou dito por extenso, pelas
declarações de vários oficiais que ali serviam. De igual modo, atenderam, em
todos os lugares, tanto na Baía como alhures, à conduta dos tapuias do Ceará
e à dos brasileiros da Baía, que pertenciam ao distrito de Camarão, assim
como aos negros sob as ordens de Henrique Dias, dos quais partiu a primeira
suspeita de levante e revolta. Além disso, os Altos Comissários não pouparam
trabalho, empregando todos os esforços a fim de mandar mensageiros à Baía,
os quais, sob o manto da amizade e de comissões, deveriam apurar, com
certeza, qual a força do exército e quais os navios que ali se encontravam, bem
como em outros lugares mais ao sul, e procurar saber de tudo quanto se
relacionasse com a esperada revolta contra o nosso Estado. Deveriam, por
outro lado, prestar contínua atenção aos navios que chegavam da Baía à
Página 336 de 349

Capitania de Pernambuco e outros lugares; procurar e perseguir as tropas do


inimigo ou de guerrilheiros, logo que lhes chegassem quaisquer notícias sobre
eles, nos Matos mais longínquos; vigiar, sempre, o mar; desarmar, também, os
portugueses que moravam no interior; protestar contra o Governador e fazer
tudo que pudesse se relacionar com a revolta. Mas todas essas calúnias e
maledicências de Abraham de Vries (que era uma pessoa agitada e revoltosa)
e seus asseclas quanto aos Altos Comissários parecem ter se originado
especialmente de uma vingança, em razão de justas condenações e sentenças
pronunciadas contra eles pelo Comissário da Justiça no Brasil, pela sua grande
perversidade, demonstrada contumazmente, contra seus superiores, visando
desacreditar o governo holandês no Brasil.Os entendidos julgam que a causa
principal da decadência do Brasil Neerlandês foi a ocupação insuficiente das
fortalezas e lugares fortificados por tropas, a par da minguada população de
holandeses e homens livres do território, de vez que, com uma população
densa, o país ficaria, de uma parte, assegurado contra o inimigo e, de outra
parte, desobrigado de manter fortalezas e guarnições, que causam grandes
despesas ao Estado e muitos empecilhos aos residentes.É costume geral,
usado por todos os povos, manter constrangidos e dominados os povos
vencidos, seja por meio de castelos e guarnições, seja por intermédio de
exércitos de ocupação, seja pelo estabelecimento de colônias e pelo
povoamento. Os Romanos, para manter o seu poderoso domínio, valeram-se
tanto de colônias quanto de exércitos de ocupação.

As colônias que eles levaram para vários países eram como que sentinelas
vigilantes dos povos dominados, a fim de observar se eles planejavam alguma
revolta, e avisá-los a tempo de poderem providenciar, enviando socorros. O
estabelecimento dessas colônias se fazia com grande extermínio dos
residentes dominados, pois estes, de repente, eram despojados de suas terras
e obrigados a cedê-las aos soldados licenciados dos Romanos, sem esperança
alguma de, jamais, poder retomá-las. Não se deve pensar, porém, que
somente com tais colônias e com o prestígio do nome romano, povos tão
poderosos fossem dominados. Além das colônias, os Romanos tinham, por
toda a parte, exércitos permanentes, que impediam levantes e revoltas. Jamais
foi mantido um grande Império somente com postos de vigilância e castelos,
sem poderio militar suficiente, com ou sem colônias. Há, ainda, um outro modo
de colônias ou povoações, diferente do precedente, que oferece maior
estabilidade e durabilidade, evitando o estabelecimento de guarnições, com
todas as despesas e incômodos daí decorrentes, embora seja o mesmo
contrário à religião cristã: a saber, matando e expulsando, depois da vitória, a
maior parte dos antigos residentes, e estabelecendo-se nos mesmos países,
povoando-os com colônias e populações próprias.

Os espanhóis e portugueses, depois do descobrimento da América, (vendo que


este novo mundo de densa população e muito afastado de seus próprios
países, não podia ser subjugado de outro modo) adotaram e puseram em
prática esta forma bárbara e desapiedada de povoação, exterminando os
antigos residentes. Aniquilaram milhares de homens na América,
especialmente na Ilha de Cuba, Haiti e outros lugares, pela espada, pelo fogo,
pela força, pela fome, pelo trabalho nas minas, pelo garimpo e por outros
trabalhos.
Página 337 de 349

Os portugueses não imitaram mal o exemplo dos espanhóis, senão no


povoamento, pelo menos no despovoamento, exterminando de tal modo os
residentes, que, onde antigamente havia alguns milhões de brasileiros, entre o
Rio São Francisco e o Rio Grande, agora se encontram, apenas, alguns,
milhares. Assim, no meu tempo ainda viviam, aí, alguns portugueses, que se
lembravam de quando a Capitania do Rio Grande dispunha de 100.000
guerreiros. Contudo, os portugueses não seguiram bem o exemplo dos
espanhóis no tocante ao repovoamento do Brasil, porque se fixaram apenas no
litoral, sem dirigir-se para o interior.

