Você está na página 1de 24

Capítulo 4

Cultura e o indivíduo

Um homem da Nova Guiné, examinando povo da Nova Guiné é uma criação cumulativa
com seriedade os borrões de tinta de um teste de dos adultos que reflete suas experiências comun
Rorschach que lhe foi apresentado por um antro- na primeira e na segunda infância?
pólogo, descreve o que vê neles: um turbilhão de Ou será que o processo pelo qual as tradi-
pássaros em movimento, morcegos e criaturas mí-
ções culturais se acumulam e mudam está apena
ticas da floresta onde ele mora. Se um morador de
remotamente conectado com os conflitos e fan-
Los Angeles respondesse às manchas de tinta do
tasias psicológicas de indivíduos crescendo em
Rorschach dessa maneira, seria muito estranho - e
uma sociedade? Se o novo-guineense vê pássa-
indicaria problemas psicológicos profundos. Mas
ros, morcegos e criaturas míticas nos borrões de
e se os outros habitantes da comunidade da Nova
tinta, ele estará simplesmente reagindo a essas
Guiné todos vissem seres espirituais nas estampas
manchas ambíguas com base nas tradições sim-
de borrões de tinta?
bólicas de sua comunidade, apenas secundaria-
Há técnicas psiquiátricas padrão para inter- mente relacionadas com a dinâmica subjacente
pretar os testes de Rorschach. Mas será possível de sua personalidade? E como, uma vez que le-
aplicá-Ias na Nova Guiné? O que significa se os vantamos essas questões, devemos distinguir en-
moradores de aldeias em montanhas remotas, tre a cultura da comunidade e a psicologia do
propiciando os fantasmas dos antepassados e se- indivíduo?
res espirituais, produzem respostas que, em Los
Essas perguntas apontam para questões con-
Angeles, indicariam psicose ou neurose séria?
ceituais básicas sobre significados privados e signi-
Será que isso significa que as técnicas de pontua-
ficados públicos, personalidade e cultura, e como
ção estão corretas ao medir estresse psicológico
as tradições culturais em uma comunidade são
evero, mas que os homens nessa sociedade da
ova Guiné estão condicionados culturalmente construídas, e mudam progressivamente. A menos
para sofrer esse estresse pelos traumáticos ritos que possamos resolver essas questões preliminar-
de iniciação e cultos perigosamente secretos pelos mente, nossos exames dos modos de vida de ou-
quai eles foram elevados à hombridade? E o que tros povos podem começar em um terreno muito
dizer do fantasmas dos antepassados, perigosos escorregadio.
e unitivos? São elas imagens ilusórias psicologi- No entanto, ao tentar resolvê-Ias, deparamo-
enre projetadas de pais autoritários e figuras -nos com um .problema. Nas décadas de 1930,
masculinas autoritárias? Será que a cultura desse 1940 e 1950 os antropólogos - principalmente

70
CULTURA E o INDMDUO 71

Menina no festival de intercâmbio de moko


com toucado de penas de águia e brinco de
conchas de pérolas. Melpa. Papua-Nova Guine.

ricanos, entre os quais os mais conhecidos em desagrado. A partir de 1960, a pesquisa sobre
am Margaret Mead, Ruth Benedict e Ralph "cultura e personalidade" deixou de ser moda e
ton - abordaram essas perguntas diretamente. passou a ser um tanto desacreditada. Uma tris-
a tradição de pesquisa sobre "cultura e per- te consequência disso é que muitas das questõe
nalidade" estabeleceu-se como ponto central empíricas e conceituais críticas foram, com muita
di ciplina, adquirindo uma urgência especial frequência, varridas para debaixo do tapete e e -
rante a Segunda Guerra Mundial por meio quecidas. Uma espécie de fé frívola no antigo dito
tentativas de delinear o "caráter nacional" de metodológico do sociólogo francês Émile Dur-
amigos e inimigos. Como esta área estava infes- kheim de que as explicações psicológicas de fato
- da com problemas conceituai profundos, cir- sociais são sempre erradas serviu de base para a
laridades e paradoxos metodológicos, ela caiu análise antropológica por tempo demai . Mai
72 CULTURA E O INDIVfDUO

recentemente, no entanto, avanços na pesquisa cultura de uma comunidade e a personalidade


p icológica e cognitiva levaram a um reexame de de indivíduos.
muitas dessas questões (BOCK, 1988). Metodológica e conceitualmente essa abor-
as seções que se seguem iremos olhar no- dagem apresentava confusões insolúveis. Se a
vamente os antigos impasses e paradoxos concei- personalidade fosse a internalização da cultura,
tuais e metodológicos, olhar à nossa volta para os e a cultura fosse a projeção da personalidade
novos desenvolvimentos na psicologia e na bio- então poderíamos inferir orientações da perso-
logia e à frente para as melhores respostas que nalidade a partir de crenças e práticas culturais.
surgem para as antigas perguntas. Se os novo-guineenses com quem este capítulo
começa temem os espíritos perigosos da floresta
e se nossas teorias psicológicas nos dizem que
7 Cultura e personalidade: além do
essas criações simbólicas representam tipos par-
determinismo cultural
ticulares de fantasias e conflitos da personalida-
de, então podemos, por assim dizer, diagnosticar
Determinismo cultural: personalidade e a in-
sua psicologia a partir de seus mitos e rituais.
ternalização da cultura
Mas como, então, estaremos testando a teoria
A premissa que orientou a pesquisa sobre cul- psicológica? Será que é possível dizer que encon-
tura e personalidade durante as décadas de 1930, tramos uma correlação entre a psicologia indivi-
1940 e 1950 foi que o comportamento do adul- dual e a tradição cultural se não tivermos alguma
to é determinado primordialmente pela cultura; maneira de avaliar padrões psicológicos que não
um bebê que cresce em uma sociedade específica seja que por meio de símbolos culturais? No en-
é moldado pela impressão da experiência cultu- tanto - como no caso das manchas de tinta nas
ral. Por exemplo, com que frequência e sob que quais os guineenses viram morcegos e pássaros e
circunstâncias um bebê é alimentado e banhado, espíritos - os métodos que os psicólogos em Los
como é segurado, como e quando é disciplinado, Angeles ou Londres usam para avaliar a perso-
como e quando é desmamado ou treinado, de- nalidade são dependentes de símbolos culturais
pende dos costumes de um povo particular. Pa- e expressos através deles.
drões comuns de experiência infantil criam uma
Outros problemas conceituais e metodológi-
orientação característica da personalidade; e ao
cos se encontram no conceito de cultura; já en-
aprender uma cultura, a criança adquire motivos
contramos alguns deles. Se o analista progressi-
e valores, uma visão do mundo distintiva. Perso-
vamente constrói um modelo composto e ideali-
nalidade, nessa visão, representa a "internaliza-
zado da cultura da comunidade a partir daquilo
ção" de uma cultura (cf. GAINES, 1992).
que indivíduos fazem e dizem, é legítimo então
esse arcabouço não poderia haver um pa- perguntar como essa cultura "modula" ou é mo-
drão universal de natureza humana. Não haveria dulada pelo comportamento dos indivíduos? Há
-aria õe ignificativas entre indivíduos criadas algumas trilhas que nos deixam sair dessas moitas
or diferenças inatas em temperamento. Mal entrelaçadas e elas nos levam de volta às premis-
eria haver uma linha divisória clara entre a sas básicas.
§7 CULTURA E PERSONALIDADE: ALÉM DO DETERMI IS O CUl 73

onalidade, etograma e variação indivi- cia universal para se transformar em uma


criança controlada, calada, gracio a, mas
sem expressão, um balinê típico (FREED-
- desemaranhar parcial dessas premissas
MAN, 1974: 145).
com o reconhecimento da moldagem bio-
ub tancial do comportamento humano. o entanto, Freedman observa que, mais tar-
do componentes biológicos são caracterís- de, ele e Gregory Bateson observaram o seguinte:
nossa espécie: outros fatores de tempera-
Recentemente visitamos uma aldeia na
ariam muito entre indivíduos. O reconhe-
montanha em Bajung Gede em Bali e nos
- da importância desses fatores biológicos encontramos com Karba que não é o pa-
bases do determinismo cultural. Por um dre da aldeia. Fiquei surpreso pelo fato
m etograma característico de nossa espécie de Karba ser, mesmo aos quarenta anos
ubjazer à diversidade cultural e limitá-Ia; ou mais, uma pessoa contida e um tanto
r outro, diferenças inatas em temperamen- sem expressão [...] em contraste com seus
ariações na experiência individual evitam a companheiros aldeões que eram mais ex-
ização cultural da personalidade que tinha trovertidos [...] Karba, de quem um pon-
~ e umida. to teórico assim tão importante depen-
dia ("cultura determina personalidade"),
mudança de ponto de vista pode ser ilus-
pode ser, por sua própria constituição, um
or uma pequena história. a década de
indivíduo reticente (FREEDMAN, 1974:
. Gregory Bateson e Margaret Mead (1942)
145; FREEDMAN & DeBOER, 1979;
am um conhecido estudo fotográfico e
WlKAN, 1990).
da infância balinesa. Perguntavam-se como
ue a crianças balinesas cresciam para atuar Uma teoria interacionista que vê a persona-
balineses, com seu apurado senso de con- lidade como resultado de uma interação entre
. harmonia, equilíbrio e graça? Sua premissa potencialidades ou predisposições biológicas e a
ue as crianças balinesas, como crianças em experiência abre caminho para um estudo sério
uer parte do mundo, eram maleáveis para das diferenças individuais em uma tradição cultu-
qual fosse a impressão de experiência cul- ral. E abre caminho também para um estudo sério
que moldava suas vidas em seu começo. A sobre os possíveis padrões universais da "natureza
a que aparecia com mais frequência na série humana" que são canalizados, expressos e valori-
áfica e no filme era um menino chamado zados de formas diferentes em tradições culturais
- a. diferentes. Spiro (1978) argumenta convincente-
Como era que Karba estava sendo moldado mente que os universais da natureza humana, de
adrões de vivência e atuação tipicamente ba- nosso repertório emocional e comportamental
e ? O psicólogo Daniel Freedman, um espe- subjazem às diferenças culturais. Em um lugar a
ta na primeira e na segunda infâncias huma- competitividade e a agressividade podem ser va-
.. ornenta que, no filme de Bateson e Mead, lorizadas e reforçadas culturalmente; em ourro
Podemos ver no filme o menino balinês, (como em Bali) podem ser desvalorizadas, com
Karba, crescendo a partir de uma infân- ênfase no controle das emoções. A tradiçõe cul-
7 C JURA E O INDiVíDUO

