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Letras de Sangue

O Senhor Das
O Senhor Das Moscas
Moscas

Edson Tomaz da Silva


Letras de Sangue

O Senhor Das Moscas

―Não faz muito atravessei um período de tão forte crise espiritual que escrevi
uma longa carta a um monsenhor que admiro e estimo, contando-lhe tudo.
Usei nessa carta confessional a expressão: "sinto que minha fé está presa
por um fio". Sabe o que ele me respondeu? Que se regozijava por saber que
a coisa era assim, pois não confiava muito nas chamadas "fés inabaláveis"
dessas que julgam poder deslocar montanhas. São demasiadamente teatrais
para serem profundas — escreveu o monsenhor. "O fio que prende a sua fé
deve ser do melhor aço e portanto resistente e ao mesmo tempo flexível. Fé
sem flexibilidade, fé sem dúvida pode acabar em fanatismo." Terminou a
carta assim: "Reze a Deus, peça-lhe para que faça esse fio resplandecer
sempre a Sua luz".‖

(Padre Pedro Paulo – Incidente Em Antares, de Érico Veríssimo)

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Parte I – As Peças Do Jogo

Padre Tiago sempre trouxera dentro de si uma certeza e uma dúvida.


A certeza era que chamá-lo de Homem de Deus não era uma descrição
precisa de sua pessoa. Ele tinha a sua fé, é claro, mas dizer que tinha
vocação era ir longe demais sem saber a verdade dos fatos.

Nascido numa família muito pobre do interior do Paraná, o pequeno Tiago


tinha duas opções: passar o resto de sua vida na roça com a família ou entrar
para um seminário, se tornar padre e poder dar prosseguimento aos estudos
que a família jamais poderia pagar. Ele não hesitou nem por um segundo.

No seminário descobriu que não estava sozinho e que, antes de serem


homens de fé, os religiosos são essencialmente... homens. Muitos outros lá
estavam por vários motivos que não o atendimento a um chamado divino. E
mesmo os que davam claros sinais da vocação sacerdotal tinham seus
defeitos, suas falhas, suas dúvidas, seus momentos de fraqueza. Isso lhe
deixava com a consciência bastante tranqüila sobre a escolha que fizera.

Após a conclusão de seus estudos no seminário, seus superiores decidiram


colocá-lo para trabalhar em um abrigo para crianças e adolescentes vítimas
de abuso sexual. Padre Tiago descobriu então sua verdadeira vocação:
cuidar daquelas crianças, para ele, se tornou o que dava sentido para sua
vida.

Ficava chocado com as histórias daquelas crianças.Muitas vezes o abuso


vinha por parte daqueles que deveriam ser a maior fonte de proteção e
carinho: tios, avôs, padrastos, pais, tias, madrastas, mães. Sim, meus caros,
mulheres também cometem abusos sexuais contra crianças, mães também
maculam seu amor maternal dessa forma. É muito menos comum, mas
acontece. E tem o mesmo efeito devastador.

Recuperar o que fosse possível da auto-estima, da confiança, da esperança e


dos sonhos destruídos pelo abuso, talvez esperar que um dia o sorriso
voltasse aqueles rostinhos, de onde nunca deveriam ter saído. Aquilo passou
a ser seu grande objetivo. Por aquelas crianças, Padre Tiago enfrentou a dura
jornada conciliando suas atividades como padre, o atendimento no abrigo, os
estudos de graduação em Psicologia e os diversos cursos de especialização
no atendimento de vítimas de pedofilia que vieram depois.

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Todo esse esforço também tinha a ver com a dúvida que atormentava Padre
Tiago. Tratar pessoas que passaram por experiências tão devastadoras não é
uma ciência exata. Padre Tiago sabia que haveriam as lembranças,
assombrando para sempre os cantos escuros das mentes dos pequenos.
Alguns talvez até enveredassem pelo mesmo caminho de sombras, muitos
abusadores haviam sido vítimas de abuso quando crianças. Ele jamais
poderia ter a pretensão de curá-los por inteiro então, será que o que ele fazia
era bom o suficiente? Será que não havia mesmo mais nada que ele pudesse
fazer por aquelas crianças? Será que ele realmente estava ajudando?

