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Letras de Sangue

Fada Dos Lobos


Fada dos Lobos

Edson Tomaz da Silva


Letras de Sangue

Fada dos Lobos

Nota do Autor

A fada dos lobos é uma antiga lenda portuguesa, uma versão feminina mais
aprimorada dos lobisomens. Ao contrário destes, a fada dos lobos tem o
poder de controlar suas transformações durante a lua cheia, mudando de
forma apenas se for de seu interesse. Tem também o dom de controlar os
lobos. (Fonte: Wikipédia)

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Corria o ano de 1875. O pequeno vilarejo ao norte de Portugal, habituado a


ver os dias correrem sem outras novidades que não nascimentos e mortes,
seria agitado de uma forma que não se podia imaginar possível.

Apesar de ser um pouco tarde para visitas, Rodolfo Caieiros cavalgava em


direção a propriedade dos Rosa. A lua cheia no céu facilitava a cavalgada.

Precisava desesperadamente da ajuda do amigo e vizinho. Uma alcatéia de


lobos estava destruindo seu rebanho de ovelhas e ele queria conversar com o
vizinho, combinar com ele e outros criadores da região para caçar os
malditos.

Estava a poucos metros da entrada da propriedade quando se deparou com


uma cena insólita:

André Rosa, conhecido por seus modos pacatos e pela sua cordialidade,
usava seu cajado para espancar violentamente alguém que já estava caído
ao chão.

Impressionado com o que considerou uma covardia sem tamanho, Rodolfo


ficou ainda mais surpreso quando notou que a figura no chão era uma mulher!

Rodolfo Caieiros era uma cavalheiro: jamais permitiria que uma mulher,
pouco importando se dama ou prostituta, fosse agredida daquela forma em
sua presença.
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Desceu do cavalo, correu até André Rosa e, chutando sua perna, fez com
que perdesse o equilíbrio. Tomando de suas mãos o cajado, olhou com ódio e
desprezo o homem a sua frente.

- Que fazes, André? Perdeste o juízo?

- Imbecil, tu nos condenaste a morte!

Rodolfo não teve mais tempo para discutir. Só sentiu uma violenta dor que lhe
tomou das costas em direção ao ventre; olhando para baixo, viu aquela
mistura de mão humana e pata de lobo que emergia de seu abdômen,
encharcada de sangue e com alças de seus intestinos enroscadas entre os
dedos. Tomado pelo pânico, viu a mão inumana recuar com força e então
morreu, quando em sua saída, as garras dividiram sua coluna vertebral em
duas partes.

Sabendo-se incapaz de salvar Rodolfo, André Rosa correu para tentar salvar
a si mesmo. Mas ouviu o uivo da criatura e sabia que ela chamava pela ajuda
de seus comandados: em pouco tempo, como se vindos do nada, mais de
uma dezena de lobos cinzentos cercavam André Rosa, proporcionando-lhe
uma morte dolorosa e sangrenta.

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Nelson Rosa estava retornando de Coimbra. Desencantara-se demais da


universidade e cansara de tentar ser o que não era. Para desgosto de seu
pai, o mundo perdia um péssimo advogado e ganhava de volta um feliz
criador de ovelhas.

Longe também das caçoadas dos moços da cidade grande, que não
perdoavam a Nelson seus modos interioranos, parecia que haviam lhe tirado
das costas o peso do mundo.

Ele estava preparado para enfrentar a decepção de seu pai, mas não para a
noticia de que Seu André havia morrido daquela forma tão horrível.

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Examinavam os rastros, mas estes indicavam que, estranhamente, os lobos


haviam se dispersado. Era como se tivessem se reunido apenas para matar
Seu André e Rodolfo e depois tivessem seguido cada um seu caminho. Aquilo
não era normal.

Entre os que examinavam os rastros, Nelson era o mais ativo e o mais


silencioso. Enquanto os outros trocavam opiniões e davam os seus palpites,
ele se concentrava num grupo de rastros que ele percebera, mas os outros
não. Rastros de um lobo de cinco dedos, onde todos os outros só tinham os
costumeiros quatro.

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Naquela noite, na taverna, os homens discutiam acaloradamente sobre os


terríveis acontecimentos: todos se queixavam de ovelhas perdidas para os
lobos e agora, a morte trágica dos dois homens. Nelson, porem, continuava
mudo. Em respeito ao seu luto, os outros deixavam que bebesse sozinho e
em silêncio em sua mesa.

