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O Senhor Das
O Senhor Das Moscas
Moscas
―Não faz muito atravessei um período de tão forte crise espiritual que escrevi
uma longa carta a um monsenhor que admiro e estimo, contando-lhe tudo.
Usei nessa carta confessional a expressão: "sinto que minha fé está presa
por um fio". Sabe o que ele me respondeu? Que se regozijava por saber que
a coisa era assim, pois não confiava muito nas chamadas "fés inabaláveis"
dessas que julgam poder deslocar montanhas. São demasiadamente teatrais
para serem profundas — escreveu o monsenhor. "O fio que prende a sua fé
deve ser do melhor aço e portanto resistente e ao mesmo tempo flexível. Fé
sem flexibilidade, fé sem dúvida pode acabar em fanatismo." Terminou a
carta assim: "Reze a Deus, peça-lhe para que faça esse fio resplandecer
sempre a Sua luz".‖
Todo esse esforço também tinha a ver com a dúvida que atormentava Padre
Tiago. Tratar pessoas que passaram por experiências tão devastadoras não é
uma ciência exata. Padre Tiago sabia que haveriam as lembranças,
assombrando para sempre os cantos escuros das mentes dos pequenos.
Alguns talvez até enveredassem pelo mesmo caminho de sombras, muitos
abusadores haviam sido vítimas de abuso quando crianças. Ele jamais
poderia ter a pretensão de curá-los por inteiro então, será que o que ele fazia
era bom o suficiente? Será que não havia mesmo mais nada que ele pudesse
fazer por aquelas crianças? Será que ele realmente estava ajudando?
Como todo bom carreirista, o Bispo Hermano tinha o dom de colocar suas
prioridades a frente das da Santa Madre Igreja. Era um grande especialista na
arte da auto-promoção. Os recursos da diocese não eram distribuídos em
função das necessidades reais, mas em função do que lhe daria mais
visibilidade perante seus superiores.
Ele nutria uma grande antipatia por Padre Tiago. Primeiro, porque Padre
Tiago sempre queria mais dinheiro para cuidar de suas crianças. Sempre
mais pedidos de verbas para o abrigo, pedidos de verbas para estudos. E ele
precisava desse dinheiro para promover, assim digamos, as boas obras da
diocese.
Padre Tiago não sabia do interesse que a mídia chegara a ter por ele e,
mesmo que soubesse, só lhe interessaria se fosse servir para conseguir
alguma coisa para as crianças. Para si mesmo, ele mantinha um único e
pequeno luxo: uma garrafinha de bolso, que ele mantinha sempre cheia de
Johnnie Walker Red Label, que apreciava com a devida moderação.
Mas, se não podia ter certeza de que os frutos de seu trabalho eram
realmente suficiente para aquelas crianças, outros não pareciam ter dúvida de
quanto o padre era capacitado.
Era muito comum que o Conselho Tutelar solicitasse sua opinião em algumas
situações. Assim, quando aceitou dar seu parecer no caso do pequenos
Lucas, de apenas dez anos, Padre Tiago o fez acreditando que sua jornada
de vida o tivesse preparado para encarar o que ia encontrar pela frente.
Lucas era filho de Amaro Nadel, homem rico e poderoso, milionário do ramo
da construção civil. Segundo o relatório que recebera do caso, tudo começara
quando a empreiteira do pai de Lucas fora envolvida em escândalos de
corrupção. Durante a investigação, computadores foram apreendidos e neles,
além das provas dos crimes de colarinho branco, os policiais encontraram
vasto material pornográfico, incluindo fotos e vídeos caseiros dos abusos
cometidos pelo sujeito contra o próprio filho.
Parte II – O Tabuleiro
A mansão, assim como a grande maioria dos bens do casal Nadel, estavam
bloqueados pela justiça, devido à investigação da Polícia Federal. Mas
Carolina Nadel, naquela altura do campeonato, não queria ficar mesmo na
mansão. A maciça presença dos repórteres na entrada de sua casa tiravam-
lhe qualquer chance de ter um mínimo de privacidade.
A estrada que dava acesso ao sítio era terrível. Amaro Nadel a mantivera
daquela forma para manter o local ainda mais discreto e inacessível. De
dentro dos maravilhosos veículos off road que a família possuía, a
conservação da estrada pouco importava.
Naquela manhã, Padre Tiago estava dando graças a Deus pelo Gurgelzinho
da diocese. Se estivesse em um carro comum, provavelmente estaria preso
naquela estradinha horrível, com uma suspensão completamente destruída e
uma tremenda cara de idiota, esperando pelo socorro que nunca iria chegar.
Seguindo o mapa que a assistente social lhe mandara, Padre Tiago chegou
até uma cerca, onde uma cancela automática e um porteiro eletrônico
esperavam quem se aventurasse pela estradinha infernal.
Subindo com o carro por uma bela alameda arborizada, foi impossível para
Padre Tiago não ficar impressionado com o luxo da propriedade quando
parou o carro.