rurai podem prescrever a busca de várias metas e reforçam alguns de nossos potenciais e restrin-
em e rilos diferentes - a livre indulgência ou a re- gem outros. Mas todos esses elementos - tendên-
pressão da sexualidade, a expressão dramática ou cias para competir e cooperar, para ser violem
a supressão da raiva. Mas sob esses códigos de ex- ou gentil - estão em aberto e incompletos a me-
pectativa cultural, argumenta Spiro, encontram- nos que lhes sejam dados significados culturai
-se as tendências humanas à raiva, à competição, e canais de expressão. Essa expressão pode ser
à ligação positiva e à solidariedade que os códigos aberta em algumas sociedades, relativamente es-
culturais podem canalizar, empurrar sob a super- condida em outras. Assim o hopi, supostamen-
fície e expressar de maneiras diferentes, mas nun- te gentil, expressa hostilidade de maneiras que
ca eliminar ou em última instância negar (cf. tb. normalmente ficam sob a superfície de controle
JORDAN & SCHWARTZ, 1990; SPIRO, 1982). externo; ela vem à tona quando as bruxas são
expulsas para o deserto. Os balineses gentis no
Essa perspectiva é útil, mas exige certa pre-
trato com seus semelhantes explodiram em orgias
caução. No momento em que começamos a falar
de violência assassina em 1965 quando mataram
sobre uma "natureza humana" biologicamente dezenas de milhares de seus conterrâneos em ex-
estruturada podemos muito facilmente cair nos purgos políticos. Os semais da Malaia, retratados
mesmos erros dos estudiosos antigos que falavam por Dentan (1968) como "o povo gentil" come-
sobre "instintos" - contra quem os deterministas teu atos terríveis de crueldade e violência durante
culturais reagiram de uma maneira que, no final, os tumultos civis em um ambiente urbano. Como
tornou-se exagerada. Se, como uma espécie, os observa Spiro:
humanos têm tendências comportamentais inatas, Os hopis podem ser não menos hostis que
essas tendências estão "em aberto". Ou seja, elas os sioux, apesar de os últimos exibirem
não são programas especificados inatamente para muito mais agressão social e [...] de seus
o comportamento e sim tendências que dependem valores culturais relativos à agressão se-
do aprendizado cultural para sua expressão. Elas rem diferentes [...] (SPIRO, 1978: 358).
representam um lado de um padrão, com a ou-
tra parte deixada em branco para ser preenchida Os erros na visão tradicional de cultura e
pelo aprendizado cultural. Todas as populações personalidade foram bem resumidos por Spiro
compreendem um reservatório de diversidade em (1978) ao refletir sobre o curso de sua própria
carreira intelectual:
temperamento. Uma tradição cultural que reforça
positivamente ou prescreve gentileza e controle Quando antropólogos começaram a con-
será congruente com o temperamento de alguns siderar a cultura como sendo internaliza-
da pelos atores sociais [...] começaram a
indivíduos, mas será considerada repressiva por
argumentar que a cultura era o conteúdo
outros; uma tradição que valoriza as bravatas de
[...] exclusivo do [...] organismo [...]. Já
guerreiros será congruente com o temperamento
que a cultura é encontrada em uma varie-
de alguns indivíduos e não de outros. dade espantosa de manifestações locais,
Portanto, em sua avaliação e canalização di- os antropólogos começaram a ver cada
'erente de elementos no repertório de comporta- cultura como uma criação mais ou menos
en o humano, as tradições culturais selecionam historicamente única, cada uma produzin-
§7 CULTURA E PERSONALIDADE: ALÉM DO DETERMI ISMO CUl 5

do uma natureza humana culturalmente contínua do mundo psicológico de um indivíduo


única (SPIRO, 1978: 353). e não a estados de espírito e motivos temporário.
Vista dessa forma, a personalidade pode er
modelo de "internalização da cultura", em
conceitualmente diferenciada da tradição cultural
e de suas premissas conceituais simplistas,
da comunidade, mesmo que elas sejam intima-
nou imediatamente qualquer busca eficaz
mente interconectadas. Tanto a separação parcial
- uma natureza humana universal e baseada na
e as interconexões emergem se examinarmos a
gia e qualquer estudo efetivo de como os in-
doença mental em várias culturas. Uma vez mai
uos em uma sociedade diferem em motivos
um caso pode ilustrar o que queremos dizer. O
entações com relação ao mundo. Além disso,
falecido WilIiam CaudilI relatou uma visita a um
ta das caracterizações das pessoas devem ser
hospital japonês para doentes mentais durante a
sideradas como estereótipos e não como gene-
qual ele foi levado por um psiquiatra sênior para
ções descritivas.
ver um "paciente com esquizofrenia catatônica
severa e incurável". Quando entraram o paciente
personalidade como um sistema psicobio- estava congelado em uma pose rígida já conheci-
o da de CaudilI pela observação de pacientes oci-
Precisamos de uma maneira de conceituar a dentais. Mas quando o psiquiatra entrou, o pa-
onalidade e de uma maneira de conceituar ciente se levantou, fez uma reverência, e depois
cultura que não nos prendam na armadilha da voltou a seu estado prévio.
- ularidade. A personalidade é o mundo psico- Aqui temos um indivíduo cuja construção
ológico de um indivíduo considerado como um privada da realidade, um mundo de medos e
- ema. A personalidade de uma pessoa inclui seu conflitos e significados, não pode, em qualquer
~ nhecimento (em grande parte inconsciente) do sentido, ser comparada com "a cultura japonesa".
odo de vida da comunidade, mas ela inclui mais O paciente talvez tenha se tornado esquizofrê-
e isso. Primeiro, um indivíduo tem um senti- nico em virtude de uma interação complexa de
o de identidade, um sentido do eu com relação predisposições genéticas, reações bioquímicas a
outros membros da comunidade e seu modo certos tipos de estresse que perturbam o funcio-
e vida. Ele ou ela tem motivos e metas que são namento do cérebro de maneiras características e
r-arcialmente distintivas, fantasias, significados tipos de experiência familiar que criaram estresse
memórias privadas. O indivíduo também tem e o empurraram além do ponto de ruptura. No
linações para certo comportamento - ser gen- entanto o paciente era culturalmente japonês e,
ou agressivo, reflexivo ou impulsivo, intenso ao construir um mundo privado de retraimento,
u relaxado, introspectivo ou gregário - que tem seus alicerces foram conceitos e valores japone e .
componentes biológicos substanciais. Isso é em Mesmo em seu terrível retraimento do mundo
arte uma questão de predisposição inata; mas ele estava interagindo com esse mundo em um pa-
o o temperamento é influenciado por nosso pel culturalmente definido de uma maneira cultu-
stado de saúde e nossa nutrição, pelo nível de ralmente adequada; retrair-se completamente po-
tresse ou relaxamento. "Personalidade" con- deria ter sido a maior angústia. A personalidade
encionalmente e refere a um tipo de integração do paciente e a "cultura japonesa" ão conceitual-
76 CULTURA E O INDiVíDUO