Aos espanhóis é expressamente proibido estabelecer uma colônia no litoral


(exceto uma em cada distrito, perto do melhor porto do qual se precisa para
dirigir-se para o interior), de um lado, para não estarem sujeitos ao perigo do
inimigo e para encontrar um clima salubre e, de outro lado, porque estas
populações do litoral não se prestam para a agricultura e dificilmente são
levadas à observância das leis. Quem é versado nesse assunto sabe,
perfeitamente, que as riquezas das esquadras das índias Ocidentais não
provinham do litoral, mas do interior, razão por que os espanhóis tanto se
dedicaram ao povoamento do mesmo. O fato de os portugueses não terem
podido povoar devidamente o Brasil, à moda dos espanhóis, deve-se à
circunstância de que tinham mais paixão e cobiça de procurar sua fortuna, com
grandes frotas, nas índias Orientais, (onde havia grandes terras e reinos e
onde podiam obter maiores vitórias e maiores lucros por meio do comércio de
especiarias, pedras preciosas e outras raridades) do que de procurá-la no
Brasil, onde não se revelavam minas de ouro nem de prata e onde só se
obtinha açúcar com trabalho penoso; além do que, deviam manter sua
navegação e seu domínio nos países conquistados da Costa Ocidental da
África, como Angola, Guiné e outros. Por isso é que sua colônia brasileira
continuou falha de poderio, a tal ponto, que, no ano de 1568, os brasileiros
tiveram, ainda, coragem de assediar a cidade de Olinda, sendo preciso que
Dom Jorge de Albuquerque viesse de Portugal, com um exército, para libertá-
la454.

454
Não é exata a afirmativa de Nieuhof. Os Caetés, índios tupis que coabitavam desde o São
Francisco até a Paraíba (cf. Soares, LXXXVI, 34), levantaram-se contra os portugueses de
Igarassú, sitiando-os. Duarte Coelho Pereira conseguiu dominá-los e em seguida partiu para o
Reino. Em sua ausência, governou Jerônimo de Albuquerque, irmão de Dona Brites de
Albuquerque, e cunhado de Duarte Coelho. Outro levantamento verificou-se nessa época, e
obtiveram, então, os índios Caetés uma grande vitória no Cabo de Santo Agostinho, contra
Jerônimo de Albuquerque. A rainha Dona Catarina apressou a vinda de Duarte Coelho de
Albuquerque, filho de Duarte Coelho Pereira e seu sucessor, Duarte Coelho de Albuquerque
chegou a Pernambuco em 1560, acompanhado do seu irmão Jorge de Albuquerque Coelho e
vários amigos e gente assalariada. Durante cinco anos combateu Jorge de Albuquerque os
Caetés, condenados anteriormente a perpétua escravidão por um edito régio de 1557. Foi
Jorge de Albuquerque favorecido pelas lutas dos tupinambás e tupinaês confederados contra
os Caetés, que foram inteiramente desbaratados, e os mais tornados cativos. [i]Destes cativos
iam comendo os vencedores quando queriam fazer suas festas, e venderam deles aos
moradores de Pernambuco e aos da Baía infinidade de escravos a troco de qualquer cousa, ao
que iam ordinariamente caravelões de resgate, e todos vinham carregados desta gente, a qual
Duarte Coelho de Albuquerque por sua parte acabou de desbaratar.[/i] A 16 de maio de 1566
partia Jorge de Albuquerque para o Reino, um naufrágio à costa, porém, salvou-o. A 29 de
junho do mesmo ano partia e de lá só voltaria em 1582, para suceder a Duarte Coelho. - Por
erro de revisão, mais provavelmente, ou por lapso, na 3ª edição de Frei Vicente do Salvador
Página 338 de 349