Quando a mulher começou a falar, Padre Tiago percebeu que falava com
uma mãe desesperada:
- Padre, tem... algo errado... com o meu menino... – a fala vinha intercalada
pelos soluços.
– O senhor... tem... que ver, padre... meu menino, padre... meu menino...
O desespero venceu a resistência e os calmantes. Carolina Nadel desabou
num choro convulsivo.
Sem fechar a porta para que o menino não se sentisse acuado, Padre Tiago
aproximou-se cuidadosamente:
- Lucas?
- Lucas não está aqui no momento – a resposta veio em uma forte voz de
homem adulto – mas estávamos esperando por você, Padre!
- O que é isso?
- Quem é você?
- Ora, Padre, é assim que o senhor trata o pai do seu mais novo paciente?
- Amaro Nadel?
- Eu disse que viveria para sempre através de meu filho, Padre. Se não
quiseram entender, se não quiseram acreditar, o problema não é meu!
- Mas... como... isso é... possível? – o mau cheiro já fazia com que o Padre
tivesse dificuldades para respirar.
- Padre, esta privada humana é minha para o que eu quiser, eu cago, mijo,
cuspo e gozo nele porque ele é meu! Então é uma troca justa, Padre... uma
troca justa. Eu fico com o menino e eles ficam com VOCÊ!
- Desculpe, Padre! Eu não lhe contei... Hoje tem reunião de pais e mestres.
Os pais de seus pacientes estão todos aqui. E Padre, eles estão muuuito
bravos com o senhor! – e o estranho ser soltou uma gargalhada maligna.
Aos poucos, a risada foi se transformando num burburinho cada vez mais
alto, e de repente a voz de todos os pedófilos de quem Padre Tiago havia
cuidado dos filhos, netos, enteados, crianças abusadas, enfim, ecoavam em
protesto dentro de sua mente:
- Meu filho, Padre, meu filho, o senhor está fazendo meu filho se esquecer de
mim. – reclamava outra.
E essas vozes se sobrepunham num clamor tão grande e confuso que Padre
Tiago caiu de joelhos, tampando os ouvidos, numa desesperada tentativa de
fazê-los se calarem.
- Não! Não! Vocês não entendem... Vocês causaram mal a eles. Vocês!
Vocês! – balbuciava em seu desespero.
- Eu acho que você está numa grande encrenca, Padre! O próprio Senhor das
Moscas me autorizou a pegar você. Você sabe o que isso significa, não
sabe?
- Você não tem como fugir, Padre! E o menino é meu! Meu! Meu...
Padre Tiago desceu correndo as escadas. Na sala, passou por uma Carolina
Nadel desfalecida sobre o sofá. Os calmantes haviam surtido efeito. Mas o
padre mal reparou nela e continuou em frente. Precisava livrar-se daquelas
moscas nojentas. Sem outra opção, atirou-se na piscina.
Parte IV – Estratégias
Tremia, tremia muito. Recuperando o auto controle aos poucos, percebeu que
tremia porque já era noite e estava frio; tremia porque suas roupas estavam
encharcadas mas, acima de tudo, tremia porque estava apavorado.
Não entendia porque aquela coisa não havia dado cabo dele até ali. Estivera
inconsciente, teria sido uma vítima fácil. Por que o mantivera vivo? Queria
torturá-lo mais?
Mas seu bom e velho amigo Johnnie Walker não lhe faltou. Ao descer pela
garganta, o forte calor da bebida ajudou a espantar o frio e a clarear as idéias.
Precisava fazer alguma coisa, mas o quê?
Estava apavorado, queria fugir. Tinha sérias dúvidas se conseguiria. Será que
o carro ia funcionar? Conseguiria dirigir naquela estradinha horrorosa? O
demônio lhe permitiria chegar a algum lugar? Ou ele morreria num acidente
de carro, deixando que aquela abominação seguisse em frente? Fazia
sentido. Se morresse ali, chamaria a atenção da Igreja,que mandaria alguém
para investigar. Se sua morte fosse considerada natural, Amaro Nadel
poderia continuar escondido dentro do corpo de Lucas, sem que ninguém
suspeitasse.
Não, ele não podia permitir aquilo. Mas não conseguia pensar em
alternativas. Precisava de um exorcismo, mas aquilo era extremamente
complicado.
tomar nenhuma decisão. Aliás, será que ela tinha idéia do que realmente
estava acontecendo? Será que aquela hora ainda estava viva?
Padre Tiago parou por um minuto. Talvez ainda houvesse uma esperança. O
que fora mesmo que o fantasma de Amaro Nadel dissera? ―O próprio Senhor
das Moscas me autorizou a pegar você.‖ ―Não, você não irá fugir de mim!‖ Se
autorizara, era porque não devia estar ali. Senão ele teria dito ―não irá fugir de
nós‖. Era um fiapo de possibilidade. Ele tinha seu fiapo de fé. De fiapo em
fiapo, ia ter de tecer um plano. Que Deus, em Sua infinita misericórdia,
lançasse sobre todos Sua proteção.