mente separáveis. A "cultura japonesa" não tem eles emergem se desenvolvem na maior parte da
predisposições genéticas, reações bioquímicas ou vezes de conceitos ocidentais das doenças. Ele
medos. No entanto o mundo privado peculiar do demonstram os perigos dessas premissas citando
paciente estava intimamente conectado com as um estudo de 1975 de Jablensky e Sartorius que
ideias, valores e códigos comportamentais que observaram que sintomas associados com a esqui-
são amplamente compartilhados pelas pessoas nas zofrenia, tais como algumas alucinações senso-
comunidades japonesas. riais, embora raramente relatadas nas populaçõe
de pacientes europeus, aparecem com alguma fre-
Uma das dificuldades em compreender e com-
quência em pacientes de outros países.
parar a interação de sistemas psicobiológicos em
várias culturas e sociedades diferentes reside nas Tentativas para padronizar critérios de diag-
construções culturalmente dependentes daquilo nósticos levam à padronização de métodos e me-
que é considerado comportamento "normal" e tas de tratamento. Uma vez mais, as ideias, va-
o que é considerado comportamento "anormal". lores e códigos comportamentais culturais fazem
Além disso, o conceito dos processos físicos do com que a padronização seja praticamente impos-
corpo pode diferir e isso, por sua vez, irá influen- sível. Mesmo as restrições logísticas impostas pela
ciar as percepções de processos normativos ver- falta de pessoal treinado e instalações adequadas
sus processos doentios. Por exemplo, Sudir Ka- para o tratamento de doentes mentais em algumas
kar (1991), em sua discussão de se os conceitos áreas, ela própria muitas vezes resultado de con-
freudianos de mente e corpo eram expressões de dicionamento cultural, faz com que a comparação
leis universalmente constantes ou sujeitas a modi- entre as culturas seja difícil.
ficações culturais, relata que o conceito hindu de A interação entre o privado e o social, o in-
"corpo sutil", embora análogo em alguns aspectos divíduo e o coletivo, o biológico e o cultural,
ao conceito ocidental de "psique", não é consi- emerge surpreendentemente nas formas de doen-
derado como uma categoria psicológica na Índia. ças mentais bastante diferentes daquelas familia-
Tentar então aplicar critérios diagnósticos para res à psiquiatria ocidental. Doenças associadas à

estados de enfermidade específicos entre culturas cultura foram descritas nas quais episódios apa-
que podem definir conceitos tão básicos quanto rentemente psicóticos adotam modelos padroni-

bem-estar e doença de maneiras diferentes e em zados bastante diferentes daqueles do Ocidente e

contextos que também diferem torna-se difícil mes- incorporam sistemas de crença que se tornaram

mo no melhor dos casos. A diagnose de esquizofre- parte da tradição cultural. Nessas doenças, uma

nia uma vez mais serve como modelo para ilustrar pessoa pode expressar uma ruptura psicótica com

e se ponto. É reconhecido que há inconsistências a realidade cotidiana de uma maneira altamente


convencionada.
na aplicação de qualquer tipo de critérios padro-
nizados no diagnóstico dessa condição complexa. Helman (1994) considera essas doenças como
Blue e Gaines (1992), ao notar as dificuldades de uma maneira eficiente e culturalmente sanciona-
omparar a esquizofrenia (ou qualquer doença da de indivíduos expressarem e solucionarem tan-
ental) em culturas diferentes, relatam que es- to conflitos pessoais quanto intersociais. A lista
rodo muitas vezes presumem "universali- dessas doenças é extensa e contém manifestações
e intomas" e que os modelos dos quais relativamente bem conhecidas como uma situa-
§8 A CULTURA COMO MODELOS INTERNOS DA REAUDAOE n

hipersugestionabilidade chamada /atah, dutivos como xamãs, videntes, visionário (IL-


rrada primordialmente no sudeste da Ásia; VERMAN, 1967). Se a conversa de um e quizo-
1m~:s_':J, descrito como uma compulsão caniba- frênico, aparentemente divorciada das realidade
manifestada entre as culturas que falam o al- do mundo físico vem de uma mente desorgani-
ano no Canadá; e susto, a crença na perda zada ou de uma fonte divina, é algo que nossas
-..L-_.'" causada por um evento súbito, fisicamen- culturas nos dizem. Se um esquizofrênico termina
mocionalmente traumático, encontrado em como um paciente mental ou como um profeta
América Latina. Na cultura ocidental foi religioso depende das circunstâncias de tempo e
o que padrões de comportamento comu- lugar e dos talentos que ele ou ela tiverem para
-,3 vistos e diagnósticos tais como a anorexia transmitir para outras pessoas uma visão específi-
:o:::r'lJ;->d e a agorafobia são exemplos de sintomas ca do eu e do mundo.
ados à cultura (HELMAN, 1994).
Um desenvolvimento, então, que nos permi-
_-o momento em que conceituamos a persona- te começar a organizar as confusões conceituais e
. de tal forma que ela não é mais simplesmen- metodológicas da pesquisa anterior sobre cultura
internalização da cultura, mas também in- e personalidade, é a emergência de um estudo sé-
ra fatores biológicos e culturais, então pode- rio de psicobiologia, da interação entre processos
:azer novas perguntas sobre doenças mentais biológicos e desenvolvimento psicológico, entre
- •.almente modeladas. Assim Wallace (1960,
proclividades inatas - aquelas que todos os seres
e seus alunos (principalmente FOULKS,
humanos compartilham, e aquelas específicas de
- _ perguntaram se as deficiências da alimenta-
certos indivíduos - que vivenciam. A personali-
.. ou outros desequilíbrios químicos - principal-
dade como uma integração permanente de uma
-e a deficiência de cálcio - poderiam contri-
orientação de um indivíduo para o eu e para o
,. para o estresse que provoca o windigo. Da
mundo, resultado dessa interação entre biológi-
ma forma, a agressão culturalmente modela-
co e psicológico, privado e social, é assim distin-
ue aparenta ser endêmica em algumas socie-
guível das heranças culturais das comunidades.
e pode representar deficiências bioquímicas
Outro desenvolvimento importante na psicologia
assim como aprendizado cultural. Um caso
que nos permite organizar as antigas confusões
ível dos Andes, ainda apenas documentado
é a emergência de uma ciência da cognição - os
.. ialmente, é ilustrado no Caso 1. (Este é o
processos de pensar e saber e a organização do
meiro de muitos exemplos de casos que es-
conhecimento e da memória.
-.10 espalhados pelos capítulos que se seguem,
merados para que os casos relacionados pos-
er comparados.) 8 A cultura como modelos internos
A íntima interconexão entre fatores biológi- da realidade
e convenções culturais também aparece nos
gnificados culturais e nos papéis sociais atribuí- Modelos internos da realidade: percepção e
a indivíduos biologicamente anormais. memória
Mesmo aqueles diagnosticados com doenças O desenvolvimento de uma ciência de cog-
entais sérias, tais como a esquizofrenia, podem nição desde o declínio de estudos de cultura e
contrar nichos crucialmente importantes e pro- personalidade revolucionou nossa compreen ão
78 CULTURA E O INDiVíDUO

Agressão qolla
Os qollas dos Andes sul-americanos e outros povos dência neurofisiológica e bioquímica, Bolton sugere que
de língua aimará foram descritos por muitos observa- a hipoglicemia moderada pode ativar padrões de reação
dores por mais de um século como sumamente agres- agressiva no sistema neural de tal forma que indivíduos
sivos, hostis, violentos, traiçoeiros - a lista de adjetivos afetados dessa forma estão inclinados à excitabilidade e
derrogatórios continua. Vários observadores atribuíram a à violência que são facilmente provocadas por estímulos
turbulência social e psicológica dos aimará ao difícil meio normalmente inócuos da vida social cotidiana. Bolton tes-
ambiente de grandes altitudes, uma existência de pobreza tou os níveis de glicose de homens qollas e, separadamen-
e cruel dominação por outros grupos sul-americanos e te, fez com que os próprios qollas avaliassem mutuamente
depois pelos espanhóis e classes dominantes mestiças. sua agressividade segundo uma escala de quatro pontos.
Bolton considera essas interpretações como ape- Na amostra, a suspeita de Bolton foi surpreendentemente
nas parciais: elas não explicam as variações individuais na confirmada: dos treze homens classificados pelos qollas
agressividade entre os qollas, os mecanismos pelos quais o como altamente agressivos, onze mostraram ter uma de-
estresse social e psicológico é traduzido em um compor- ficiência moderada de glicose enquanto um era normal e
tamento agressivo e o comportamento bastante diferente um tinha deficiência baixa. Entre os treze na extremidade
exibido por outras populações sujeitas a pressões aparen- inferior da escala de agressividade oito tinham níveis nor-
temente semelhantes. Deve haver um elemento faltante mais de glicose, três tinham deficiência moderada e dois
e uma maneira de escapar da circularidade da explicação. tinham deficiência severa. (A hipótese de Bolton era que
uma deficiência severa levaria a um nível baixo de energia,
Bolton levantou a hipótese de que a grande altitu-
e isso talvez limitasse a agressividade.)
de e a dieta de má qualidade colocam muitos indivíduos
em um nível muito mais baixo do que os níveis ideais de A amostra é bastante pequena, as medidas inevitavel-
glicose, embora a bioquímica e a dieta individual levem mente menores que o ideal, e o conhecimento biológico dos
a graus diferentes de hipoglicemia. Baseando-se em evi- mecanismos envolvidos infelizmente ainda é um tanto limi-

da mente. Mencionamos alguns elementos dessa oncos são padrões que nós interpretamos como
compreensão que surge nos dois últimos capítu- reflexos; sabendo que as ruas não são feitas de
los - a maneira como os humanos constroem em vidro, que elas refletem a luz só quando cober-
uas mentes as coisas que veem e ouvem, a natu- tas com água, "vemos" a rua molhada e dirigi-
reza de conceitos tais como "cadeiridade" com mos de acordo. O conhecimento do mundo de
relação ao significado e os modelos aparente- que dependemos para construir percepções disso
mente universais e parcialmente inatos de lógica foi descrito por Gregory como nossos "modelos
que subjazem à diversidade linguística. internos de realidade" (1969, 1970).
o domínio da percepção, R.L. Gregory ex- Se ampliarmos o termo um pouco mais, ele
lorou a maneira pela qual aquilo que vemos é incluirá não só nosso conhecimento da rua mo-
rruído a partir daquilo que conhecemos. Nós lhada e de mesas e cadeiras, mas também nosso
"vemo ' a calçada molhada; ao contrário conhecimento de eventos e atos e o que eles sig-
rennas passam para nossos nervos nificam. Assim, nOSS0Smodelos internos da reali-
§8 A CULTURA COMO MODELOS INTERNOS DA RE..tIUOADE 7