A Capitania da Paraíba só muito mais tarde foi subjugada e o Maranhão só foi


reconquistado aos franceses no ano de 1614.455 Mais tarde, os portugueses se
fixaram, também, no Grão-Pará ou na Amazônia. Não somente poucos
portugueses embarcaram para o Brasil, pelos motivos citados, a saber, por
paixão e cobiça das riquezas das índias Orientais, como também é um fato que
somente há poucos anos alguns portugueses de certa importância nela fixaram
residência; de modo que ao tempo em que tomamos a cidade de Olinda, no
ano de 1629,456[456] aí estavam até os portugueses mais respeitáveis, com
exceção de alguns, e outros que para aí tinham sido mandados, por causa de
delitos cometidos. Recentemente, antes da última revolta, aconteceu que
navegando três respeitáveis portugueses, num barco, do Recife para Olinda,
certo português perguntou a um importante judeu o que ele pensava daquelas
pessoas e se as tinha por honestas; ao que o judeu, que assim as considerava,
respondeu: É certo que estes três juntos não possuem mais de 2 orelhas -
querendo dizer, assim, que a um dos três faltavam ambas, faltando uma aos
dois outros457.[457]

está escrito que Duarte de Albuquerque Coelho chegou a Pernambuco em 1560, e aí se


ocupou durante cinco anos [i]em companhia de seu irmão,[/i] no exercício militar de luta contra
os inimigos indígenas e que Jorge de Albuquerque partiu para o Reino numa quarta-feira 16 de
maio do ano de 1563.
De qualquer modo, em 1568, já estava pacificada a capitania de Duarte Coelho Pereira (cf. Frei
Vicente do Salvador, LXXVIII, pp. 108-110, e pp. 184-186; Gabriel Soares, LXXXVI, p. 34-36;
Ayres de Cazal, XXVI, vol. II, p. 137-138).
455
A suspensão das lutas no Maranhão verificou-se em 27 de novembro de 1614. Foi assinada
por Ravardière, comandante dos franceses e por Jerônimo de Albuquerque, comandante da
expedição brasileira, que foi à reconquista dessa ilha (cf. Barão do Rio Branco, LXXV, 640 e
430; e João Francisco Lisboa, XLIII, p. 302, 303, 306). A suspensão de armas vigoraria até fins
de dezembro de 1615. A 31 de julho de 1615 foi assinado um acordo pelo qual Ravardière se
comprometia a evacuar a ilha dentro de 5 meses, e, como penhor do tratado, entregava o Forte
de Taparí.
456
[456] Olinda foi conquistada a 16 de fevereiro de 1630. Nieuhof logo a seguir insiste em
escrever 1629 (cf. VI e LXXV, p. 132).
457
[457] Parece tratar-se de pena. Realmente, o ato de desorelhar era um antigo suplício que
consistia em tirar ou tronchar as orelhas a um condenado. Os bons dicionaristas, como
Bluteau, Domingos Vieira e Moraes, registram desorelhar e desorelhamento. Na Espanha, "El
fuero real" aplicava essa pena ao autor de roubo de casa ou de igreja. No antigo direito
português, essa pena parece ter existido. Afirma Pereira de Sousa, um dos maiores
criminalistas e processualistas criminais do século XVIII, que o cortamento das orelhas era
muito usado nas leis dos antigos, principalmente contra os roubadores do Templo, e cita os
Ordenações livro 5, tít. LX, § 11 (LXVI, p. inum., vide Cortamento). Ora, o citado parágrafo diz:
Que qualquer pessoa que for tomada cortando ou desatando bolsa ou metendo a mão em
alguma algibeira, ora nelas se ache dinheiro, ora não, se for peão, seja açoitado, e sendo em
igreja, será mais degradado 2 anos para as galés. A pena do crime de roubo era, portanto, o
açoite e, com a agravante de se verificar na igreja, a de galés.
A pena de desorelhamento não consta explicitamente das Ordenações Filipinas. Ela é
cominada pelas Leis Extravagantes da época de D. Manuel. Chamavam-se extravagantes as
leis não ordenadas.
Nas [i]"Leis Extravagantes colligidas e Relatadas pelo Licenciado Duarte Nunez do Liam per
mandado do muito alto & muito poderoso Rei Dom, Sebastião nosso Senhor" (Com Privilegio
Real. Em Lisboa per Antônio Gonçalvez. Anno de MDLXIX),[/i] à p. 120, Tit. II - Dos furtos &
roubos, Lei I - [i]Dos que cortão bolsas,[/i] lê-se: [i]"Determinou el Rei Dom Manuel em relação
a 22 de Fevereiro de 1499 que qualquer pessoa, que fosse tomada cortando ou desatando
bolsa, hora na bolsa se achasse dinheiro, hora não, se fosse pião, fosse açoutado &
desorelhado".[/i] (Foi. 116 do livro primeiro). Na Lei III do mesmo título, cominava-se a pena de
Página 339 de 349

Do que ficou dito, vê-se claramente qual a razão por que, até o ano de 1629,
quando os nossos tomaram Olinda, existiam no Brasil tão poucos residentes
portugueses. De fato, este só pôde ser habitado no litoral até 7 ou 8 léguas
para o interior, a saber, enquanto havia possibilidade de estabelecer engenhos
de açúcar, de vez que, se os mesmos estivessem muito afastados, as
despesas seriam demasiadamente grandes.