Após certificar-se que Carolina Nadel estava apenas dormindo sobre o sofá e
não morta, Padre Tiago voltou ao quarto do menino, rezando a Deus para que
nada desse errado. Ele não teria outra chance.
- De volta, Padre? Mas que surpresa agradável. Temos tanto para nos divertir
juntos, tanto para conversar...
- Não temos nada para conversar. Você não tem nada para fazer aqui. Volte
para as trevas, que são o seu lugar!
- Para uma carcaça encharcada, você até que é bem pretensioso, Padre! – e
soltou uma gargalhada pavorosa. – Vai fazer o quê, Padre? Me expulsar
como? Você nem veio para cá como um padre de verdade! Aliás, você nem é
um padre de verdade! Será que não é melhor eu tratá-lo por Doutor Tiago?
Hein, doutor?
- Para quê? Para que você me matasse na estrada e minha morte não
chamasse atenção para o seu plano infernal?
- Esperto, Padre, muito esperto! Mas eu ainda tenho como matá-lo e colocar a
sua carcaça encharcada naquele seu arremedo de carro pra fazer com que
todos chorem sua ―morte na estrada.‖
O olhar se mantinha fixo entre os dois oponentes. Padre Tiago chegou até a
porta que levava para a sacada.
Padre Tiago sentiu seus pés se descolarem do chão. Ele e o garoto estavam
flutuando! O medo fez com que ele se agarrasse também a criatura,
envolvendo seu pescoço com os braços. Flutuavam e foram subindo
lentamente, acima da altura da casa.
- Você acha que sou algum fantasminha de filme de terror? Acha que eu não
senti que você abençoou a água da piscina? Acha que eu não sentiria
tamanha quantidade de água benta, Padre? – a altura aumentava cada vez
mais - Pois agora vou jogá-lo daqui, Padre. E a água não vai ser suficiente
para conter sua queda! Você vai morrer dentro da água benta, mas nem ela
vai impedir que eu fique com sua alma! Eu vou ...
- Nãããããããããããããããããããããããããããããããããããooooooooooooooooooo....
Parte VI – Epílogo
O bip do monitor cardíaco foi a primeira coisa que ele percebeu. A seguir,
sentiu frio. Estava numa enfermaria toda azulejada e coberto com apenas um
lençol, que não o aquecia o suficiente.
- Estou zonzo, mas o pior mesmo é o frio. Será que tem algum cobertor em
algum destes armários?
- Graças ao senhor, ele está bem. Não mostrou mais nenhum comportamento
estranho. Eu é que não sei como explicar para as autoridades e para a
imprensa porque vocês dois quase morreram afogados na piscina lá de casa!
- Até ontem, estava nesse leito aqui do lado, internado como o senhor. De
ontem para hoje teve alta, mas continuou aqui comigo, esperando o senhor
acordar. Só não está aqui agora porque foi ao banheiro.
- Talvez, Padre. Mas ele não queria sair de perto do senhor enquanto não
tivesse certeza que estava bem. E ele não parou de rezar pelo senhor nem
por um minuto!
Aquilo era o sinal que Padre Tiago precisava para poder ficar tranqüilo de
verdade.
- Padre, eu estava sob efeito de sedativos. Ouvi muito barulho, mas não
entendi nada do que estava acontecendo. Só lembro de ter acordado no dia
seguinte e encontrado vocês caídos ao lado da piscina. Chamei o resgate.
Demoraram um bocado, mas conseguiram chegar e salvar vocês.
- Então, tudo o que posso dizer é que foi uma forma radical de terapia
alternativa. Caso encerrado.
Naquela noite, Padre Tiago dormiu um sono repousante como poucas vezes
fizera na vida. Estava em paz consigo mesmo. Conseguira salvar o menino e
calar a dúvida que o atormentava. Se o próprio mal saíra do Inferno para
tentar destruí-lo de uma forma tão direta, era porque sim, ele estava
realmente ajudando aquelas crianças.
Padre Tiago não pode deixar de se admirar com a boa sorte do tratante.
Mas para ele as crianças estavam em primeiro lugar. Como para o Bispo
Osório as crianças também eram prioritárias, aquela se constituía numa
excelente notícia.
Ao fim da história de Padre Tiago, o Bispo Osório ainda tinha uma dúvida:
- Não entendi: como você sabia que o Inimigo acabaria se jogando na piscina
com você, mesmo sabendo que estava cheia de água benta?
- Bom, espero que entendam que tudo que fiz foi motivado pelo desespero.
Eu não tinha como planejar nada muito elaborado, tive de assumir muitos
riscos...
- Está bem, então. Ele não era realmente o Inimigo. Era apenas um espírito.
O espírito de um humano. Estava ali porque um ser do mal o ajudara, mas
isso não fazia dele um demônio. Então, pensei que isso me daria alguma
chance e elaborei um plano com o pouco que tinha a mão.
- Mas pelo que você contou, as coisas não seguiram bem o rumo que você
pretendia.
- Não costumo pedir nada para mim mesmo, mas será que a diocese não me
daria uma nova garrafa de bolso para o meu uísque? A minha ficou destruída
com a queda.
---FIM---
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