""""=,-""" esse exemplo realmente sugere que há uma cone- gião do Lago Titicaca do Peru e da Bolívia. Hoje, além dessas
-~. ~",,",Iógica em uma rede complexa de variáveis - envol- áreas, eles podem também ser encontrados na Argentina.
era, altitude e estresse social - que torna os qollas
Durante a década de 1970, Ralph Bolton continuou a
••• ~aveis a conflitos interpessoais e a explosões social e
investigação de sua hipótese de que há um elo causal entre
J5(:::i::~lcamente perturbadoras de hostilidade. (BOLTON,
hipoglicemia crônica e comportamento agressivo. Estudos re-
probabilidade de que essa conexão fisiológica, en-
centes (1994-1995) do comportamento de prisioneiros vio-
O!ierxk> hipoglicemia, contribui para a agressão entre qollas
lentos na Finlândia também postularam uma correção entre
':Mc!uaJs foi reforçada por pesquisas adicionais.
hipoglicemia e comportamento irritável, impulsivo e agressivo.
ministrando o Teste de Complexão de Frases aos
Bolton (1976) descobriu diferenças nas respostas
e por parte de indivíduos com deficiência mode- Para maiores informações
glicose ou glicose normal. Indivíduos hipoglicêmi- BOLTON, R. (1976). "Hostility in Fantasy: A Further Test
ram respostas agressivas ao teste significativamente of the Hypoglycemic-Aggression Hypothesis". journal of
IS frequência. Mas é ilustrativo da complexa intera- Aggressive Behavior, 2 (4), p. 257-274.
tre fatores fisiológicos e culturais que as respostas
SALLNOW, M.J. (1989). "Cooperation and Contradiction:
as eram provocadas com mais frequência quando
The Dialectics of Everyday Practice". Dialectical Anthropo/o-
es referiam-se a áreas especiais nas quais a agres-
gy, 14 (4), p. 241-257.
:ocalizada na sociedade qolla; terra, mulheres, figuras
toridade, parentes do sexo masculino e dinheiro (cf. VIRKKUNEN, M.; KALLlO, E.; RAWLlNGS, R.; TOKOLA,
_~ON, 1976, 1978). T.R.; POLAND, R.E.; GUIDOTTI, A.; NEMEROFF, BIS- c,
SETTI, G.; KALOGERAS, K.; KORONEN, S.L. & LlNNOI-
LA, M.M. (1994). "Personality Profiles and State Aggressive-
ização do caso ness in Finnish Alcoholic, Violent Offenders, Fire Setters
Os qollas (ou collas) são parte dos aimarás, uma popula- and Healthy Volunteers". Archives of General Psychiatry, 51
igena sul-americana que tradicionalmente vivia na re- (I), p. 28-33.

e nos permitem dar um sentido a um rápido tão examinando a memória. Experimentalmente,


amento de um dos olhos (uma piscadela) e podemos estudar os processos de adquirir e re-
ma mão direita que se estende para nós (algo cuperar a informação. Pesquisadores que traba-
r egurado e "apertado" em uma saudação). lham na área de inteligência artificial construíram
ue sabemos sobre o mundo, esses "modelos representações matemáticas da memória, inclusi-
remos" são terrivelmente complexos. O que sa- ve o conhecimento do significado das palavras.
mos que nos permite falar e compreender a fala Outros, procurando programar autômatos seme-
enas um pequeno segmento daquilo que sabe- lhantes a robôs, criaram representações internas
que nos permite participar de nossos mundos cada vez mais complexas do ambiente externo e
ciais. meios de interagir com ele. Apesar desses avanços
Como é que esse "conhecimento" tão imen- importantes, nossa compreensão de como mode-
mente complexo é organizado? De um modo los internos da realidade são organizados ainda
_ ral, os psicólogos cognitivos abordaram a ques- está se desenvolvendo. Há vários motivo pelo
C JURA E O INDIVíDUO

quai antropologicamente falando, esse ataque A cultura como um modelo interno de rea-
interdisciplinar nos mistérios da mente é crucial. lidade não compreende tudo que um indivíduo
"sabe" sobre o mundo (KEESING, 1974). O que
sei sobre a cadeira mais confortável na sala de vi-
Cultura como um modelo interno
sitas, as peculiaridades do Tio Jake, e as preferên-
Lembrem que no Capítulo 2 examinamos a cias dietéticas de meu cachorro são parte de meu
cultura a partir de duas direções. Como físicos modelo de realidade, talvez, mas não são exata-
que devem ver a luz tanto em termos de partículas mente parte da minha cultura. Aqui uma vez mais
e em termos de ondas - porque cada perspectiva obtemos uma linha divisória entre o domínio da
exige e implica a outra - os antropólogos devem "personalidade" no sentido de minha integração
considerar a cultura tanto como um sistema cog- e orientação psicológica para o mundo como um
nitivo organizado em mentes individuais e como indivíduo e organismo biológico único, e aque-
um sistema compartilhado em uma comunidade, le segmento do meu modelo de realidade que é
um sistema de significados públicos e coletivos. útil chamar de minha versão da cultura. O último
Vendo a cultura como um sistema de signi- consiste na minha teoria sobre significados e códi-
ficados acima e além dos indivíduos nos permi- gos para o comportamento que outros na comu-
te ver como a realidade é socialmente definida e nidade estão usando.
construída. Como Geertz (1973) colocou: Assim, quando aprendemos que roupa usar,
Do ponto de vista de qualquer indivíduo ou onde e como apertar a mão de outra pessoa,
específico, os símbolos culturais são em é com referência a um código que - presume-se -
grande parte dados. Ele os encontra já em os outros estão acompanhando. Quando apren-
atuação na comunidade quando ele nasce
demos o que uma palavra significa, é com refe-
e eles continuam, com algumas adições,
rência à maneira como outras pessoas presumi-
subtrações e alterações parciais para as
velmente a estão usando e compreendendo. Nos-
quais ele pode ou não ter contribuído, em
so conhecimento de nossa cultura compreende
circulação depois de sua morte. Enquanto
nosso modelo desse código que está sendo usado
vivo, ele os usa, ou alguns deles [...] para
colocar uma construção sobre os eventos em nossa comunidade. Enquanto nossa memória
pelos quais ele passa. compreende o conhecimento do particular, de
experiências e eventos, o conhecimento cultural
Examinando a cultura como um sistema cog- é generalizado. Ele compreende princípios e sig-
nitivo, como modelos internos de realidade dis- nificados e "regras" construídas como teorias a
tribuídos na comunidade, nos permite pergun- partir de experiências específicas. Adotando essa
tar sobre a diversidade de modelos individuais e perspectiva de significados culturais - o que não
obre a política do conhecimento. E pelo menos impede e aliás até exige que adotemos também a
igualmente importante, isso nos permite explorar perspectiva de Geertz - podemos perguntar sobre
as restrições no conhecimento cultural impostas como as teorias culturais do mundo são aprendi-
ela biologia - perguntar que tipos de modelos das, como são organizadas e com que amplitude
in erno de realidade podem ser aprendidos e elas variam de uma sociedade para a outra.
do por animais como nós.
§8 A CULTURA COMO MODELOS INTERNOS DA REAUDADE 81

do, lógica e capacidade de construir teoria que


a criança leva também para outras tarefa . Em
outras palavras, podemos negar que existem fa-
culdades mentais inatas, ou podemos negar que
elas são específicas para o campo da linguagem.
Parece cada vez mais provável que capaci-
dades inatas para representar conceitos, racioci-
nar, perceber relacionamentos lógicos realmente
tornam possível a dramática rápida aquisição de
competência linguística - mas também que elas
parecem ser menos especializadas, menos especi-
ficamente linguísticas, mais generalizadas e abs-
tratas do que Chomsky sugeriu. Elas são impor-
tantes tanto no aprendizado da língua quanto na
aquisição de outros elementos do conhecimento
cultural. Mas quão detalhadas elas são, e como
funcionam na construção de modelos internos da
realidade, continua a ser um mistério.
endo uma cultura. Uma mãe
(Quênia) ensina seus filhos. Embora o bebê seja, assim que o circuito de
seu cérebro está plenamente formado, um for-
midável construtor de teorias, a tarefa de criar
.-\.aquisição de modelos internos progressivamente os modelos internos da rea-
lidade extremamente complexos que são nece -
erguntar como a cultura como modelo cog-
sários para funcionar na sociedade é tremenda.
é construída por uma criança nos traz de
Sem dúvida, isso envolve estágios progressi o de
- à questões que levantamos no fim do úl-
reformulação, transformação e reintegração. E e
apítulo com relação à linguagem. Até que
processo depende aparentemente da capacidade
um bebê é preprogramado com a lógica
de generalizar a partir do particular, de raciocinar
ente e as estruturas organizadoras da lín-
abstratamente e formular conceito ab traro de
ontinua a ser uma pergunta em aberto. AI-
perceber conexões lógicas. Alguma de as capa-
autores que questionam a visão de Chomksy
cidades os humanos compartilham com eu pa-
e a faculdade da língua depende fortemente
rentes mais próximos, os chimpanzé e o gorilas;
ruturas inatas o fazem a partir da direção
aget - negando que uma criança tenha qual- algumas são unicamente humana .
pré-programação significativa das maneiras Até que ponto, e de que maneira o modelos
n ar, aprender e raciocinar. Outros questio- internos da realidade que o humano adquirem
a visão de Chomsky considerando-a muito são estruturados pela organização fí ica de nossos
a e veem a aquisição da língua como uma cérebros é uma questão ainda endo investigada .
.1 ão de estratégias mais gerais de aprendiza- Se os antropólogos se contenta sem em catalogar
82 CULTURA E O INDIVfDUO