As crianças também eram a grade fonte da quase infinita paciência de Padre


Tiago. Especialmente da paciência que ele tinha que exercitar com o Bispo
Hermano, seu superior direto. Se Padre Tiago jamais tivera problemas em
cumprir seus votos de castidade e pobreza, umas tantas vezes passara perto
de mandar seu voto de obediência às favas e dar uns bons cascudos no
sujeitinho.

Como todo bom carreirista, o Bispo Hermano tinha o dom de colocar suas
prioridades a frente das da Santa Madre Igreja. Era um grande especialista na
arte da auto-promoção. Os recursos da diocese não eram distribuídos em
função das necessidades reais, mas em função do que lhe daria mais
visibilidade perante seus superiores.

Ele nutria uma grande antipatia por Padre Tiago. Primeiro, porque Padre
Tiago sempre queria mais dinheiro para cuidar de suas crianças. Sempre
mais pedidos de verbas para o abrigo, pedidos de verbas para estudos. E ele
precisava desse dinheiro para promover, assim digamos, as boas obras da
diocese.

Em segundo, porque toda aquela especialização num assunto tão polêmico,


mais cedo ou mais tarde iria colocar Padre Tiago em evidência na mídia.
Alguns repórteres já haviam pedido autorização para entrevistar o padre, mas
o Bispo negara. Morria de medo que o padre, ou qualquer um que fosse,
ganhasse mais visibilidade do que ele.

Padre Tiago não sabia do interesse que a mídia chegara a ter por ele e,
mesmo que soubesse, só lhe interessaria se fosse servir para conseguir
alguma coisa para as crianças. Para si mesmo, ele mantinha um único e
pequeno luxo: uma garrafinha de bolso, que ele mantinha sempre cheia de
Johnnie Walker Red Label, que apreciava com a devida moderação.

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Mas, se não podia ter certeza de que os frutos de seu trabalho eram
realmente suficiente para aquelas crianças, outros não pareciam ter dúvida de
quanto o padre era capacitado.

Era muito comum que o Conselho Tutelar solicitasse sua opinião em algumas
situações. Assim, quando aceitou dar seu parecer no caso do pequenos
Lucas, de apenas dez anos, Padre Tiago o fez acreditando que sua jornada
de vida o tivesse preparado para encarar o que ia encontrar pela frente.

Lucas era filho de Amaro Nadel, homem rico e poderoso, milionário do ramo
da construção civil. Segundo o relatório que recebera do caso, tudo começara
quando a empreiteira do pai de Lucas fora envolvida em escândalos de
corrupção. Durante a investigação, computadores foram apreendidos e neles,
além das provas dos crimes de colarinho branco, os policiais encontraram
vasto material pornográfico, incluindo fotos e vídeos caseiros dos abusos
cometidos pelo sujeito contra o próprio filho.

A tentativa de prender o pai de Lucas terminou em tragédia. Encurralado em


seu escritório, o empresário recebeu as autoridades a bala e morreu no
tiroteio. Morreu rindo da morte. Suas últimas palavras foram desprovidas de
qualquer sentido: ―Minha alma não é mais minha, mas o menino é meu. Meu
para o que eu quiser. E eu vou viver pra sempre através de meu filho.‖

O Conselho Tutelar queria uma opinião do Padre para decidir se manteria ou


não a guarda do garoto com a mãe, Carolina Nadel. Famosa por ser tão
arrogante quanto o marido, a socialite não parecia estar adaptando-se bem a
nova rotina de sair das colunas sociais para as colunas policiais.

Como já estava tudo acertado entre a Justiça e a mãe do menino, só restou a


Padre Tiago acordar cedo aquela manhã. Celebrou a missa e, a seguir, foi até
a garagem pegar o velho e pequeno Gurgel que a diocese colocava à
disposição do abrigo. Teria uma pequena viagem pela frente.