Esta sua impotência e fraqueza foi a causa da nossa vitória: pois que o nosso
ataque teria sido frustrado se o tivéssemos feito nas ilhas a sotavento das
índias Ocidentais ou em outros países populosos. A pesar do nosso grande
poderio, nada pudemos conseguir além da ocupação da cidade aberta de
Olinda e a fortaleza de pedras São Jorge, sem se conseguirem outros
progressos durante muito tempo, sob o ponto de vista do principal interesse
deste Estado. Aparentemente, pode-se verificar, pelas várias maneiras de
povoamento usadas pelos espanhóis e pelos portugueses nas índias
Ocidentais, a razão pela qual os espanhóis, segundo cálculos humanos, eram,
aí, invencíveis, enquanto que os portugueses do Brasil puderam ser
subjugados e derrotados pelos nossos. Os ingleses e franceses não foram
negligentes quanto ao povoamento das Ilhas Caraíbas e da parte norte da
América, à moda dos espanhóis, embora ali, com maior extermínio dos nativos
do que aqui, tornaram-se, em poucos anos, tão fortes, que não temiam nem o
perigo interior nem o exterior. Os nossos, pelo contrário, depois da ocupação
do Brasil, não somente não imitaram qualquer dessas quatro nações,
povoando completamente as novas terras conquistadas, a fim de assegurar, de
uma vez por todas, seu domínio sobre elas, como, o que é pior, nos longos
anos em que as dominaram nem sequer conseguiram que os dois principais
portos de todo o Brasil Neerlandês, Recife e Paraíba, pudessem ser protegidos
por gente livre, além do exército. Da mesma forma, não conseguiram que, em
tão vasta região, se estabelecessem duas colônias particulares com
capacidade, embora as mesmas fossem necessárias e embora se tratasse de
manter subjugadas estas terras conquistadas, com castelos e guarnições.

As causas que motivaram o retardamento e detiveram o povoamento do Brasil


por holandeses livres já se disse que foram as seguintes:

Primeiro: consentiu-se, por meio de um pacto, que depois da nossa conquista


do Brasil a maior parte dos portugueses continuassem na posse dos seus
engenhos de açúcar, com os mesmos direitos de que gozavam antes, sendo os
mesmos de tal ordem que, sem seu consentimento e licença, ninguém podia
atravessar os limites de suas terras e muito menos aí construir casas ou

desorelhamento aos escravos, nos seguintes termos: "Lei III. [i]Dos que furtão vuas em Lisboa
ou riba Tejo, ou na corte. Ordenou o dito Senhor, q qualqr pessoa, q fosse tomada no termo da
cidade de Lisboa, ou da banda dalê, ou riba Tejo, ou em qualqr lugar onde a corte stiuesse, cõ
vuas furtadas, assi de dia como de noite, se fosse pião, fosse açoutado publicamente: & se
fosse escrauo, ale da pena dos açoutes, fosse desorelhado. ... Per hu aluara de 8. de julio de
1521"[/i] (foi. 12 do liv. 3).
Pero Borges, em carta a D. João III, datada do primeiro ano de governo de Tome de Souza, de
7 de fevereiro de 1550, queixa-se de que [i]"nom ay homens pera serem juizes ordinários nem
vereadores e nestes hofficios metião degradados por culpas de muita infâmia e[/i]
DESORELHADOS [i]e ffazião outras cousas muito fora de vosso serviço e rezão"[/i] (Cf. Porto
Seguro, LXXII, 1° tomo, p. 233, nota X de Rodolfo Garcia).
Página 340 de 349

estabelecer fazendas para pastos de animais ou para plantações. Ora,


acontecendo que a maior parte dos lugares favoráveis ao povoamento, tais
como Serinhaém, Ipojuca, Santo Antônio e outros lugares, se encontravam
situados dentro de um engenho de açúcar de algum português, os nossos
eram obrigados a comprar deles, em primeiro lugar, este direito ou de
consegui-lo de outra maneira, ao que os portugueses, muitas vezes, se
mostravam pouco dispostos, por inveja do nosso povo, procurando antes
favorecer aos seus do que aos nossos.

Segundo: Os engenhos de açúcar e fazendas confiscados foram vendidos


sem distinção, tanto a portugueses, como a holandeses, de modo que os
holandeses tiveram menos ocasiões de estabelecer engenhos e fazendas.