Pediu mais um caneco de vinho ao taberneiro. O homem demorou a atender


e resmungava quando trouxe o vinho. E seus resmungos chamaram a
atenção de Nelson:

- Mas logo hoje a rapariga tinha de me deixar desguarnecido!

Nelson se fez simpático:

- Sozinho para atender tantos, Tobias? Onde está sua esposa?

- Ah, Nelsinho, enquanto estavas fora minha mulher adoeceu e não consegue
deixar a cama. Chamamos então uma sobrinha dela para que viesse cuidar
da casa e me ajudar na taberna, mas a rapariga de ontem para hoje
conseguiu machucar-se, e cá estou eu a trabalhar sozinho.

- E como esta sua sobrinha se machucou?

- Diz ela que levantou-se a noite para ir aliviar-se e caiu no caminho da


privada. Tombo feio! Está com os braços todos lanhados e doloridos.

Nelson desejou melhoras para a moça. Terminou seu vinho, pagou a conta e
saiu.

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Em casa, analisava cuidadosamente a pista silenciosa que seu pai deixara


para guiá-lo ao assassino: a ponteira do cajado, antes de ferro rústico, fora
trocada por uma ponteira de prata.

Seu André contara varias vezes a Nelson, quando este ainda era criança, que
coisas profanas caminhavam entre os homens, disfarçados como se fossem
humanos, mas revelando suas faces malignas quando a noite caia sobre a
terra.

Se o pai trocara a ponteira de seu cajado por uma de metal tão nobre, era
porque algum desses seres desgarrados estava entre eles.

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Voltando à taberna na noite seguinte, Nelson logo percebeu que a sobrinha


do taberneiro se recuperara e estava lá para ajudá-lo.

- Um caneco de vinho, senhorita...

- Luisa, sua criada.

- Sou Nelson Rosa. Seu tio disse que havia se machucado...

- Tive um infortúnio, acidente tolo. Mas estou melhor, obrigada!

Não puderam conversar mais porque o movimento na taberna a obrigou a


atender os outros clientes. Mas Nelson pode observar que os ferimentos nos
braços da moça eram muito severos para quem tomara um tombo; parecia
mais que ela tomara uma surra!

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Nelson esperou pacientemente que a lua voltasse a ficar cheia.

Os outros criadores de ovelhas ficavam satisfeitos com a captura de um ou


outro lobo, mas Nelson sabia que aquilo não resolveria nada.

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Na primeira noite da lua cheia, ele levou uma dezena de ovelhas para fora
dos estábulos e as amarrou ao relento. Deixou que a brisa da noite levasse
seu recado. Nas mãos, segurava o cajado de seu falecido pai.

Pouco depois da meia noite, as ovelhas começaram a ficar agitadas. Nelson


sabia que não teria de esperar muito mais.

E eis que surgiu Luisa, sobrinha do taberneiro, caminhando faceira pela trilha
que vinha da estrada até a casa grande da propriedade.

Nelson levantou-se e colocou o cajado em posição de defesa. Luisa riu-se:

- Precisas de um cajado para defender-se de mim, Senhor Nelson?

- Não seriam horas de moças direitas estarem no resguardo de seus lares,


Dona Luisa?

Ela riu-se, mais uma vez.

- Tenho o senhor e seu cajado para proteger minha honra, não tenho, senhor
Nelson?

Ele engoliu em seco.

- E não é também uma hora muito adiantada para se pastorear ovelhas?

Nelson olhava a sua volta, tenso, esperando pelo ataque.

- Fazes bem de precaver-te, mas não sou eu a fonte do perigo que temes.
Antes, cá estou para ajudá-lo.

- E que tipo de ajuda alguém que trilha o caminho das trevas pode me
oferecer?

Ela sorriu, mas um sorriso triste.

- Nem todos os que trilham outros caminhos necessariamente buscam as


trevas, Sr. Nelson. Mas, realmente, há entre nós os que escolheram esse
caminho.

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- De quem estás falando?

Não houve tempo para que Luisa respondesse. Um farfalhar entre os


arbustos revelou a presença de um lobo, seguido de outro e mais outro e
mais outro, até que estivessem cercados por uma imensa alcatéia.

- Chamastes teus comandados, hein?

- Não os comando e garanto que só não corro o mesmo risco que ti porque
tenho poderes que desconheces...

- Percebo - disse Nelson, com ironia.

- Guarde teu sarcasmo para outra hora. Ela está perto.

- Quem?

A pergunta se respondeu sozinha. Caminhando ladeada por dois lobos, vinha


Dona Estela, mulher do taberneiro.