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Parte II – O Tabuleiro

Em condições normais, os Nadel receberiam quem quer que fosse em sua


luxuosa mansão no bairro do Morumbi. Em condições normais, dificilmente os
Nadel receberiam um padre em sua casa, salvo isso fizesse obrigatoriamente
parte de alguma cerimônia social, como um casamento. Mas aquelas
estavam longe de ser condições normais.

A mansão, assim como a grande maioria dos bens do casal Nadel, estavam
bloqueados pela justiça, devido à investigação da Polícia Federal. Mas
Carolina Nadel, naquela altura do campeonato, não queria ficar mesmo na
mansão. A maciça presença dos repórteres na entrada de sua casa tiravam-
lhe qualquer chance de ter um mínimo de privacidade.

Assim, numa manobra hollywoodiana, os advogados da família costuraram


um acordo com a Justiça e Carolina Nadel e seu filho Lucas puderam se
esconder em um pequeno mas extremamente luxuoso sítio que ninguém,
além do próprio casal, tinha conhecimento de que pertencia ao falecido
milionário. Era para lá que a família ia quando queria um pouco de sossego.

A estrada que dava acesso ao sítio era terrível. Amaro Nadel a mantivera
daquela forma para manter o local ainda mais discreto e inacessível. De
dentro dos maravilhosos veículos off road que a família possuía, a
conservação da estrada pouco importava.

Naquela manhã, Padre Tiago estava dando graças a Deus pelo Gurgelzinho
da diocese. Se estivesse em um carro comum, provavelmente estaria preso
naquela estradinha horrível, com uma suspensão completamente destruída e
uma tremenda cara de idiota, esperando pelo socorro que nunca iria chegar.

Seguindo o mapa que a assistente social lhe mandara, Padre Tiago chegou
até uma cerca, onde uma cancela automática e um porteiro eletrônico
esperavam quem se aventurasse pela estradinha infernal.

Carolina Nadel demorou um bocado para atender à campainha. Sua voz no


porteiro eletrônico pareceu meio pastosa, a fala lenta sugerindo o uso de
tranqüilizantes. Isso incomodou Padre Tiago. Não era bom que uma mulher
naquele estado estivesse ali sozinha para cuidar de uma criança numa
situação tão crítica, pensava enquanto a cancela ia se abrindo.

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Subindo com o carro por uma bela alameda arborizada, foi impossível para
Padre Tiago não ficar impressionado com o luxo da propriedade quando
parou o carro.

A ampla varanda apresentava várias redes penduradas, quase implorando


para que alguém deitasse nelas. A casa deveria ter no mínimo uns vinte
quartos, era possível contar dez sacadas que davam vista para a maravilhosa
piscina da propriedade. Padre Tiago não pode deixar de se imaginar pulando
de uma daquelas sacadas para a piscina e nadando para sair do outro lado,
de frente para o quiosque com a churrasqueira.

Provavelmente, do outro lado, as sacadas deveriam dar vista para as


quadras. Não dava para ver dali onde ele estava, mas duvidava muito que
não houvesse pelo menos uma quadra poliesportiva do outro lado do terreno.

Não pode deixar de se sentir um pouco aborrecido, pensando nas crianças.


Seriam instalações maravilhosas para os seus pequenos, se pudesse dispor
delas. Mas o Bispo Hermano nunca iria liberar verbas para algo parecido.

Balançando a cabeça para espantar tais pensamentos inúteis, tomou o


caminho para a entrada da casa.

Carolina Nadel não se levantou para recebê-lo, limitando-se a fazer um sinal


com a mão para que entrasse.

O abatimento da mulher era visível e ela parecia estar fazendo um esforço


enorme para não desmoronar. Outrora uma das mulheres mais elegantes do
jet set, Carolina Nadel estava vestida com um roupão e sem nenhuma
maquiagem. Olheiras profundas marcavam seu rosto. E ao vê-la
pessoalmente, o padre comprovava suas suspeitas: era evidente que ela
estava fazendo uso de tranqüilizantes para dormir.