Terceiro: Os engenhos e as fazendas foram vendidos aos holandeses por um


preço tão alto, que ficaram arruinados todos aqueles que os compraram. Razão
por que, mais tarde, nenhum dos que tinham meios quis comprar engenhos,
partidos ou fazendas.

Quarto: Os bens móveis, tanto alimentos como produtos manufaturados e


materiais de construção, pertencentes aos engenhos, especialmente o açúcar,
único rendimento e produto de alguma importância do Brasil, foram
sobrecarregados de tal modo de despesas de transporte, impostos e foros, que
os residentes livres do nosso povo (que se não contentavam tão facilmente
como os portugueses) não podiam subsistir sem lucros fabulosos, que não
podiam provir do açúcar, embora este fosse extraordinariamente caro.

Quinto: O preço elevado dos negros impedia as pessoas livres de comprá-los,


por faltar-lhes meios; e a maior parte dos que os compraram ficaram
completamente arruinados pela mortandade que começou a reinar entre os
negros, nos anos de 1641 e 1642.

Sexto: Pouco auxílio ou mesmo nenhum foi dado às pessoas livres; estes não
foram socorridos nem com boas terras, nem com negros (com os quais, no
Brasil, se fazem todos os trabalhos agrícolas), por um preço razoável ou a
longo prazo, a fim de poderem iniciar tais trabalhos.

Os dispensados do serviço da Companhia não podiam conseguir, aí, dinheiro à


vista, por suas letras, para empregá-lo na compra de negros ou de bestas, mas
tinham que enviar essas letras à pátria, a fim de que aí fossem descontadas
ou, então, deveriam vendê-las com grande prejuízo. O Estado, pelo contrário,
devia ter convidado as pessoas livres para o mais pronto e melhor povoamento
do Brasil Neerlandês, com títulos honrosos, terras devolutas, favores e direitos
de passagem, visto que o perigo, para eles, no interior, era muito grande,
devido aos guerrilheiros. O povoamento era extremamente necessário para a
diminuição das guarnições costumeiras e para manter subjugados os
residentes portugueses. De maneira muito diferente procederam os espanhóis
na América; pois que o Conselho das índias, por ordem do Rei, publicou, no
ano de 1563, uma ordenação em que o patrão de uma colônia de 30 famílias
recebia, além de outras vantagens e dignidade, um título de nobreza para si e
seus descendentes, podendo usar o título da sua colônia e gozando de todos
Página 341 de 349

os privilégios e honras de que gozavam os nobres e cavalheiros dos ricos de


Castela, segundo os costumes da Espanha.

Verdade é que os nossos ficavam privados e impedidos das mais próximas


terras, para canaviais e plantações, por causa da permanência da maior parte
dos portugueses nos seus engenhos e fazendas, não obstante o desejo de
nobreza e títulos e a esperança de obter, com o tempo, outras vantagens que
os teriam incitado, suficientemente, a fazer alguma cousa relativamente ao
povoamento se a isso fossem induzidos pelo Estado, mediante publicação
oficial. O fato é que toda a Companhia de Sergipe d'El Rei, uma grande parte
do Rio São Francisco, Rio São Miguel e os vastos campos do Maranhão e
outras terras mais distantes, especialmente a fértil terra nova na Mata, sendo
desabitadas, estavam abertas para eles, embora a maior parte delas não
servisse para engenhos de açúcar, por estar fora de mão. Em lugar, porém, de
favorecer a colonização por meio de benefícios especiais e de privilégios,
deixando-os, por algum tempo, sem a obrigação de pagar impostos ou outras
taxas, o Estado, levado pelos lucros, não só vendeu por preços muito elevados
os engenhos confiscados aos portugueses, logo depois de apoderar-se do
Brasil, como ainda, em lugar de deixar as colônias, por algum tempo, livres de
taxas, impôs tais foros e outras obrigações a todos os bens importados e
exportados, que as pessoas livres, com o seu trabalho no interior, não podiam
subsistir. Daí resultou que poucas pessoas partiram para o interior, a fim de se
dedicarem à agricultura. Quase todos ficaram retidos no Recife, onde se podia
ganhar muito dinheiro: primeiro, porque era a capital do Brasil Neerlandês,
onde havia grande movimento, e segundo porque, ganhando os feitores, a
princípio, grandes fretes de ida, seus patrões empregavam, muitas vezes, o
dinheiro que daí provinha, na construção de casas, por causa dos grandes
aluguéis. Foi essa a razão por que, procurando cada um completar a sua casa,
para receber aluguel, tornou-se difícil conseguirem-se pedreiros e carpinteiros.
Porém, pouco tempo depois, os patrões, não se contentando com as
remunerações dos fretes de volta, deixaram de mandar as cargas. E uma vez
que, feito o armistício com Portugal, não mais chegavam presas, os soldados e
marinheiros deixaram de gastar os seus recursos nas estalagens, porque seus
ordenados mal chegavam para seu sustento. Em conseqüência, o comércio
diminuía dia após dia. De modo que, em lugar de haver o aumento de pessoas
livres, estas voltavam para a pátria, diante do levante e da revolta, porque não
possuíam meios de subsistência. O que, finalmente, deveria ter péssimas
conseqüências para este Estado, conforme teve realmente. Assim como este
Estado não atendeu, convenientemente, à questão das colônias (como se vê
claramente pelo que ficou dito acima), para segurança do Brasil Neerlandês,
assim também parece não ter zelado e vigiado suficientemente a fim de mantê-
lo por meio de fortalezas e guarnições.