o costumes de outros povos essas questões pode- embora tendam a ter opiniões acaloradas sobre
riam não importar. Mas os antropólogos inevita- essas questões, não têm nenhum meio de saber as
velmente tentam fazer mais: caracterizar a visão respostas corretas.
do mundo ou modos de pensar de outros povos, Há razões crescentes para pensar que a lógica
avaliar a diversidade de culturas. E quando eles cultural e as visões do mundo são muito me no
entram nesse território, mesmo quando escrevem diferentes do que pareciam em um dado momen-
em termos da cultura como transcendendo os in- to. Parte da evidência vem da linguística, onde
divíduos, em termos de significados compartilha- lógicas universais subjacentes emergem cada vez
dos e sistemas simbólicos, ainda estão pisando em mais. Parte vem dos estudos de repertórios com-
areia movediça. portamentais e do potencial cognitivo de nosso
parentes primatas. Alguns antropólogos argumen-
taram, por exemplo, que a capacidade de reco-
Sistemas cognitivos e variabilidade cultural
nhecer imagens de duas dimensões como repre-
Essas questões de como uma criança constrói sentações de pessoas e objetos é uma habilidade
um modelo interno de realidade são cruciais na cultural especialmente do Ocidente. Alguns povos
avaliação da diversidade cultural. Será que todas na Nova Guiné pareciam incapazes de reconhecer
as tradições culturais, consideradas como mode- as imagens em quadros quando esses lhes foram
los da realidade construídos nas populações com mostrados pela primeira vez. Mas tarde, aprende-
o passar do tempo (e aprendidos por cada criança ram como fazê-lo, mostrando que a capacidade de
nascida naquela sociedade), têm a mesma estru- reconhecer representações de duas dimensões de
tura básica? As maneiras de vivenciar o tempo, objetos é claramente parte de nosso equipamento
o espaço, e talvez a causalidade serão substan- perceptual, não uma peculiaridade cultural.
cialmente determinadas pela nossa herança evo-
A evidência que vem se acumulando parece
lucionária? As tradições culturais podem diferir
agora indicar uma espécie de orientação cotidiana
em suas expressões idiomáticas e metáforas para
da "realidade", uma sensação de espaço e tempo e
falar sobre o tempo, o espaço e a causalidade;
causalidade que, essencialmente, é biologicamen-
mas nossa experiência delas pode ser fundamen-
te estruturada, um produto da evolução de pri-
talmente estruturada por nosso equipamento per-
matas e mamíferos e comum a todos os humanos
ceptual-conceitual. Essas estão entre as questões
em todas as partes do mundo. Nossas faculdades
mais cruciais abordadas pela antropologia. Mas a
linguísticas, um produto da evolução recente,
evidência que os antropólogos coletam é por na-
descansam sobre essas capacidades e nos permi-
tureza aberta à interpretação nas duas direções.
tem - de nossas várias maneiras - falar sobre elas.
Isto é, ela pode ser interpretada como se indicasse
que os mundos do pensamento de povos diferen-
te ão radicalmente diferentes e moldados cultu- o desenvolvimento cultural de capacidades
ralmente; ou como se indicasse que esses mundos cognitivas
e:rperienciais são fundamentalmente os mesmos A essa orientação cotidiana da "realidade"
do idiomas culturais diferentes para falar várias tradições culturais acrescentaram elabo-
- me ma experiências. Os antropólogos, rações: estados de espírito místicos e mundos
§9 A PSICODINÂMICA DA PERSONALIDADE EM UMA PERSPECTIVA EVOLUCIO 83

=~ilC-O , buscas de visões e jornadas míticas, peritos e seus idiotas, seja qual for a técnica em
e possessão e frenesis religiosos. Os ri- questão. Diferenças em estilo cognitivo foram
hora do sonho" dos aborígenes austra- extensivamente estudadas em várias culturas nos
o transes de Bali, as seções de magia negra últimos anos - embora, como no caso de testes
. as visões induzidas por alucinógenos da de personalidade, dificuldades de concordância e
Wl:SJ;::unéricaou da Amazônia, são expressões de vieses culturais nos instrumentos do teste dificul-
,;;::~[dades pan-humanas para estados da cons- tem a interpretação dos resultados (cf, COLE &
alterados/exaltados. Esses podem repre- SCRIBNER, 1974).
- o desenvolvimento e a avaliação cultural A essa altura, tendo examinado as culturas
:uldades mentais - para o pensamento místi- como sistemas de conhecimento, como modelos
lístico - que estão subdesenvolvidos e des- internos de realidade, precisamos equilibrar essa
dos na tradição racional ocidental. Muitos ênfase em cognição examinando agora o outro
er expressões das faculdades centradas lado da personalidade, o domínio das emoções.
rebro, complementares às faculdades da lin-
,..--...•
:-~." e da lógica analítica. Mas isso não é dizer
sumas pessoas caminham o dia todo em um 9 A psicodinâmica da personalidade
de unicidade mística com o cosmos. Quan- em uma perspectiva evolucionária
caçam, cozinham o jantar, e coçam seus
ro estão sendo tão racionais e pragmáticas O lado emocional da vida mental humana,
são os seres humanos em qualquer parte do em contraste com seu lado cognitivo, vem sendo
o a maior parte do tempo. convencionalmente chamado de psicodinâmica.
A imagem aqui é das emoções como uma força
desenvolvimento cultural especial de capa-
propulsora no comportamento, fornecendo a for-
.x.:!.:lí~ mentais emerge em outros domínios da
ça motriz por trás da fantasia e da ação. Aqui exa-
te também. Com a emergência da alfabetiza-
minaremos as antigas teorias da psicodinâmica à
em massa, os humanos se tornaram lamen-
luz das novas explorações da mente e da herança
ente ineficientes nas tarefas de memória
biológica.
eram lugar comum para seus antepassados.
cas especiais de percepção visual, de loca-
-- o, de resolução de problemas ou de nave- A teoria psicanalítica e a cultura
-o podem ser fomentados por treinamento e A corrente de pensamento mais influente na
riência, culturalmente reforçados. Assim os pesquisa moderna da personalidade foi a teoria
cimos da Micronésia que navegavam pelas psicanalítica - o trabalho de Freud e de eus alu-
ias e pelas marés, ou os caçadores africanos nos e sucessores. Desde as duas primeiras déca-
:1 tralianos buscando a caça, ou os polinésios
das do século XX antropólogos mantiveram um
tando genealogias extremamente longas, es- diálogo contínuo com psicanalistas, através de fi-
odos usando técnicas apuradas em tradições guras como Kroeber, Linton, Mead, Kluckhohn,
ais específicas. LaBarre, Leach e Fortes. O lado antropológico
Essas técnicas não são compartilhadas igual- desses diálogos abarcou desde empréstimos soli-
e por todos; todas as sociedades têm seus dários até ceticismo crítico. Uns poucos estudio-
CULTURA E O INDiVíDUO

Um mestre navegador da Micronésia ensina a aprendizes a bússola de estrela com seixos,


em Puluwat, Ilhas da Carolina Central.

sos cujo treinamento ou compromisso primordial pressa por parte de pacientes vienenses que ele
era na psicoanálise, principalmente Roheim, Kar- tratou teria levado Freud a acreditar erroneamen-
diner e Erikson, trabalharam diretamente com te em modelos abertamente limitados do incons-
materiais antropológicos. ciente? É o Complexo de Édipo realmente univer-
Um elemento desse diálogo foi perguntar se sal na experiência humana? A hostilidade entre
as teorias psicanalíticas do inconsciente poderiam pai e filho na primeira infância e a rivalidade pela
iluminar costumes, crenças e comportamento em sexualidade da mãe que Freud considerava cen-
sociedades não ocidentais. Será que os espíritos tral na psicologia humana em qualquer parte do
sobrenaturais de um povo poderiam representar mundo tomam a mesma forma e têm a mesma
projeções de figuras paternas e maternas e, por- importância nos lugares em que - como nas Ilhas
tanto, dos conflitos das primeiras experiências? Trobriandesas - o tio maternal de um menino, e
Questões como essas foram um tema permanente não seu pai, é o disciplinado r severo? (cf, OBEYE-
na antropologia psicanaliticamente orientada. SEKERE, 1984; SPIRO, 1982).