Quando a mulher começou a falar, Padre Tiago percebeu que falava com
uma mãe desesperada:

- Padre, tem... algo errado... com o meu menino... – a fala vinha intercalada
pelos soluços.

- Senhora Nadel, ninguém sai de uma experiência dessas sem graves


cicatrizes...

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- Não, padre... não...é isso. Tem... tem... algo...algo...pior! – os soluços


tornaram-se ainda mais profundos. O desespero parecia sufocar a mulher.

– O senhor... tem... que ver, padre... meu menino, padre... meu menino...
O desespero venceu a resistência e os calmantes. Carolina Nadel desabou
num choro convulsivo.

O Padre perguntou onde podia encontrar o menino.

_ Lá... em cima... no quarto, Padre... meu menino... meu pobre menino... – e


o choro tornou o resto de sua fala ininteligível.

Rapidamente o Padre Tiago subiu as escadas e, sem grandes dificuldades,


localizou o quarto do garoto. Bateu três vezes, mas não obteve resposta.

Fez o sinal da cruz, respirou fundo e abriu a porta...

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Parte III – Começa O Jogo

Ao entrar no quarto de Lucas, Padre Tiago viu o menino sentado na cama, de


cabeça baixa, olhar vazio e balando o tronco para frente e para trás, como se
fosse um autista.

Sem fechar a porta para que o menino não se sentisse acuado, Padre Tiago
aproximou-se cuidadosamente:

- Lucas?

A resposta surpreendeu Padre Tiago:

- Lucas não está aqui no momento – a resposta veio em uma forte voz de
homem adulto – mas estávamos esperando por você, Padre!

Padre Tiago recuou assustado:

- O que é isso?

- Me avisaram que o senhor viria, Padre. Me avisaram que o senhor viria


tentar tirar meu menino de mim! – Enquanto aquela voz impossível falava
pela boca do menino, um cheiro de fezes começou a tomar conta do ar.

- Eles me disseram que o senhor é bom no que faz, Padre! – o cheiro ia


piorando, provocando náuseas em Padre Tiago – Mas ele é meu, Padre!
Meu!

- Quem é você?

- Ora, Padre, é assim que o senhor trata o pai do seu mais novo paciente?

- Amaro Nadel?

- Eu disse que viveria para sempre através de meu filho, Padre. Se não
quiseram entender, se não quiseram acreditar, o problema não é meu!

- Mas... como... isso é... possível? – o mau cheiro já fazia com que o Padre
tivesse dificuldades para respirar.

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- Padre, esta privada humana é minha para o que eu quiser, eu cago, mijo,
cuspo e gozo nele porque ele é meu! Então é uma troca justa, Padre... uma
troca justa. Eu fico com o menino e eles ficam com VOCÊ!

- Eles... quem? Quem? Do que... está... falando? – Vasculhava a sua volta


tentando achar uma rota de fuga. Viu que a porta continuava aberta – a rota
mais fácil – e sabia que a sacada lá fora do quarto era voltada para a piscina,
o que também podia ser uma alternativa.

- Desculpe, Padre! Eu não lhe contei... Hoje tem reunião de pais e mestres.
Os pais de seus pacientes estão todos aqui. E Padre, eles estão muuuito
bravos com o senhor! – e o estranho ser soltou uma gargalhada maligna.

Aos poucos, a risada foi se transformando num burburinho cada vez mais
alto, e de repente a voz de todos os pedófilos de quem Padre Tiago havia
cuidado dos filhos, netos, enteados, crianças abusadas, enfim, ecoavam em
protesto dentro de sua mente:

- Absurdo! Absurdo! Onde já se viu fazer uma filha esquecer um pai? –


protestava uma voz.

- Meu filho, Padre, meu filho, o senhor está fazendo meu filho se esquecer de
mim. – reclamava outra.

- Como pode ser tão insensível? – perguntava mais uma.

E essas vozes se sobrepunham num clamor tão grande e confuso que Padre
Tiago caiu de joelhos, tampando os ouvidos, numa desesperada tentativa de
fazê-los se calarem.