- Luisa, já havia dito para que saísse do meu caminho! Agora não me deixas
outra opção senão tua morte!

- Tu desonras o nosso legado, tia! Sempre fizemos o bem, agora trilhas o


caminho do mal.

- Não ouse questionar minhas decisões, fedelha. Volte para o esquecimento e


para os contos de fada, se lhe agrada. Eu não me curvarei perante os
humanos.

Nelson não estava entendendo nada. Quantas criaturas malignas mais


haveriam para se revelar naquela noite insana?

Embora não estivessem falando mais, Nelson podia perceber que a tensão
entre as duas mulheres crescia cada vez mais até que, num gesto de Estela,
os lobos avançaram contra Luisa.

Sem alterar sua expressão, Luisa levantou as mãos e uma onda de energia
repeliu os lobos com violência.

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- Deixe que estes animais inocentes sigam seu caminho, Estela! Esta luta é
nossa, não deles!

Estela não respondeu. Mas o apelo pareceu ter efeito: os lobos se


desagruparam, desistindo de um novo ataque.

Luisa, então, assumiu sua forma de lobisomem. Estela fez o mesmo. E as


bestas feras entraram em combate sob a luz da lua cheia.

Nelson sabia que tinha de fazer alguma coisa. Tinha de escolher um lado e
agir. Foi o que fez.

Enquanto as duas feiticeiras lutavam, Nelson esgueirou-se entre as árvores.

Estela e Luisa digladiavam-se, numa ferocidade inimaginável. Mas uma delas


optou por fugir para a proteção das arvores da floresta.

Mal adentrara a mata e aconteceu: a ponteira de prata do cajado atravessou


o coração da criatura, que soltou um uivo pavoroso, antes de cair morta.
Apesar da pouca luz que conseguia penetrar a copa das arvores, Nelson
pode ver Estela voltando a sua forma humana.

- Como soube que ela não era eu?

Nelson assustou-se, mas pela surpresa, não por medo de Luisa.

- O cajado de meu pai tinha sangue em sua ponta. Como estava caído muito
longe de seu corpo e do corpo de Rodolfo, era pouco provável que fosse de
qualquer um deles. Portanto, ele deveria ter ferido quem o atacou.

Nelson tomou fôlego e continuou:

- Tinhas marcas em teus braços, mas Estela, não. Porém, quando ela se
transformou, apareceram as marcas das feridas que meu pai lhe infligiu. Já as
marcas de teus braços desapareceram quando te transformastes.

Estela sorriu.

- És muito observador para um pastor de ovelhas!

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Nelson agradeceu:

- Obrigado. Mas como tu conseguistes as marcas em teus braços?

- Tive a infelicidade de que Tobias, meu tio e marido de Estela, me visse


voltando ao quarto no fim da madrugada. Tomou-me por uma rapariga
devassa e aplicou-me uma forte surra. Como ele é um inocente, não pude
defender-me, para não ferí-lo e nem deixá-lo saber que o mal penetrara em
sua casa.

- E agora? O que acontece?

- Eu e meu povo cuidaremos do corpo de Estela. Infelizmente, num mesmo


dia, meu tio vai perder esposa e sobrinha, mas estará melhor sem saber o
que houve de verdade. Podemos contar com teu silêncio?

Nelson balançou a cabeça, numa expressão soturna:

- E quem iria crer em mim, se contasse o que vi esta noite?

Luisa sorriu de novo. Parecia que sua capacidade de sorrir era infinita.

- Contávamos com isso. Mas é hora: devo partir. Adeus, Nelson Rosa. És um
bravo!

- Adeus, fada dos lobos!

E Luisa e o corpo de Estela desapareceram na neblina do dia que nascia,


deixando Nelson sozinho. Só lhe restava um segredo e suas ovelhas para
tocar de volta para os estábulos.

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Sobre o Autor

Edson Tomaz da Silva nasceu em São Paulo, capital, em 26 de abril de 1971.


A paixão pelos gêneros de terror e suspense é antiga, mas o autor só
começou a publicar seus textos em 2009 no site Recanto das Letras”

Em 2010, criou o site Letras de Sangue, onde publica seus textos, na


companhia de outros escritores amadores, também apaixonados por terror e
suspense.

Para ajudar na divulgação do site, passou a publicar seus textos também no


Scribd, criando a Coleção Letras de Sangue.

Licenciamento da Obra

A presente obra encontra-se licenciada sob a licença Creative Commons


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