Outro elemento foi o esforço para expandir O interesse antropológico na psicanálise foi li-
a teoria psicanalítica, tornando-a menos presa à mitado, especialmente na antropologia social britâ-
culrura. Será que a repressão da sexualidade ex- nica, por uma preocupação relativamente restrita
§9 A PSICODINÂMICA DA PERSONALIDADE EM UMA PERSPECTIVA EVOLUCIONARIA 85

teoria psicanalítica após um treinamento socioan-


tropológico mais convencional (cf, HOOK, 1979;
SPINDLER, 1978). Agora existem sinais de um
ressurgimento na corrente contínua - embora há
muito diluída - da antropologia psicanalítica; e há
fortes sinais de que esse ressurgimento irá agora
produzir insights mais profundos do que aqueles
que foram possíveis até o momento.

Perspectivas evolucionárias sobre a mente in-


consciente
Seria prematuro até mesmo esboçar a forma
de uma teoria mais poderosa e útil sobre a mente
inconsciente do ponto de vista antropológico. No
entanto, podemos pelo menos examinar por que
uma compreensão mais profunda está se tornan-
do possível, e podemos vislumbrar alguns esboços
ores micronésios usam técnicas
parciais de uma teoria emergente.
--.,...:..,...,.~fomentadas pelo estudo das estrelas
irnento detalhado e experiência das Uma teoria do inconsciente humano e seu re-
tes, dos ventos e das pequenas ilhas. lacionamento com os produtos culturais da mente
hoje podem estar biologicamente bem-fundados
de uma maneira que nunca foi possível anterior-
relações sociais e com a maneira como as so- mente. Isso não é o mesmo que dizer que Freud
e funcionavam. E, após uma explosão de in- não estivesse interessado em biologia; ele era, em
em psicologia "de profundidade" na cultura primeiro lugar, um neurofisiologista e sempre um
cana e na pesquisa da personalidade, houve explorador das raízes biológicas da vida mental
e ilusão generalizada com as aparentes circu- humana. Mas infelizmente, à época de Freud.
- ide do tipo galinha ou ovo da interpretação e quase nada se sabia sobre a evolução humana o-
za de firme evidência nos processos da mente. bre a evolução do comportamento, sobre o com-
roporção muito grande dos antropólogos portamento dos prima tas e outros mamífero em
mos quase não recebe treinamento sobre ambientes naturais, e sobre o cérebro. _-\ te
-:s;carlá'Lli·se,
são relativamente céticos e geralmente freudiana, buscando ser uma teoria bioló gí
reressados sobre essa e outras teorias de perso- mente, teve de ser criada virtualmente em
de semelhantes. cuo biológico.
Alguns estudiosos, tais como George Deve- Na ausência de um conhecimen o a equado
1978) e Weston LaBarre (1978), mantiveram do comportamento animal e de sua e 'olu ão
orientações psicanalíticas por muitos anos; e Freud se baseou em inferência e em dado clí-
- e juntaram outros que foram atraídos pela nicos: ele achava que o animal eram impul io-
86 CULTURA E O INOIVlouo

nados pelos estímulos biológicos para comer e Hoje parece que tudo isso estava apenas par-
reproduzir e da mesma forma para matar, para o cialmente incorreto. À luz da etologia moderna
combate da caça e para acasalar. Como os seres ela deturpa substancialmente nossa natureza ani-
humanos são animais, esses impulsos biológicos mal. Primeiramente todos os mamíferos são, em
devem estar localizados profundamente no cére- vários graus, animais sociais. São biologicamente
bro e ser cobertos pelos mecanismos da mente programados não apenas para satisfazer impul-
consciente. O aprendizado cultural deve forne- sos individuais, mas para viver em grupos. O
cer os controles pelos quais a natureza animal é padrões comportamentais que são transmitido
mantida dentro dos limites e obrigações morais, biologicamente e moldados pela evolução são or-
pois, sem os controles culturais, nossos impul- questrados para produzir comportamentos gru-
sos sexuais, da fome e da agressão escapariam pais que são adaptáveis.
de nosso controle e a vida social ordenada se- O modelo da mente consciente superimposto
ria impossível. Mas Freud acreditava que nossa sobre a natureza primária é parcialmente confir-
verdadeira natureza animal e as fontes de nossa mado pelo conhecimento moderno do cérebro
psique e, portanto, de nossa energia física, estão em uma perspectiva evolucionária, mas é sim ple
sob esses revestimentos conscientes. demais. O sistema límbico do cérebro - evolu-
Freud acreditava que a vida mental humana cionariamente antigo - está direcionado para a
é uma dinâmica constante de conflito e controle, sobrevivência e para a reprodução e é a fonte
de expressão canalizada, redireção e repressão neural dos surtos de raiva e de outras emoções.
de impulsos e energias básicos instintivos; o con- No decorrer da evolução dos mamíferos, ele não
trole cultural e, portanto, a vida social, exige um foi suplantado e eliminado, mas, com o desen-
sério custo em termos de ansiedade, conflito e volvimento do neocórtex, foi conectado a um
muitas vezes neuroses. Os processos normais da sistema mais complexo onde o antigo sistema
psique - de sonhos e outras fantasias, de simboli- límbico continua a atender às demandas básicas
zação, de interação social cotidiana - expressam de sobrevivência (McLEAN, 1964, 1968, 1969,
o bloqueio, a redireção e a expressão dissimula- 1970).
da das energias de nossas forças vitais naturais. Na evolução marnífera e hominídea o siste-
Freud afirmava que, como somos incapazes, em ma límbico e o neocórtex foram evolvendo jun-
virtude da convenção cultural, de lidar direta tos como um sistema - um sistema que deve ser
e conscientemente com os impulsos sexuais e adaptável para que as espécies possam sobrevi-
agressivos tão centrais em nossa mente incons- ver. Os humanos, ao desenvolverem capacidades
ciente, reprimimos, sublimamos, ocultamos em corticais maciças para a resolução de problemas
ímbolos, negamos, redirecionamos. Embora os e a elaboração simbólica, também desenvolve-
eu to da saúde psíquica sejam severos e se ma- ram um circuito complexo que se conecta com
ni e tem em neuroses ou, no pior dos casos, em partes mais antigas do cérebro. O controle corti-
o e esses processos de fantasia e repressão cal dos processos límbicos é um produto da evo-
ém ubjazem às criações culturais da arte e lução, não uma imposição cultural sobre nossa
li ião. natureza biológica (cf, OAMASIO, 1994).
§9 A PSICODINÂMICA DA PERSONALIDADE EM UMA PERSPECTIVA EVOLUCIONARIA 87

Assim a neurociência moderna aponta para ma mente exagerada de um sistema incrivelmen-


inadequações nas concepções freudianas te complexo que a ciência só está começando a
e outros psicanalistas do consciente e do in- compreender.
ciente. A mente e o cérebro são terrivel-
nte complexos. Nenhuma dicotomia do tipo
Desenvolvimento psicológico e relacionamen-
diano entre o inconsciente e o consciente,
tos sociais
e processo primário e secundário, ou qual-
er outra teoria estratigráfica da mente que veja A teoria psicanalítica considerava o Comple-

veis" como sendo mais ou menos profundos xo de Édipo, a ligação sexual entre a mãe e o filho,
e er adequada. As estruturas do cérebro pelas com o pai como rival e figura autoritária, como
uma fase crucial no desenvolvimento da persona-
. os hemisférios cerebrais esquerdo e direito
lidade adulta. (A imagem feminina equivalente, o
complementares - o esquerdo normalmente
Complexo de Electra pelo qual uma menina de-
mpenhando operações predominantemente
senvolve uma ligação sexual com o pai, recebeu
ísticas, lógicas e sequenciais e o direito de-
menos atenção. Cf. CHODOROW, 1979; MIT-
enhando predominantemente operações ho-
CHELL, 1974; STROUSE, 1974, para reflexões
e integrativas - fazem com que qualquer
sobre os vieses sexuais da teoria psicanalítica.)
epção estratigráfica da mente seja inadequa-
O mesmo ocorre com os resultados de danos À luz dos estudos do comportamento moder-
rebrais que apontam para várias locações cere- no dos seres humanos e seus parentes mais próxi-
e processamento e organização diferentes mos no reino animal, essa ênfase assume um novo
programas para a linguagem, para lidar com significado. O trabalho de John Bowlby e seu
eio ambiente natural, e para lidar com o am- colegas (BOWLBY, 1969) indica que muito ante
nte social. de o desenvolvimento dos complexos de Édipo e
de Electra, um bebê (de qualquer um dos gêne-
Por exemplo, alguns pacientes com danos
ros) forma um vínculo psicológico profundo com
rebrais estão gravemente prejudicados em suas
a mãe (ou alguém que a substitui). Para o bebê
a ões sociais em virtude de sua incapacidade
o sistema de conexão psíquica mais importante
"ler" as respostas e estados de humor dos ou-
começa a operar entre as idades de três e ete me-
e, no entanto, podem ler jornais ou desern- ses. Esse vínculo primário, extremamente bá i o
nhar operações manuais sem problemas; em e formativamente crucial dos vínculo p íquico
tros casos as relações sociais dos pacientes não colore os vínculos emocionais na vida po erior.
prejudicadas, mas sua capacidade de mani- Os complexos de Édipo e Electra ão de envolvi-
ar o ambiente físico é seriamente prejudica- mentos que surgem desse vínculo anterior (não
pelo dano cerebral. Em um caso famoso, um sexual). Tanto em sua ênfase nas fase exualiza-
positor soviético perdeu totalmente o poder das" subsequentes da ligação p Iquica entre pais
linguagem em virtude de um dano cerebral de e filhos e seu tratamento relativamente ubde en-
ande porte, mas continuou a compor música. volvido de outros sistemas de ligação p íquica (o
onsciente e o inconsciente, portanto, devem vínculo com colegas, o vínculo com parceiros), a
- onsiderados como uma simplificação extre- teoria psicanalítica é muito re trita em sua visão
88 CULTURA E O INDiVíDUO