- Não! Não! Vocês não entendem... Vocês causaram mal a eles. Vocês!
Vocês! – balbuciava em seu desespero.

As vozes foram perdendo a clareza e o sentido, transformando-se num


zumbido forte. O zumbido de milhares de moscas, que agora cercavam Padre
Tiago.

- Eu acho que você está numa grande encrenca, Padre! O próprio Senhor das
Moscas me autorizou a pegar você. Você sabe o que isso significa, não
sabe?

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O menino-monstro ria, deliciado, enquanto Padre Tiago rolava pelo chão,


tentando se livrar das moscas, que se agarravam à sua pele, seu contato
espinhento e nojento se misturando a aquele indizível cheiro de fezes,
aumentando cada vez mais sua náusea. As moscas invadiam suas orelhas,
forçavam para entrar por sua boca, por seus ouvidos, pelos olhos. Entravam
por baixo de suas roupas. Fazendo um esforço supremo, correu em direção à
porta.

-Não, você não irá fugir de mim! – e a um gesto da criatura, a porta ia se


fechando. Padre Tiago tentou conter o movimento da porta, que prendeu sua
mão contra o batente, fraturando-lhe quatro dedos. Ainda assim, tirando
forças Deus sabe de onde, ele conseguiu abrir a porta o suficiente para atirar-
se ao corredor.

Desceu as escadas correndo, quase caindo. Às suas costas, ouvia os gritos


da criatura infernal:

- Você não tem como fugir, Padre! E o menino é meu! Meu! Meu...

Padre Tiago desceu correndo as escadas. Na sala, passou por uma Carolina
Nadel desfalecida sobre o sofá. Os calmantes haviam surtido efeito. Mas o
padre mal reparou nela e continuou em frente. Precisava livrar-se daquelas
moscas nojentas. Sem outra opção, atirou-se na piscina.

Aquilo funcionou para espantar algumas moscas. Outras não conseguiram


soltar-se a tempo e morreram afogadas.

Com muita dificuldade, Padre Tiago terminou de cruzar a piscina. De dentro


da água, ainda ouvia os risos assustadores da criatura. Só conseguiu sair da
piscina porque a escada de alumínio estava no lugar.

Esgotado, desabou sobre a grama, sentindo seu corpo esvair-se numa


abençoada inconsciência...

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Parte IV – Estratégias

Padre Tiago acordou assustado. Pôs-se de pé rapidamente e correu para trás


de uma moita.

Tremia, tremia muito. Recuperando o auto controle aos poucos, percebeu que
tremia porque já era noite e estava frio; tremia porque suas roupas estavam
encharcadas mas, acima de tudo, tremia porque estava apavorado.

Não entendia porque aquela coisa não havia dado cabo dele até ali. Estivera
inconsciente, teria sido uma vítima fácil. Por que o mantivera vivo? Queria
torturá-lo mais?

A luz no quarto do menino estava acesa, as portas que davam acesso à


sacada continuavam abertas. Mas de lá só vinha o silêncio.

Padre Tiago procurou o pequeno cantil metálico no bolso de seu paletó.


Felizmente ainda estava lá. Sua mão direita doía horrivelmente e foi
complicado apanhar e abrir a garrafa naquela situação. A roupa molhada
atrapalhava mais ainda.

Mas seu bom e velho amigo Johnnie Walker não lhe faltou. Ao descer pela
garganta, o forte calor da bebida ajudou a espantar o frio e a clarear as idéias.
Precisava fazer alguma coisa, mas o quê?

Estava apavorado, queria fugir. Tinha sérias dúvidas se conseguiria. Será que
o carro ia funcionar? Conseguiria dirigir naquela estradinha horrorosa? O
demônio lhe permitiria chegar a algum lugar? Ou ele morreria num acidente
de carro, deixando que aquela abominação seguisse em frente? Fazia
sentido. Se morresse ali, chamaria a atenção da Igreja,que mandaria alguém
para investigar. Se sua morte fosse considerada natural, Amaro Nadel
poderia continuar escondido dentro do corpo de Lucas, sem que ninguém
suspeitasse.