No começo do ano de 1641, o Conde Maurício confiava em que, para


ocupação das fortalezas e lugares do Brasil, não incluindo o Maranhão,
segundo uma lista em que vêm expressas as guarnições de todos os lugares,
para manter subjugados os portugueses, seriam necessários 7.076 soldados.
Com, este número de soldados, porém, ainda ficavam desguarnecidos
totalmente todos os engenhos de açúcar, as vilas e passos. Pelo que ficava
aberto aos residentes mal intencionados o caminho para, sob a aparência de
Página 342 de 349

praticarem sua religião, se reunirem, sem dificuldades, e forjar o seu plano


juntamente com outros, em prejuízo deste Estado. E embora se tivesse
recomendado aos burgueses a guarda do Recife e da Cidade Maurícia,
ficando, deste modo, livres as guarnições daí e de outros lugares, para
poderem ser empregadas no interior, ainda assim, conforme aquela lista, aí
sempre deveria haver 3.406 soldados para a ocupação, dos quais nem um só
homem poderia ser empregado no interior. Em lugar de aceitarem esta ordem
do Conde Maurício e de se conformarem com ela, este Estado, confiando
demasiadamente no sincero pacto de armistício de 10 anos com Portugal, com
o fito de poupar despesas, deu ordens aos Altos Comissários do Brasil, de
manter apenas 18 companhias, cada uma de 150 cabeças, para o domínio do
Brasil Neerlandês, desde Sergipe d'El Rei até o Maranhão (o qual fora ocupado
pelas nossas armas no ano de 1644), expressando o desejo de que as
companhias fossem reduzidas àquele número e reformados os demais
oficiais.Os Altos Comissários, vendo que erro tão evidente era cometido pelo
nosso Estado, ordenando o enfraquecimento das guarnições, reduziram as
companhias somente ao número de 27, até segunda ordem. Entretanto,
avisaram o Governo contra os aparentes perigos em que se cairia, com uma
maior redução das guarnições.

O Alto Governo do Brasil demonstrava, de tempos a tempos, ao nosso Estado,


de modo muito sério, que diminuía muito consideravelmente o número de
soldados, uma vez que, depois dos ataques contra Angola, São Tome e
Maranhão, estes lugares deviam, ser ocupados e protegidos, e devido ao
licenciamento dos soldados que, tendo servido muito mais tempo do que era
sua obrigação, não podiam ser retidos, acrescentando que não eram enviados
recrutas para o preenchimento de suas vagas, Mas seja para evitar as grandes
despesas que seriam feitas com o envio de novas tropas, seja porque se
estava certo de que os residentes portugueses, sem o auxílio de Portugal, nada
poderiam fazer (para o que se providenciara, por meio do tratado mencionado),
o fato é que nada foi feito nesse sentido, de modo que o primeiro ataque lhes
serviu de aviso. Além disso, para manter subjugado o interior (donde
provinham os produtos que deviam cobrir as despesas), era-se obrigado, por
falta de população suficiente, a manter guarnições em lugares distantes e
impróprios, que não podiam receber auxílio por mar. Quando, portanto, os
portugueses revoltosos, unidos com os da Baía, dominavam a situação, os
nossos deviam cair nas suas mãos, quando acabassem as provisões. Tais
lugares afastados eram o Rio São Francisco, Alagoas, Porto-Calvo, Una,
Serinhaém, Ipojuca, Santo Antônio, Muribeca, Igarassú e a cidade de Paraíba,
lugares esses que, estando situados todos rio acima, podiam ver cortado o seu
acesso por mar. Por isso, todas as guarnições que não puderam ser retiradas a
tempo, tiveram que se render, por falta de provisões. Dava-se isso tanto mais
facilmente, porque, naquele clima quente, não se podia ter um depósito de
carne e toucinho e porque só poderiam ser mandadas da pátria as necessárias
provisões para todas as guarnições com grande dificuldade; pelo que estas
puderam agüentar ainda menos. E embora o Recife, Itamaracá, as fortalezas
de Paraíba e Rio Grande tivessem tido o mar aberto, pelo que puderam
recorrer ao peixe, tanto para completar a refeição como em lugar do pão, a
verdade é que todos esses lugares já estavam perdidos há muito tempo.
Acrescentou-se a isso a circunstância de que se estava no fim dos recursos,
Página 343 de 349