do desenvolvimento psicossocial. As descobertas zarras [...] em uma cultura, serão incorporadas


da etologia exigem que vejamos nossa natureza ao costume público e normal em alguma outra
animal como orientada fundamentalmente para a cultura."
vivência em grupos sociais e que vejamos os siste-
Considere o exemplo no Caso 2. Alguns ele-
mas de vínculos psíquicos como adaptações à vida
mentos no simbolismo ritual dos tallensis e outros
em grupo e como bases para esse tipo de vida, e
grupos são um tanto transparentes - o arco fálico,
para a dependência prolongada que a maturação
explicitamente um símbolo cultural de masculi-
tardia e o aprendizado cultural exigem.
nidade, o celeiro como repositório da semente e
Os vários modos de organização e costume da fertilidade. Mas mais importante são as manei-
familiar em épocas e lugare diferentes fornecem ras pelas quais os tabus e os ritos dramatizam as
ambientes variados em que a proclividades e po- mudanças de status introduzidos no ciclo da vida
tenciais humanos, parcialmente comuns a nossa humana e lhes dão expressão cultural (a transi-
espécie e parcialmente únicas aos indivíduos, ção do status de paternidade, a instituição de um
são expressas e desenvolvida. E elas fornecem grupo de irmãos em que o mais velho assume a
também, então, laboratório para a exploração responsabilidade); e ainda mais importante são as
teórica. maneiras pelas quais esses ritos e restrições ex-
pressam a arnbivalência e a hostilidade psicológi-
cas por caminhos canalizados socialmente.
A expres ão cultural de temas psicobiológicos
Todos os pais em todas as sociedades são am-
A vi ão mai ampla que os antropólogos obtêm
da situação familiar na perspectiva comparativa fez bivalentes com relação a seus filhos que sugam
com que Fortes (19 4), Devereux (1953) e outros suas energias e irão eventualmente substituí-los;
vissem a ameaça e a arnbivalência das relações pais- inevitavelmente eles sentem hostilidade e ressen-
-filhos tanto do ponto de vista dos pais quanto do timento ao mesmo tempo em que sentem amor e
ponto de vi ta do filhos. Os humanos, prevendo ligação. Em todas as sociedades esses sentimen-
seu próprio fim não podem exatamente evitar ver tos negativos devem ser superados: uma socieda-
em seus filho eu uce ores eventuais, seus sobre- de em que os pais são encorajados a matar ou a
viventes e sub ritmo . A arnbivalência e a tensão abandonar seus filhos (exceto sob as exigências
padronizada culturalmente é um tema comum muito especiais de infanticídio culturalmente im-
(FORTES, 1974). qui a evidência da antropo- posto) ou simplesmente a não ter nenhum filho
logia é particularmente vívida: conflitos e dramas não poderia estar exatamente bem-equipada para
emocionais que são provavelmente universais na uma sobrevivência de longo prazo. Mas a ambiva-
experiência humana e, no entanto, em nossa so- lência pode ser dramatizada em uma anulação ri-
ciedade podem ser abertamente atuados apenas tual e no tabu, e assim até certo ponto ser despida
por pacientes psiquiátricos, podem, em outras de culpa e aliviada de tensão. Entre os tallensis, a
sociedades, se transformarem em um foco de transformação do primogênito e da primogénita
prática ritual e convenção cultural. Como Fortes tão diretamente em substitutos simbólicos focali-
(1974: 93) observou "aquilo que pode parecer za a hostilidade dos pais e a rivalidade frustrada
respostas individuais idiossincráticas, ou até bi- (p. ex., o conflito edipiano) e ao mesmo tempo as
§9 A PSICODINÂMICA DA PERSONALIDADE EM UMA PERSPECTIVA EVOLUCIONÁRlA 89

rimogênitos entre os tallensis


Entre os tallensis, um povo de Gana, a descendência e
_ nça passam de pai para filho. De forma surpreenden-
cs tallensis dramatizam e ritualizam as tensões entre
e os filhos que irão substituí-Ios. O foco de obser-
- costumaria é o primogênito, que culturalmente é a
pai vítima da ambivalência de um pai com relação a
plantado por seus filhos.

Primeiramente é importante que os tallensis se ca-


e tenham filhos - com efeito, um homem deve ter um
para que possa atingir satisfação psicológica e cultu-
. crianças são desejadas e buscadas; sem um herdei-
asculino não se pode ser um antepassado e com isso
m lugar permanente garantido no cosmos tallensi.
Os tallensis consideram a maior glória de todas, aliás,
co objetivo realmente meritório na vida, ter a certe-
ce estar deixando descendentes, ideal mente do sexo
ulino [...]. Para ter vivido com sucesso é preciso mor- Um filho Tallensi primogênito é mostrado ritual mente,
- com a esperança de alcançar o papel de antepassado e pela primeira vez, ao interior do celeiro de seu
- so é possível se deixarmos descendentes masculinos pai como parte da cerimônia de funeral.
TES, 1974: 84).

'1as é o primogênito, e secundariamente a primogê-


cialmente para o pai morto, como intermediário entre
cujo nascimento assinala o fim da ascensão da vida de
aqueles que ainda vivem e os antepassados mais remotos.
pessoa e o começo de uma descida montanha abaixo,
eva à senilidade e à morte (os tallensis não estão
ente ansiosos para chegar rapidamente ao papel de Atualização do caso
tepassado). Desde seus cinco ou seis anos, o primogê-
não pode comer do mesmo prato que seu pai, não Hoje, o povo Tallensi continua sua vida pri or a-
e usar a túnica ou chapéu do pai, não pode carregar mente agrária no norte de Gana no litoral da Africa Oci-
aljava, ou usar seu arco; e não pode olhar para o celei- dental. O trabalho de Meyer Fortes com os Talle s es e
_ de seu pai. Após chegar à adolescência o primogênito a década de 1940 até a década de 1970 é um es ao an-
seu pai não podem se encontrar na entrada do com ple- tropológico clássico e continua a fornecer s so re
- abitacional. Tabus paralelos restringem as relações da um modo de vida que ainda permanece em tas oartes
ogênita com a mãe, e o vaso onde a mãe armazena a do mundo.
~ Ida é proibido à filha.

Quando os pais morrem a substituição pelos primo- Algumas leituras sugeridas


_ toS é dramatizada ritualmente. O primogênito e a pri-
FORTES, M. (1987).ln: GOODY, J.R. org. eligion Morality
gênita dirigem os ritos mortuários; o filho veste o boné
and the Person. Cambridge: Carnbri ge U ersity Press.
a túnica do pai. Uma pessoa mais velha que segura o
rco do morto leva o filho até ao celeiro proibido e o guia HART, K. (1971). "Migration and 1i dentity Among the
ra que ele entre. E só com a morte do pai é que o filho Frafras of Ghana". Journal of As an a d fr can Studies, 6 (I),
- ume a maturidade ritual plena e faz sacrifícios - espe- p.21-36.
90 CULTURA E O INDiVíDUO

neutraliza. E a criação cultural dos antepassados um mito ou a alteração de um rito é igualmente o