Não, ele não podia permitir aquilo. Mas não conseguia pensar em
alternativas. Precisava de um exorcismo, mas aquilo era extremamente
complicado.

Precisava, para começar, que os envolvidos concordassem com o ritual. Mas


não teria a concordância do menino e a mãe não estava em condições de

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tomar nenhuma decisão. Aliás, será que ela tinha idéia do que realmente
estava acontecendo? Será que aquela hora ainda estava viva?

Precisaria da autorização do seu bispo. Isto também estava fora de cogitação.


O Bispo Hermano levaria anos avaliando se aquilo faria bem ou mal para sua
imagem, isso se ele conseguisse provar que o menino estava possuído. Ele
não tinha esse tempo. O menino não tinha esse tempo. E, qualquer que fosse
a decisão do bispo, seria tomada em bases erradas. Duvidava que o Inimigo
não se aproveitasse disso.

Precisaria de alguém experiente no assunto, porque ele mesmo não se


lembrava de muita coisa sobre exorcismo. Estudara sobre isso no seminário,
sim, mas já faziam muitos anos. Não estava com o Ritual Romano ali, para
guiá-lo na execução do exorcismo. Não trouxera nenhuma estola, nenhuma
batina, não tinha água benta...

Padre Tiago parou por um minuto. Talvez ainda houvesse uma esperança. O
que fora mesmo que o fantasma de Amaro Nadel dissera? ―O próprio Senhor
das Moscas me autorizou a pegar você.‖ ―Não, você não irá fugir de mim!‖ Se
autorizara, era porque não devia estar ali. Senão ele teria dito ―não irá fugir de
nós‖. Era um fiapo de possibilidade. Ele tinha seu fiapo de fé. De fiapo em
fiapo, ia ter de tecer um plano. Que Deus, em Sua infinita misericórdia,
lançasse sobre todos Sua proteção.

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Parte V – De Volta Ao Jogo

Após certificar-se que Carolina Nadel estava apenas dormindo sobre o sofá e
não morta, Padre Tiago voltou ao quarto do menino, rezando a Deus para que
nada desse errado. Ele não teria outra chance.

O menino estava imóvel, sentado na cama de costas para a porta. Se os


espíritos imundos dentro dele comemoravam sua vitória até ali ou
arquitetavam novos planos, era impossível saber.

Quando a porta do quarto se abriu, seu pescoço retorceu-se em cento e


oitenta graus, e olhos vermelhos observaram a entrada de Padre Tiago no
quarto.

- De volta, Padre? Mas que surpresa agradável. Temos tanto para nos divertir
juntos, tanto para conversar...

- Não temos nada para conversar. Você não tem nada para fazer aqui. Volte
para as trevas, que são o seu lugar!

A criatura olhou Padre Tiago de alto a baixo.

- Para uma carcaça encharcada, você até que é bem pretensioso, Padre! – e
soltou uma gargalhada pavorosa. – Vai fazer o quê, Padre? Me expulsar
como? Você nem veio para cá como um padre de verdade! Aliás, você nem é
um padre de verdade! Será que não é melhor eu tratá-lo por Doutor Tiago?
Hein, doutor?

Padre Tiago permaneceu impassível. Sem tirar os olhos da criatura,


contornou vagarosamente a cama . A cabeça do menino seguiu seus passos,
rodando o pescoço até dar uma volta completa.

- Devia ter fugido quando teve chance, Padre!

- Para quê? Para que você me matasse na estrada e minha morte não
chamasse atenção para o seu plano infernal?

- Esperto, Padre, muito esperto! Mas eu ainda tenho como matá-lo e colocar a
sua carcaça encharcada naquele seu arremedo de carro pra fazer com que
todos chorem sua ―morte na estrada.‖

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O olhar se mantinha fixo entre os dois oponentes. Padre Tiago chegou até a
porta que levava para a sacada.