quando os dois navios Valk e Elizabeth chegaram com socorros. Igualmente se


devia retirar o pão aos soldados, às mulheres e às crianças para dá-lo aos
soldados que do contrário ameaçavam passar-se para o inimigo. Depois da
minha partida do Brasil os negócios da Companhia das índias Ocidentais
corriam de mal a pior: no ano de 1654 ela perdeu todas as fortalezas e regiões.

Os portugueses, em dezembro de 1653 458, começaram a cercar o Recife com


60 navios por mar e em terra com um poderoso exército; por essa razão, os
Altos Comissários, assim como o Presidente Schonenburgh, Haecxs e o
Comandante Schkoppe, por falta de alimentos e munições, e também pela
pouca vontade dos soldados de lutar, foram obrigados a entregar aos
portugueses o Recife, com todas as fortalezas que o cercam. Mas a perda de
Recife não agradou aos governantes, que atribuíram a culpa desse
acontecimento aos citados Altos Comissários; como se eles tivessem
entregado ao inimigo um lugar bem fortificado, sem razão suficiente. Motivo por
que foram presos sob custódia, durante algum tempo, em suas residências, por
ordem dos Estados da Holanda e Zelândia, e guardados por soldados, tendo
sido, finalmente, porém, libertados459.

458
A 20 de dezembro de 1653 fundeava diante de Olinda a esquadra portuguesa, composta de
64 navios, inclusive os mercantes e comandada por Pedro Jacques de Magalhães e Francisco
Brito Freire. No dia 25 de dezembro, depois da reunião do Conselho de Guerra, a esquadra
começou o ataque às fortificações do Recife, sitiando-o por mar. (cf. LXXV, 686, 697).
Schonenburgh e Haecxs em seu relatório escrevem 65 a 66 navios (cf. LXXXIII, p. 1). Sobre o
sítio, cf. LXXXIII do lado holandês e do nosso lado [i]"Relaçam Diária do Sitio, e Tomada da
forte praça do Recife, recuperação das Capitanias de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande, Ciará, &
Ilha de Fernão de Noronha, por Francisco Barreto Mestre de campo general do Estado do
Brasil, & Governador de Pernambuco. - Lisboa. Com licença. Na Officina Craesbeeckiana.
1654".[/i] A 23 de janeiro de 1654 era suspensa a luta e a 26 assinada a capitulação; a 28
entravam solenemente no Recife as forças restauradoras, tendo à frente o mestre de campo
Francisco Barreto de Meneses. A capitulação assinada em acordo foi publicada na [i]Relacion
Verdadera de Ia recuperacion de Pernanbuco, sitio de su Recife, entrega suya, i de las
Capitanias de Itamaracá, Paraíba, Rio-grande, Ciará, é Islã de Fernando de Noronha, todo
rendido a las armas Portuguesas regidas por Francisco Barreto Maestre de canpo general dei
Estado dei Brasil, i Governador de Pernambuco. Lisboa. Com licêcia. En la Officina
Craesbeeckiana. 1654;[/i] e no [i]Articulen end conditien gemaeckt by het overleveren van
Brasilien. .. beslloten 26 january 1654 gedruckt te's Gravenhage bij Jan Pietersz.[/i] Os artigos
da capitulação foram transcritos por D. Francisco Manuel de Melo (LVI, p. 410-411 - a trégua -
e p. 412-418.- os Assentos e condições; e por Biker no Suplemento à Coleção dos Tratados de
Borges de Castro, vol. IX, p. 122 - segundo Edgar Prestage, LVI, contém essa cópia erros
evidentes, como sejam [i]índios[/i] em vez de [i]judeus;[/i] Varnhagen (LXXIII, p. 368-376)
transcreve a capitulação e os Assentos.
Assinaram a capitulação André Vidal de Negreiros, Francisco Álvares Moreira, Afonso de
Albuquerque, Manuel Gonsalves Correia, confirmados por Francisco Barreto e por parte dos
holandeses, Gysbert de Wit, Huybrecht Brest, Willem van de Wal, W. Falloo. Assinaram, ainda,
W. Schonenburgh, Hendrik Haecxs e Sigemundt van Schkoppe. No citado [i]"Articulen"[/i] falta
o nome de Schkoppe, e na transcrição de D. Francisco Manuel o de Brest.
459
Walter van Schonenburgh e Hendrik Haecxs chegaram à Zelândia a 13 de julho, depois de
uma viagem de 4 meses; e a 4 de agosto apresentavam um relatório aos Estados Gerais.
Nesse documento afirmavam que haviam freqüentemente informado os Estados da situação
dos negócios no Brasil, pleiteando remediara falta de socorros e o abandono a que se viram
deixados, e que pretendiam apresentar outro relatório no qual a conduta deles e de seus
soldados seriam justificadas, (cf. Histoire generale des voyages, Paris, Didot, MDCCLVII, Tomo
14, p.206). Sobre o relatório do Presidente e do Conselheiro, vide LXXXIII. Haecxs escreveu
Página 344 de 349