ao mesmo tempo nega a finalidade da morte e a produto de mentes individuais.
perda dos entes queridos. Para que seja compartilhado e, portanto, parte
da cultura, um elemento religioso ou ritual deve
Símbolos privados, símbolos públicos ser comunicado socialmente e aceitado por ou-
tros. Essas características - argumentam LaBarre e
Se as instituições religiosas ou ritos podem
Devereux - distinguem uma fantasia privada que
em parte ser expressões de conflitos psicológicos,
serve apenas às necessidades psicológicas de seu
será possível que as divindades ou outros seres
criador, da fantasia privada que toca uma corda
sobrenaturais sejam projeções psicológicas? Uma
reativa em outras pessoas e se baseia na experiên-
divindade punitiva é uma projeção psicológica de
cia psicológica compartilhada com outros, bem
um pai disciplinador? O psicanalista Abram Kar-
assim como em um repertório cultural de elemen-
diner, a antropóloga psicanalítica Geza Roheim e
tos simbólicos.
outros argumentaram que os entes sobrenaturais
O processo pelo qual o sonho de uma pessoa
são realmente criações de projeção. Relações com
passa a ser um mito da sociedade e a compulsão
sobrenaturais em propiciação ou expiação repro-
particular de uma pessoa um ritual da sociedade
duzem ou expressam conflitos ou culpa com re-
é pouco conhecido. Uma cultura aparentemente
lação às figuras paterno/materna. A maioria dos
inclui um corpo de material simbólico a partir do
antropólogos rejeitaria essas interpretações. A fan-
qual mitos e ritos são construídos e modificados.
tasia privada e pessoal de um indivíduo pode ser
A criação ou modificação de ritos ou mitos pode
sujeita à interpretação em termos da experiência
ser mais canalizada culturalmente e formalmente
psicológica individual, muitos diriam, mas cren-
estruturada do que muitas das criações da fantasia
ças e ritos que são compartilhados e públicos não
privada; mas elas são, em última instância, criadas
podem ser interpretados em termos da psique
ou modificadas pelas mentes individuais e passam
individual. Muitos citariam o dictum de Émile
a ser compartilhadas ou emprestadas dos vizinhos
Durkheim de que padrões compartilhados de cul-
só se forem psicologicamente significativas para
tura - "representações coletivas" - não podem ser
outras pessoas (KRACKE, 1978).
explicadas por meio da psicologia de indivíduos.
O oposto foi convincentemente argumentado por E quanto ao estoque de símbolos? O trabalho
LaBarre (1970), Devereux (1975) e outros. Sis- de Freud sugere a existência de temas universais
temas de crença, corpos de mito, e sequências ri- no simbolismo e antropólogos com tendências
tuais têm todos eles histórias no tempo e no espa- freudianas ou sem elas observaram também te-
o. ilusão de que eles não o fazem origina-se do mas recorrentes. Mas o contraste entre estudio-
e tudo antropológico das sociedades para as quais sos que interpretam esses temas em termos da
não exi tem registros históricos. Um mito ou pro- psicodinâmica individual e aqueles que (seguindo
edimento ritual específico tem uma história que Durkheim) os interpretam como representações
e ter começado apenas por meio de ideias coletivas é muito grande.
que foram comunicadas. Cada modifi- Teremos de escolher entre interpretações psi-
;-0 na re onragem (ou em um empréstimo) de canalíticas de símbolos e interpretações culturais
§9 A PSICODINÂMICA DA PERSONALIDADE EM UMA PERSPECTIVA EVOlUCIONARIA 9I

veem significados coletivos e sociais? O ensaio "funcionar" precisamente porque eles relacio-
ictor Turner (1978) sobre o encontro de um nam os significados sociais com a psicodinâmica
rropólogo social com a psicologia freudiana individual. Se isso é verdade, o conflito aparen-
zere uma resposta à qual voltaremos em um ca- te entre teorias psicanalistas de como símbolos
lo posterior. Não podemos simplisticamente são criados e usados e as teorias dos antropó-
raalar "símbolos intrapsíquicos" (i.e. privados) logos sociais de significados culturais podem
símbolos interpsíquicos (i.e. públicos). ser um artefato de conceitualização errônea e
Símbolos culturais [...] transmitidos de exagero de afirmação teórica. Um dos muitos
geração em geração por preceito, ensina- desafios importantes da fronteira antropológi-
mento e exemplos não [são] - pelo menos ca é encontrar meios de conceitualizar e explo-
para todos os objetivos práticos - psicogê- rar a interconexão entre experiência individual
nicos em origem (TURNER, 1978: 573). e significados coletivos que não nos obrigue a
tentar - como tanto os psicanalistas quanto os
L o entanto, ao mesmo tempo, símbolos cul- teóricos sociais o fizeram - reduzir um ao outro.
rar cobrem um espectro de referência, têm Uma conceitualização biologicamente sofistica-
'dos ou significados diferentes, que vão desde da dos modos múltiplos da inconsciência e das
eles que são sociais e coletivos até os que são profundezas da motivação serão um elemento
'ados e físicos. Assim, no decorrer de um úni- importante em uma compreensão mais comple-
irual a árvore mudyi dos ndembus (que exude ta dos processos simbólicos (cf. OBEYESEKE-
épia branca) ocupa o lugar de todo um gru- RE, 1984).
de referentes:
Ao examinar cultura e sociedade, língua e
seios, leite materno, relacionamento mãe-
personalidade, adquirimos o equipamento con-
-filho, a matrilinearidade (descendência
ceitual refinado de que precisamos para levar
na linha feminina) de um neófito (linha-
adiante nossa exploração dos caminhos humanos,
gem), a feminilidade em geral, mulheres
casadas, a gravidez, e até [...] a qualida- equipados agora para pensar mais precisa e ana-
de de ser um Ndembu (TURNER, 1978: liticamente sobre a organização da cultura e da
577; cf. tb. Caso 51, capítulo 15). sociedade e sobre como os sistemas socioculturai
mudam.
Enquanto a teoria psicanalítica veria signifi-
físicos, especialmente sexuais, como pri- suMÁRIo
rdiais no ritual, no mito e na arte, os signifi-
ociais podem ser mais destacados. O sexo Este capítulo examinou mais atentamente orno
o ou os genitais podem servir como símbo- a cultura é moldada pelo comportamento de indi-
forças criativas do universo, como na víduos que têm uma ampla variedade de tempera-
logia hindu. O eu é importante é a cone- mentos e sentidos definidos de identidad úni
entre significados físicos relacionados com O que molda uma personalidade e pecífica
riências primárias e os significados sociais e em uma cultura é determinado por fatore múl-
o os. Símbolos coletivos, culturais podem tiplos. As tradições culrurai elecionam a par-
92 CULTURA E O INDiVíDUO

rir de uma variedade ampla de potencialidades que tanto expressam quanto evitam essa tensão.
humanas e encorajam ou desencorajam maneiras Símbolos culturais são utilizados nesse processo
e pecíficas de auto expressão, tais como a genti- para conectar significados sociais e a psicodinâ-
leza ou a violência segundo contextos. É possível mica individual.
que certas propensões, tais como uma inclina-
ção para o comportamento agressivo, possam SUGESTÕES PARA LEITURAS ADICIONAIS

ser provocadas por fatores ecológicos (altitude Seções 7, 8,9


elevada e alimentação deficiente, como sugeriu
BARNOuw, V. (1973). Culture and Personality.
Ralph Bolton no caso do povo qolla). Mas essas
Ed. rev. Homewood, Ill: Dorsey Press.
tendências são sempre moldadas culturalmente
por meio da percepção e do conhecimento. Estu- BOURGUIGNON, E. (1979). Psychological An-
dos cognitivos aprimoraram nosso conhecimen- thropology: An Introduction to Human Nature
to de como a memória, por exemplo, é adquiri- and Cultural Difference. Nova York: Holt, Ri-
da e usada por indivíduos e é ao mesmo tempo nehart and Winston.
compartilhada comunalmente. A cultura pode,
COLE, M. & SCRIBNER, S. (1974). Culture and
portanto, ser examinada como um sistema cog-
Thought: A Psychological Introduction. Nova
nitivo de modelos internalizados da realidade
York: John Wiley & Sons.
distribuídos em uma comunidade. Ao examinar
os processos pelos quais uma pessoa organiza o EDGERTON, R.B. (1971). The Individual in Cul-
conhecimento e a memória podemos compreen- tural Adaptation: A Study of Four East African
der melhor como as personalidades se desenvol- Peoples. Berkeley: University of California Press.
vem em um meio cultural.
HOOK, R.H. (org.) (1979). Fantasy and Symbol:
A evidência de várias culturas também suge-
Studies in Anthropological Interpretation. Nova
re que as visões do mundo não são tão diversas
York: Academic Press.
quanto a visão "mosaico" de culturas sugeriria.
Finalmente, precisamos equilibrar o estudo da HSU, F.L.K. (org.) (1972). Psychological Anthro-
cognição com o estudo das emoções. A teoria pology. 2. ed. Cambridge, Mass: Schenkman Pu-
psicanalítica pode contribuir aqui, mas há proble- blishing Company.
mas com sua aplicabilidade universal. Estudos de
HUNT, R. (org.) (1967). Personalities and Cu/tu-
conexões no cérebro podem nos ajudar a definir
mais claramente a inter-relação entre cognição e res. Garden City, NY.: Natural History Press.

emoção de uma maneira que transcenda o qua- LEBRA, WP. (org.) (1976). Culture-Bound Syn-
dro freudiano do inconsciente e do consciente. O dromes, Ethnopsychiatry and A/ternate Therapies.
e tudo de caso do povo tallensi de Gana mostra Honolulu: University of Hawaii Press.
ue há tensão entre o pai e o filho mais velho,
que em ua estrutura familiar é esse filho que LE VINE, R.A. (1973). Culture, Behavior and Per-
a o lugar do pai no domicílio quando o pai sonality. Chicago: Aldine Publishing.
~ . O --lho deve observar tabus sofisticados
§9 A PSICODINÂMICA DA PERSONALIDADE EM UMA PERSPECTIVA EVOLUCIONARIA 93

- R.A. (org.) (1974). Culture and Perso-


onremporary Readings. Chicago: Aldine

:..ER, G.D. (org.) (1978). The Making af


'---'__ gical Anthropology. Berkeley: University
mia Press.

CE, A.F.C. (1970). Culture and Persana-


ova York: Random House.

Você também pode gostar