A criatura explodiu em mais uma de suas pavorosas gargalhadas. Com o


susto, Padre Tiago recuou para a sacada.

Com uma agilidade felina, o menino pulou da cama e agarrou-se ao peito do


padre. Envolveu-o em um abraço de urso e começou a apertá-lo. Padre Tiago
sentia as costelas comprimindo seus pulmões, estava cada vez mais difícil
respirar. Tentava empurrá-lo, mas não tinha forças.

- Tolo! Estúpido! Acha que eu não sei o que você fez?

Padre Tiago sentiu seus pés se descolarem do chão. Ele e o garoto estavam
flutuando! O medo fez com que ele se agarrasse também a criatura,
envolvendo seu pescoço com os braços. Flutuavam e foram subindo
lentamente, acima da altura da casa.

- Você acha que sou algum fantasminha de filme de terror? Acha que eu não
senti que você abençoou a água da piscina? Acha que eu não sentiria
tamanha quantidade de água benta, Padre? – a altura aumentava cada vez
mais - Pois agora vou jogá-lo daqui, Padre. E a água não vai ser suficiente
para conter sua queda! Você vai morrer dentro da água benta, mas nem ela
vai impedir que eu fique com sua alma! Eu vou ...

Padre Tiago precisava agir rápido. Alcançando a garrafa de bolso, soltou a


tampa, presa por apenas uma volta, e virou todo o conteúdo da garrafa sobre
o menino.

A criatura interrompeu seu discurso. A face, que estampava um ar de glória,


contorceu-se em uma pavorosa careta de agonia. Um urro violento brotou de
sua garganta:

- Nãããããããããããããããããããããããããããããããããããooooooooooooooooooo....

Ainda abraçados, o Padre e a vítima de possessão despencaram dos céus.


Quando atingiram a piscina, a água ferveu violentamente.

E novamente o silêncio tomou conta de tudo.

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Parte VI – Epílogo

O bip do monitor cardíaco foi a primeira coisa que ele percebeu. A seguir,
sentiu frio. Estava numa enfermaria toda azulejada e coberto com apenas um
lençol, que não o aquecia o suficiente.

Olhou em volta procurando uma enfermeira. Queria um cobertor e queria


saber onde estava e o que acontecera com o menino depois que desmaiara.
Mas não encontrou uma enfermeira. Ao invés disso, deu de cara com
Carolina Nadel.

- Como se sente, padre? O senhor passou os últimos três dias desacordado...

- Estou zonzo, mas o pior mesmo é o frio. Será que tem algum cobertor em
algum destes armários?

Cobertor encontrado, a conversa pôde continuar.

- Então, como está o garoto?

- Graças ao senhor, ele está bem. Não mostrou mais nenhum comportamento
estranho. Eu é que não sei como explicar para as autoridades e para a
imprensa porque vocês dois quase morreram afogados na piscina lá de casa!

- Onde ele está agora?

- Até ontem, estava nesse leito aqui do lado, internado como o senhor. De
ontem para hoje teve alta, mas continuou aqui comigo, esperando o senhor
acordar. Só não está aqui agora porque foi ao banheiro.

- Deviam ter ido para casa.

- Talvez, Padre. Mas ele não queria sair de perto do senhor enquanto não
tivesse certeza que estava bem. E ele não parou de rezar pelo senhor nem
por um minuto!

Aquilo era o sinal que Padre Tiago precisava para poder ficar tranqüilo de
verdade.

- E você? Do que você se lembra?

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- Padre, eu estava sob efeito de sedativos. Ouvi muito barulho, mas não
entendi nada do que estava acontecendo. Só lembro de ter acordado no dia
seguinte e encontrado vocês caídos ao lado da piscina. Chamei o resgate.
Demoraram um bocado, mas conseguiram chegar e salvar vocês.

Com um leve sorriso, o Padre Tiago respondeu:

- Então, tudo o que posso dizer é que foi uma forma radical de terapia
alternativa. Caso encerrado.