Desde esta época o Brasil ficou completamente em poder de Portugal. Os


Estados Gerais fizeram mais tarde, por sugestão do Embaixador Português em
Haia,460 a 6 de agosto do ano de 1661, um pacto de paz com a coroa
portuguesa. Os principais pontos deste tratado foram os seguintes:

- A coroa portuguesa deveria entregar a este Estado, 80 toneladas de ouro,


quer em dinheiro, açúcar, fumo e sal, quer em direitos aduarneiros, exigidos
nos portos portugueses.

- Foi concedido aos neerlandeses comércio livre com Portugal e com os


lugares e regiões da África e do Brasil, que pertenciam a Portugal, com o
privilégio de não pagarem direitos superiores aos que pagavam os próprios
portugueses.

um diário que vem citado no prefácio, nota 3. Souto Maior traduziu parte desse diário, que vem
publicado em LXXXVIIÍ, p. 435-437. Schkoppe foi, por sentença do conselho de guerra de 20
de março de 1655, privado de seus soldos. (cf.LXXIII, p. 386). É curioso, também, consultar as
opiniões de Groot filho sobre a derrota dos holandeses, (cf. Observações sobre a
transplantação dos frutos da Índia ao Brasil de Duarte Ribeiro de Macedo, in Antologia dos
economistas portugueses, séc. XVII, Antônio Sérgio, Lisboa, 1924, p. 379-382).

460
A luta e a restauração no nordeste brasileiro suscitaram muitos problemas e questões para
a dilomacia portuguesa. No quadro das relações diplomáticas , muitas foram as missões
enviadas a Haia e muitos os residentes cujos trabalhos resumiam-se no ajustamento dos dois
países.

Em agosto de 1651, D. João IV, por alvitre do cônsul holandês em Portugal, enviava a Haia um
projeto de acordo, que não foi aceito. Somente de 1661 os Estados Gerais dos Países – Baixos
apresentaram ao embaixador extraordinário D. Henrique de Souza Tavares, Conde de
Miranda, um ultimatum, pelo qual o acordo combinado com o Estado de Holanda deveria ser
assinado dentro de 10 dias, ou então ele teria de retirar-se. A 06 de agosto foi assinado e
somente a 24 de maio de 1662 ratificado por D. Afonso VI, sendo proclamado apenas a 27 de
abril de 1663. O tratado estipulava o pagamento de 4 milhões de cruzados dentro do prazo de
16 anos, como indenização pela perda do Brasil e a restituição de toda a artilharia que tivesse
as armas da Holanda; o preço pelo qual podiam comprar o sal de Setubal devia ser fixado
anualmente por mútuo acordo.; seria concedida liberdade de cmércio nas colônias,nas
mesmas condições em que os ingleses dela gozavam nessa época ou de futuro viessem a
gozar; deviam cessar as hostilidades na Europa dois meses depois da assinatura e fora dela
depois da sua publicação; os territórios e fortalezas ficariam em poder de quem ao tempo os

Em agosto de 1651, D. João IV, por alvitre do cônsul holandês em Portugal, enviava a Haia um
projeto de acordo, que não foi aceito. Somente de 1661 os Estados Gerais dos Países – Baixos
apresentaram ao embaixador extraordinário D. Henrique de Souza Tavares , Conde de
Miranda, um ultimatum, pelo qual o acordo combinado com o Estado de Holanda deveria ser A
Página 345 de 349
Página 346 de 349
Página 347 de 349

Ceará
Página 348 de 349

Ostium Flumines Paraybae - 1671 - Arnoldus Montanus - DETALHE


Página 349 de 349

Jürgens Reijmbach

Você também pode gostar