Como que concordando com o Padre, a porta da enfermaria abriu-se e Lucas


pôde finalmente agradecer ao homem que o salvara de um destino pior que a
morte.

Naquela noite, Padre Tiago dormiu um sono repousante como poucas vezes
fizera na vida. Estava em paz consigo mesmo. Conseguira salvar o menino e
calar a dúvida que o atormentava. Se o próprio mal saíra do Inferno para
tentar destruí-lo de uma forma tão direta, era porque sim, ele estava
realmente ajudando aquelas crianças.

Na manhã seguinte, liderados pelo Bispo Osório de Souza, velho conhecido


de Padre Tiago, um grupo de quatro sacerdotes entrou na enfermaria. Entre
saudações e manifestações de felicidade pela sua recuperação, Padre Tiago
recebeu a informação de que o Bispo Osório estava assumindo a diocese, já
que o Bispo Hermano havia sido transferido para um posto no Vaticano.

Padre Tiago não pode deixar de se admirar com a boa sorte do tratante.
Mas para ele as crianças estavam em primeiro lugar. Como para o Bispo
Osório as crianças também eram prioritárias, aquela se constituía numa
excelente notícia.

Só que aqueles homens não estavam ali para cumprimentos e trocas de


amenidades. Estavam ali para saber o que realmente acontecera. E, a partir
dali, tudo que conversaram passou a ser tratado em sigilo de confissão.

Ao fim da história de Padre Tiago, o Bispo Osório ainda tinha uma dúvida:

- Não entendi: como você sabia que o Inimigo acabaria se jogando na piscina
com você, mesmo sabendo que estava cheia de água benta?

Padre Tiago já esperava por aquela pergunta.

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- Bom, espero que entendam que tudo que fiz foi motivado pelo desespero.
Eu não tinha como planejar nada muito elaborado, tive de assumir muitos
riscos...

- Sua posição é perfeitamente clara, Tiago.

- Está bem, então. Ele não era realmente o Inimigo. Era apenas um espírito.
O espírito de um humano. Estava ali porque um ser do mal o ajudara, mas
isso não fazia dele um demônio. Então, pensei que isso me daria alguma
chance e elaborei um plano com o pouco que tinha a mão.

Padre Tiago tomou fôlego. E continuou.

- Quando abençoei a água da piscina, joguei fora o uísque do meu cantil de


bolso e o enchi com a água benta. Deixei a garrafa meio destampada dentro
de meu bolso, pretendia tentar atraí-lo até a sacada do quarto e jogar essa
água nele. Era a forma como pretendia fazê-lo cair na piscina.

- Mas pelo que você contou, as coisas não seguiram bem o rumo que você
pretendia.

- Sim. Ele me agarrou e saiu flutuando comigo. Então, não me restou


alternativa, a não ser derramar a água benta sobre ele. E isso fez com que
ele perdesse o controle e nós caíssemos na piscina.

- Entendo... – o olhar que o Bispo Osório lançou em direção a porta mostrou


claramente que estava satisfeito e queria ir embora - Bom, acho que foi uma
longa conversa e você precisa descansar. Tem alguma coisa que possamos
fazer por você?

- Não costumo pedir nada para mim mesmo, mas será que a diocese não me
daria uma nova garrafa de bolso para o meu uísque? A minha ficou destruída
com a queda.

Apesar da seriedade do assunto, os padres não conseguiram conter uma boa


risada.

---FIM---

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Sobre o Autor

Edson Tomaz da Silva nasceu em São Paulo, capital, em 26 de abril de 1971.


A paixão pelos gêneros de terror e suspense é antiga, mas o autor só
começou a publicar seus textos em 2009 no site Recanto das Letras‖

Em 2010, criou o site Letras de Sangue, onde publica seus textos, na


companhia de outros escritores amadores, também apaixonados por terror e
suspense.

Para ajudar na divulgação do site, passou a publicar seus textos também no


Scribd, criando a Coleção Letras de Sangue.

Licenciamento da Obra

A presente obra encontra-se licenciada sob a licença Creative Commons


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O Senhor Das Moscas Página 19

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